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Roberto Livianu: Em nome do patriotismo
É preocupante a ideologização da educação, para um viés como para outro
Quando criança, uma vez por semana eu e meus colegas de escola tínhamos de nos posicionar em fila e entoar em postura de respeito cívico o Hino Nacional brasileiro e, muitas vezes, o hino da escola. Vivíamos o tempo da ditadura militar e nenhum dos alunos ousaria questionar o porquê daquilo. Eu, particularmente, gostava de cantar os hinos.
Eis que quase 40 anos depois disto, precisamente 34 anos passados desde o processo de redemocratização, o ministro da Educação do governo eleito em outubro manda uma surpreendente carta às escolas do País determinando que todas as crianças cantem o Hino, sejam filmadas cantando, sob os auspícios de Deus acima de todos, reproduzindo-se o slogan de campanha do presidente da República a que serve.
Não é necessário ter doutorado em Direito para enxergar as derrapadas cometidas pelo nosso ministro da Educação, originário da Colômbia, nosso país-irmão no continente, que pode até ter tido boas intenções, mas elas são insuficientes para gerir essa tão complexa e importante pasta e as respectivas políticas públicas.
Não se revoluciona a educação no Brasil com a agenda de costumes. Exige-se ousadia para valorizar e capacitar os professores, além de rever métodos ultrapassados de ensino, coragem para lidar com um cenário em que estudantes abandonam a escola cedo demais (25% não terminam o ensino fundamental e 41% não concluem o ensino médio antes dos 19 anos).
No Brasil, mais de 50% não sabem ler nem escrever até os 9 anos e 7% não adquirem o conhecimento necessário em Matemática ao fim do ensino médio. Infelizmente, no ranking da qualidade da educação 2018, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, de 137 países avaliados, o Brasil ocupa a triste posição 119.
Portanto, o problema não se restringe a questões jurídicas, já que, obviamente, crianças não podem ser filmadas sem autorização dos pais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é só o desrespeito à Constituição, que desde 1891 proclama o Brasil um Estado laico, sendo inadmissível menoscabar os adeptos de quaisquer credos ou religiões, assim como os ateus ou agnósticos.
Deus acima de todos pode ser um chamariz de campanha política e uma opção religiosa individual, mas é ideia que não pode ser imposta aos ateus e agnósticos nem nortear a política pública da educação, já que aqueles que não creem têm o mesmo direito à educação que os que creem, mesmo que estes sejam maioria – numa democracia a vontade da maioria prevalece para a escolha do governante, que governa para todos.
É preocupante a ideologização da educação – tanto para um viés como para outro. Todos têm direito a ela, que transforma as pessoas, sendo inadmissível ser utilizada como instrumento para manipulação política, para formar massa de manobra eleitoral.
E neste ponto vale refletir sobre a necessidade de reinserção das disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) na grade curricular escolar, que durante algum tempo cheguei a pensar ser algo razoável e positivo.
Não tenho dúvida da importância de se falar na escola sobre valores éticos, humanismo, cidadania, Estado e suas funções, direitos e deveres de cada um e cada uma. Mas tenho sérias dúvidas se a melhor forma é a reintrodução dessas matérias, porque nos tempos em que elas eram ensinadas os respectivos conteúdos eram impostos arbitrariamente pelo governo militar, que dava as cartas à época, o que nos autoriza a imaginar que poderemos correr riscos de ver conteúdos manipulados transmitidos nas aulas dessas disciplinas, distantes do verdadeiro, nobre e humanista espírito educativo apartidário.
A carta do ministro da Educação reforça e reaviva a preocupação, não obstante fazer ele parte de um governo eleito democraticamente. Também o foram Trump nos Estados Unidos, Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, objeto de análise dos professores de Ciência Política de Harvard Ziblatt e Levinsky, autores da festejada obra Como as Democracias Morrem, em que mostram como instituições democráticas podem ser dinamitadas pelo mau uso das próprias regras do jogo democrático e por posturas ditatoriais. Por minha conta acrescento o caso Hugo Chávez na Venezuela.
Nada contra o canto do Hino nas escolas, mas que se tenha clareza de que isso é muito raso e insignificante para a construção do sentimento patriótico, que diz respeito a uma nova cultura, que nunca tivemos verdadeiramente. Mudanças culturais são instituídas ao longo das gerações a partir de políticas públicas planejadas estrategicamente visando tal objetivo.
Construiremos patriotismo a partir do enfrentamento corajoso da crise de representatividade política, pelo resgate da confiança dos cidadãos em seus representantes, quando estes deixarem de exercer o poder visando a se autobeneficiar, como percebem os brasileiros (93% deles – Latinobarómetro 2018); quando forem apresentadas ações concretas de Estado no combate à corrupção, eliminando o foro privilegiado, aprovando uma reforma político-partidária de verdade, permitindo candidaturas avulsas, como fazem mais de 90% das nações do mundo.
Em vez de reintroduzir EMC e OSPB, talvez fosse melhor e menos arriscado transmitir as ideias essenciais inerentes à cidadania, à ética, ao humanismo, aos direitos e deveres, como já mencionei, de forma transversalizada, difusa, ao ensinar Geografia, História, Biologia ou Língua Portuguesa, com seminários, debates e exemplos sutis e inteligentes que façam o estudante refletir, sem demonizar alguns nem santificar outros, ensinando-o a desenvolver senso crítico, sem impor ao estudante verdades absolutas.
*DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO
O Globo: 'Espertalhões tentam parar a Lava-Jato da Educação', diz Olavo
Guru do bolsonarismo explica, em entrevista ao GLOBO, por que pediu saída de alunos do governo
Natália Portinari e André de Souza, de O Globo
BRASÍLIA – Depois de causar alvoroço aconselhando, nas redes sociais, seus alunos a deixarem seus cargos no governo do presidente Jair Bolsonaro, na madrugada desta sexta-feira, o professor de filosofia Olavo de Carvalho , radicado nos Estados Unidos, disse ao GLOBO que seu conselho se motivou pela informação de que "espertalhões" dentro do governo Bolsonaro estariam atuando para frear a "Lava-Jato da Educação", uma investigação sobre corrupção em contratos do Ministério da Educação (MEC) em gestões passadas.
– Inverteram a cronologia dos fatos. Estão dando a notícia de que, depois das minhas críticas, teriam demitido alunos meus, mas esses fatos já estavam acontecendo antes de eu falar qualquer coisa. O que aconteceu é o seguinte. Fiquei sabendo que alguns espertalhões estariam tentando parar a Lava-Jato da Educação e, com base nisso, pedi que meus alunos saíssem do governo – disse Olavo.
Questionado sobre a quais alunos se dirigia seu conselho, Olavo cita dois: o assessor internacional do presidente, Filipe Martins, e o advogado Tiago Tondinelli, chefe de gabinete do MEC. Segundo a "Folha de S.Paulo", Tondinelli irá deixar o cargo. Olavo diz que não travou contato com nenhum dos dois após o conselho que deu em redes sociais. O GLOBO não conseguiu falar com os dois.
