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O Estado de S. Paulo: Entenda como Salles e Ibama afrouxaram as regras para exportação de madeira

André Borges, O Estado de S. Paulo

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante coletiva sobre operações de combate ao desmatamento Florestas Nacionais do Jacundá e Vila Samuel. Foto: Dida Sampaio / Estadão

Operação Akuanduba da Polícia Federal investiga, entre outras irregularidades, as ações do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e do presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, que afrouxaram as regras de controle para exportação de madeira. Essa sempre foi uma demanda dos madeireiros e associações do setor, a qual foi atendida no ano passado.

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Entre o fim de 2019 e início de 2020, o Ibama recebeu uma série de demandas para facilitar a exportação e mexer nas regras de fiscalização. O pleito foi levado ao órgão por instituições como a Associação Brasileira de Empresas Concessionárias Florestais (Confloresta), Associação das Indústrias Exportadoras de Madeira do Pará (Aimex) e Centro das Indústrias do Pará (CIP), que representa os madeireiros do Estado. A mobilização das associações ocorreu após apreensões de produtos florestais exportados sem a devida documentação pelas empresas Ebata Produtos Florestais Ltda e Tradelink Madeiras Ltda, para os Estados Unidos.

O pedido foi atendido. No dia 25 de fevereiro de 2020, Bim editou um “despacho interpretativo” para atender aos pedidos dos madeireiros. Esse despacho é citado em diversos trechos da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, que embasa os pedidos de investigação e afastamento da cúpula do Meio Ambiente.

O ato do presidente do Ibama suspendeu os efeitos de uma instrução normativa de 2011 (15/2011) do próprio Ibama, que tratava do assunto. Essa instrução normativa previa uma autorização específica para que madeiras pudessem deixar o país. Com o despacho, porém, os produtos florestais passaram a ser acompanhados apenas do chamado Documento de Origem Florestal (DOF).

Em junho do ano passado, organizações ambientais como o Instituto Socioambiental (ISA) e Greenpeace, além da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, protocolaram uma ação civil pública na Justiça Federal, contra as mudanças.

Esse DOF de exportação, que existe desde 2006, serve, na prática, apenas para que a madeira seja levada até o porto, ou seja, é uma licença de transporte e armazenamento, enquanto a instrução até então vigente exigia uma autorização específica para exportação, um processo que incluía, por exemplo, inspeções por amostragem e outros controles para a exportação que o DOF não exige.

Naquela ocasião, uma análise técnica do próprio Ibama alertou que o Código Florestal distinguia a licença de transporte e armazenamento (DOF) da autorização de exportação. Essa avaliação, porém, foi descartada pelo presidente do Ibama. Bim acatou um argumento dos madeireiros, sob alegação de que a exigência daquela autorização específica teria “caducado”, porque teria sido revogada pela existência de outro recurso, o Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), que começou a ser implantado em 2014.

Em seu despacho, o presidente do Ibama declarou que o Sinaflor teria alterado as regras de exportação, “sendo suficiente para exportar o DOF exportação ou a Guia Florestal expedida pelos Estados-membros”. Na prática, com a mudança, uma guia de transporte emitida pelos órgãos nos Estados passou a valer no lugar de uma autorização de exportação do Ibama.

“Equivocado entender que o DOF exportação não possibilita a fiscalização da carga, quando não apenas isso é possível, pelo dever geral de proteção ambiental, como expressamente previsto”, declarou Bim, em despacho de 25 de fevereiro do ano passado. “A fiscalização ambiental não é prejudicada.”

A decisão foi festejada. Em carta de 28 de fevereiro de 2020, o Centro das Indústrias do Pará afirmou que o presidente do Ibama “colocou em ordem as exportações de madeira”.

Como funciona o crime no Brasil

Antes de uma chapa de ipê ou mogno chegar ao porto de Santos ou qualquer outra porta de saída do território nacional, ela percorre uma cadeia no País que, invariavelmente, é marcada pela corrupção. O crime se baseia, basicamente, em uma indústria de papeis falsos. Por meio de agentes públicos que atuam de forma criminosa, documentos, como o DOF, são emitidos para “esquentar” a madeira roubada de terras indígenas e unidades de conservação, por exemplo.

O governo tem digitalizado há anos esse tipo de informação, por meio do Ibama, com o propósito de concentrar no órgão federal todos documentos de origem de madeira do País e, a partir disso, confrontar esses papeis com o inventário legal de madeira de corte. Esse cruzamento de dados, porém, ainda não está consolidado nacionalmente, além de conter brechas para manipulações de dados por seus gestores.

Na prática, portanto, um país que importa madeira do Brasil pode até achar que está adquirindo um produto 100% legal, quando, na realidade, sua origem pode ser fruto de um esquema fraudulento, que costuma inviabilizar o preço do mercado entre aqueles poucos madeireiros que desejam atuar de forma 100% legal.

Nos últimos anos, o Ibama tem procurado aperfeiçoar o sistema de registro, transporte e exportação de madeira, com a eliminação de papeis e a centralização de dados no Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), que é administrado pelo órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Ocorre que a inserção dos dados no sistema, como os tipos de madeira e quantidade que foram produzidas por determinadas empresa, possui fragilidades. Como se trata de dados repassados pelos Estados, sem um controle rígido de informações, há brechas para fraudes, com pedidos de autorizações e registros que não correspondem à realidade do que, efetivamente, foi retirado da floresta.

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Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/entenda-como-salles-e-ibama-afrouxaram-as-regras-para-exportacao-de-madeira/


Metrópoles: Salles e Ibama são alvo de operação que apura esquema ilegal de exportação de madeira

Mirelle Pinheiro, Metrópoles

Polícia Federal deflagrou, na manhã desta quarta-feira (19/5), a Operação Akuanduba, que investiga crimes contra a administração pública, como corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e, especialmente, facilitação de contrabando, praticados por agentes públicos e empresários do ramo madeireiro. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Fortunato Bim, estão entre os alvos da operação. Bim foi afastado do cargo.

Após o início da operação, Salles foi à Superintendência da PF, em Brasília, por conta própria na manhã desta quarta. Pelo menos 160 policiais federais cumprem 35 mandados de busca e apreensão no DF e nos estados de São Paulo e do Pará. Entre os endereços, estão a sede do Ibama, o Ministério do Meio Ambiente e o apartamento de Salles, em São Paulo. As medidas foram determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Mais sobre o assunto

Além das buscas, o STF determinou o afastamento preventivo de 10 agentes públicos ocupantes de cargos e funções de confiança no Ministério do Meio Ambiente e no Ibama, entre eles, o presidente do órgão. E, ainda, a suspensão imediata da aplicação do despacho emitido em fevereiro de 2020 pelo Ibama, que, contrariando normativos e pareceres técnicos do órgão, permitiu a exportação de produtos florestais sem a necessidade da emissão de autorizações para exportação.

Estima-se que o referido despacho, elaborado a pedido de empresas que tiveram cargas não licenciadas apreendidas nos Estados Unidos e na Europa, resultou na regularização de mais de 8 mil cargas de madeira exportadas ilegalmente entre os anos de 2019 e 2020.

A quebra de sigilo bancário e fiscal do ministro e dos servidores investigados também foi autorizada pelo Supremo. As averiguações tiveram início em janeiro deste ano a partir de informações obtidas com autoridades estrangeiras, que noticiaram possível desvio de conduta de servidores públicos brasileiros no processo de exportação de madeira.

Até o momento, além do presidente do Ibama, outros servidores foram afastados do órgão e do Ministério do Meio Ambiente:

  • Eduardo Bim
  • Leopoldo Penteado
  • Vagner Tadeu Matiota
  • Olimpio Ferreira Magalhães
  • João Pessoa Riograndense Moreira Jr
  • Rafael Freire de Macedo
  • Leslie Nelson Jardim Tavares
  • Andre Heleno Azevedo Silveira
  • Arthur Valinoto Bastos
  • Olivaldi Alves Azevedo Borges

A reportagem procurou a assessoria do Ibama e do MMA e aguarda manifestações sobre o caso. O espaço segue aberto.

Operação Akuanduba

Akuanduba é uma divindade da mitologia dos índios Araras, que habitam o estado do Pará. Segundo a lenda, se alguém cometer algum excesso, contrariando as normas, a divindade faz soar uma pequena flauta, restabelecendo a ordem.

Apreensão recorde

Em dezembro do ano passado, a Polícia Federal fez apreensões recordes de madeira na divisa do Amazonas com o Pará. No total, foram mais de 200 mil metros cúbicos, o que representa cerca de 65 mil árvores derrubadas.

Em março, Salles visitou a região e defendeu a devolução do material para os madeireiros. Segundo o ministro, o desmatamento teria sido feito dentro da lei.

Em abril, o então superintendente da Polícia Federal, Alexandre Saraiva, criticou a atitude do ministro. Ele chegou a enviar ao STF uma notícia-crime contra Salles.

No documento, o delegado apontou a possibilidade de ocorrência dos crimes de advocacia administrativa, organização criminosa e de “obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais.” Em 20 de abril, o governo federal trocou a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas. O delegado Leandro Almada da Costa assumiu o cargo no lugar de Alexandre Saraiva.

Em entrevista recente ao Metrópoles, Salles negou ter pedido a cabeça do investigador. “Caiu porque resolveu buscar holofotes. No dia que ele soube que ia ser removido [do cargo de superintendente da PF], ele apresentou uma notícia-crime absurda contra mim no Supremo Tribunal Federal. Totalmente fantasiosa, sem nenhuma prova. Fez isso para buscar holofotes”, ressaltou.

 

Fonte:

Metrópoles

https://www.metropoles.com/brasil/pf-salles-e-presidente-do-ibama-sao-alvos-de-operacao-que-apura-esquema-ilegal-de-exportacao-de-madeira


O Globo: PGR diz que não foi consultada sobre operação da PF contra Ricardo Salles

Aguirre Talento e Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA – A operação da Polícia Federal contra o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, deflagrada nesta quarta-feira, foi realizada sem uma consulta prévia ao procurador-geral da República Augusto Aras, como é a praxe nos procedimentos do tipo. Em seu despacho que autorizou a operação, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) fosse informada do caso apenas após o cumprimento das diligências.

Após operação da PF:   Salles vai ao Planalto se reunir com Bolsonaro

Nos bastidores, fontes ligadas à investigação apontam que a PGR não foi informada previamente por receio de que Aras vazasse informações da operação para o Palácio do Planalto. Os investigadores também viam riscos de que o procurador-geral atuasse contra a realização da operação.

A decisão de não enviar previamente o caso para análise da PGR foi do ministro Alexandre de Moraes. “Após o cumprimento das diligências, dê-se, imediata ciência à Procuradoria-Geral da República”, escreveu Moraes, no despacho proferido no último dia 13 de maio.

