meio ambiente

Cristina Serra: Bolsonaro, vira-latismo e ecocídio

Ele promove o retorno explícito ao complexo definido por Nelson Rodrigues

Nada mais ilustrativo dos modos de moleque com que o Brasil de Bolsonaro se apresenta ao mundo do que um detalhe de recente reunião entre o ministro do zero ambiente, Ricardo Salles, e a equipe de John Kerry, representante de Joe Biden para as questões climáticas.

Segundo reportagem de Marina Dias nesta Folha, os brasileiros exibiram aos norte-americanos o slide de uma TV de cachorro, típica das nossas padarias. A imagem mostrava um vira-latas apreciando os frangos no espeto com o título: "Expectativa de pagamento". Cada ave tinha o desenho de um cifrão. Bolsonaro é isso: o retorno explícito ao complexo de vira-latas definido por Nelson Rodrigues nos anos 1950.

Acordos diplomáticos são bons para os envolvidos quando baseados em vantagens e respeito mútuos. O Brasil não tem um plano minimamente verossímil de combate ao desmatamento, e os antecedentes de Bolsonaro e Salles não inspiram confiança. Para nosso azar, é o que temos para lidar com as tensões da complexa geopolítica atual e negociar com os Estados Unidos.

A estratégia da dupla foi abrir as discussões pedindo dinheiro num tom que tangencia a tentativa de extorsão e para fazer aquilo que é nossa obrigação, conforme compromissos assumidos por governos anteriores, quando o Brasil ainda era respeitado em fóruns internacionais: reduzir o desmatamento na maior floresta tropical do mundo e as emissões de gases do efeito estufa.

Em rede social, Kerry indicou que os Estados Unidos esperam do Brasil resultados "tangíveis", não apenas promessas. É nesse ponto que os dois países chegam à cúpula sobre mudança climática, daqui a dois dias. A proteção ambiental demanda muito recurso. Mas dinheiro na mão de um tipo como Salles e sem contrapartidas claramente verificáveis é jogar mais gasolina no incêndio da floresta.

É reforçar as frentes de ataque de grileiros, madeireiros, garimpeiros, desmatadores. É acumpliciar-se com o crime de ecocídio.


Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa: ‘Uma morte social mais inquietante’

‘O barulhento Dionísio, convém não esquecer, é ao mesmo tempo o deus do amor e da morte.’ O alerta do sociólogo Michel Maffesoli, em “A sombra de Dionísio”, tornou-se mais atual do que nunca nesta nova Era da Peste. Na madrugada do domingo do carnaval que não houve, 14 de fevereiro, um repórter de São Paulo registrou, caprichando na precisão: “As mais de 237.489 mortes não conseguiram deter realizadores de bailes funk, nos bairros de Itaquera e Guaianases”. Somos os mesmos que nossos ancestrais do século 14.

A Peste chegou à Europa em 1348, junto com embarcações dos comerciantes italianos provenientes do Mar Negro e de Bizâncio. Espalhou-se rapidamente, seguindo as rotas comerciais: cidades do Mediterrâneo, Europa Central e, na sequência, o Norte e as planícies russas. Tudo isso até 1352. As festas da Peste foram documentadas por cronistas da época.

Cerca de um terço da população europeia, algo em torno de 8 milhões de almas, pereceu em apenas uma década. Depois, a epidemia repicou várias vezes, em ondas sucessivas que voltaram a afligir cidades já açoitadas. Os habitantes de Florença logo entenderam os perigos da aglomeração humana, como relata Giovanni Boccaccio (1313-75) no “Decamerão”. Bactérias só foram observadas três séculos mais tarde, mas já se sabia, à época, que a água era fonte de infecções. Tal como na Peste do Vírus dos nossos dias, os ricos fugiram rumo às suas villas, no entorno rural, distanciando-se dos “ares pestilentos”.

Os demais — comerciantes, artesãos e o proletariado original —ficaram, por falta de alternativa. E morreram, às centenas, diariamente. A morte distingue classes, mas, paradoxalmente, opera como grande evento nivelador, que lembra a todos sobre a vanidade da vida. No século da Peste, emergiram, em diferentes pontos da Europa, representações da “Dança Macabra” em que cardeais, príncipes e damas dançam com esqueletos.

Dança e vinho. A festa, celebração da dialética entre vida e morte, acompanhou a pandemia, tanto nas villas do isolamento quanto nas cidades pestilentas. Festejava-se por ainda viver. Rompiam-se as regras para confrontar a morte ou desafiar Deus. Hoje, atribuímos a Covid-19 ao vírus — isto é, às armadilhas da seleção natural. Na peste bubônica, como alguns o fazem ainda agora, creditava-se o horror à vontade de Deus, que castigava os humanos ímpios. Daí, um passo adiante, alguns chegavam à descrença.

Gargalhar na cara do inevitável, do Juízo Final. Dançava-se ao som da música não religiosa, que florescia em formas inovadoras, como o rondó e a balada. Sob o medo da morte, o frenesi da festa resgatava as interações socais que conferem sentido à vida. A música secular difundiu-se justamente no rastro da Peste, rodando as engrenagens do individualismo moderno, com seu “eu lírico”.

Triunfo de Dionísio, o feio e coxo, sobre Apolo, certinho e áureo. Vida e morte: as festas dionisíacas originais, da velha Grécia, terminavam com o sacrifício um tanto violento de um boi, que seria comido por todos num grande ato de restauração e congraçamento. Na festa, “o que importa é a pulsão irreprimível do querer viver que, ao manifestar-se, não mais receia assimilar as ‘pequenas mortes’ sucessivas — ‘sabendo’ que, assim, se protege ritualmente de uma morte social bem mais inquietante” (Maffesoli). Carpe diem.

As autoridades medievais bem que tentaram controlar, mas fracassaram. Os escassos cronistas da época concordam na avaliação de que o comportamento das pessoas ficou pior, não mais piedoso. Dizem, hoje, cenhos carregados, que aglomerar para trabalhar é virtuoso, mas a aglomeração de folguedos atenta, no mínimo, contra um protocolo sanitário e moral. Na Peste, nem todos festejavam. Havia, claro, os que se fechavam nas igrejas, rezando pelo perdão divino — e contribuindo igualmente para os contágios. Os cultos coletivos, antes como agora, não foram proibidos.