– Eu não mantenho contato com membros de governo, ninguém entrou em contato comigo depois (de fazer as críticas). Não conheço pessoalmente todos os meus alunos e não fico supervisionando o que acontece nos ministérios. Vocês (jornalistas) parece que gostam de teoria da conspiração. Ernesto Araújo e Vélez Rodríguez não são meus alunos. Eu li o Vélez Rodríguez, eu é que fui influenciado por ele.
Segundo pessoas próximas ao ministro, Grimaldo e outros alunos de Olavo receberam a opção de permanecer no ministério em novas funções. Todos aceitaram, à exceção de Grimaldo. Ao GLOBO, o ministério diz que, como se trata de remanejamento interno, não se manifestará sobre o assunto.
A "Lava-Jato da Educação" foi anunciada pelo ministro Ricardo Vélez Rodríguez em meados de fevereiro. Segundo ele, trata-se de uma investigação interna sobre atos das gestões anteriores, aberta após encontrar indícios de corrupção e desvios em programas da pasta. Foi assinado um protocolo de intenções com outros órgãos do governo para apurar as irregularidades, que envolvem também concessão ilegal de bolsas de ensino à distância e irregularidades em universidades federais. Na última semana, Bolsonaro reforçou, no Twitter, o compromisso com a investigação.
Ao menos um dos alunos de Olavo, o assessor especial do MEC Silvio Grimaldo, insatisfeito com a mudança de funções na pasta, anunciou em sua página no Facebook que pediria exoneração. Segundo Grimaldo, somente pessoas ligadas a Carvalho se tornaram indesejadas no MEC e foram transferidas para cargos que, na prática, são apenas um “prêmio de consolação”.
Foram duas postagens. Na primeira, ele disse que “o expurgo de alunos” de Carvalho foi “a maior traição dentro do governo Bolsonaro que se viu até agora”. Disse ainda que nem as “trairagens” do vice-presidente Hamilton Mourão, com quem Carvalho já trocou farpas, ou do ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência Gustavo Bebianno, que deixou o governo após desgaste com Bolsonaro, “chegaram a esse nível".
Numa segunda postagem, ele esclareceu que não foi expulso do MEC. Grimaldo disse que, durante o Carnaval, foi avisado de que seria transferido para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), “onde deveria enxugar gelo e ‘fazer guerra cultural’.” Assim, “dada a absurdidade da proposta”, e “vendo que o mesmo destino fora dado a outros funcionários ligados ao Olavo (apenas olavetes foram transferidos) e mais alinhados com as mudanças propostas pela eleição de Bolsonaro, não vi outra saída senão comunicar ao ministro meu desligamento pedir minha exoneração, que deve sair nos próximos dias”.
Outro aluno, Murilo Resende, que também tem cargo comissionado no MEC, afirmou ao GLOBO estar surpreso com as postagens de Carvalho. Mas, diferentemente de Grimaldo, disse que, até o momento, pretendia continuar no governo.
– Até o momento sim (pretendo continuar no cargo). Mas vamos ver. Eu também me surpreendi com as postagens hoje, com os fatos que estão sendo relatados. Vamos aguardar como todo mundo para entender melhor o que está acontecendo – disse Resende.
Enquanto a polêmica envolvendo os seguidores de Carvalho ganhava as redes, uma portaria assinada na quinta-feira pelo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, mas publicada apenas hoje, trazia a exoneração de quatro assessores. O GLOBO, porém, não conseguiu encontrar conexões entre eles e Carvalho.
Para o escritor guru do bolsonarismo, a presença de "inimigos" deveria ser suficiente para fazer os seguidores dele abandonarem seus postos e pretensões junto à administração pública para focarem apenas na "vida de estudos". "O presente governo está repleto de inimigos do presidente e inimigos do povo, e andar em companhia desses pústulas só é bom para quem seja como eles", disse Carvalho”, disse ele em mensagem tornada pública na madrugada de ontem em sua página no Facebook.
Carvalho, que desde 2009 dá aulas em um curso de filosofia online, disse que não era favorável à entrada no governo de pessoas para quem leciona, mas que não havia se posicionado em relação a isso anteriormente porque achou "cruel destruir essa ilusão" dos próprios próprios alunos sobre a gestão de Bolsonaro.
"Jamais gostei da ideia de meus alunos ocuparem cargos no governo, mas, como eles se entusiasmaram com a ascensão do Bolsonaro e imaginaram que em determinados postos poderiam fazer algo de bom pelo país, achei cruel destruir essa ilusão num primeiro momento. Mas agora já não posso me calar mais. Todos os meus alunos que ocupam cargos no governo — umas poucas dezenas, creio eu — deveriam, no meu entender, abandoná-los o mais cedo possível e voltar à sua vida de estudos", escreveu .
O GLOBO identificou outros alunos de Carvalho no governo, como o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida; o secretário de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC), Carlos Nadalim. Nadalim não quis falar com a reportagem. Sachsida não retornou as ligações feitas e mensagem enviada.
Simon Schwartzman: A fábrica de ilusões
Ensino superior precisa de visão de futuro, regras claras, mais flexibilidade e mais transparência
No Brasil todos querem ganhar na loteria, e muita gente joga, mesmo que pouquíssimos ganhem. No ensino superior é parecido: cerca de 7 milhões se candidatam todo ano ao Enem, disputando cerca de 300 mil vagas em universidades federais. Muitos dos que não passam vão para escolas privadas, em alguns casos com bolsas ou créditos educativos. Em 2017, 2,5 milhões de pessoas entraram em cursos superiores, a grande maioria no setor privado, e 1,2 milhão se formaram. Dados do Inep mostram que depois de quatro anos 31% dos estudantes haviam abandonado o curso e só 11% se formaram. O abandono é muito maior nas instituições privadas (37%) e em áreas como ciências matemáticas e computação (40%), ciências sociais (35%) e cursos à distância (42%).
A peneira, na verdade, começa antes. Hoje existe escola fundamental para todos, mas a qualidade, sobretudo nas redes municipais e estaduais, é muito ruim, e a grande maioria chega ao ensino médio mal sabendo escrever e fazer contas. Em 2018, 3 milhões de jovens entraram no ensino médio, mas só 2,3 milhões chegaram ao terceiro ano. Outro 1,4 milhão, de mais velhos, se matriculou em cursos de educação de jovens e adultos, em que a grande maioria não se forma – e a qualidade é pior ainda. É pior do que loteria, porque é um jogo de cartas marcadas: filhos de famílias mais ricas e educadas, que estudam em escolas particulares ou passam nos “vestibulinhos” das escolas federais, têm mais chances de conseguir boa nota no Enem, passar na Fuvest, escolher os melhores cursos ou ir para uma escola superior privada de elite. Já a grande maioria fica pelo caminho.