Após tomar conhecimento da operação pela imprensa, a equipe de Aras divulgou uma nota com críticas ao procedimento adotado, sem citar nominalmente o ministro de Moraes. A PGR afirmou que “não foi instada a se manifestar sobre a medida, o que, em princípio, pode violar o sistema constitucional acusatório”.

Nos bastidores, o ministro Alexandre de Moraes minimizou as cobranças da PGR e vai responder nos autos caso Aras apresente alguma objeção.

Meio Ambiente: PF faz operação contra Ricardo Salles e presidente do Ibama é afastado do cargo

Geralmente, quando a PF solicita uma medida ao Supremo, o ministro pede um parecer da PGR a respeito do pedido policial. Só depois desse parecer do Ministério Público é que a operação costuma ser realizada. A mudança desse procedimento causou estranheza em integrantes da equipe de Aras.

Considerado um aliado por Bolsonaro, Aras analisa desde o final de abril um pedido de investigação contra Salles, protocolado no STF pelo ex-superintendente da PF do Amazonas, mas pediu explicações ao ministro antes de decidir se solicitaria a abertura de inquérito. A lentidão do PGR neste caso provocou desconforto entre investigadores da Polícia Federal

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Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/sociedade/pgr-diz-que-nao-foi-consultada-sobre-operacao-da-pf-contra-ricardo-salles-25024405

 


Cristina Serra: Brasil, pária ambiental

O projeto de lei que desmonta o licenciamento ambiental no Brasil, aprovado na Câmara, é um crime contra o meio ambiente, a sociedade e a Constituição. Nosso atual sistema de licenciamento resulta de décadas de construção legal e do aprendizado com enormes erros no passado.

Exemplos na mineração ajudam a entender essa evolução. Antes da Constituição e das normas atuais, algumas empresas lançavam rejeitos em rios e lagos, como se estes fossem latas de lixo. Já com o licenciamento em vigor, tivemos duas grandes tragédias na mineração: o colapso das barragens da Samarco, em Mariana, e da Vale, em Brumadinho, com quase 300 mortos.

Estudei a fundo o licenciamento da barragem da Samarco. O que aconteceu ali foi leniência do órgão licenciador, com indícios de corrupção. No caso da Vale, houve um licenciamento atipicamente célere, em favor da conveniência da empresa, não da segurança da estrutura. O problema não foi a lei, mas a má aplicação dela pela autoridade licenciadora.

É claro que uma legislação sempre pode ser melhorada e atualizada. Mas o projeto em questão não tem esse objetivo. Muito ao contrário. Ele faz parte de um ataque sistemático ao meio ambiente, com asfixia dos órgãos de fiscalização e desidratação orçamentária. Uma das malandragens do projeto é o tal licenciamento autodeclaratório. Ou seja, o poder público deixaria de exercer seu papel regulador do impacto ambiental das atividades econômicas. É raposa no galinheiro que chama?

Na prática, o projeto todo implanta um “liberou geral” para vários setores da economia, notadamente para a agropecuária, base de apoio ao bolsonarismo. Se aprovado em definitivo, ao contrário do que dizem seus defensores, ele não vai destravar a economia. Vai prejudicar a atração de investimentos e piorar ainda mais a imagem do Brasil no exterior, onde já é visto como pária ambiental pelo descontrole no desmatamento. Ainda é tempo de barrar a boiada no Senado.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/05/brasil-paria-ambiental.shtml


RPD || Bazileu Margarido: Pagando pra ver!

A Cúpula sobre o Clima, convocada pelo presidente Joe Biden, marcou o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris. No evento, os Estados Unidos apresentaram uma nova meta de redução de emissões de 50% a 52% de carbono até 2030 em comparação com 2005. O Japão e o Canadá também elevaram suas metas. 

O discurso de Bolsonaro surpreendeu pela assertividade e radical mudança de tom, mesmo que a grande maioria de líderes e especialistas duvide das suas promessas. Dessa vez, não reclamou da brutacampanha de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal de que o Brasil seria vítima, “escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil“, nem colocou a culpa pelo recorde de queimadas no caboclo e no índio, como fez na última Assembleia Geral da ONU. 

Ao contrário, o mandatário brasileiro reafirmou o compromisso brasileiro de reduzir em 37% a emissão de gases de efeito estufa até 2025 e 47% até 2030. Prometeu ainda “neutralidade climática” até 2050, antecipando em 10 anos a sinalização anterior. Isso significaria radical inflexão na política ambiental brasileira, até o momento marcada pelo conluio tácito com madeireiros e mineradores ilegais, perseguição a fiscais do Ibama que cumprem seu dever e desarticulação da capacidade de atuação dos órgãos ambientais. 

Não tenho motivos para acreditar em mudanças substantivas nas posições do presidente Bolsonaro. Mesmo quando suas convicções se mostram evidentemente equivocadas, como o tratamento precoce da COVID e o desrespeito ao distanciamento social, ele dobra a aposta ainda que isso comprometa sua popularidade.   

Por que Bolsonaro abriria mão de suas igualmente equivocadas convicções em relação à ocupação da Amazônia? Sua formação retrógrada, agarrada à visão militar da década de 70, mantem a concepção da Amazônia como um espaço a ser ocupado mesmo que de forma predatória, onde a floresta é um obstáculo para a exploração mineral e a expansão da pecuária extensiva. “Integrar para não entregar” era o lema dos governos militares para a Amazônia há 40 anos atrás, referindo-se aos interesses estrangeiros escusos que foram ressuscitados pelo presidente no discurso na Assembleia da ONU do ano passado. 

Parece ter sentido a mudança no cenário internacional com a derrota de Trump, o que agrava o isolamento do Brasil nos fóruns multilaterais. Se for isso, essa adaptação ao novo cenário representa mudança estratégica de orientação de sua política ambiental ou apenas recuo circunstancial e momentâneo? Não tenho dúvidas em apostar na segunda hipótese. 

Não posso desconsiderar o poder de atração de alguns bilhões de dólares, estratégia usada pelos Estados Unidos para deslocar a política ambiental brasileira para uma rota de maior responsabilidade com o desenvolvimento sustentável e com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e no Pantanal.  

O Brasil foi para a Cúpula do Clima como um pedinte, com o “sinistro” do Meio Ambiente brasileiro usando a infeliz imagem de um cachorro abanando o rabo em frente a uma máquina de frango assado para convencer a equipe de negociação americana a nos doar um punhado de dólares. 

Bolsonaro parece ter uma noção muito particular de cooperação internacional. Vejam o que vem acontecendo com o Fundo Amazônia, paralisado com um saldo em caixa de cerca de R$ 3 bilhões porque o governo considera que a Noruega e a Alemanha têm a obrigação de doar recursos sem que o Brasil tenha, em contrapartida, a obrigação de respeitar as regras de governança pactuadas e que possa fazer o que quiser com os recursos, sem apresentar os resultados que as partes interessadas esperam da cooperação. 

As negociações de um eventual acordo entre Brasil e Estados Unidos voltado à proteção da Amazônia parecem estar trilhando o mesmo caminho, com a aparente expectativa brasileira de contar com a benevolência americana baseada em promessas vagas, feitas num discurso de conveniência.  

Espero estar errado e que o discurso na Cúpula do Clima represente guinada na política ambiental brasileira. O presidente teria, finalmente, compreendido que o desenvolvimento sustentável e a economia de baixo carbono é um caminho sem volta e sem atalhos, e que o suposto direito de desmatar a Amazônia leva ao isolamento internacional, à perda de investimentos e ao aumento da pobreza? 

Estou pagando pra ver… 

*Bazileu Margarido é engenheiro de produção e mestre em economia. Foi presidente do Ibama (2007-2008), secretário de Fazenda de São Carlos-SP (2001-2002), chefe de gabinete da ministra de meio ambiente Marina Silva de 2003 a 2007 e atualmente é assessor econômico da liderança na Rede no Senado.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


O Estado de S. Paulo: Câmara aprova projeto que flexibiliza regras de licenciamento ambiental

André Borges, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O projeto da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental foi aprovado na madrugada desta quinta-feira, 13, pelo plenário da Câmara dos Deputados. Com maioria na Casa, a bancada ruralista aprovou o texto substitutivo do Projeto de Lei 3.729, de 2004, relatado pelo deputado federal Neri Geller (Progressistas-MT), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.

A proposta do texto principal foi aprovada por 300 votos a favor, ante 122 contra. Nesta quinta-feira, 13, devem ser votados os destaques, como são conhecidas as mudanças específicas propostas pelas bancadas partidárias. Depois, o texto ainda precisa passar pelo Senado. Se os senadores fizerem mudanças no texto, o PL volta a ser debatido na Câmara, mas apenas sobre as eventuais alterações. Se não houver alterações e for aprovado no Senado, seguirá para sanção presidencial.

Entre as principais mudanças, está a dispensa de licença para projetos como obras de saneamento básico, manutenção em estradas e portos, distribuição de energia elétrica com baixa tensão, parte das atividades agropecuárias, entre outros. A nova modalidade também repassa a Estados a prerrogativa de analisar os empreendimentos que precisam de aval para liberação, cria uma espécie de licença autodeclatória para alguns casos e permite a unificação de etapas do licenciamento.

A aprovação causou indignação entre organizações ambientais, cientistas e especialistas no setor. O texto final foi encaminhado ao plenário sem ter passado por audiência pública. Não houve espaço para acatar nenhuma recomendação da ala ambiental, que alertou sobre vulnerabilidades no texto final. Especialistas no setor e juristas preveem ações judiciais, com desdobramentos no Supremo Tribunal Federal (STF), diante de possíveis inconstitucionalidades e descumprimentos de previsões da legislação ambiental.

Já a Frente Agropecuária defendeu o texto e culpou o modelo atual por obras paradas e excesso de burocracias. Disse ainda, ao longo do dia, que “o excesso de burocracia prejudica o setor produtivo e não garante a proteção ao meio ambiente”. Na Câmara, defensores da proposta como o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) também disseram que modelos semelhantes de licenciamento já são adotados em alguns Estados.

Ambientalistas tentaram tirar texto da pauta
Com 216 deputados e oito senadores, a Frente Parlamentar Ambientalista declarou “profunda indignação”. “É inadmissível que uma proposta como essa seja aprovada pela Câmara dos Deputados diante de tantos desastres ambientais vividos recentemente no país”, afirmou a Frente, em nota.