Pandemias são continuidade, mais que ruptura. A Grande Peste medieval ajudou a descolar o indivíduo da coletividade, a disseminar a economia monetária e sua riqueza portátil. A festa é parte dessa história, tão antiga e tão próxima.*Sociólogo e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais;

**Historiadora e editora-executiva do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos


Sergio Lamucci: O cenário negativo para a renda dos mais pobres

O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados, mais afetados pela pandemia

O cenário para a renda dos brasileiros mais pobres em 2021 é bastante negativo. Com a piora da pandemia da covid-19 e o avanço lento da vacinação, a atividade econômica foi prejudicada no primeiro semestre, resultando na continuidade da fraqueza do mercado de trabalho, num ano em que o auxílio emergencial será bem menor do que em 2020. A desigualdade de renda, nesse quadro, voltará a crescer.

Um estudo da Tendências Consultoria Integrada estima que haverá neste ano um aumento de 1,2 milhão de domicílios nas classes D e E, definidas como as que têm rendimento mensal domiciliar de até R$ 2,6 mil. Com isso, essas faixas de renda deverão passar a responder por 54,7% do total de residências no país.

 “O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados”, aponta o trabalho, ressaltando que “o caráter regressivo da pandemia permanece desproporcional” para as pessoas de menor nível de escolaridade.

“A piora do balanço de riscos para a atividade econômica deve restringir o ímpeto de contratações, sobretudo no segmento de serviços, cuja tendência de crescimento deve ser interrompida, à vista do recrudescimento do isolamento social em diversas localidades do Brasil.” A consultoria revisou recentemente a estimativa para a expansão do PIB em 2021 de 2,9% para 2,7%. Ainda que a nova versão do programa que permite a suspensão do contrato de trabalho ou a redução de jornada e de salários (o BEm, a ser reeditado em breve) deva contribuir para sustentar o emprego formal, a renovação do auxílio emergencial não deverá conter a alta dos desempregados, avalia a Tendências.

O auxílio emergencial atingiu um valor total de R$ 293 bilhões em 2020, o equivalente a 4% do PIB. De abril a agosto, o valor médio foi de R$ 600; de setembro a dezembro, de R$ 300. Em alguns meses, alcançou 67,9 milhões de pessoas, equivalente a um terço da população. Neste ano, o Congresso aprovou R$ 44 bilhões para o benefício fora do teto de gastos, a ser pago em quatro parcelas, com um valor médio de R$ 250. Se o benefício em 2020 foi amplo demais, neste ano pode haver o problema oposto - o valor é mais baixo, atenderá a menos pessoas e valerá por um prazo mais curto.

“Diante do menor auxílio emergencial e da perspectiva de recuperação moderada do mercado de trabalho, a massa total de renda deve recuar 3,8% em 2021”, impedindo a manutenção no mesmo nível de 2020, diz a Tendências. Essa é a variação prevista em termos reais, já descontada a inflação. No conceito da consultoria, a massa total considera o rendimento de todos os trabalhos, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência), os benefícios previdenciários e outras fontes de renda. No ano passado, o indicador cresceu 5,2%, fortemente impulsionado pelo auxílio emergencial. Neste ano, haverá uma ressaca mais intensa da massa de renda no Norte e Nordeste, após o enxugamento dos repasses emergenciais, aponta a Tendências.

A expectativa dos analistas é que a retomada da economia ocorrerá no segundo semestre. Com o avanço da vacinação, as medidas de restrição à mobilidade tendem a ser relaxadas. Na visão da Tendências, a economia brasileira deve manter trajetória de gradual recuperação em 2021, sem uma melhora plena do mercado de trabalho, devido a fatores como “o agravamento da pandemia, os recentes sinais de fraqueza de grandes setores, a redução do arsenal de políticas anticíclicas e as incertezas da agenda de política econômica”.

Num primeiro momento, a retomada da atividade deve favorecer as classes sociais mais altas, segundo a Tendências. “A elite do funcionalismo público sente menos os efeitos da crise, já que a dinâmica econômica pouco interfere em seus salários e planos de carreira”, aponta o estudo, observando também que a maior concentração de empregadores no topo da pirâmide social propicia um rápido reequilíbrio financeiro das famílias. “Com rendimento atrelado aos ganhos de suas empresas, os donos de negócio buscam recuperar o padrão histórico de lucro, antes de reajustar salários de empregados e recontratar”, diz a Tendências.

Para as classes D e E, as perspectivas são desanimadoras. “A mobilidade social das classes D e E deve ser reduzida nos próximos anos, acompanhando um fenômeno típico de países com alta desigualdade de renda”, avalia a consultoria. “O maior entrave ao crescimento da renda dos estratos sociais mais pobres é a educação não revertida em produtividade. O ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la.”

A Tendências observa que o mercado de trabalho brasileiro é fortemente caracterizado por baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos. “O alto nível de desemprego, a falta de ganho real no salário mínimo, o elevado grau de informalidade e a subutilização dos trabalhadores devem impedir ganhos elevados de renda nas classes D e E.” Nas projeções da Tendências, depois de crescer 23,4% em 2020 em termos reais, na esteira do auxílio emergencial, a massa de renda das classes D e E deve cair 14,4% em 2021, crescendo a uma média de apenas 0,85% de 2022 a 2025, em estimativas que já descontam a inflação. Já a massa de rendimentos da classe A, que subiu 1% em 2020, vai ter aumento real de 2,8% neste ano e de 5,6% no ano que vem, com um avanço próximo a 4,5% nos três anos seguintes, estima a consultoria.

Para escapar desse cenário negativo para a renda, é fundamental primeiro acelerar a vacinação. Isso permitirá afrouxar as medidas de restrição à mobilidade social, beneficiando em especial a recuperação do setor de serviços, o maior empregador da economia. Também é essencial a renovação imediata dos programas de empréstimos a micro e pequenas empresas e de proteção ao emprego, para dar fôlego às companhias de pequeno porte. Se a recuperação da atividade continuar a patinar, uma nova extensão do auxílio emergencial deverá ser necessária, o que será um desafio num quadro de penúria das contas públicas.


Bruno Carazza: Bancarrota blues

Muda discurso sobre Meio-Ambiente, mas não a prática

Tomada ao pé da letra, há uma enorme evolução entre o discurso proferido por Jair Bolsonaro na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, bem no início do seu mandato (22/01/2019), e a carta enviada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na última quarta-feira (14/04), confirmando presença na Cúpula de Líderes sobre o Clima.

Em sua primeira viagem internacional, o novo presidente brasileiro apresentou-se à elite mundial com uma fala de meros 6 minutos e 37 segundos. Na ponta do lápis, foram 741 palavras - pouco mais do que uma página de Word. Já a carta enviada para Biden na semana passada, ao contrário, não economizou no texto; foram sete laudas, e diferentemente da apresentação na Suíça, quando desperdiçou a chance de apresentar os principais planos para o seu governo, Bolsonaro na missiva para o americano tratou de apenas um assunto: o meio ambiente.