Ter educação superior hoje no Brasil significa ter uma renda média do trabalho de R$ 4.600 mensais, comparada com R$ 1.600 dos que têm nível médio e R$ 1.350 de quem só tem o fundamental. Mas depende muito do curso e da faculdade que a pessoa seguiu: cerca de metade das pessoas de nível superior trabalha em profissões de nível médio, com renda próxima de R$ 2.400. Para ter maiores benefícios é preciso entrar numa carreira disputada, como medicina ou engenharia, ou passar na prova da OAB ou num difícil concurso para cargo público: é para poucos.
Além do imenso custo pessoal para os milhões que gastam anos, dinheiro e esperança tentando uma carreira que nunca vão atingir, existe o custo público de manter tudo isso. Segundo dados da Secretaria do Tesouro, os gastos da União em educação superior passaram de R$ 32 bilhões a R$ 75 bilhões entre 2008 e 2017, em sua grande maioria na forma de salários para professores de tempo integral das universidades federais, enquanto o crédito educativo, concedido de forma indiscriminada ao setor privado até recentemente, chegou a mais de R$ 30 bilhões em 2016 e 2017. Tudo isso para financiar um sistema com 30% ou mais de ineficiência, sem falar na qualidade e pertinência do que é ensinado. O Ministério da Educação mantém um sistema extremamente complexo e caro de avaliação do ensino superior, com as provas do Enade e a divulgação de diferentes índices que não nos dizem quais cursos são efetivamente bons ou ruins, nem qual a empregabilidade dos formados, ou a eficiência das instituições no uso dos recursos públicos.
Outra ilusão é a suposta “indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão”, consagrada no artigo 207 da Constituição. Em seu nome, 87% dos professores das instituições federais e 80% das estaduais têm contratos de trabalho de tempo integral, e a maioria de dedicação exclusiva, elevando enormemente os custos, embora a pesquisa que mereça esse nome – regular, de padrão internacional e de impacto social e econômico – esteja concentrada numas poucas instituições, existam poucas patentes e grande parte dos artigos produzidos termine enterrada em revistas que ninguém lê. Em seu nome, também, as instituições de ensino são avaliadas pelo que elas não querem, não sabem fazer nem precisam – quantos professores doutores têm, quantos papers produzem, quantos cursos de pós-graduação oferecem.
Não será fácil sair desta situação. Não é possível reverter o relógio e limitar o acesso à educação superior, mas é possível melhorar as avaliações e oferecer uma gama de alternativas de estudo e formação para pessoas que chegam ao ensino superior com diferentes condições e necessidades. O “modelo de Bolonha”, adotado pela União Europeia e muitos outros países, consiste num primeiro ciclo de três anos de amplo acesso, seguido por mestrados ou cursos mais avançados. Além disso, existem amplos sistemas de formação vocacional que começa no ensino médio e continua no pós-secundário, em institutos e centros especializados. Transitar do sistema tradicional de cursos de quatro ou cinco anos para esse modelo não é fácil, mas é possível, se houver uma visão clara do que se pretende e estímulos adequados para que as instituições respondam.
O setor privado, que trabalha numa perspectiva empresarial, já se vem adaptando às novas condições, compensando a perda dos subsídios do crédito educativo por cursos à distância e ampliando a oferta de cursos “tecnológicos” de curta duração. O setor público necessita, sobretudo, de incentivos corretos para disputar e usar bem seus recursos, com contratos de gestão para cumprir metas diferenciadas e realistas, novas formas de governança e flexibilidade legal e institucional para responder a esses incentivos. E os estudantes devem compartir a responsabilidade e os custos de sua educação, sobretudo por meio de créditos educativos associados à renda futura.
O mercado tem suas vantagens, mas também problemas quando a competição se dá por baixos custos e venda de ilusões. O ensino superior brasileiro precisa de uma visão de futuro, regras claras de funcionamento, mais flexibilidade e mais transparência. E o Ministério da Educação, que é parte, talvez não seja a melhor agência para regular esse sistema.
* Simon Schwartzman é sociólogo e membro da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES)
Cristovam Buarque: Educação para todos
Brasil continua com mais de dez milhões de adultos analfabetos, só 40% dos jovens terminando o ensino médio sem qualidade
Um dos exemplos do populismo da elite brasileira é a defesa da ideia de “universidade para todos” sem que o defensor assuma compromisso e lute por outros sete objetivos: “erradicação do analfabetismo de adulto”, “alfabetização de todas as crianças na idade certa”, “garantia de conclusão de ensino médio com qualidade igual para todos”, “cada jovem com a mesma chance na disputa por uma vaga nos cursos mais demandados”, “garantia de que os selecionados para as universidades vão poder concluir seus cursos”, “confiança de que os formados estarão preparados para o exercício de suas profissões” e “possibilidade de que serão capazes de aperfeiçoamento para os novos conhecimentos e profissões que surgirão ao longo de suas vidas profissionais”. Sem estas sete lutas, a reivindicação de “universidade para todos” é um slogan demagógico por não defender as mudanças estruturais de que a educação brasileira de base e nosso ensino superior precisam para educar bem a todos.
As cotas para afro-brasileiros buscavam, e conseguiram em parte, mudar a cor da cara da elite brasileira. No entanto, a política de ampliar vagas para ingresso na universidade sem garantir aumento de egressos no ensino médio com qualidade provoca um crescente número de alunos que entram, mas não concluem o curso universitário — se concluem, não recebem a necessária qualificação para o desempenho de suas profissões no mundo contemporâneo. No fundo, “universidade para todos” sem “educação de base para todos com qualidade igual” é uma proposta dentro do espírito do individualismo neoliberal: atende quem pode pagar boa escola e oferece vagas para quem não tem boas escolas; sem a revolução de que o Brasil precisa.
Precisamos de um programa de educação de base com a máxima qualidade igual para todos. Isto é possível, mas não atrai votos, porque exige de 20 a 30 anos para chegar a todo o Brasil, substituindo o atual frágil sistema municipal por um robusto sistema federal. Em 2003, o novo governo da época chegou a iniciar um programa de erradicação do analfabetismo de adulto, o Brasil Alfabetizado, e iniciou experiência visando à federalização da educação de base, o Escola Ideal. A partir de 2004, o governo parou estes dois programas e concentrou sua estratégia em ampliar vagas nas universidades, facilitando o ingresso no ensino superior. Alguns jovens conseguiram ingresso, mas o Brasil continua com mais de dez milhões de adultos analfabetos, apenas 40% dos jovens terminando o ensino médio sem qualidade e sem reduzir a desigualdade entre escolas dos ricos e escolas dos pobres.