Os parlamentares ambientalistas afirmam que as tragédias de Mariana e Brumadinho (MG) deveriam ser exemplos da importância de debates aprofundados com a sociedade sobre o aprimoramento da ferramenta. “O meio ambiente e a vida dos povos indígenas e originários encontram-se, mais do que nunca, ameaçados pela política da ‘boiada livre’. Para a Frente, é “mais uma derrota do Brasil não somente em nível nacional, mas também internacional”. Coordenador do grupo, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) afirmou que se trata do fim do licenciamento ambiental no País e da “pior versão” da proposta ao longo de 17 anos de tramitação.

Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima, afirma que a Câmara votou “a Lei da Não Licença e do Autolicenciamento”. “Somando-se as isenções de licença com o autolicenciamento em que foi transformada à licença por adesão e compromisso, sobra pouca coisa para licenciar. Consagra-se o ‘liberou geral’. Não é o licenciamento ambiental que trava os investimentos no País. É a falta de planejamento, a visão simplista de curto prazo, a busca por lucro fácil, a ignorância, a corrupção”, comenta. “O mundo debatendo a retomada econômica lastreada em uma perspectiva orientada para as questões ambientais e climáticas e a Câmara optando pelo retrocesso”, acrescenta Suely.

Desde a semana passada, quando veio à tona o texto final que seria apresentado pelo relator, centenas de organizações ambientais, especialistas no setor, acadêmicos e parlamentares se mobilizaram para tentar demover o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), da ideia de levar uma proposta ao plenário que não chegou a passar por audiência pública. Não houve negociação. Lira, que já havia assumido o compromisso de pautar o assunto apoiado pela Frente Agropecuária, confirmou que levaria a pauta adiante.

Neri Geller disse, durante a sessão plenária, que apresentou um relatório “equilibrado” e que não traz “uma única vírgula” que afronte o meio ambiente. Afirmou ainda que as regras hoje criam insegurança jurídica e provocam fuga de investimentos do Brasil. A FPA, da qual ele é vice-presidente, aponta excesso de burocracia no modelo atual e divulgou informações para declarar que o licenciamento ambiental é responsável pela paralisação de mais de 5 mil obras em todo o País, entre rodovias, hidrovias e ferrovias.

Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), porém, mostrou que o licenciamento ambiental não respondia por mais do que 1% das obras do País. Foram analisadas mais de 30 mil obras públicas financiadas com recursos federais. Menos de 200 projetos tinham paralisações associadas a dificuldades de obter licenciamento.

O próprio ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, chegou a afirmar, em entrevista ao Estadão, que o motivo das paralisações não é o licenciamento em si, mas a péssima qualidade dos estudos apresentados pelas empresas e órgãos do governo.

“É preciso fazer um mea-culpa sobre isso e reconhecer que não vínhamos fazendo a nossa parte tão bem quanto o necessário. Estávamos cobrando do órgão ambiental uma velocidade no licenciamento, mas deixávamos de fazer a nossa parte”, disse Freitas ao Estadão, em fevereiro. “Muitas vezes, o licenciamento trava por causa da baixa qualidade desses estudos. A gente estuda mal e, de repente, oferece um produto ruim para o órgão de meio ambiente analisar.”

Texto prevê dispensa de licença para parte das atividades econômicas

Uma das principais mudanças trazidas pelo PL diz respeito à dispensa expressa de licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva, além de pecuária intensiva de pequeno porte. Outros 13 tipos de atividades ficam isentas da obrigação de serem licenciadas. São projetos como obras de transmissão de energia elétrica; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; obras de manutenção de infraestrutura em instalações preexistentes, como estradas, além de dragagens (retirada de sedimentos) de rios; usinas de triagem de resíduos sólidos; pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; e usinas de reciclagem de resíduos da construção civil.

Outra mudança criada pelo projeto de lei prevê o enfraquecimento de regras nacionais que hoje vigoram sobre o setor, repassando a governos estaduais e municípios a atribuição de definir qual tipo de empreendimento precisará de licença ambiental, além do tipo de processo do licenciamento que é aplicado em cada caso.

Entenda mais alguns impactos do projeto de lei:
Nacionalização de Licença por Adesão e Compromisso (LAC)

O texto propõe a adoção de licenças autodeclatarórias para todo o País. Esse instrumento da LAC já existe em alguns Estados, mas é aplicado apenas a determinados empreendimentos, e com conhecimento prévio da área ambiental e um termo de referência do que se pretende. A crítica é que, da forma como está estabelecida, a LAC será convertida em um licenciamento automático, com simples declaração pela internet, sendo submetida apenas a uma análise por amostragem.

Acesso irrestrito a terras indígenas e quilombolas em fase de estudo

O texto exclui da avaliação de impacto e da adoção de medidas preventivas as terras indígenas não homologadas e as terras quilombolas impactadas por empreendimentos. Hoje, a Constituição prevê que terras indígenas e quilombolas que estejam em fase de demarcação, ou seja, que ainda aguardam para serem tituladas, devem ser igualmente consideradas, como aquelas que já tiveram esses processos concluídos, com a homologação e titulação pelo governo.

Restrição a condicionantes sociais

O projeto limita profundamente o alcance de medidas de redução de impactos causados por projetos. Medidas como a instalação de escolas públicas e postos de saúde, que muitas vezes são incluídas em ações de mitigação e compensação, ficam mais restritas, limitando-se a temas especificamente ambientais, apesar de uma série de impactos sociais que é gerada por empreendimentos.

Enfraquecimento do ICMBio

O Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), órgão que hoje tem poder de veto a empreendimentos que venham a impactar as unidades de conservação federal, tem essa atribuição retirada, a partir do projeto de lei. O PL altera regras do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, acabando com o poder de veto do Instituto Chico Mendes, limitando sua atuação a uma posição consultiva. / COLABOROU EDUARDO GAYER

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,camara-aprova-projeto-que-afrouxa-regras-de-licenciamento-ambiental,70003713454


João Gabriel de Lima: Uma razão para ter orgulho do Brasil

Uma ideia que ajudou a mudar o mundo nasceu, como algumas canções da bossa-nova, em guardanapos de papel. Era o ano de 2009 e almoçavam, em Brasília, a secretária nacional de Mudança Climática, Suzana Kahn Ribeiro, e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O assunto: o que o Brasil poderia sugerir na COP 15, a Conferência do Clima de Copenhague? Suzana rabiscou um esquema no guardanapo. Nascia a “espiral positiva”.

A ideia era simples. Suzana e Carlos achavam que o Brasil deveria propor, unilateralmente, a redução de suas emissões de carbono. Mais: fixar metas concretas. Ainda mais: expor-se ao escrutínio internacional, abrindo seus números. Houve resistências dentro do governo, cujo discurso – recorrente entre os caramurus à esquerda e à direita – era cheio de “não podemos abrir mão de nossa soberania” e “eles devastaram suas próprias florestas, não se metam com a nossa”.

A “espiral positiva” era, antes de tudo, um desejo, um “wishful thinking”: inspirados pelo exemplo do Brasil, vários países tomariam atitudes semelhantes, numa competição virtuosa. A ideia venceu as resistências internas – entre elas, a da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ganhou a adesão do Itamaraty, com seu timaço de negociadores com experiência em meio ambiente (a coluna voltará ao assunto em breve).

No plano externo, o sucesso não foi imediato. Os brasileiros ganharam aplausos em Copenhague, mas não adesões. A semente germinaria seis anos depois. O Acordo de Paris, assinado em 2015, era precisamente a ideia do Brasil – países propondo voluntariamente metas de redução de carbono, com métricas críveis.

O que mudou em seis anos? “Ficaram claros os incentivos para uma economia de baixo carbono. Não se trata apenas de salvar o planeta, mas também de ganhar dinheiro”, diz Suzana Kahn Ribeiro, atualmente professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela discorre sobre o assunto no minipodcast da semana.

As oportunidades são inúmeras. Segundo Suzana, a China, que já foi refratária a metas de emissões, cresceu o olho sobre o mercado de energia renovável. Países nórdicos investem em madeira certificada: do lado certo da força, ganham a concorrência com nações que devastam florestas. Acessam, de quebra, o bilionário mercado de títulos verdes. O lado certo da força, diga-se, acaba de ser demarcado com sabre de luz pelo Obi-Wan da vez – o presidente americano Joe Biden.

Se há uma razão para que os brasileiros se orgulhem de seu país, é a liderança que já exercemos na área mais estratégica do planeta – a que garante a própria sobrevivência da esfera azul que habitamos. Além de inspirar, em alguma medida, o Acordo de Paris, o Brasil foi o berço do moderno combate à mudança climática – na Rio 92, marco positivo do governo Collor.

Perdemos, no entanto, essa primazia – e, com ela, oportunidades de enriquecimento e projeção internacional. “É possível que, depois da pandemia, o mundo se reconstrua como uma economia moderna”, diz Suzana. “Conectar-se com esse futuro é uma chance enorme.” O tema começa a entrar em pauta entre os pré-candidatos de oposição para 2022. Do governo atual, pelo que diz e faz, não se deve esperar nada.

O Brasil conhece bem o caminho para reconquistar alguma relevância no mundo. Já houve um tempo em que nossas ideias, rabiscadas em guardanapos de papel, faziam o planeta cantar – ou ajudavam a salvá-lo, inspirando boas práticas.

Fonte:

O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,uma-razao-para-ter-orgulho-do-brasil,70003708202


Vera Magalhães: O Brasil involuiu 20 anos

O isolamento brasileiro diante da histórica decisão do governo dos Estados Unidos de apoiar a suspensão temporária de patentes de vacinas para Covid-19 é especialmente emblemático porque nos permite fazer um retrato de hoje e de exatos 20 anos atrás, quando vivemos uma epopeia oposta da diplomacia brasileira e cravamos uma das nossas principais vitórias em organismos multilaterais, justamente no tema de patentes para remédios.

Foi em novembro de 2001, ainda sob os escombros do 11 de Setembro, que a mesma OMC, palco da guinada de Joe Biden, aprovou, em sua 4ª Conferência Ministerial realizada em Doha, no Qatar, uma resolução proposta inicialmente pelo Brasil prevendo que, em casos de epidemias, os países-membros da organização poderiam flexibilizar as regras de patentes previstas no Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio e Saúde Pública (conhecido como Trips).

A resolução foi o marco final do que ficou conhecido como “guerra das patentes”, uma ofensiva do governo FHC em várias frentes (diplomática, econômica e de comunicação) para pressionar a indústria farmacêutica a baixar preços dos medicamentos que compunham o coquetel anti-Aids, fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, ameaçando com a quebra das patentes.

Corta para 2021, quando um desarvorado Itamaraty foi pego totalmente de surpresa pela mudança de posição dos Estados Unidos, que passaram a apoiar a proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul no fim de 2020, e apoiada por mais de 100 países, para a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19 enquanto durar a pandemia.