Para além do tamanho do texto, houve uma mudança de tom. Em Davos, o presidente brasileiro apresentava o patrimônio natural brasileiro como um ativo a ser negociado. “Temos a maior biodiversidade do mundo e nossas riquezas minerais são abundantes. Queremos parceiros com tecnologia para que esse casamento se traduza em progresso e desenvolvimento para todos. Nossas ações, tenham certeza, os atrairão para grandes negócios”, afirmou, anunciando que o Brasil estava de braços abertos para o mundo.

A carta para Joe Biden é muito mais cautelosa. Começa reiterando “o compromisso do Brasil com os esforços internacionais de proteção ao meio ambiente, combate à mudança do clima e promoção do desenvolvimento sustentável”. Em seguida, faz um retrospecto dos avanços do país na área, frutos dos governos anteriores - embora não deixe isso explícito, não deixa de ser um fato importante para quem sempre criticou seus antecessores na área ambiental.

Por fim, Jair Bolsonaro apresenta planos muito mais elaborados do que simplesmente obter parceiros para explorar as riquezas da floresta: intensificar o combate ao desmatamento ilegal e as queimadas, acelerar a implementação de um mercado de créditos de carbono e estimular o pagamento por serviços ambientais para que proprietários de terra se sintam incentivados a manter a floresta em pé, entre outras medidas.

Comparando os dois textos, seríamos levados a concluir que o presidente brasileiro mudou, finalmente se conscientizando da seriedade da questão ambiental e dos imensos ganhos que o país pode obter ao assumir um maior protagonismo nessa área. Só que não (#sqn, como se diz nas redes sociais).

Quem mudou, na verdade, foi o mundo. E a reunião que começa na próxima quinta-feira (22/04), tendo o presidente dos Estados Unidos como anfitrião num encontro de 40 líderes mundiais, revela isso.

Há cinco anos o Global Risks Report, pesquisa realizada junto a centenas de especialistas do setor privado, governos e sociedade civil, aponta os danos causados pelo aquecimento global como o evento com maior probabilidade de ocorrência no curto prazo. Para 2021, embora a pandemia se apresente, por motivos óbvios, como tendo o maior impacto, a falha na ação climática, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos naturais aparecem, junto com as armas de destruição em massa, como os “top-five” riscos medidos pelos seus efeitos potenciais sobre o planeta.

O atual movimento político na direção da antecipação das metas celebradas no Acordo de Paris, contudo, não se deve apenas a uma preocupação crescente com a questão climática. Há uma revolução econômica e tecnológica em curso, e ele traz em seu âmago a questão ambiental - para o bem ou para o mal.

O barateamento da produção de fontes limpas de energia, como eólica e solar, combinado com o desenvolvimento de baterias mais potentes, recarregáveis e leves, prenunciam um futuro próximo menos dependente da queima de derivados do petróleo e do gás natural.

Além disso, o aprimoramento dos mercados de crédito de carbono - que nos últimos meses têm batido recordes sobre recordes - tem sinalizado para as companhias de energia e a indústria pesada que o custo de poluir será cada vez mais salgado. Para completar, fundos de investimentos bilionários estão adotando a sustentabilidade em suas políticas de governança e premiam empresas responsáveis na área ambiental.

Há também o lado sombrio dessa história, que é o protecionismo. Os dados mais recentes da Organização Mundial do Comércio revelam que em 2018 foram apresentadas 663 notificações de práticas desleais de comércio que tinham como pano de fundo questões ambientais. E no âmbito da União Europeia já se discute abertamente uma proposta para proteger empresas locais contra a concorrência de produtos provenientes de países que não descarbonizarem as suas economias.

Voltando à carta de Bolsonaro para Biden, John Kerry, responsável pela ação climática no governo americano, tuitou na sexta que a mudança de tom do presidente brasileiro foi importante, mas é preciso demonstrar “resultados tangíveis”. E quando se vê o que o Palácio do Planalto propõe de concreto, prevalece a velha agenda do que há de mais retrógrado no agronegócio, no garimpo e nas madeireiras.

Basta conferir a pauta prioritária encaminhada pelo governo aos novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro deste ano: nela constam propostas de mineração em terras indígenas (PL nº 191/2020), regularização fundiária na Amazônia (PL nº 2.633/2020) e flexibilização das regras de licenciamento ambiental (PL nº 3.729/2004).

O discurso pode ter melhorado, mas na prática a visão do governo brasileiro continua sendo aquela demonstrada de forma nua e crua pelo diretor Marcus Vetter no documentário “O Fórum”. Nos bastidores do encontro de Davos em 2019, Bolsonaro responde da seguinte maneira à preocupação do ex vice-presidente americano Al Gore com o desmatamento no Brasil: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Cristovam Buarque: Não basta a China

A construção do Brasil é tarefa dos brasileiros

No excelente livro “Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro” a jornalista escritora Eliane Blum escreveu que: “Como o mundo regido pelo capital não ficaria encantado por um presidente que tornava os ricos mais ricos e os pobres menos pobres sem precisar redistribuir a riqueza nem ameaçar privilégios de classe?” […] “A mágica de Lula só era possível devido ao aumento da exportação de matérias primas e movida especialmente pelo crescimento acelerado da China”.

Outra vez é a China que está nos salvando com sua vacina, além de continuar como o grande parceiro comercial. Se não fosse a China, nossa situação sanitária estaria muito mais desesperadora. Mas quando a epidemia passar, o Brasil não estará bem, mesmo que tenha UTIs livres. Não vamos contar com a China para resolver os problemas do Brasil.

A injeção de dólares vindos da China no período Lula permitiram aumentar a renda e o consumo inclusive das camadas mais pobres, mas não se fez o que era preciso para enfrentar o quadro real da pobreza: saneamento, educação de base com qualidade universal, transporte público eficiente e confortável, garantia de emprego, paz nas ruas. Os governos não iniciaram qualquer reforma estrutural sobretudo na área social, a recessão, desemprego, inflação, e agora a epidemia, desfizeram os ganhos puramente monetários e conjunturais. Sem as reformas na educação, na saúde, na economia, a China não basta.

Estes problemas são nossos e nos cabe enfrentar escolhendo governos que demonstrem compromissos para resolver os problemas nacionais. Mas isto exigirá estratégias de anos, por governos que entendam os problemas, tenham estratégias resolvê-los e saibam coordenar e conduzir o país neste rumo.