“Universidade para todos” sem as sete outras metas é uma bandeira para políticos de olho na popularidade eleitoral imediata, não no reconhecimento histórico posterior, “Educação de base para todos” seria assunto para estadistas, capazes de mobilizar eleitores e sociedade em uma estratégia para que “os filhos dos pobres estudem em escolas tão boas quanto as dos filhos dos ricos”, e disputem em igualdade de condições o ingresso nos cursos mais demandados nas melhores universidades.
A política educacional de beneficiar indivíduos, em vez de mudar a estrutura da educação, é uma forma de “neoliberalismo social”: facilita a entrada no ensino superior para alguns, sem dar oportunidade a todos para uma educação de base com a máxima qualidade. Os 15 anos dessa política já mostraram que apenas alguns foram beneficiados, mas sem a mesma chance para todos. A revolução está em assegurar igualdade de qualidade na educação e fazer as reformas que nossa universidade precisa para ser instituição de excelência.
Merval Pereira: Escolas com (outro) partido
E as escolas públicas? Terão seus diretores segurança para recusar a proposta do ministro de cantar o Hino?
Está tudo errado na “sugestão” do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, para que as escolas coloquem seus alunos cantando o Hino Nacional, o que foi mantido ontem, apesar da polêmica que provocou. E indica que o governo que denuncia a partidarização das escolas no governo petista quer apenas trocar de partido.
Retirar o slogan político da campanha de Bolsonaro é o de menos, mas colocá-lo na mensagem oficial indica que o novo ministro da Educação tentou infiltrar nas escolas do país uma propaganda política do governo a que serve. Só não conseguiu porque seu abuso de poder foi denunciado.
Mandar pedir autorização dos pais para que seus filhos sejam filmados, também, é só uma questão de cumprir a legislação em vigor. Mas indica que o governo estava se preparando —e pelo visto continua com a ideia — para promover campanhas “educativas” utilizando-se dos alunos e professores. O problema maior é o subterfúgio usado para implementar uma promessa de campanha do presidente eleito.
Durante a campanha eleitoral, tanto Jair Bolsonaro quanto seus filhos prometeram que o Hino Nacional voltaria a ser cantado nas escolas brasileiras.
O Ministério da Educação (MEC) afirma que se trata de um “pedido de cumprimento voluntário” e que os diretores que quiserem seguir a recomendação do ministro devem ler a carta aos alunos no primeiro dia letivo deste ano.
Ora, para as escolas particulares, não haverá muito problema em recusar a “sugestão” do ministro. Mas, e as escolas públicas? Terão seus diretores segurança para recusar a proposta do ministro? Outra questão grave é a permissão dos pais para que seus filhos sejam filmados.
Não me parece uma solução, pois também nas escolas públicas do país a maioria dos pais se sentirá constrangida diante de um pedido da diretoria da escola. Especialmente nas regiões menos desenvolvidas.
Quem se recusar, qual garantia terá de que não será perseguido, do ponto de vista institucional, no caso dos diretores discordantes, ou do pessoal, no caso de constrangimento para assinar a autorização? E os alunos que se recusarem, que ambiente passarão a ter nas suas escolas?
O ministro Vélez Rodríguez diz, com razão, que cantar o Hino Nacional “não é constrangimento, é patriotismo”. Mas patriotismo só é imposto em governos autoritários. É um sentimento de pertencimento que move muitos cidadãos espontaneamente. Ninguém precisa mandar a torcida brasileira cantar o Hino Nacional, às vezes à capela. Estímulos oficiais pelo patriotismo podem levar a frases como a de Samuel Johnson, que dizia que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.
Uma sugestão dessas só poderia ser feita pelo MEC depois de ouvidas as entidades ligadas à educação, num ambiente institucional adequado, certamente o Conselho Nacional de Educação (CNE).
Não se trata de concordar ou não com cantar o Hino, mas de uma orientação oficial que muda o cotidiano das escolas. A recomendação lembra o governo Vargas, que estimulava esse tipo de “patriotada”, ou a implantação das matérias Estudo de Moral e Cívica (EMC) e a Organização Social e Política do Brasil (OSPB), que se tornaram obrigatórias no currículo das séries dos hoje ensinos fundamental e médio em 1969, em substituição a Sociologia e Filosofia. Aliás, a volta dessas duas matérias está nos planos do novo governo. O Hino Nacional seria apenas o começo.
Mas, mesmo na ditadura, essas mudanças no currículo seguiram os trâmites legais, sendo aprovadas no Conselho Nacional de Educação. No governo Temer, em 2017, o Ministério da Educação decidiu promulgar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, com alcance para todos os alunos da educação básica no Brasil, depois de amplo debate no Conselho Nacional de Educação e também no Congresso Nacional.
É uma norma de Estado e, como disse na ocasião da sua aprovação o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), “deve ser implementado independentemente de quem esteja no governo federal ou estadual”. O mesmo Consed protestou contra a “sugestão” do ministro da Educação.
Segundo especialistas, é a autonomia e a liberdade do ensino que estão em jogo, e, sem isso, não existe aprendizado, existe controle mental, o que é bem grave do ponto de vista, inclusive, legal.
Época: Quem é Antonio Paim, o filósofo baiano que fez a cabeça do ministro da Educação
Paim é visto como um mestre pelos liberais-conservadores que passaram a orbitar em torno da Esplanada dos Ministérios
Por Guilherme Evelin, da Época
Em seu discurso de posse no dia 2 de janeiro, em meio a críticas ao globalismo, ao pensamento gramsciano, ao marxismo cultural e à ideologia de gênero — o quarteto eleito como alvo preferencial dos ataques da ala ideológica do governo Jair Bolsonaro —, o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, explicou que a “inspiração liberal-conservadora” de suas propostas educacionais, que pregam a recuperação dos valores culturais tradicionais e religiosos, vinha de “dois grandes educadores”: Antonio Paim e Olavo de Carvalho.
A ascendência do “guru da Virginia” — como Olavo de Carvalho passou a ser chamado pelos bolsonaristas — sobre o novo governo instalado em Brasília se tornou bem conhecida. Além de opinar a favor da escolha de Vélez Rodríguez para o Ministério da Educação, Carvalho também atuou pela nomeação do embaixador Ernesto Araújo para o Itamaraty. Menos alardeada, a influência das ideias de Paim é igualmente importante em setores do novo governo, e a figura do filósofo baiano é tão ou mais reverenciada que a de Carvalho.
Autor de obras como "Histórias das ideias filosóficas no Brasil" e "Evolução histórica do liberalismo", Paim é também tratado como um mestre pelos liberais-conservadores que passaram a orbitar em torno da Esplanada dos Ministérios. “Paim mostrou que a luta pelo sistema democrático-representativo e pluralista produz resultados humanamente mais aceitáveis que os sistemas cooptativos do antigo Leste Europeu, de Cuba, da Venezuela bolivariana e da China comunista”, disse o cientista político Paulo Kramer, que fez parte da equipe de transição do governo Bolsonaro e foi coautor de um livro com Paim e Vélez Rodríguez sobre o “novo patrimonialismo brasileiro”, publicado em 2015.