Isso ajudaria a aumentar a produção de vacinas e a equalizar sua aplicação no mundo. Dados mostram que mais de 80% das doses aplicadas até hoje se concentram em países ricos.

O Brasil, que nem é rico nem está bem na fila da vacina, achou por bem fincar pé na posição anterior e ver a caravana global passar diante dos seus olhos, com grande possibilidade de até a União Europeia evoluir para acompanhar a posição americana.

Uma coisa era a discussão posta até o anúncio da posição dos Estados Unidos, em que o Congresso brasileiro discutia a quebra das patentes em território nacional: essa medida, isoladamente, teria pouco efeito prático, pois nossa capacidade de produção própria de vacinas, como temos visto, é pequena, ainda mais sem transferência de tecnologia. Além disso, havia setores fortes da diplomacia defendendo que isso poderia nos criar embaraço com os grandes fabricantes, atrasando ainda mais a chegada de imunizantes ao país.

Mas o cenário muda drasticamente com o apoio da Casa Branca à suspensão temporária das vacinas, ainda mais porque ele levará a uma pressão dos demais países também sobre os Estados Unidos e demais países ricos para a disponibilização imediata do excedente de vacinas que compraram, para a transferência de tecnologia a países pobres e para o fim de medidas protecionistas para a exportação de insumos destinados à produção desses imunizantes.

É desesperador que o Brasil opte por ficar falando sozinho diante de uma resolução com tamanho impacto histórico, geopolítico e econômico.

A desorientação demonstrada pela diplomacia brasileira nesse episódio é fruto e sinal do desmonte da política externa promovida pela nuvem de gafanhotos bolsonarista. É da mesma cepa dos sucessivos surtos que fazem o presidente insistir em brigar com a China neste momento grave em que dependemos dos chineses para a chegada de insumos para nossas poucas vacinas.

Vinte anos depois de brilharmos nos palcos internacionais com políticas de saúde pública e de diplomacia internacional arrojadas e inovadoras, estamos no cantinho da vergonha.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-brasil-involuiu-20-anos.html


BBC Brasil: Prejuízo de Bolsonaro à imagem do Brasil é, em parte, irreversível, diz Ricupero

Thais Carrança, BBC News Brasil

“O mundo se acostumou, durante décadas, desde o fim do governo militar, a ver que os governos que se sucediam no Brasil podiam ter prioridades distintas, mas todos tinham valores compatíveis. Todos tinham uma fidelidade aos princípios da Constituição, um engajamento em favor do meio ambiente, dos povos indígenas e dos direitos humanos”, explica Ricupero.

“Essa confiabilidade foi perdida, porque, com a experiência Bolsonaro, ainda que ela termine no ano que vem, vai ficar sempre aquela dúvida sobre o futuro do Brasil. Até que ponto o Brasil não vai ter uma recaída nesse tipo de comportamento?”.

Para Ricupero, que comandou a pasta do Meio Ambiente e da Amazônia Legal entre setembro de 1993 e abril de 1994, e esteve à frente do Ministério da Fazenda de março a setembro de 1994, sob o governo Itamar Franco (PMDB), o ultraliberalismo prometido pelo ministro Paulo Guedes nunca chegou a ser colocado em prática.

“Guedes nunca foi capaz de dar um rumo coerente à política econômica. Tanto é assim que, da equipe original dele, restam muito poucos”, diz Ricupero.

“Estamos agora com uma economia que não cresce, e em que a única coisa que cresce são os preços dos alimentos, da gasolina, do diesel, a carestia da vida. Estamos, de novo, com a pior situação econômica que se possa imaginar, que é a combinação de estagnação com inflação”, sentencia o ex-ministro.

Ricupero avalia que a notícia-crime aberta contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no caso da defesa de madeireiros ilegais da Amazônia não deve ser suficiente para derrubá-lo.

“Os madeireiros ilegais, os mineradores ilegais e os grileiros criminosos constituem uma das bases de apoio do governo Bolsonaro. Então, ao proteger esses criminosos, Salles está, na verdade, solidificando essa base”, afirma.

Ricupero ministra nesta terça-feira (04/05), às 19h, a aula inaugural do curso “História da Diplomacia Brasileira”, que será oferecido pelo Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). O curso terá desconto de 50% para mulheres, com o objetivo de incentivar a presença feminina no meio diplomático.

“Agora que nos livramos do [ex-ministro das Relações Exteriores] Ernesto Araújo, temos que recuperar nosso patrimônio, que durante dois anos e pouco foi espezinhado e esquecido por essa fase de pesadelo pela qual passou o Itamaraty”, diz Ricupero, quanto à relevância do curso neste momento.

“Como acontece na pandemia, é só quando nos falta o ar que respiramos, que nós valorizamos a capacidade de respirar. A mesma coisa acontece na diplomacia. Agora, estamos valorizando uma coisa que nós perdemos durante pouco mais de dois anos.”

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O senhor disse no passado que há uma contradição inerente entre uma política econômica ultraliberal e uma política externa antiglobalista. Passados mais de dois anos de governo Bolsonaro, é possível dizer que, nesse embate, o liberalismo foi o derrotado?

Rubens Ricupero – A promessa do liberalismo nunca foi aplicada nesse governo. Como nas demais áreas, é um governo sem rumos. Que tem uma inspiração vagamente liberal, mas com desvios muito frequentes.

Vê-se, por exemplo, que houve muito pouca privatização, apesar das promessas repetidas. As reformas que tinham sido anunciadas não saíram do papel. A situação fiscal, contrariamente aos postulados liberais, tem se agravado cada vez mais.

Não se pode dizer que seja uma política econômica efetivamente liberal. É uma política econômica confusa, com sinais contraditórios, e que foi atropelada pela pandemia. No começo da crise, até respondeu razoavelmente, com o auxílio emergencial. Mas depois se perdeu totalmente.

Estamos hoje com uma condição econômica que é a pior de todas, porque o país não cresce – é uma exceção no mundo, onde todas as economias estão se recuperando com um ritmo bastante vigoroso. E, ao mesmo tempo que não cresce, estamos assistindo ao agravamento da inflação. Quer dizer, voltamos à situação de estagflação que tivemos há alguns anos. É esse o resumo que se pode dar da política econômica do governo.

BBC News Brasil – O senhor tem expectativa de alguma mudança de rumo na política externa com a saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores?

Ricupero – Houve uma mudança que é bem-vinda, que merece até aplauso. Porque o caso do Ernesto é que ele agravava uma situação que já era difícil. Pelos próprios postulados da política que ele adotou. Uma visão distorcida da realidade do mundo, teorias conspiratórias. Mas, além disso, ele agregava um fator pessoal: era um militante dessa seita mais lunática que nós temos, que são os seguidores do Olavo de Carvalho. Isso tudo, felizmente, acabou. Há uma sensação de alívio.

O Itamaraty, hoje em dia, tem uma atmosfera muito mais positiva do que tinha antes. E o próprio estilo dos documentos, dos pronunciamentos, melhorou bastante.

O que não mudou é a substância dessa política. Porque uma política externa não pode nunca ser dissociada da política interna. A política externa tem maior ou menor êxito, se a política interna estiver indo bem. Os grandes momentos da política externa do Brasil no passado coincidiram com momentos em que o país estava muito bem na economia, na política, no social, no cultural.

Atualmente, mesmo que a política externa tenha mudado um pouco no estilo de discurso, a política geral é muito ruim. Nós continuamos com essa crise. Com o presidente atuando como ele sempre atuou. E, sobretudo, há um aspecto que não se pode esquecer nunca: boa parte da imagem péssima que o Brasil tem no exterior vem das questões ambientais e das questões próximas a essa, como o tratamento aos povos indígenas. Ora, isso não mudou em nada.

Nós continuamos com a mesma política, ou falta de política. A devastação da Amazônia cresce, como vimos no mês de março, que foi o pior mês para o desmatamento nos últimos dez anos, apesar de ser ainda a estação das chuvas na Amazônia.

Então, devido a esses sinais que vêm do meio ambiente, da política indigenista, dos direitos humanos, da deterioração da situação social, é muito difícil que a política externa, deixada a si mesma, possa fazer alguma coisa. Pode pelo menos evitar de agravar o quadro, que era o que acontecia com o Ernesto. Mas, mais do que isso, não vejo possibilidade de acontecer.

BBC News Brasil – É possível reverter o efeito da gestão Bolsonaro sobre a imagem do Brasil no exterior? E há como recuperar nosso soft power?

Ricupero – Neste governo, não. Eu não acredito que isso possa acontecer, porque também não creio que o presidente vá mudar de personalidade, de caráter, de opinião, de grupos apoiadores.

Nada disso vai acontecer. Então, até a eleição, não vejo nenhuma possibilidade de que essa situação melhore. Depois das eleições, isso pode suceder, desde que haja a eleição de um governo mais “normal”, digamos, entre aspas. De um governo que volte a colocar o Brasil nos trilhos. E que seja capaz de adotar políticas diferentes, em meio ambiente, em povos indígenas, em direitos humanos, em igualdade de gênero, e assim por diante.

A partir de uma mudança interna, pode-se fazer um esforço para melhorar a nossa imagem externa. Isso é perfeitamente factível. Mas vai demorar muito. Vai ser um trabalho gigantesco e, eu diria que uma parte do prejuízo é irrecuperável, é irreversível. Essa parte que se devia à continuidade e à confiabilidade do Brasil e da sua política externa.

O mundo se acostumou, durante décadas, desde o fim do governo militar, a ver que os governos que se sucediam no Brasil podiam ter prioridades distintas, mas todos tinham valores compatíveis. Todos tinham uma fidelidade aos princípios da Constituição, um engajamento em favor do meio ambiente, dos povos indígenas e dos direitos humanos.

Essa confiabilidade foi perdida, porque, com a experiência Bolsonaro, ainda que ela termine no ano que vem, vai ficar sempre aquela dúvida sobre o futuro do Brasil. Até que ponto o Brasil não vai ter uma recaída nesse tipo de comportamento que nós assistimos nos últimos anos.

BBC News Brasil – O senhor chegou a prever nos anos anteriores que o Brasil poderia sofrer boicotes e represálias em suas exportações agrícolas, pela forma como Bolsonaro tem gerido a questão ambiental. Isso não só não se concretizou, como o Brasil tem exportado mais commodities agrícolas do que nunca, com a ajuda da desvalorização cambial. A necessidade global de alimentos se sobrepõe à agenda verde que as grandes potências dizem agora ser prioridade?