Deste caótico, negacionista, obtuso, antipatriota governo atual não se pode esperar um rumo para o país. Para 2022, a tarefa é conseguir um novo governo que traga de volta aceitação da ciência e respeito à verdade, recupere as bases da democracia, enfrente as sequelas da epidemia, retome o prestígio do país no exterior, proteja nossos recursos nacionais, especialmente nossas reservas florestais. Para isto, é preciso uma unidade de todos que se opõem ao atual governo, como foi proposto por um recente artigo assinado por Milton Seligman, Benjamin Sicsú, Mauro Dutra. Eles propõem a unidade de todos os democratas na escolha de um candidato único, e que este assuma o compromisso de ficar apenas um mandato, e deixar para 2026 as disputas entre os diferentes programas e ideias para construir o Brasil.

A China foi decisiva para as realizações na primeira década dos anos 2.000, graças ao Lula, está sendo decisiva com sua vacina, apesar do Bolsonaro, mas a China não basta. A construção do Brasil é tarefa dos brasileiros, e o primeiro passo será dos eleitores em 2022, impedindo a reeleição do atual desgoverno, um passo anterior aos eleitores deverá ser dos líderes partidários escolhendo candidatos que unifiquem e tenham baixa rejeição.

*Cristovam Buarque foi governador, ministro e senador


Elio Gaspari: O que falta a Bolsonaro é seriedade

O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças

A diplomacia americana está fritando Bolsonaro. O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças. Do outro lado, o Departamento de Estado levantou um muro. Quando um porta-voz disse que espera “seriedade” do governo brasileiro na cúpula do clima que começa quinta-feira, cravou uma estaca na agenda.

Enquanto o Departamento de Estado pedia “seriedade”, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, justificava o bloqueio a viajantes brasileiros e arrancava risadas na Assembleia francesa ao lembrar que “o presidente da República, em 2020, aconselhou a prescrição de hidroxicloroquina, e gostaria de lembrar que o Brasil é o país que mais a prescreveu”.

Bolsonaro passou de piromaníaco a pedinte. Admitiu acabar com o desmatamento até 2030 e estragou sua nova posição numa única frase: “Alcançar esta meta, entretanto, exigirá recursos vultosos e políticas públicas abrangentes, cuja magnitude obriga-nos a querer contar com todo apoio possível.” Coisas assim se fazem, mas não se dizem, sobretudo se esse mesmo governo desdenhou a ajuda estrangeira e esvaziou o Fundo Amazônia. Colocar o Brasil, ou qualquer outro país, na posição do cachorro que olha para os espetos de frangos, como fez o doutor Ricardo Salles, é apenas burrice.

O Império e a República cuidaram da Amazônia de todas as formas, mas nunca falaram em dinheiro. Essa é a pior maneira para se começar uma negociação diplomática. Com ela, chega-se apenas a uma velha piada, atribuída ao ex-secretário de Estado Americano Henry Kissinger.

Numa versão politicamente correta, ela fica assim:

“Todos têm um preço”.

“Há coisas que eu não faço, nem por um milhão de dólares”.

“Você já está discutindo seu preço”.

Veneno

A carta de Bolsonaro a Joe Biden ocupa sete páginas.

Fosse qual fosse seu efeito, ele foi anulado pela curta notícia do afastamento do delegado Alexandre Saraiva, que chefiava a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas e acusou o ministro do Meio Ambiente de advogar no interesse de desmatadores.

Lula e Bolsonaro

Uma Lava-Jato e três anos depois, Lula ficou maior, e Bolsonaro está menor.

Suprema criatividade

Quem entende de Supremo Tribunal Federal arrisca: com a anulação das sentenças que Curitiba impôs a Lula, algo como dez réus de Sergio Moro, em condições similares, pedirão o mesmo benefício. Para negá-lo, será necessária inédita criatividade.

Sumiço

Um experimentado empresário do agronegócio registra que a militância dos agrotrogloditas entrou num período de entressafra. Deram-se conta de que colheram (ou queimaram) o que podiam.

Profissional e amador

O embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, é um diplomata de carreira. Como o ex-chanceler Ernesto Araújo também é, entende-se que profissionais acabem se comportando como amadores. Em 2019, quando estava sendo sabatinado pelos senadores americanos, Chapman classificou as queimadas da Amazônia como “ocorrências anuais”. Perdeu uma oportunidade de ficar calado, mas pode-se entender que não quisesse melindrar Bolsonaro, o bom amigo de Donald Trump.

Passou o tempo, Trump foi para a Flórida, e na Casa Branca está Joe Biden. O embaixador Chapman reuniu-se com integrantes da “Articulação dos Povos Indígenas do Brasil”. A Apib queria um “canal direto” de comunicação com o governo americano, e o encontro foi diluído com a presença de indígenas indicados pelo governo. Uma salada.

Não é boa ideia que um embaixador de povo estrangeiro se reúna com representantes dos “povos indígenas”, mas seria descortesia não conversar. Podia ter destacado um diplomata de escalão inferior para o encontro.

Chapman poderia consultar os arquivos do Departamento de Estado para estudar um valioso precedente. Em 1876, quando viajava pelos Estados Unidos, D. Pedro II teve seu trem parado por um grupo de índios Sioux, chefiados pelo famoso “Touro Sentado”. O cacique pedia que o Imperador intercedesse pelos índios americanos junto ao presidente Ulysses Grant. É improvável que D. Pedro tenha tratado do assunto.

Apocalipse

No mesmo dia em que se noticiava a morte, na cadeia, do vigarista Bernard Madoff, que em 2008 foi apanhado num golpe de US$ 15 bilhões, Jair Bolsonaro disse que o Brasil se tornou “um barril de pólvora”: “Estamos na iminência de ter um problema sério”.

O que ele quis dizer com isso, não se sabe. Desde o ano passado, Bolsonaro acena com um Apocalipse. Ora falava em saques, ora advertia para o caos. Morreram mais de 360 mil pessoas, faltaram testes, vacinas, oxigênio e remédios. A desordem esteve no governo, e os saques, quando ocorreram, atacaram a Bolsa da Viúva.

Madoff também apostou no Apocalipse. Muita antes de ser apanhado, ele sabia que sua pirâmide explodiria e, preso, contou:

“Eu queria que o mundo acabasse. Quando aconteceu o atentado de 11 de setembro de 2001, eu achei que ali estava a saída. O mundo acabaria.”

Doutores cloroquina

É possível que o repórter Fabiano Maisonnave tenha entregue de bandeja um presente à CPI da Pandemia. Seria o depoimento dos médicos Michelle Chechter e Gustavo Maximiliano Dutra, que foram a Manaus em fevereiro para aplicar a “técnica experimental ‘nebuhcq líquido’, desenvolvida pelo dr. Zelenko”. Eram nebulizações de cloroquina.