Para o cientista político Christian Lynch, professor da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro, “Paim é autor de uma obra ciclópica e muito respeitável sobre a história das ideias filosóficas no Brasil, que é um clássico da área”. “A preocupação central em seus textos sobre o pensamento político brasileiro tem sido compreender as raízes do iliberalismo no Brasil, que ele acredita radicar numa incompreensão da questão da representação política”, acrescentou Lynch. “Nos últimos 20 anos, o prestígio do socialismo ou da social-democracia foi relegando alguns intelectuais a um lugar marginal na academia e na mídia, como se fossem dinossauros em extinção. Com o retorno do conservadorismo, depois de 30 anos, esses autores voltaram à voga.”
Prestes a completar 92 anos, Paim, nascido em Jacobina, no interior da Bahia, vive hoje numa casa de repouso particular para idosos, repleta de jardins e com um lago, no Jardim Bonfiglioli, bairro de São Paulo, às margens da Rodovia Raposo Tavares. ÉPOCA o encontrou lá em dois domingos, dia que ele reserva para ouvir música clássica, num quarto em que mantém uma TV, um computador e uma estante com seus livros e fotos de suas duas filhas. Paim precisa recorrer a um andador para se locomover, mas, em meio a alguns resmungos contra a velhice (uma m..., resume), ele se mantém bem-humorado, com uma conversa afiada e atualizado sobre tudo que ocorre com o governo Bolsonaro.
O ministro da Educação Ricardo Vélez Rodriguez, na posse de seu cargo, cumprimenta seu antecessor Rossieli Soares Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil
Sua ligação mais direta com o novo governo é, claro, com Vélez Rodríguez, com quem falou, por telefone, para desejar sucesso no governo. O ministro da Educação foi seu aluno quando chegou ao Brasil na década de 70, com uma bolsa da Organização dos Estados Americanos (OEA) para estudar pensamento brasileiro num curso ministrado por Paim na Pontifícia Universidade Católica (PUC) no Rio de Janeiro. Paim rememora, com prazer, como conheceu Vélez Rodríguez, colombiano de nascimento, depois naturalizado brasileiro. “No primeiro dia de aula, ele falou em América Latina. Eu disse a ele: Você ganhou uma bolsa para estudar pensamento brasileiro. Não me venha com conversa de América Latina, que isso não existe aqui’. Ele, ainda um garoto, não respondeu nada e ficou em pânico”, contou Paim, aos risos.
O mestre disse que depois o “discípulo” se mostrou de grande valor e fez uma pesquisa primorosa sobre o caudilho gaúcho Júlio Prates de Castilhos (1860-1903), prócer do começo da República brasileira. Castilhos ajudou na difusão do positivismo, doutrina filosófica importada da França com grande penetração entre os militares brasileiros e inspiração do lema “Ordem e Progresso”, inscrito na bandeira nacional. A pesquisa redundou depois no livro Castilhismo, uma filosofia da República , de Vélez Rodríguez. A obra bebe no pensamento de Paim. Para o filósofo, “o positivismo era um troço primitivo”, a República foi instalada no Brasil por meio de “um golpe de Estado” articulado por uma minoria e a derrubada da monarquia em 1889 foi “um retrocesso brutal que abortou a construção no país de instituições representativas democráticas” no modelo liberal inglês — para Paim, o ápice da civilização política.
Paim e Vélez Rodriguez também comungam a mesma ojeriza às ideias socialistas e ao que eles chamam de doutrinação marxista nas universidades brasileiras. Para o filósofo baiano, o “Brasil é o único país do mundo, além da França, onde o comunismo parece que não acabou”. Ele diz ainda que “um marxismo vagabundo” prolifera nos campi nacionais. “A USP é hostil ao pensamento brasileiro. A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão do Ministério da Educação responsável pela supervisão dos cursos de pós-graduação) está na mão dos comunas, dos marxistas. O MEC só dá passagem e bolsa para quem está na chave gramsciana. Se você não estudar Gramsci, você perde o emprego. É exatamente isso”, afirmou Paim, que considera Gramsci um “totalitário”. Ele manifesta a esperança de que o novo ministro “vai liquidar isso”. “Não tem cabimento dar ao Estado o poder de dar pontuação às instituições culturais”, afirmou Paim, referindo-se ao método usado pela Capes para avaliar a pós-graduação.
Mestre e discípulo têm uma velha pinimba com a Capes. Em 2009, Vélez Rodríguez publicou um artigo na imprensa em que acusou os “burocratas da Capes no setor de filosofia” de agir de forma persecutória, entre 1979 e 1999, para extinguir os cursos de graduação e pós-graduação em filosofia brasileira, um nicho de atuação de filósofos conservadores, considerados minoritários na academia brasileira.
Segundo Vélez Rodríguez, “uma guilhotina ideológica” ceifou esses cursos por eles serem considerados de direita. A ação teria sido comandada por antigos ativistas marxista-leninistas, seguidores do filósofo e padre jesuíta Henrique Claudio de Lima Vaz. Vaz era mentor, na década de 60, da Juventude Universitária Católica (JUC) e da Ação Popular (AP), uma corrente política de esquerda em que militaram, no passado, José Serra e Herbert de Souza, o Betinho, entre outros. Quase uma década depois de sua publicação, o artigo de Vélez Rodríguez continua a reverberar no mundinho acadêmico. Após sua nomeação para o Ministério da Educação, circulou um manifesto de professores de filosofia, assinado inclusive por Marilena Chauí, que rebate “as insídias” contra o padre Vaz.
A rixa de Paim e Vélez Rodríguez com os seguidores do padre Vaz dura décadas. Paim diz que foi “boicotado” por antigos militantes da AP, quando eles assumiram o Departamento de Filosofia da PUC do Rio de Janeiro no final da década de 70. Uma reforma foi feita na pós-graduação, e o curso de filosofia brasileira, de Paim, foi retirado do currículo. Quando textos do jurista e filósofo Miguel Reale — mestre de Paim e pai do ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff — foram retirados de uma antologia distribuída aos alunos, Paim publicou uma “denúncia” em forma de artigo no Jornal do Brasil.
A polêmica gerou meses de controvérsia na imprensa nacional e depois virou o livro "Liberdade acadêmica e opção totalitária". “Excluíram o Miguel Reale porque ele tinha sido integralista, o que é um absurdo. Eu tinha arrumado bolsas para os marxistas, em pleno governo militar, porque achava um absurdo a discriminação a eles, mas a convivência é difícil. Você não deve dar cargo de poder a eles, porque eles vão liquidar os outros. É da alma deles”, disse Paim.