Ricupero – Em parte sim. O que você diz é verdade, sobretudo em relação à China e aos asiáticos. Porque, de fato, o aumento das exportações brasileiras de soja, de milho, de minério de ferro, se deveu sobretudo à China, não a outros países. Para outros destinos as exportações têm caído.

No caso da China, de fato, é um país que olha mais a sua própria demanda. Mas, mesmo aí, existe uma incerteza em relação ao futuro, porque as grandes empresas importadoras chinesas, as tradings, já anunciaram que vão começar a ter uma política de traçar a origem dos produtos que elas importam. Então, à medida que a China possa diversificar suas fontes de suprimento, haverá alternativas aos fornecedores brasileiros.

Mas as represálias que o Brasil já está sofrendo não são apenas medidas comerciais. As medidas comerciais são o último limite. É aquilo que acontece quando realmente a situação chega a um ponto muito, muito grave.

Mas a verdade é que, devido a essas políticas que o governo Bolsonaro tem seguido, o Brasil hoje já se converteu numa espécie de “pária” do mundo. Isso se vê agora na pandemia.

Há poucos dias, o jornal Washington Post publicou um artigo muito interessante comparando a solidariedade do mundo com a Índia na pandemia, com a falta de resposta em relação ao Brasil. O jornal dizia que é chocante de ver.

Os Estados Unidos estão se mobilizando, aprovaram mais de US$ 100 milhões em ajuda e medicamentos para a Índia. Alemanha, França, Inglaterra estão mandando aviões especiais, recheados de produtos de ajuda. Enquanto isso, em relação ao Brasil, não há nenhum movimento comparável, apesar de o número de mortes no Brasil ser maior do que o da Índia.

Por quê? Porque o Brasil se tornou um país rejeitado pelo mundo. Então, é óbvio que, na hora que o Brasil precisa, não existe da parte do mundo exterior, uma reação de solidariedade. E é por isso que eu diria que o castigo pelo que nós fazemos já é evidente. Não é alguma coisa que virá depois. É algo que já está acontecendo.

BBC News Brasil – O que muda para a política externa e ambiental brasileira com a chegada de Joe Biden ao poder nos Estados Unidos?

Ricupero – Muda o discurso. Vê-se isso já na carta que o presidente Bolsonaro enviou alguns dias antes da Cúpula do Clima, no dia 22 de abril.

Na carta, ele disse coisas que são o contrário do que ele vinha dizendo até então. Fala no compromisso em combater o aquecimento global. Reafirma o compromisso do Brasil do Acordo de Paris, de pôr fim ao desmatamento ilegal na Amazônia até 2030. Esse compromisso tinha sido retirado das promessas brasileiras pelo Ricardo Salles, em dezembro de 2020. O que mudou entre dezembro de 2020 e abril de 2021? A posse do Biden.

Então mudou o discurso e a promessa. Mas não mudaram as políticas, as verbas para combater o desmatamento, o desprestígio do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], as atitudes de impedir que os fiscais do Ibama cumpram o seu dever. Então, são promessas retóricas. Superficiais. Como se dizia antigamente, “para inglês ver”. Só que hoje é “para americano ver”.

BBC News Brasil – E que balanço o senhor faz da Cúpula do Clima?

Ricupero – A cúpula foi muito importante, porque mudou a agenda mundial por completo. Nós perdemos quatro anos no combate ao aquecimento global devido ao governo Trump. Então era preciso um gesto dramático para fazer com que a questão voltasse a ocupar o centro da agenda mundial. Isso foi feito pela Cúpula do Clima.

Ela não tinha o objetivo de produzir resultados negociados. Porque esses resultados terão que ser produzidos no final do ano, no mês de novembro, na reunião de Glasgow, na Escócia, quando haverá a COP-26. O passo seguinte ao Acordo de Paris.

Na reunião de Glasgow é que vamos ter que ir além, porque os compromissos de Paris somados não vão permitir atingir a meta que está no preâmbulo do acordo, que é limitar o aumento da temperatura global a apenas 1,5 grau. Atualmente, pelos compromissos de Paris, vamos ter um aumento de 4 graus. Portanto, é preciso ir muito, muito além.

BBC News Brasil – O senhor acredita que o ministro Ricardo Salles deve novamente sobreviver à crise gerada pela notícia-crime aberta contra ele no caso da defesa de madeireiros ilegais?

Ricupero – Aparentemente sim, porque os madeireiros ilegais, os mineradores ilegais e os grileiros criminosos constituem uma das bases de apoio do governo Bolsonaro. Então, ao proteger esses criminosos, ele está, na verdade, solidificando essa base.

Não vi até agora nenhum sinal de que algo mude. E, ainda que mude, só a mudança do ministro não resolve nada. Se for para trocar o Ricardo Salles por um outro general Pazuello [Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde] ou alguma pessoa parecida, não resolveria.

É preciso mudar o ministro para alguém melhor, mas mudar também a política. Ter o compromisso de querer, de fato, acabar com o desmatamento, com a mineração ilegal, com a grilagem. Voltar a prestigiar os fiscais do Ibama e do Instituto Chico Mendes. Voltar a aprovar um plano como o que a [ex-ministra do Meio Ambiente] Marina Silva aplicou e que permitiu baixar a destruição de mais de 12 mil, pra menos de 4 mil quilômetros quadrados. Esse plano existia, mas foi abandonado. Ele tem que voltar.

Então, é isso que precisaria. E não vejo sinais de que vá acontecer, infelizmente. Não há nada além de promessas vagas, imprecisas, sem nenhum compromisso objetivo.

BBC News Brasil – E como o senhor avalia a gestão de Paulo Guedes à frente da Economia?

Ricupero – É um grande desapontamento. Desde a campanha, ele sempre criou expectativas exageradas, até por causa do estilo pessoal que ele tem.

Ele, por exemplo, dizia, antes de tomar posse, que iria zerar o déficit público brasileiro em um ano. E como é que ele pretendia fazer isso? Ele pretendia privatizar e vender os imóveis do governo federal. Em cada caso, segundo ele, produziria mais de R$ 1 trilhão. Ora, tudo isso eram fantasias. Fantasias de quem nunca tinha passado pelo Ministério da Fazenda.

Quem já passou pelo ministério, como eu, sabe a dificuldade que existe para privatizar uma só companhia. Quanto mais todas. Então, tudo isso se desfez ao contato da realidade.

Ele nunca foi capaz de dar um rumo coerente à política econômica. Tanto assim que, da equipe original dele, restam muito poucos. A maioria daqueles que o acompanharam foram gradualmente deixando o governo. E muitos admitiram que faziam isso porque viram que nada daquela intenção original ia ser transformada em algo de concreto.

O balanço melhor não é o balanço que se faz com palavras, é o balanço dos fatos. E o fato é que nós agora estamos com uma economia que não cresce. Em que a única coisa que cresce são os preços dos alimentos, da gasolina, do diesel, a carestia da vida.

Nós estamos, de novo, com a pior situação econômica que se possa imaginar, que é a combinação de estagnação econômica com inflação.

BBC News Brasil – A pandemia deve resultar num retrocesso histórico na desigualdade e nos avanços conquistados por mulheres e pela população negra nas últimas décadas. O que precisará ser feito para se reverter esses retrocessos nos próximos anos?

Ricupero – Será necessário um esforço gigantesco. Porque o retrocesso não é só nessas áreas que você mencionou e que são de fato uma realidade. Há um retrocesso em algo mais surpreendente: na expectativa de vida. É a primeira vez em mais de 100 anos que a expectativa de vida no Brasil vai recuar dois anos praticamente.

A mortalidade tem sido gigantesca e, em alguns casos, a perda é irrecuperável. Por exemplo, nas tribos indígenas, boa parte da cultura tradicional, das tradições, e até do conhecimento da língua, está concentrado nos mais idosos, que são os que estão desaparecendo muito rapidamente.

É claro que uma parte dessas mortes teria sido inevitável, mas uma quantidade gigantesca de pessoas que adoeceram e morreram poderiam ter sido poupadas, se desde o início tivéssemos seguido os caminhos corretos de combate à pandemia.

Se tivesse existido uma coordenação de políticas do governo central, com Estados e municípios. Tivesse se adotado confinamento no momento certo e com o nível de rigor necessário. Se tivesse aumentado o número de testes e, uma vez comprovadas as pessoas infectadas, se tivesse feito o acompanhamento para evitar que essas pessoas infectassem outras. Se tivéssemos adotado no momento certo a decisão de comprar vacinas, quando a Pfizer, por exemplo, nos ofertou 70 milhões de doses.

Se tudo isso tivesse sido feito, o número de mortes seria muito menor. Infelizmente, perdeu-se essas oportunidades. E agora, no futuro, um novo governo terá que redobrar os esforços durante anos, para que possamos recuperar o nível em que estávamos e que perdemos. Eu não sei quantos anos vai demorar. Mas, seguramente, não serão poucos.

BBC News Brasil – Muitos economistas liberais têm defendido a necessidade de o liberalismo contemplar a questão social e ter a desigualdade como foco, para que a agenda liberal possa ganhar maior adesão na sociedade. Alguns, como Armínio Fraga, têm inclusive defendido políticas como uma renda básica para pelo menos metade da população brasileira. Como o senhor vê esse redesenho do liberalismo nacional?

Ricupero – É bem-vindo. Mostra que o liberalismo, se bem entendido, não é de forma nenhuma excludente de uma consciência social aguda.

E acho que esses economistas têm razão de que é necessário sintetizar os inúmeros programas que nós temos. Porque, para poder ter um programa como o Armínio aconselha, de renda básica, é preciso examinar bem os diferentes programas sociais que o Brasil tem – e são muitos – e avaliar quais os mais exitosos, que atingem mais a população alvo, como é o caso do Bolsa Família.

Outros programas que não são tão eficazes devem ser descontinuados, para poder concentrar os recursos e ter um programa que seja de fato coerente e bem desenhado. Que procure cobrir toda a população carente, de maneira satisfatória, mas acabando com os desperdícios, acabando com os paralelismos de vários programas que às vezes desperdiçam recurso.

Portanto, precisa de muita racionalidade. Não se vê hoje no governo capacidade de fazer isso.

E não é difícil. Olhando para o Biden, nos Estados Unidos, por exemplo, temos um bom modelo. Os americanos estão focando muito claramente nas crianças pobres, porque um dos aspectos mais graves dos problemas sociais, que tende a perpetuar a miséria, é a miséria da infância.

Então, há muitos modelos que poderiam ser adotados no Brasil. Mas é preciso convocar pessoas capazes de desenhar esses programas, para concentrar os recursos naquilo que realmente vai ter frutos imediatos.