Quatro pacientes grávidas receberam o tratamento. Todas morreram.

Uma delas teve um vídeo gravado, postado no dia 20 de março pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni. Ele informava que “de 0 a 10, melhorou 8”.

Talvez Lorenzoni não soubesse, mas ela morrera no dia 2.

Milton Ribeiro zangou-se

O ministro Milton Ribeiro, da Educação, zangou-se com uma reportagem de Paulo Saldaña mostrando a existência de um esquema para fraudar pagamentos do Financiamento Estudantil, boca rica administrada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE.

Como os repórteres são uma raça maldita, o doutor Ribeiro bem que poderia estender sua zanga ao edital do FNDE de 2019 que pretendia torrar algo como R$ 3 bilhões na compra de equipamentos para a rede pública de ensino. A Advocacia-Geral da União sentiu o cheiro de queimado, porque numa só escola 255 alunos receberiam 30 mil laptops (118 para cada um). Outros 335 colégios receberiam mais de um laptop para cada aluno.

O edital foi suspenso e cancelado. Passaram-se dois anos, três ministros da Educação e pelo menos três presidentes do FNDE, mas ninguém sabe quem botou esse jabuti no edital.


Míriam Leitão: Do chão da floresta à cúpula do clima

Um avião do Comando de Aviação Operacional da Polícia Federal foi a Manaus em novembro buscar policiais para ajudar nas eleições no sul do Estado. O superintendente da PF, Alexandre Saraiva, perguntou ao piloto: “Na volta, tem como sobrevoar os rios Madeira e Mamuru para ver se tem balsa da madeira?” Um agente foi junto para fotografar e trouxe farto material. Assim começou a maior apreensão de madeira feita pela Polícia Federal. A ação foi comemorada em nota pela Secom do Planalto. Saraiva esteve no Conselho da Amazônia para explicar a operação e discutir o destino da madeira. A reviravolta ocorreu quando o ministro Ricardo Salles foi ao Amazonas e passou a defender os madeireiros.

Na reunião de cúpula esta semana sobre clima, convocada pelo presidente Joe Biden, o presidente do Brasil vai mentir. Já há muita falsidade na carta enviada por Bolsonaro a Biden. A meta de zerar o desmatamento ilegal em 2030 é antiga, foi apresentada pelo Brasil em 2009, em Copenhague, e confirmada em Paris. No mesmo dia em que prometeu reduzir o desmatamento, o governo fez o oposto. A boiada de Salles é coisa que passa todo dia. Ele baixou, na quinta-feira, uma instrução normativa que constrange mais ainda a fiscalização ambiental.

— A instrução normativa condiciona a validação das multas ambientais à concordância de uma autoridade ‘hierarquicamente superior’. Já havia antes criado um conselho de conciliação para validar as multas — explica André Lima, coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade.

Tudo é complexo quando o assunto é Amazônia. Mas os fatos se juntam. Tanto a exoneração do superintendente Saraiva, quanto as recorrentes normas com as quais o governo Bolsonaro mina o edifício legal construído em governos anteriores, que havia feito do Brasil um exemplo de combate ao desmatamento.

O delegado Saraiva, na sexta-feira, reapresentou a notícia-crime contra o ministro Ricardo Salles no STF por “obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato das questões ambientais”. A relatora será a ministra Cármen Lúcia. Ele havia tido dificuldade de incluir no sistema eletrônico, mas, mesmo após o anúncio de que seria exonerado, insistiu. Está convencido de que o que ele viu é crime. E dos grandes. O governo achava o mesmo. A nota da Secom, no dia 24 de dezembro, trazia a bandeira do Brasil ao lado da inscrição “O gigante verde” ilustrando a foto dos caminhões enfileirados da “Operação Handroanthus GLO”. A carga, dizia a Secom, “representa mais de 6,2 mil caminhões lotados”. E isso quando se achava que eram 131 mil m3 de madeira. Na verdade, foram mais de 200 mil m3. Salles diz agora que era tudo legal.

— A madeira que estava nas balsas não correspondia à madeira descrita no Guia Florestal. Nem nos caminhões. Os documentos que os empresários apresentaram têm fortes indícios de fraude, apesar disso o ministro os defendeu — disse Saraiva.

Esse é um fato. Há milhares de fatos estranhos na rede que sustenta o abate da floresta. Contra isso o Brasil aprovou leis e assumiu compromissos internacionais. Na gestão Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente foi feito o PPCDAm, o mais bem estruturado plano de combate ao desmatamento. Era maio de 2005. Por causa dele o Brasil derrubou em 80% o desmatamento nos anos seguintes. Em 2009, para a COP-15, quando o ministro era Carlos Minc, foi anunciada a Lei Nacional de Mudanças do Clima. Assim nasceram as metas do Brasil. Elas não foram inventadas agora pela dupla queima-floresta Bolsonaro&Salles.

— A carta de Bolsonaro a Biden é mais que triste, é dramática. Ele fala em proteger indígenas, e o governo é autor do projeto que legaliza mineração, exploração de madeira, agropecuária, gás, petróleo e usina elétrica em terra indígena. Ele enterrou o PPCDAm mas pede dinheiro alegando que o Brasil reduziu o desmatamento. Caiu por causa do plano que ele desmontou — diz André Lima.

O MapBiomas tem feito perguntas pela Lei de Acesso à Informação ao vice-presidente, general Hamilton Mourão, sobre os crimes ambientais. Fez 66. A resposta é sempre a mesma. A de que o Conselho da Amazônia é só o coordenador. “Sugere-se que seja realizado o pedido ao órgão competente”. Mas o Ibama nem faz parte do Conselho.

Esse ataque múltiplo contra a floresta é a verdade do Brasil. Verdade que não estará na fala de Bolsonaro aos líderes mundiais.


Editorial da Política Democrática Online conclama oposições para cooperação

Publicação mensal da FAP diz que país mergulhou “em cenário de incerteza” com eleição de Bolsonaro

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Oposições políticas devem seguir na tarefa fundamental de cooperação cada vez mais indispensável para manter a resiliência democrática permanente. “A hora é de concentrar o esforço de todos no combate às ameaças que rondam a democracia”, alerta o editorial da revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição).

Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania, a publicação diz que o país mergulhou “no cenário de incerteza” após as eleições de 2018, que levaram Jair Bolsonaro (sem partido) à presidência do país. A nova edição foi lançada no último sábado (17/4).

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“Apenas uma percepção clara se consolida mês a mês, para um número crescente de observadores: a progressão acelerada da crise, em suas diferentes dimensões”, afirma outro trecho da revista FAP.