Raul Landim, ex-diretor do Departamento de Filosofia da PUC, tem uma versão diferente. Disse que a exclusão do curso de filosofia brasileira estava relacionada a uma modernização do departamento para adequá-lo à realidade de outros cursos de filosofia no mundo. Da mesma forma, a antologia de textos distribuída aos alunos passou a incluir apenas filósofos considerados clássicos.
“Fui da AP, mas não sou marxista, como também não era o padre Vaz. Estávamos preocupados em melhorar a competência dos alunos, mas o Paim transformou tudo em questão ideológica”, disse a ÉPOCA Landim, hoje professor aposentado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na última terça-feira 8. A querela não terminou bem para ele. Seis meses depois, Landim e outros professores perderam seu emprego na PUC. Ele acha que a polêmica teve um efeito indireto em sua saída.
Apesar desse passado, Paim avalia que Vélez Rodríguez deve agir com prudência em sua faxina ideológica no Ministério da Educação. “Não pode generalizar. O Ministério da Educação tem muito funcionário decente. Não pode achar que tudo é marxista, tudo não presta, como os procuradores fizeram com a classe política. Não é bem assim”, afirmou. Perguntado sobre o Escola sem Partido, Paim disse que os professores devem adotar a mesma postura que ele tinha na sala de aula.
“Em meu tempo de professor, eu dava um curso sobre Kant (Immanuel Kant, filósofo alemão do final do século XVIII, considerado um dos pilares da filosofia moderna). Eu transmitia a eles como ler "A crítica da razão pura", mas não fazia doutrinação. Se eu fizesse isso, dizia a eles que podiam me criticar e me botar para fora”, afirmou. Paim disse que o curso de filosofia serve para ter conhecimento de todos os principais pensadores, inclusive Marx. Mas ressalva que Marx deve ser lido à luz da “complexidade do idealismo alemão”. Fora desse contexto, alertou, “marxismo vira bestialógico”.
Antes de virar um conservador e um anticomunista ferrenho, como ele próprio admite, Paim fez um caminho sinuoso. Foi ele próprio um comunista de carteirinha. Na juventude dos seus 20 e poucos anos, estudante no Rio de Janeiro, entrou no Partido Comunista do Brasil, o Partidão, entusiasmado com a União Soviética depois da Segunda Guerra Mundial. Achava que os soviéticos encarnavam a liberdade, que não existia na ditadura de Getulio Vargas.
Virou secretário de redação da Tribuna Popular, o jornal do partido, em que militava, entre outros, o poeta Carlos Drummond de Andrade. Durante o governo de Gaspar Dutra (1946-1951), num enfrentamento de jornalistas e gráficos que resistiram a bala a uma ação da polícia para fechar o jornal, levou um tiro que o deixou com um buraco na cabeça e foi condenado a sete anos de prisão. Foi enviado para uma casa de detenção, onde, segundo Paim, o diretor queria matá-lo. Paim contou que numa ocasião em que o diretor tentou pegá-lo com as mãos pelas grades da cadeia, reagiu e quase quebrou o braço do agente. Como punição, foi mandado para um cubículo numa solitária, onde ficou em condições degradantes. “O anticomunismo brasileiro era de um primarismo brutal. Uma pessoa com um mínimo de caráter ou enfrenta aquele negócio, ou se avacalha. Aí, eu virei comuna mesmo”, afirmou.
Depois de uma inspeção feita por uma Comissão da Câmara dos Deputados, Paim foi reconhecido como preso político e enviado para uma penitenciária onde, em condições melhores, cumpriu pena de dois anos e dois meses de prisão. Solto, virou dirigente do Partido Comunista. Em 1953, foi enviado para a União Soviética para estudar teoria leninista, na Universidade Lomonosov, em Moscou. Aprendeu a ler O capital, de Marx, em russo para traduzi-lo para o português. Paim disse que transformou-se em um “bolchevique sem alma, sem amigo, sem família, sem p... nenhuma, integrante de uma casta devotada à causa”.
Na Universidade Lomonosov, Paim, porém, apaixonou-se pela russa Margarita Anatolia Rodanov — que fazia a tradução simultânea para os brasileiros. Seus colegas comunistas não gostaram daquele namoro, porque achavam que atrapalhava as relações do Partido Comunista brasileiro com o soviético. Terminado o curso, Paim voltou para o Brasil, mas ficou poucos meses aqui antes de resolver voltar para a União Soviética para casar com Margarita.
“O amor foi um processo de humanização para mim”, declarou numa ocasião Paim, que disse ter sido salvo do comunismo pela paixão. Ele foi gradualmente afrouxando os laços com o partido. A ruptura final veio com a divulgação dos crimes de Stálin com o relatório Kruschev, de 1956, quando Paim ainda morava na União Soviética. “Fui eu que lutei para distribuir o relatório para o Partido Comunista brasileiro. Não dava para ficar no partido depois daquilo. Da minha geração, ninguém ficou”, contou Paim. O processo de desencanto daquela geração com o stalinismo é contado no livro "O retrato", de outro ex-comunista baiano, Osvaldo Peralva, que foi jornalista da Folha de S. Paulo. A reedição de 2015 de "O retrato" tem prefácio assinado por Paim. “A leitura de 'O retrato' pode contribuir para que pessoas de bom senso revejam esse tipo de opção”, escreveu o filósofo na apresentação.
Depois de conseguir a autorização do regime soviético para que Margarita saísse da Rússia, Paim voltou para o Brasil com a mulher. Instalaram-se em Copacabana, no Rio de Janeiro, tiveram uma filha. Mas o casamento com Margarita, que traduziu Machado de Assis e fez um dicionário russo-português, durou pouco. Por volta de 1962, quando o Brasil já vivia o acirramento dos ânimos anticomunistas que culminaria no golpe militar contra o governo João Goulart em 1964, a russa resolveu voltar, com a filha, para a União Soviética, onde a mãe era uma dignitária do regime. Paim confessou ter ficado “desarvorado”. “Eu era muito agarrado a minha filha. Era um potocozinho”, disse Paim, que nunca mais a viu. Não é o único momento que usa da suavidade baiana para se referir a suas ligações com antigos camaradas e a Rússia soviética. “O povo russo é uma gente muito simpática, bonita, alegre. Sinto saudades deles, do período em vivi lá”, contou. Recentemente, disse ter descoberto a existência de duas netas na Rússia. Uma delas, volta e meia, lhe escreve e-mails em português — e torna a desaparecer.