Que é mirar nas crianças pobres, nas famílias com crianças, nas famílias que passam fome. Em todos aqueles que constituem essa gigantesca parte da população carente, que não têm um emprego regular e que sobrevivem, sabe lá Deus como, através de bicos, da economia informal, sem carteira assinada, sem direitos, sem garantia de aposentadoria, sem nada.

É isso que nós temos que fazer. Uma racionalização da política social.

BBC News Brasil – Por fim, o senhor participou no ano passado de um movimento de ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central pressionando por uma retomada verde da economia no pós-pandemia. Vimos movimentos semelhantes de ex-ministros da Saúde, do Meio Ambiente e da Educação de governos diversos, unidos contra as políticas da atual gestão. O senhor acredita que esses movimentos serão suficientes para criar um projeto alternativo ao bolsonarismo em 2022?

Ricupero – Suficientes, creio que não. Mas são necessários. São passos em direção a esse objetivo.

Isso começou, na verdade, com os ex-ministros de Meio Ambiente. O nosso grupo foi criado ainda na época da discussão do Código Florestal, no governo Dilma Rousseff [PT]. Os outros movimentos se inspiraram no nosso, inclusive esse a que eu também pertenço, de ex-ministros da Fazenda.

O que isso indica? Indica que a totalidade das pessoas que passaram pelo setor público no Brasil reprova a linha atual.

E reprova por quê? Porque esse governo é o primeiro que rompe com toda a continuidade que nós tínhamos, desde que começou a Nova República, com o final da ditadura militar, em 1985.

Desde então, todos os governos que se sucederam – uns com mais êxito, outros com menos – tinham a mesma visão, o mesmo projeto de Brasil, que é o da Constituição. Não precisa outro. A Constituição tem o projeto de Brasil que nós queremos. É preciso dar cumprimento a ela.

Esse governo se divorciou desta linha de continuidade. E inaugurou uma linha que é contrária ao espírito e, às vezes, à própria letra da Constituição.

Então nós temos que restabelecer aquele rumo claro constitucional, através de eleições que produzam um governo capaz de dar ao Brasil uma visão coerente, articulada, racional do seu futuro. E que consiga promover uma melhoria da vida das pessoas, para que elas se engajem nesse projeto. Mas isso vai depender das eleições. Enquanto elas não chegarem, nós infelizmente vamos ter que continuar a multiplicar essas tomadas de posição.

Fonte:


Pedro Cafardo: O culto à cloroquina e ao teto sacrossanto

Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, Brasil se vê envolto na discussão sobre limites fiscais rígidos demais

Uma frase banal - fazer do limão uma limonada - move quem está pensando na economia da era pós-covid. Ainda que as aflições com o desastre humanitário global em andamento desencorajem esse olhar economicista, muitos países já puseram o tema em discussão e tomam medidas olhando para o futuro imediato.

Quem prestou atenção nos discursos da Cúpula do Clima da semana passada viu o “caminho das pedras” da nova economia. A ideia geral é que o principal mecanismo para criar empregos após a pandemia serão os investimentos na economia verde.

O presidente dos EUA, Joe Biden, está presenteando os americanos com um programa econômico que vai muito além do auxílio emergencial. Já aprovou um pacote de estímulos fiscais de US$ 1,9 trilhão e propõe investimentos de longo prazo de até US$ 3 trilhões. Esta segunda parte é a limonada, porque aproveita a crise para sugerir uma grande transformação estrutural da economia americana, ao mesmo tempo em que promete reduzir as emissões de gases-estufa em 52% até 2030. Pode parecer estranho, mas a infraestrutura americana está velha e precisa ser renovada. Não há no país, por exemplo, ferrovias de alta velocidade, coisa comum na Europa. As novas linhas de trens devem substituir transporte aéreo, altamente poluidor.

Então Biden quer renovar a infraestrutura do país e, ao mesmo tempo, descarbonizar a economia, que é para onde vai a fronteira tecnológica em função do aquecimento global. Além disso, ele promete investir em educação e saúde pública com recursos obtidos pela maior taxação dos ricos americanos.

O plano Biden, pela sua enorme dimensão, provoca controvérsias. As declarações que mais preocuparam foram as do ex-secretário do Tesouro Larry Summers, por ser um economista de centro-esquerda, que teoricamente deveria apoiar o investimento público. Summers acha que o pacote fiscal, grande demais, pode gerar inflação de demanda, alta de juros e recessão.

Com ou sem polêmica, o fato é que os americanos já planejam a economia do pós-covid e pouco se lixam com o aumento dos gastos. Europeus vão pelo mesmo caminho. Na França, o ministro das Finanças, Bruno Le Maire, mandou às favas o neoliberalismo e disse que vai proteger a economia francesa “a qualquer custo”. Prometeu investir para garantir soberania e domínio de tecnologias que “moldam o futuro” do país. Vai proteger as empresas com taxações e novos financiamentos. A ideia é “reinventar o modelo econômico do país” com base na inovação e na indústria livre de carbono.

Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, aqui o governo ainda aposta na cloroquina, provocando gargalhadas no exterior. Promessas, como as feitas na Cúpula do Clima, soam falsas. O comando econômico só pensa em conter gasto público. A discussão da política macroeconômica se limita ao teto de gastos, jabuticaba pouco razoável num momento em que mundo decidiu aplicar recursos para combater a doença e renovar a economia nos novos parâmetros.

Nem no incentivo ao carro elétrico, óbvia tendência mundial, estamos pensando ainda, como mostrou Marli Olmos no Valor de ontem. Não se trata de defender a ideia de que o bom para os EUA ou para a Europa é bom para o Brasil. Trata-se de seguir o rumo da economia mundial ou de ficar sentado na sarjeta, chorando e esperando pelos milagres da cloroquina ou do teto de gastos.

José Luis Oreiro, professor da UNB, que acaba de lançar o livro “Macroeconomia da Estagnação Brasileira” em parceria com Luiz Fernando de Paula, anda enfurecido com o que chama de “fé no teto sacrossanto”, que só existe no Brasil com esse rigor, incluído na Constituição e com poucas regras de saída. “Se preservar o teto, a economia cresce; se violar, não cresce”, esse é o dogma. “Por que?”, pergunta.

Em tempo: na opinião de Oreiro, Summers está equivocado e “Biden deve ficar para a história como o novo Roosevelt”.

Pontes abertas

Mudando de assunto, mas nem tanto, os quadrinhos acima, uma velha metáfora comum nas paredes de barbearias dos anos 1960, representam bem o que vêm fazendo as duas forças políticas progressistas do país há quase três décadas. Nunca saíram do primeiro quadrinho e foi preciso aparecer um radical totalitário para desconfiarem que estão no mesmo lado. Ameaçam agora passar para o segundo quadrinho.

As propostas das duas não são conflitantes. Quando governaram, controlaram inflação, buscaram crescimento, reduziram analfabetismo e mortalidade infantil, tiveram a responsabilidade fiscal possível e melhoraram a distribuição de renda. Seria utopia pensar numa aliança progressista entre elas? As pontes estão abertas. Mas será preciso superar ambições pessoais de poder em ambos os lados e alguém tomar a iniciativa de atravessar as pontes. As propostas podem ser mescladas para salvar um país entregue a quem não faz planejamento econômico, ignora a ciência e o desafio ambiental, descuida da educação e da saúde e promove discórdias.

Se não se unirem, as duas forças serão condenadas pela história. Pode dar com os burros n’água a ideia de deixar a centro-esquerda de fora e formar um bloco puro-centro, que é móvel, infiel e fragmentado, como mostrou pesquisa publicada sexta-feira pelo Valor. Também não há como isolar de um acordo a centro-direita, porque a esquerda não forma maioria. Não seria melhor escantear os extremistas, parar, negociar e decidir se vão comer juntos primeiro as mortadelas da esquerda ou as coxinhas da direita?


Míriam Leitão: Governo afastado dos brasileiros

O governo Bolsonaro está descolado dos brasileiros na área ambiental e climática. Empresas anunciam compromissos de zerar emissões, de fiscalizar sua cadeia produtiva, porque isso é um diferencial competitivo. Governadores fazem pontes com governos e empresas. Bolsonaro estrangulou o orçamento dos órgãos ambientais, um dia depois de dizer ao mundo que os fortaleceria. Ontem, na Câmara dos Deputados, o delegado Alexandre Saraiva, da Polícia Federal, mostrou provas explícitas da ilegalidade da madeira que o ministro Ricardo Salles diz que é legal. “O ministro tornou legítima a ação de criminosos”, disse Saraiva, que foi exonerado da Superintendência.

O engenheiro Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, observou esse descolamento entre o governo e a sociedade.

— Temos algo acontecendo aqui. A sociedade está fervilhando, o mundo inteiro está olhando para isso. No setor empresarial, do segundo semestre do ano passado para cá, todos os conselhos passaram a falar sobre o tema, querendo entender. Saiu do nível de gerente, foi ao CEO e chegou ao conselho. Várias empresas estão assumindo compromissos e alguns são bem fortes — diz.

Está curioso ver, exemplifica Tasso, a corrida entre as três maiores empresas produtoras de proteína animal, JBS, Marfrig e Minerva:

— Parece que as três estão disputando quem acaba primeiro com as suas emissões. A carta dos 200 CEOs pedindo mais ambição nas metas, tudo está indo nessa direção.

Algumas empresas sempre estiveram nessa trilha, como a Natura. Mas são muitas as companhias que sabem que precisam anunciar metas, verificáveis, prestar contas do esforço que estão fazendo.

O governo federal, apesar do que Bolsonaro disse na reunião de cúpula, segue o seu projeto de desmonte do Ibama, do ICMBio, e até da PF. No Congresso, tramitam projetos perigosos, como o que enfraquece o licenciamento ambiental e regulariza terras roubadas. O depoimento do delegado Saraiva mostra que 70% da madeira apreendida na operação Handroanthus, que Salles diz ser madeira legal, não apareceu nem o suposto dono para reclamar. Há casos de falsificações grosseiras nos documentos. Esse é o projeto do governo Bolsonaro de legalizar o crime. Mas não é o da maioria do povo brasileiro, não é o das grandes empresas, nem dos grandes bancos. O capital converteu-se? Não. Ele está falando de negócios, como sempre. No mundo de hoje, produção ambientalmente suja não é financiada, não tem clientes, perde a competição.

Os governadores fizeram dois movimentos inteligentes. Primeiro, na carta ao presidente Biden lembraram que construíram mecanismos em suas administrações para a cooperação internacional. Segundo, o consórcio dos estados da Amazônia celebrou a divulgação da Leaf Coalition, tão logo foi lançada. Essa iniciativa vem sendo costurada há algum tempo por um grupo de países — Estados Unidos, Reino Unido e Noruega — e de empresas internacionais.