Marca da morbidez

No plano sanitário, de acordo com o editorial da Política Democrática Online de abril, a pandemia avança de forma galopante e, com ela, o número de óbitos evitáveis.

“Ultrapassamos a marca de trezentas e cinquenta mil mortes, a média de falecimentos ao dia segue em curva ascendente e não dispomos ainda de uma previsão confiável a respeito do ponto aproximado de reversão dessa situação”, assevera o texto.

De acordo com a revista, a situação de catástrofe é reflexo, exclusivamente, da omissão do governo federal na contratação das vacinas e sua oposição sistemática às práticas recomendadas pelo consenso da ciência na sua falta: uso de máscaras e distanciamento social.

“A expectativa do caos sanitário no curto prazo empurra, por sua vez, a perspectiva de retomada da economia para o médio e longo prazo”, observa. “A redução concomitante do valor e abrangência do auxílio do governo aos mais necessitados abre as portas para o aprofundamento da insatisfação popular, com consequências imprevisíveis no momento”.

Além disso, o editorial chama atenção para a “dimensão política da crise”. “Está claro hoje que a hipótese de enquadramento do Poder Executivo por parte de sua base parlamentar, fundamentalmente o grupo conhecido como “centrão”, não passou de esperança vã”, afirma a revista Política Democrática Online de abril.

“Forte fadiga”

Segundo a publicação, “a esperança vã” é alimentada por alguns dos atores do processo e seus apoiadores na esfera pública. “Crises continuam a ser provocadas; as instituições, tensionadas; as práticas formais e informais da democracia, erodidas”, critica.

“As instituições encontram-se sob forte fadiga: seu desenho não incorporou a hipótese de mandatários de má fé democrática, em postos de relevância política”, destaca o editorial.

A edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, análises de política nacional, política externa, cultura, entre outras, além de reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos durante a pandemia.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

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'Governo federal cooptou Centrão para impedir impeachment', diz Temporão

Em entrevista exclusiva à Revista Política Democrática Online de abril, ex-ministro da Saúde critica inércia do presidente na pandemia

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão afirma que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem como principal aliado o aparato do Centrão para engavetar diversos pedidos de impeachment recebidos pelo Congresso, em meio à pandemia da Covid-19. “O governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem”, diz.

Confira a Edição 30 da Revista Política Democrática Online

A declaração ocorreu em entrevista exclusiva publicada na edição do mês de abril da Revista Política Democrática Online, lançada neste sábado (17/4). A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

Temporão foi empossado como ministro da Saúde, em março de 2007, e sucedido em 1º de janeiro de 2011. Ocupou o posto em boa parte do segundo mandato do governo Lula. Atualmente, é diretor executivo do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde (ISAGS).

Pedidos engavetados

Jair Bolsonaro já foi alvo de 111 pedidos de impeachment, média de um por semana no mandato. “Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República”, ressalta Temporão, na entrevista à 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Além disso, conforme lembra o ex-ministro, também há representação de ex-ministros da saúde, juristas e advogados apresentada ao Tribunal de Haia contra Bolsonaro. “O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis”, destaca.

No entanto, a grande aliança de Bolsonaro com o Centrão impede o avanço dos processos. “Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer”, assinala.

Barreiras

Na entrevista à revista mensal da FAP, o ex-ministro lembra que ainda não se conseguiu transformar o conjunto de denúncias, inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União (AGU) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si.

“Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Arthur Lira”, lamenta Temporão.

Na avaliação dele, o Ministério Público também tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas, já que não tem se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação. 

“Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí”, assevera o ex-ministro.

Responsabilização de culpados

Por outro lado, acredita Temporão, cedo ou tarde, haverá responsabilização dos culpados. “E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação”, pontua.

A crise agravada pela pandemia, recebida com negacionismo de Bolsonaro, fez velhos problemas voltarem a assombrar o país. “A fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população”, destaca.

A edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem análises de política nacional, política externa, cultura, entre outros, além de reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos durante a pandemia.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

Serviço

Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição)
Lançamento: 17/4/2021
Acesso gratuito no site da Fundação Astrojildo Pereira

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Rubens Ricupero: ‘Uma chance de ouro para o Brasil, mas sem chantagem’

Paula Bonelli, O Estado de S. Paulo

Com a experiência de seus 36 anos no Itamaraty e outros 9 na ONU, o embaixador Rubens Ricupero vê, na reunião da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, uma chance de alterar a imagem negativa do País, criada pelo impacto do desmatamento ilegal na Amazônia e de queimadas no Pantanal.

A seu ver, “se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma oportunidade de ouro para o País melhorar suas contribuições ao combate do aquecimento global. Mas ele adverte que isso “é difícil”. O Brasil “tem que dizer que precisa de dinheiro mas não colocando como uma chantagem”. Assim, poderia receber em troca a boa vontade dos Estados Unidos em relação à doação de vacinas excedentes ao Brasil contra covid-19, acredita Ricupero. O presidente Jair Bolsonaro está entre os 40 chefes de Estado convidados para o evento virtual nos dias 22 e 23.

Ricupero inaugura em maio curso da história da Diplomacia Brasileira no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) sobre a política externa brasileira do Império até os dias de hoje. “Se o Ernesto Araújo fosse chanceler ainda, eu não teria ânimo para falar de uma tradição que foi degradada. Ele deixou uma terra arrasada, agora precisa plantar, adubar, regar, fazer um esforço de reconstrução”, diz o ex-ministro da Fazenda.

Qual o balanço, a seu ver, da gestão de Ernesto Araújo?
É completamente negativo. No caso da pandemia da covid-19, ao invés de reconhecer que é um grande problema e colaborar com a Organização Mundial de Saúde, sua atitude desde o início foi de negá-la. Eles só entraram no consórcio Covax Facility porque a nossa embaixadora lá em Genebra os convenceu; mas, no final, o Brasil ficou com a cota menor.

Carlos Alberto França, o novo ministro das Relações Exteriores, pode mudar essa trajetória?
Se depender dele e da máquina do Itamaraty, sim. Mas se depender do presidente, do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, aí eu duvido. O primeiro teste do França é na reunião de cúpula do clima quando Biden pedirá que cada país melhore a proposta que tinha feito no Acordo de Paris, de 2015. Se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma chance de ouro para o País melhorar suas contribuições no combate ao aquecimento global. E isso explicando que é difícil, que precisa de dinheiro, mas não colocando como uma chantagem. Agora, se o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles não fizer isso, o França não pode fazer porque não é a pasta dele. A cúpula do clima terá países que têm maior responsabilidade nas emissões. O Brasil é o sexto maior gerador de gases do efeito estufa. Com uma característica, os gases vêm do desmatamento e do uso da terra, da pecuária extensiva. Nos outros países eles se devem ao carvão para gerar energia.