O processo de saída do marxismo, disse Paim, foi igualmente penoso. “Uma coisa é sair do Partido Comunista, outra é sair do marxismo”, explicou. Ele fez a opção deliberada de “passar anos estudando para aprender” e conseguir o rompimento com a antiga ideologia. “O Fernando Henrique não fez isso e continuou se arrastando”, disse. Passou a estudar Kant com um engenheiro alemão, especialista na obra do filósofo. Com ele, disse Paim, fez “terapia kantiana” para se libertar do marxismo. A transição para o liberalismo conservador, brincou, foi igualmente “gradual, lenta e segura”. Por um tempo, flertou com a social-democracia. Contou que só virou liberal mesmo em meados da década de 70, depois de ter estudado como o liberalismo inglês se reformou, ao longo do século XIX, para tornar suas instituições políticas mais representativas.
Paim se disse animado com a perspectiva de dar maior consistência programática às várias propostas liberais que ganharam força nos últimos anos no Brasil. Disse ter o lido o programa do PSL, o partido de Bolsonaro, e o achou “muito bom”. Considera que o novo presidente “tem uma proposta liberal, sem dúvidas”, e que ele pode liquidar o PT, outro porta-voz do que ele chama de “marxismo vagabundo”. Mas mantém um certo ceticismo em relação aos resultados que podem ser alcançados pelo novo governo. “O Brasil elegeu um governo militar-liberal. Tem mais milico lá do que no tempo do Castello Branco. É um arranjo complicado. Você não pode dizer isso a priori, mas pode não dar certo. Depende muito da relação com o Congresso”, disse.
Em relação ao Brasil, Paim disse ter menos ilusões ainda. “Se não houver um cataclismo que mude sua base social, o Brasil jamais será um país desenvolvido”, afirmou. Adepto de uma filosofia que faz uma leitura culturalista das sociedades, ele acha que o obstáculo está relacionado a valores morais desenvolvidos nos tempos do período colonial, quando a Inquisição impediu que o país acompanhasse a Revolução Industrial. “No Nordeste, havia um dito: ‘Não herdou, não roubou, emerdou’. Isso mostra que o ódio ao lucro e à riqueza é um troço arraigado, profundo, no Brasil. A moral social é muito ruim. O grande obstáculo que impede a sociedade liberal no Brasil é a Igreja Católica. A Igreja Católica é hoje uma espécie de Partido Comunista”, disse Paim. Segundo ele, o máximo que o Brasil poderá aspirar em termos de participação da riqueza mundial será como país agroexportador, graças ao sucesso do agronegócio. “E PT Saudações”, completa ele, peremptório.
Demétrio Magnoli: A verdade em fluxo
O pacto da transição, em torno da Anistia, turva até hoje a imagem da ditadura
O general Aléssio Ribeiro Souto, coordenador do plano de educação na campanha de Bolsonaro, exige dos professores a exposição da "verdade" sobre o "regime de 1964".
A confusão sobre a alteração do edital de aquisição de livros didáticos pelo MEC segue envolta em mistério. A versão modificada, depois anulada, tornava desnecessárias as referências bibliográficas.
Manuais escolares sem suporte em bibliografia seriam veículos ideais para a demanda de revisionismo histórico. Por essa via, seria mais fácil presentear o cliente (no caso, o governo) com a "verdade" que ele deseja.
Nunca, em toda a trajetória da imprensa, um jornal publicou tantas mentiras quanto o Pravda, órgão do Partido Comunista da URSS. A palavra russa significa "verdade" —e não uma mera verdade factual, mas a verdade dos justos e retos. O totalitarismo estabiliza a verdade do poder como narrativa única, intocável.
Nas sociedades abertas, porém, a verdade histórica está sujeita à disputa política e nem sempre se obtém um consenso básico sobre eventos traumáticos do passado.
A França carece de museus relevantes sobre o regime de Vichy, que colaborou com os nazistas, pois parcela significativa de suas elites aderiu ao colaboracionismo.
A Espanha não conseguiu acertar as contas com a Guerra Civil porque, na transição à democracia, conservadores e comunistas uniram-se num pacto tácito de esquecimento. Os primeiros tentavam apagar suas origens franquistas, enquanto os segundos queriam ocultar seus próprios crimes contra anarquistas e trotskistas.
Na Hungria, meses atrás, o governo nacional-populista de Viktor Orbán removeu dos arredores do Parlamento a estátua de Imre Nagy, o líder comunista que se insurgiu contra a URSS na revolução democrática de 1956 e foi executado em 1958.
O gesto serve para eliminar os lugares da memória ligados à era comunista, restaurando cenários de uma Budapeste anterior à Segunda Guerra Mundial, e também como agrado a Vladimir Putin, aliado de Orbán, que almeja sanitizar a história da "Grande Rússia".
Há, por outro lado, sociedades que aprenderam a lidar com os fantasmas do passado. A Alemanha expõe sem disfarces o horror do nazismo no museu público Topographie des Terrors. No Chile e na Argentina, a investigação judicial dos crimes contra a humanidade cometidos pelas ditaduras implantadas na década de 1970 gerou uma narrativa histórica quase universalmente compartilhada.
O Brasil não teve a mesma sorte: o pacto da transição, organizado em torno da Lei de Anistia (1979), turva até hoje a imagem da ditadura militar.
Na barganha da Lei de Anistia, impediu-se o escrutínio judicial dos crimes da ditadura. Na outra ponta, concedeu-se à esquerda o privilégio de elevar os líderes da luta armada ao estatuto oficioso de heróis nacionais. A impunidade foi paga com a moeda da mentira estatal.
Assim, os chefes militares e os torturadores não foram alcançados pelo braço da lei e, em troca, a Comissão de Anistia prestou homenagens a figuras como Marighella e Lamarca. A demanda bolsonarista de reabilitação escolar da ditadura é um fruto tardio do intercâmbio fraudulento que propiciou a transição.
O general Aléssio quer que os professores instaurem uma novilíngua orwelliana. No lugar da ditadura que cassou as liberdades públicas e os direitos políticos, surgiria uma "guerra" entre "dois lados": militares patriotas e terroristas comunistas. E, no lugar de assassinatos sob tortura, emergiriam centenas de "mortes em confronto".
O revisionismo bolsonarista pretende ir muito além do constrangido esquecimento francês ou espanhol. Sua meta é celebrar a ditadura, tal como a Comissão de Anistia celebrou os ícones da luta armada.
No projeto bolsonarista, as reformas econômicas não passam de detalhes. O governo almeja reescrever a história do Brasil para reformar as mentes.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
El País: Os tentáculos de Olavo de Carvalho sobre 57 milhões de estudantes brasileiros
Três discípulos do filósofo ocupam cargos importantes no Ministério da Educação de Bolsonaro. Ideias do pensador da ultradireita devem influenciar políticas da alfabetização às universidades
Por Beatriz Jucá, do El País
Considerado uma espécie de guru intelectual da direita brasileira, o filósofo Olavo de Carvalho emplacou três discípulos em cargos estratégicos do Ministério da Educação sob o presidente Jair Bolsonaro. Além do próprio titular da pasta, Ricardo Vélez, os seguidores Carlos Nadalim e Murilo Resende ocupam, respectivamente, a Secretaria Especial da Alfabetização e a direção da Avaliação da Educação Básica do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Tratados pelo mentor como "olavistas", Vélez, Nadalim e Resende chegam ao poder afinados com as ideias que aprenderam principalmente nos cursos online oferecidos pelo filósofo direitista, e pelos quais já passaram cerca de 12.000 pessoas.