— O Leaf começou em várias frentes e a Amazon esteve bem envolvida no começo. Foi montado um grupo de trabalho. A plataforma se parece com a do Fundo Amazônia, mas em escala global. Cria-se uma linha de base para mostrar a partir desse ponto a queda do desmatamento e há um conselho independente para acompanhar os compromissos. Os países podem se inscrever, mas também os estados, as regiões, para angariar fundos. Os estados brasileiros estão fazendo isso. Vale a partir de 2022, mas em comparação com os cinco anos anteriores — diz Tasso.

Pelo que se sabe, já foi fixado até o preço da tonelada de carbono, num valor acima do que era calculado o Fundo Amazônia. Uma empresa como a Microsoft, por exemplo, que quer zerar suas emissões — não apenas as de agora, mas as que emitiu ao longo da sua história — tem muito a comprar nesse mercado.

Os governadores da região Norte já estavam em contato com os organizadores e por isso no próprio dia do anúncio o governador Flávio Dino, presidente do Consórcio dos Estados da Amazônia Legal, saudou o lançamento da “nova aliança público-privada Leaf Coalition”.

A sociedade, as empresas, os bancos, os governos estaduais estão se conectando com o mundo e a agenda da preservação ambiental. Bolsonaro e seu ministro fazem seu trabalho de demolição das florestas tropicais, e de legalização do crime, descolados do mundo e do próprio Brasil.


Folha de S. Paulo: Ressuscitada por Bolsonaro, rodovia ameaça região de maior biodiversidade do Brasil

Dois projetos de lei preveem a construção de rodovia que dividiria em dois o Parque Nacional da Serra do Divisor (AC) e a privatização de seu território, abrindo caminho ao desmate, ao gado e à extração mineral

Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida, Folha de S. Paulo

Em todo o mundo, o pássaro choca-do-acre só foi encontrado em um único cume dentro do Parque Nacional (Parna) da Serra do Divisor. O habitat do animal arisco e de plumagem escura se limita a um bosque de vegetação baixa, um dos dez tipos de floresta encontrados nessa unidade de conservação, localizada na fronteira do Brasil com o Peru.

Habitat de outros animais endêmicos e de ao menos 1.163 espécies de plantas, a Serra do Divisor é uma das regiões de maior biodiversidade do mundo. Apesar disso, dois projetos em paralelo preveem a construção de uma rodovia dividindo o parque em dois e a privatização do território do Parna, abrindo caminho ao desmatamento, ao gado e à extração mineral.

As propostas são impulsionadas por dois parlamentares bolsonaristas do estado do Acre. A ideia da estrada foi encampada pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido), que já tomou os primeiros passos para a construção do lado brasileiro da rodovia, mas ainda não se pronunciou sobre o projeto de lei em tramitação no Congresso que revoga o Parna da Serra do Divisor.

O prolongamento da BR-364, que hoje termina em Mâncio Lima (670 km de Rio Branco) começou a ser discutido na década de 1970, durante a ditadura militar e está previsto no decreto de criação do Parna, em 1989, durante o governo José Sarney (PMDB). Mas o projeto parecia esquecido com a inauguração, em 2010, da Rodovia Interoceânica (Estrada do Pacífico), que já liga o Acre e o Brasil à costa peruana.



Então começou o governo Bolsonaro. Em 2020, três ministros de Bolsonaro já estiveram no Acre para tratar do assunto. Em junho, Ricardo Salles (Ambiente) visitou a área onde a obra teria início. Em setembro, o então chanceler Ernesto Araújo e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) passaram por Cruzeiro do Sul, a maior cidade da região do Vale do Juruá, por onde a via cruzaria. Reuniram-se com políticos locais e peruanos.

Também em setembro, o próprio presidente defendeu o projeto em uma live no Facebook, argumentando que abrirá uma passagem do Brasil para Pacífico —ecoando o discurso do então presidente Lula (PT) nos anos 2000, quando viabilizou a primeira rodovia, em parceria com o colega peruano Alejandro Toledo, hoje foragido da Justiça.

O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte) afirma que lançará até junho o Termo de Referência para a contratação do projeto, orçado em pelo menos R$ 500 milhões, segundo estimativa oficial.

A autarquia informou que ainda não foi definido o traçado detalhado da rodovia federal, mas que o lado brasileiro terá cerca de 120 km, dos quais 20 km (17%) dentro do parque da Serra do Divisor e que, para este ano, “estão previstos recursos suficientes para o desenvolvimento das ações de estudos e projetos do empreendimento”.

Na região, o projeto divide opiniões.

Lideranças indígenas e ribeirinhos afirmam que até agora não foram consultados sobre a rodovia —como determina a legislação— e preveem impactos socioambientais negativos. "Até hoje, a primeira pessoa que chegou perguntando pra mim falar sobre a estrada é o senhor”, disse à Folha o cacique Joel Puyanawa, em conversa no centro cultural do seu povo.

Separada do casco urbano de Mâncio Lima (AC) por uma estrada de terra de 10 km, a Terra Indígena Poyanawa, com cerca de 680 moradores, fica na área de influência direta da rodovia. Salles esteve ali em 27 de junho, mas Joel não se reuniu com ele. Diante de lideranças indígenas, o ministro discursou que “o tempo é de integração”, ao defender o projeto rodoviário.

“O entorno da nossa terra já está todo comprometido. Já sabemos o prejuízo que as invasões causam. Os brancos vivem caçando na nossa terra, e as instituições ambientais não têm uma política para impedir. Imagina uma rodovia. Quantos milhões de pessoas vão transitar? Vai aumentar o agronegócio? Vai. Mas a nossa sobrevivência não está no agronegócio”, diz o cacique, vereador pelo PT.

Puyanawa teme também que a rodovia passe por cima de uma área sagrada fora da terra indígena demarcada. Foi nessa região que, por volta de 1910, seu povo foi capturado para ser escravizado pelo coronel seringalista Mâncio Lima (1875-1950). Apesar disso, é retratado como herói pela história oficial, a ponto de ser homenageado com o nome da cidade.

“Essa rodovia ameaça 100% a nossa terra, destrói o nosso sítio sagrado. Basta o prejuízo que tivemos com o coronel. Se a rodovia sair, extermina a história do nosso povo”, afirma.

Por outro lado, prefeitos e empresários apostam na estrada para acabar com o isolamento geográfico da região mais ocidental do país. Apesar de ser do mesmo Partido dos Trabalhadores, o prefeito reeleito de Mâncio Lima, Issac Lima (não é parente do coronel), é um entusiasta da estrada —a ponto de ter aberto, por conta própria, uma picada de 40 km no provável traçado da rodovia.

Para o petista e pecuarista, a conexão com Pucallpa, a 740 km de estrada de Lima, traria benefícios para a cidade de 19 mil habitantes, que vive principalmente da pecuária e da agricultura familiar. “A estrada ligaria o mundo todo e traria pra nossa região aqui, com certeza, o desenvolvimento, o crescimento, e Mâncio Lima seria a porta de entrada.”

O principal responsável pela retomada da ideia é o senador Márcio Bittar (MDB-AC). Aliado incondicional de Bolsonaro, como ele mesmo se define, ele ocupa o estratégico cargo de relator do Orçamento de 2021, o que lhe dá o poder de direcionar verbas para a estrada, entre outras atribuições.

Em paralelo, a deputada federal bolsonarista Mara Rocha (PSDB-AC) apresentou, em novembro de 2019 o projeto de lei (PL) 6.024, que transforma o Parque Nacional em APA (Área de Proteção Ambiental), o nível de proteção mais baixo entre áreas protegidas. A mudança abriria caminho para a privatização das terras, desmatamento, extração de madeira, fazendas de gado, mineração e a exploração de gás de xisto.

Mais reticente, o governador do Acre, Gladson Cameli (PP), não esteve presente em nenhuma das visitas ministeriais para tratar da estrada. Por telefone, ele disse à Folha que o projeto é de “médio a longo prazo” e que o estado tem outras prioridades, como incrementar o uso da primeira rodovia interoceânica, hoje subutilizada.

Cameli diz que é contra o rebaixamento do parque para APA e que sua principal preocupação sobre a estrada é com o possível aumento de contrabando de cocaína peruana na região de Cruzeiro do Sul, a principal rota de entrada ao Acre. “[As quadrilhas] estão dominando. As fronteiras precisam da maior presença do Estado de Direito.”

Em reação à forma como a rodovia está sendo planejada pelo governo federal e pelos parlamentares, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito para investigar irregularidades na condução do projeto.

Segundo o procurador da República Lucas Costa Almeida Dias, o objetivo é assegurar que as “comunidades indígenas sejam consultadas de forma prévia, livre e informada”, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

O procurador Dias defendeu que o trajeto da estrada considere a possível presença de indígenas isolados e que o licenciamento seja feito pelo Ibama, com a participação da Funai, e não pelo órgão ambiental estadual, mais suscetível a pressões políticas.

RIBEIRINHOS E INDÍGENAS

Folha visitou a região norte da Parna da Serra do Divisor entre o final de outubro e início de novembro de 2020. Foram 9 horas de barco pelo rio Moa desde Mâncio Lima até a comunidade Pé da Serra, o povoamento mais ocidental do Brasil.

Com três pousadas mantidas por moradores, é a base para turistas em busca das cachoeiras, das vistas panorâmicas e das trilhas pela mata. Um dos locais mais belos e impressionantes é o cânion do rio Moa. São 40 minutos de barco entre montanhas verdes, um cenário associado à Amazônia peruana, próxima dos Andes, mas incomum no Brasil

Apesar de ser vetado pela legislação, cerca de 350 famílias de ribeirinhos vivem dentro do parque, ao longo dos rios Moa e Juruá-Mirim. A maioria delas já morava quando o parque foi criado, mas, passadas três décadas, o o governo federal nunca concluiu o reassentamento dessas famílias. Em Pé da Serra, elas vivem do turismo, da agricultura não mecanizada, da caça e da pesca.

A eletricidade vem de geradores e de placas solares. As casas, distribuídas ao longo das margens, chegam até perto das primeiras montanhas, que amanhecem cobertas de névoa. O transporte é feito em canoas com rabetas, motores de pequena potência pilotados por adultos e crianças. Sem internet, um único telefone público faz a comunicação com o mundo.

Nascida e criada à beira do rio Moa, a agricultora Eva Maria Lima da Silva, 41, diz que é contrária tanto à extinção do parque quanto à abertura da estrada. Cozinheira da pioneira Pousada do Miro, ela diz que o parque impediu o avanço do gado e que o turismo é a melhor alternativa econômica.