Como vê os sinais iniciais do ministro França?
Ele provou que é capaz de fazer coisas boas porque tanto nos discursos de posse como na mensagem que enviou aos funcionários toca em todas as teclas corretas e não fala naquilo que não deve falar.

ONGs dizem que há negociação secreta do Brasil com o governo Biden, sobre temas ambientais.
A falta de transparência do que está se discutindo preocupa. Agora, o que preocupa mais é a falta de credibilidade do interlocutor do nosso lado, Ricardo Salles. O Fundo Amazônia tem, parados no BNDES, quase R$ 3 bilhões – por causa de um problema criado por ele, que discordou da governança do fundo. As doações vêm da Noruega principalmente e da Alemanha.

Bolsonaro enviou carta a Biden prometendo zerar o desmatamento ilegal até 2030.
A carta de Bolsonaro diz tudo o que Biden gostaria de ouvir, só que é o contrário do que o governo crê e pratica.

Biden esquecerá da demora de Bolsonaro em cumprimentá-lo quando venceu a eleição?
Eles são realistas. Sabem que terão que lidar com Bolsonaro e com seu governo até o final de 2022. Eu não acredito que os americanos vão adotar qualquer ação negativa mas também não vão fazer esforço para ajudar. O Brasil tem apelado por vacinas e os EUA adotado atitude evasiva. Eles já doaram vacinas ao México e ao Canadá mas ao Brasil não.


RPD || Hussein Kalout: O rastilho de destruição da diplomacia brasileira

Ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar com a saída do ex-Ernesto e a posse do novo chanceler, o embaixador Carlos França, avalia Hussein Kalout, sobretudo se a influência olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro

Ernesto Araújo, o sombrio ex-chanceler do governo Bolsonaro, também conhecido como “ex-Ernesto” nas mais do que inspiradas palavras da Senadora Katia Abreu, foi finalmente defenestrado. A experiência de misturar religião com política externa e a intentona de condicionar o futuro do Brasil a um governo estrangeiro, impingiu ao país severos danos. O rotundo fracasso e a consequente derrocada da finda gestão de Araújo, é bom ressaltar, somente teve ponto final após o levante coordenado pelo Senado da República que, altivamente, decidiu dizer: basta!  

Setores do estamento estatal acreditaram ou quiseram acreditar que o tempo iria, paulatinamente, moldar a política externa em consonância com a realidade, de tal modo que a distopia em andamento na nossa diplomacia fosse naturalmente corrigida. Já o empresariado, por sua vez, acreditou que, com uma pressão aqui, outra acolá, poderia insular as insanidades ideológicas do governo, para imunizar os interesses político-comerciais brasileiros das diatribes dos “condutores” das relações exteriores do país. Nada se encaminhou como imaginado, e ambos os espectros se equivocaram regiamente.  

Pressionado com a reação do Senado, o presidente da República encontrou, no embaixador Carlos França, os predicados para comandar a diplomacia nacional no mais grave período da história recente do país. Muito se argumentou que o novo chanceler não assumiu o cargo em virtude de experiência comprovada no campo da política externa, mas fruto de uma lealdade já demonstrada no Palácio do Planalto – isso sem falar que a indicação foi subscrita pelos cônsules da ideologização bolsolavista. Essa circunstância, na visão de vários parlamentares, não deixa de lançar dúvida sobre a capacidade do novo ministro de moldar decisões e moderar o ímpeto do próprio presidente.  

Uma percepção não foge ao olhar daqueles que acompanham pari passu a política externa brasileira. O método que comandou a escolha do novo chanceler obedeceu ao mesmo réquiem da primeira experiência: diplomata recém-promovido à posição de embaixador, de trajetória discreta, sem nunca ter exercido funções de mais alta responsabilidade e chefia no Brasil e no exterior, desprovido de amplitude política e de denso arco de apoio no espectro nacional. A inferência natural que se fez dentro e fora da chancelaria – ainda que de forma talvez apressada – é a de que a escolha se encaixa naquilo que a ala ideológica do governo buscava assegurar: o controle sobre a diplomacia brasileira.  

 Apesar da lógica do método, contudo, cumpre ressaltar que a temperança e o bom senso do novo ministro da Relações Exteriores, Carlos França, são inversamente proporcionais aos de seu antecessor, o ex-Ernesto. Não obstante, é importante por ora não elevar as expectativas em demasia sobre quaisquer mudanças essenciais nas linhas da política externa. Apesar do estilo sóbrio e profissional do embaixador Carlos França, ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar, sobretudo se a espada de Dâmocles olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro.    

Aliás, o discurso de posse do ministro França centrou-se em ilustrar como a diplomacia poderá contribuir na solução dos principais problemas do país e, especialmente, naqueles que o governo vem fragorosamente falhando em endereçar como: combate à pandemia, preservação do meio ambiente e crescimento da economia. A efetividade e o possível sucesso do trabalho do Itamaraty na solução de tais problemas, à par da boa intenção do discurso, dependem da moderação de uma única autoridade: o presidente da República. E é justamente aí que reside o perigo. 

Profundas mudanças nas linhas da política externa somente devem ser aguardadas, portanto, a partir do dia 1 de janeiro de 2023 – se o Brasil eleger, obviamente, um novo presidente. Porém, até lá, é preciso ficar atento aos temas que são – e sempre serão – vitais ao interesse nacional.  

Nesse sentido, China e EUA não deveriam seguir sendo opções excludentes no mapa geoestratégico da política externa do atual governo. Um país com vocação universalista como é a do Brasil, definidamente, não pode se condenar a escolher entre um ou outro lado. O pragmatismo e o bom senso recomendam extrair de ambos, chineses e americanos, os maiores benefícios para a sociedade brasileira e para os nossos interesses estratégicos – seja nas áreas comercial, tecnológica, ambiental, sanitária ou política.  

Não menos importante, a América do Sul é um imperativo estratégico. O Brasil precisa com urgência redimensionar seu papel como um indutor do processo de desenvolvimento da região e país promotor da paz. Uma “liderança natural” não sobrevive por inércia quando há vácuo de poder. É preciso retomar o diálogo com os países sul-americanos, e cabe ao Itamaraty articular, liderar e impulsionar boas políticas de cooperação regional – saúde e meio ambiente são os fios condutores no momento. 