A primeira pasta inédita do Governo Bolsonaro será comandada por Carlos Nadalim, que é mestre em Educação, defensor da alfabetização domiciliar e coordenador da escola de sua mãe, o colégio Mundo Balão Mágico em Londrina.
As ideias de Carvalho — centradas principalmente no fim da "doutrinação ideológica marxista" que diz existir no ensino público do país — devem influenciar as políticas dos próximos quatro anos nas duas pontas da educação brasileira: da alfabetização ao ensino superior, cujo impacto deve recair sobre os cerca de 48,6 milhões de estudantes matriculados nas escolas da educação básica e sobre os pouco mais de 8,3 milhões de alunos do ensino superior (segundo o último Censo Escolar, de 2017).
No centro do discurso de Olavo de Carvalho, estão críticas ferrenhas a Paulo Freire (1921-1997), o educador e filósofo brasileiro mais referenciado em universidades do mundo, nomeado patrono da educação brasileira em 2012, laureado dezenas de vezes com o título doutor honoris causa fora do Brasil. O pedagogo pernambucano, criticado pelo Governo Bolsonaro, defendia a educação como um ato político, mantendo os alunos em contato constante com os problemas contemporâneos no processo educacional. Ainda que não seja o único teórico no qual se apoiam os professores brasileiros, Paulo Freire é um dos principais alvos de crítica de Olavo e também dos seguidores que agora ocupam secretarias complexas no Governo Federal.
Distante dos espaços acadêmicos, Carvalho se construiu como um filósofo outsider. Não tem título universitário, mas é autor de 19 livros e dissemina suas ideias por cursos online e pelas redes sociais, onde expõe posições fortes e que costumam causar controvérsia entre educadores. Defende, por exemplo, que o Governo perca o papel de educador. A constituição brasileira estabelece que municípios são responsáveis prioritários pela oferta pública de educação infantil e pelo ensino fundamental. Já os Estados são responsáveis pelo ensino médio. Para o filósofo, é preciso desregulamentar a educação e resumir o papel do Governo ao de selecionador, pelo qual seria responsável apenas por testes de aprovação baseados na avaliação de três aptidões básicas: ler, escrever e fazer contas. Nesta perspectiva mais ampla, Olavo de Carvalho — que fez o ensino básico em uma escola mantida pela igreja católica — defende um sistema de fundações privadas que subsidiem essas escolas. "Por que tem que ser tudo subsidiado pelo Governo central ou mesmo pelos governos estaduais?", questionou em um vídeo publicado em agosto do ano passado, intitulado Como salvar a educação no Brasil?.
Neste vídeo, Olavo de Carvalho chega a questionar a necessidade de existência do Ministério da Educação e chama de "mágica" uma proposta apresentada por Bolsonaro na campanha, de ampliar as escolas militares, que segundo o presidente teriam melhor qualidade no ensino que as escolas tradicionais. "Isso é uma bobagem. O erro essencial é a ideia de que o Governo central tem que educar a nação. É uma ideia comunofascista que Getúlio Vargas pôs na cabeça do brasileiro", diz.
As críticas feitas à proposta de Bolsonaro durante a pré-campanha eleitoral não impediram que o presidente desse a ele um amplo poder de influência nas políticas educacionais dos próximos quatro anos. Dos Estados Unidos — onde vive desde 2005, o filósofo indicou três nomes para o MEC, inclusive o chefe da pasta, Ricardo Vélez, que segundo ele, "a pessoa que mais entende de pensamento político-social brasileiro" no mundo. No discurso de posse, o ministro destacou sua relação com o olavismo e a "inspiração liberal e conservadora" que deverá representar nas políticas educativas.
Carlos Nadalim assume a recém criada Secretaria de Alfabetização com a função de enfrentar o problema do analfabetismo em todos os níveis de escolaridade —segundo dados do IBGE de 2017, o Brasil ainda possuía quase 12 milhões de analfabetos. Nadalim já foi apresentado por Olavo de Carvalho em vídeos como um dos poucos que de fato educam no Brasil. Coordenador de uma escola em Londrina chamada Balão Mágico, implantou o método fônico de alfabetização — baseado na relação entre as sílabas e os sons para só depois ler frases completas — a pouco mais de uma centena de alunos e apresentou resultados que lhe renderam o prêmio Darcy Ribeiro, da Câmara dos Deputados. Mantém o blog Como educar seus filhos, onde oferece cursos online. Nele, escreveu que seu projeto é "apenas uma nota de rodapé do imenso trabalho" desenvolvido por Olavo de Carvalho. Agora no Governo, tem defendido a ideia de banir métodos globais de ensinar a ler e escrever (associados à teoria construtivista e a Paulo Freire) para promover o método fônico. Atualmente, não há um único método de alfabetização nas escolas brasileiras, embora a maioria delas utilize o método construtivista.
Na outra ponta do ensino, está o professor de economia Murilo Resende, 36 anos, novo diretor do Inep. É ele o novo responsável pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a principal porta de entrada nas universidades federais brasileiras. Assim como Nadalim, Resende atribui a Olavo de Carvalho seu "amadurecimento intelectual" e oferece cursos online sobre economia e filosofia política a partir da perspectiva conservadora. Ao ser anunciado ao cargo, foi criticado pela falta de experiência na Educação. O próprio presidente saiu em sua defesa, pelo Twitter. "Murilo Resende, o novo coordenador do Enem, é doutor em economia pela FGV e seus estudos deixam claro a priorização do ensino ignorando a atual promoção da 'lacração', ou seja, enfoque na medição da formação acadêmica e não somente o quanto ele foi doutrinado em salas de aula", afirmou. Depois que assumiu o cargo no Governo, Resende desativou o site onde oferecia seus cursos.
Olavo de Carvalho diz que a esquerda exerce o controle do ensino brasileiro, no qual imporia ideias marxistas, especialmente pela predominância das ideias de Paulo Freire, que defende o poder de assimilação maior do aluno pela relação os problemas sociais em vez de valorizar apenas a técnica. Carvalho vai na contramão. Critica, por exemplo, os métodos de alfabetização "introduzidos por essa mesma turma esquerdista nos anos 1970 e 1980, como o socioconstrutivismo, que cria deficiências estruturais de leitura que não se curam nunca mais". Leva anos insistindo que 50% dos formandos das nossas universidades são analfabetos funcionais. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) da Ação Educativa, 4% dos que chegam ao ensino superior são de fato considerados analfabetos funcionais, mas apenas 34% alcançam o nível proficiente.