“Se a estrada sair, vai prejudicar o nosso parque. Seria bom pela rapidez, mas, viajando pelo rio, a nossa estrada, quantas belezas não vou vendo? Quantas matas não estão preservadas?”, afirmou.

Outro morador antigo, o agricultor e artesão João Silva, 51, afirma que a estrada seria benéfica para diminuir o isolamento da comunidade: “De repente, a gente precisar ir pra rua, pegava a estrada, é mais rápido”.

Por outro lado, discorda da proposta de extinguir o parque, projeto que os moradores desconheciam até serem questionados pela reportagem.“Num sentido, achava bom porque o cara podia achar um emprego. Mas deixar sem explorar seria melhor. Ficamos tranquilos, ninguém vai mexer conosco. Se vier esse pessoal, vai tirar muita gente daqui. Os fazendeiros vão entrar, comprar, os caras vão ter de sair.”

Vizinhos ao parque e habitantes históricos do rio Moa e da Serra do Divisor, os indígenas nukinis rechaçam tanto o plano da estrada quanto a transformação do projeto em APA, segundo o cacique Paulo Nukini, 39. Ele não foi consultado sobre o projeto. Seu povo reivindica que parte do parque seja anexada ao território indígena, homologado em 1991.

“Somos contra porque sabemos que vai trazer muito impacto, muito desmatamento. Pode crescer acesso maior dos contrabandos [tráfico de cocaína]. E vai deixar a nossa serra com bastante risco de contaminação. Pra nós, nukinis, a serra é um recanto sagrado”, afirma a liderança, em conversa diante da sua aldeia, à beira do rio. “O Brasil viveu até hoje sem precisar dessa travessia aí.”

A preocupação com o tráfico tem fundamento. O lado peruano da fronteira tem sofrido com o aumento de plantio ilegal de coca e de presença de quadrilhas de narcotraficantes. A droga atravessa o Brasil por meio de rios e picadas na selva.

PARAÍSO DOS PESQUISADORES

A alta biodiversidade e endemismo da Serra do Divisor decorrem principalmente da altitude variada, entre 200 e 650 metros. Além disso, possui os três tipos de rio existentes na Amazônia: água branca (barrenta), água preta (cor de chá preto) e água clara (transparente). Finalmente, é a única área de proteção integral do Brasil que contém uma ramificação da cordilheira dos Andes, incluindo parte de sua flora e fauna.

“Desde 1901, houve cerca de 3.500 coletas botânicas na Serra do Divisor, com o registro de 1.163 espécies”, diz o biólogo da Universidade Federal do Acre (Ufac) Marcos Silveira, que pesquisa no local há 24 anos. “O número de espécies de plantas vasculares [com vaso de condução de seiva] representa 8,3% da diversidade conhecida na Amazônia.”

O catálogo não para de crescer. Junto com outros pesquisadores, o biólogo prepara um artigo no qual mostra que a lista de espécies registradas no parque aumentou 63% desde 1997, quando havia 720 plantas identificadas. Em média, são três espécies encontradas na Serra do Divisor a cada dois meses, entre novas para a unidade de conservação, desconhecidas no Acre e até mesmo inéditas para a ciência.

A fauna não fica atrás. “Quando fazemos inventários, sempre temos uma chance grande de coletar espécies novas. É impressionante”, afirma o biólogo Elder Morato, da Ufac.

Duas espécies de abelha descobertas no Divisor foram nomeadas em sua homenagem: Euglossa moratoi, uma das cerca de 30 espécies de abelha das orquídeas encontradas no parque, e a Dolichotrigona moratoi, uma das aproximadamente 60 abelhas nativas sem ferrão e melíferas.

Outra abelha sem ferrão descoberta no parque é a Celetrigona euclydiana, uma homenagem ao escritor Euclides da Cunha, que, no início do século 20, esteve no Acre para chefiar os trabalhos de delimitação da fronteira do Brasil com o Peru.

"Para nós, biólogos, a Serra do Divisor é bastante emblemática. Não é exagero dizer que todos sonham em algum dia visitá-la”, afirma um comentário assinado pelos pesquisadores Leandro Moraes (Universidade de São Paulo), Tomaz Melo (Universidade Federal do Amazonas e Raíssa Rainha. Todos são também ligados ao Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), com sede em Manaus.

Em novembro de 2019, os três participaram de uma expedição de pesquisa para um censo de vertebrados para marcar o aniversário de 30 anos do parque. Eles encontraram cerca de 80 espécies de anfíbios e 40 espécies de lagartos e cobras.

Também foram identificadas 326 espécies de aves, dos quais ao menos 5 novos registros para o parque, que já ultrapassa 500 espécies listadas de pássaros. Um deles se tornou o símbolo da região: o choca-do-acre (Thamnophilus divisorius). Morador das áreas mais altas, só existe ali em todo o planeta.

“Essa diversidade expressiva só é documentada em outras regiões da Amazônia após décadas de levantamento no mesmo local. Na Serra do Divisor, registramos em menos de 15 dias de amostragem. Muitas dessas espécies são bastante restritas a essa região e já deixam de ocorrer no sentido leste do Acre”, afirmam os pesquisadores.

Tanta diversidade levou o Ministério do Meio Ambiente a protocolar a candidatura, em 2017, do Parque Nacional da Serra do Divisor como Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade junto à Unesco (ONU). Essa distinção só foi concedida a apenas duas outras regiões da Amazônia: o Parque Nacional Manú, no Peru, e a Amazônia Central, um conjunto de quatro unidades de conservação no estado do Amazonas (Jaú, Anavilhanas, Mamirauá e Amanã).

A proposta, no entanto, acabou retirada dias depois por pressão do Conselho de Defesa Nacional, órgão ligado ao Palácio do Planalto —na época, ocupado por Michel Temer (MDB). A alegação foi ameaça à segurança nacional.

PEDREIRA NO PARQUE

No PL, a deputada Mara Rocha —irmã do vice-governador, o major da PM Wherles da Rocha— usou 213 palavras para justificar o fim do parque nacional. Nenhum estudo ambiental ou econômico é citado para justificar o fim da única unidade de conservação brasileira de proteção integral situada dentro de uma área pré-andina, onde há uma transição entre a fauna e flora andina e da Amazônia baixa.

Para a deputada, a existência do parque de 837 mil hectares (o nono maior do país) “vai de encontro aos interesses e necessidades do povo acreano” por se tratar da “única região do estado que possui rochas que podem ser extraídas e utilizadas na construção civil, de maneira a fomentar o desenvolvimento econômico do estado”.

Em vídeo divulgado em janeiro de 2019, ela afirma que o objetivo é que o parque passe a permitir ocupação humana e que o “projeto é de autoria do senador Márcio Bittar”.

Por telefone, Bittar tentou se desvencilhar da iniciativa da aliada. Disse que não é “idiota” de apresentar o PL para extinguir o parque, mas defendeu o seu teor. “A Alemanha, que banca ONG ligada à mídia nacional, fez uma Itaipu e meia em termelétrica, cavando buraco na terra por carvão. Agora, nós, no Acre pobre, miseráveis, na Amazônia miserável, não temos pedra.”

"Se dentro da reserva tiver uma jazida de pedra e não dá um quilômetro quadrado, não pode tirar porque a lei diz que não pode tirar. Se tiver petróleo lá dentro, pode tirar? Não pode. E vai continuar assim porque não sou idiota e sei que, se eu apresentar um projeto de lei desses, não passa”, completou.

A reportagem tentou falar com Mara Rocha, mas a deputada federal não respondeu ao pedido de entrevista.

PRIMEIRA INTEROCEÂNICA

O fato é que, desde 2010, o Acre já tem uma ligação ao Pacífico peruano, via Assis Brasil (AC). Porém a obra, quase toda executada no país vizinho, não cumpriu a promessa de transformar o estado amazônico em polo exportador ou corredor para a Ásia. No Peru, a rodovia desatou a explosão do desmatamento e da madeira ilegal e está no centro da “Lava Jato peruana”, escândalo de corrupção que abalou a política do país vizinho.

No ano em que a obra foi inaugurada, as exportações do Acre representavam 0,4% do PIB estadual. Em 2018, último dado disponível, esse percentual subiu apenas para 0,7%. Os dados são do Ministério da Economia e do IBGE.

Esse aumento da participação das exportações no PIB acreano ocorreu em ritmo menor em comparação com a região Norte. Em 2010, as vendas ao exterior dos sete estados somavam 14%. Oito anos mais tarde, esse percentual havia subido para 17,4%.

O Acre é o estado menos exportador do Norte. Em 2019, as vendas aos exterior somaram US$ 31,5 milhões —somente 0,2% das exportações da região.

“A estrada não mudou a realidade econômica do Acre, exceto para passear de automóvel até Lima, Cuzco”, diz o presidente da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB), o empresário acreano George Pinheiro.

“A expectativa era de que grande parte das empresas transportadoras faria uma via mais barata e ir pra China, pro Japão. Nada disso aconteceu”, afirma Pinheiro.

Questionado sobre o baixo impacto econômico da estrada que já funciona há dez anos, o senador Bittar disse que a rodovia é “inviável” pelo excesso de curvas e pela altitude elevada do percurso pelos Andes.

"A estrada que sai por Assis Brasil (AC) tem um problema grave, sai na cordilheira alta e pega quase 5.000 metros de altura, não tem carreta que ande ali, tem tanta curva que é inviável”, afirmou. “A saída econômica mais importante é pelo Juruá porque a cordilheira alcança 2.000 metros de altura.”

Esse argumento, usado também por Bolsonaro em setembro, está errado. Entre Pucallpa e Lima, onde está o principal porto do país (Callao), a estrada passa por Cerro de Pasco, uma das cidades mais altas do mundo, a 4.338 metros de altitude.

Bittar admitiu que não há nenhum estudo oficial de impacto econômico da estrada concluído, mas que ele propôs a criação de um comitê binacional para “levantar todo o portfólio de ambos os lados: o que eles têm que nos interessam, e o que nós temos que os interessam”.

Apesar de defender a nova estrada, Pinheiro afirma que a conexão entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, cidade com cerca de 380 mil habitantes, é uma necessidade sobretudo local. “Em termos de distâncias amazônicas, é muito pequena [210 km em linha reta]. E seria uma ligação com uma cidade peruana com grande movimento comercial, industrial.”

Para o líder empresarial, a retomada do projeto se deve sobretudo à “nova perspectiva política”: “Há novos atores que querem fazer a estrada. Todo mundo quer ter o carimbo: ‘Fui eu que fiz a estrada’. Isso dá sustentação política, o que acho isso lícito, normal.”

*A viagem dos repórteres Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida foi patrocinada por InquireFirst e pelo Departamento de Educação Científica do Instituto Médico Howard Hughes (HHMI).