A África, lamentavelmente, inexiste no mapa cartesiano da política externa bolsonarista. É um grave equívoco de avaliação achar que contaremos sempre com apoio dos países africanos mesmo estando ausentes do teatro diplomático e dos principais temas do continente. Aparições esporádicas e ações pontuais não ajudarão a consolidar as relações com a África. De maneira geral, o crescimento econômico dos países africanos, nos últimos anos, tem sido consistente, e as oportunidades econômicas e comerciais têm-se aberto àqueles países que estão sendo capazes de mensurar o valor estratégico do continente africano tais como: China, Turquia, Índia e Alemanha.  

O sistema multilateral, por sua vez, sempre foi a melhor raia em que a política externa navegou. É onde construímos nosso prestígio e ampliamos nossa influência desde os tempos de Oswaldo Aranha ou até antes, com a participação marcante de Rui Barbosa na segunda Conferência de Paz na Haia, em 1907. É preciso evitar mais desgaste e recobrar a capacidade do país de evitar o isolamento que se auto impôs nos mais variados foros. É preciso repensar alguns posicionamentos, especialmente, em matérias concernentes ao meio ambiente e aos direitos humanos.  

Se conseguir recolocar a política externa minimamente nos trilhos, na linha do que sinalizou em seu discurso de posse, o novo ministro das Relações Exteriores já estaria contribuindo para amainar o rastilho de destruição e minorar os graves prejuízos impostos ao país. A força do Brasil nas relações internacionais sempre foi sedimentada em sua dedicada capacidade de articular e de participar dos grandes palcos globais. Construído a duras penas, esse capital diplomático foi dilapidado nos últimos dois anos. Esperamos que o novo chanceler estanque a hemorragia e estabilize o doente. Diante da crise que nos acomete e das inclinações do presidente da República, isso seria sem dúvida um grande êxito e, quem sabe, um primeiro passo para a recuperação futura de nossa capacidade de defender nossos interesses no cenário internacional. Ao novo chanceler, desejamos boa sorte. Ele vai precisar. 

* Hussein Kalout é cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).  

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || José Luís Oreiro: O retorno do dilema Juros-Câmbio?

Decisão do Banco Central de aumentar a taxa Selic em 0,75% em março passado, no contexto da maior crise econômica da história do Brasil, foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio, avalia José Luís Oreiro  

A sociedade brasileira tem uma patologia grave. Ela se mostra refratária a aprender com os inúmeros erros que vem cometendo nos últimos 40 anos. Trata-se da incapacidade de nossa sociedade, e particularmente dos economistas ditos “ortodoxos”, de reconhecer o estrago que a combinação entre juros altos e câmbio sobrevalorizado tem causado ao tecido produtivo da economia brasileira desde o início do Plano Real e mantido, quase incólume, durante as sucessivas administrações petistas. 

 A partir de 2017, com o nível de atividade econômica no fundo do poço devido à grande recessão de 2014-2016, o Banco Central do Brasil iniciou processo de (sic) redução lenta, gradual e segura da taxa Selic. Com a pandemia do covid-19, em 2020, a taxa Selic chegou à mínima histórica de 2% a.a em termos nominais, ao passo que a taxa de câmbio apresentava desvalorização de mais de 40% ao longo do ano.  

Finalmente, o Brasil parecia ter-se livrado da combinação maldita entre juros altos e câmbio baixo, causa principal da desindustrialização prematura da economia brasileira, conforme mostro no livro Macroeconomia da Estagnação Brasileira, escrito em coautoria com Luiz Fernando de Paula e lançado neste mês pela Alta Books.  

A decisão do Banco Central do Brasil em meados de março de aumentar a taxa Selic em 0,75 p.p  - no contexto da maior crise econômica da história do Brasil e com contração fiscal já contratada para o ano de 2021 em função de redução de 75% do valor do auxílio emergencial – foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio.  

A decisão “técnica” para o ajuste da taxa de juros – a qual deverá prosseguir nas próximas reuniões do Copom – era que a elevação do IPCA, acumulado nos últimos 12 meses de um patamar abaixo de 2% em junho de 2020 para mais de 5% em fevereiro de 2021, colocava em risco a obtenção da meta de inflação para o ano de 2021, definida em 3,75% a.a pelo Conselho Monetário Nacional, com um intervalo de tolerância de +/- 1,5 p.p. A autoridade monetária reconhece, contudo, que a elevação da inflação se deveu a um choque de oferta adverso – basicamente a elevação dos preços dos alimentos e combustíveis, devido à combinação de aumento dos preços internacionais das commodities e desvalorização da taxa de câmbio – que deverá ser revertido no segundo semestre de 2021. Tanto é assim que a previsão de inflação do mercado financeiro no início de março para o ano de 2021 se encontrava em 3,98%, ligeiramente acima da meta de inflação para o ano, mas confortavelmente dentro do intervalo de tolerância do regime de metas de inflação.  

A teoria econômica e a prática da política monetária mostram que elevações da taxa de juros não devem ser usadas para conter uma aceleração inflacionária produzida por um choque de oferta, pois (i) a aceleração da inflação será de caráter temporário e (ii) uma elevação da taxa de juros irá amplificar, ao invés de amortecer, o efeito negativo do choque de oferta sobre o nível de atividade econômica. Nesse caso, a melhor política é acomodar o aumento temporário da inflação no intervalo de tolerância definido no regime de metas de inflação.  

Essa não foi a decisão do Banco Central. Preferiu aumentar a Selic e já deixou claro que deverá continuar aumentando a taxa básica de juros até que a política monetária apresente (sic) o grau de estímulo compatível (sic) com o que é exigido pela situação atual da atividade econômica.  

Essa explicação parece basear-se na premissa de que existe relação positiva entre a taxa de juros e o nível de atividade econômica, ou seja, de que por algum mecanismo que só existe na economia brasileira, um aperto na política monetária poderia levar a um aumento, ao invés de redução, do nível de atividade econômica.  

Parece que a atual diretoria do Banco Central foi infectada com o vírus do “populismo cambial”, endêmico tanto entre os economistas ortodoxos, como em parte da heterodoxia brasileira. A ideia é a seguinte: elevações da taxa Selic levam a uma apreciação do câmbio, que permite uma redução da inflação, a qual leva a um aumento do salário real e do consumo das famílias. Dessa forma, um aumento da Selic seria compatível com a recuperação do nível de renda e emprego. 

Essa política foi adotada ad-nauseam durante os dois mandatos do Presidente Lula e o resultado foi desindustrialização e perda de dinamismo econômico. Campos Neto quer repetir o mesmo experimento fracassado, na esperança de que agora ele finalmente vai funcionar. Irá colher os resultados de sempre.  

* José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.