marxismo

Entrevista coleção astrojildo pereira | Imagem: print/Opera Mundi

Coleção Astrojildo Pereira é recomendada, ao vivo, para mais de mil internautas

João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida

O professor e escritor José Paulo Netto elogiou a Coleção Astrojildo Pereira, editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Boitempo. Durante uma live com mais 1 mil pessoas assistindo simultaneamente à transmissão ao vivo do canal da Opera Mundi no YouTube, ele disse que as obras são “interessantes”.

“Dentre os seis livros na caixa, o Crítica Impura recomendo a todos”, disse José Paulo Netto, destacando a última obra publicada de Astrojildo Pereira e editada, originalmente, em 1963. A entrevista foi realizada pelo jornalista e fundador do Opera Mundi, Breno Altman, no dia 16 de maio.

Coleção Astrojildo Pereira é lançada com nova edição de seis obras

Durante a conversa, José Paulo Netto, que também é estudioso do marxismo, discutiu democracia e revolução. Ao final do webinar, ele também destacou elogios ao livro O revolucionário cordial, biografia de Astrojildo Pereira escrita por Martin Cezar Feijó. “Não é boa não. É excelente a biografia escrita por Cezar Feijó”, afirmou.

Além de ser mencionado na biografia do fundador do Partido Comunista Brasileiro (PCB), José Paulo Netto teve um prefácio de sua autoria publicado no livro Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos. “Escrevi esse prefácio 30 anos atrás e alguém foi lá e o recuperou. Eu fiquei muito feliz com essa publicação”, destacou.

Em comemoração aos 100 anos do PCB, a Fundação Astrojildo Pereira e a Boitempo lançaram uma caixa especial da coleção, com seis obras. São novas edições de todos os livros do intelectual brasileiro, revistas e ampliadas.

Confira debate sobre Astrojildo Pereira no 7º Salão do Livro Político

Veja vídeo de lançamento da Coleção Astrojildo Pereira, em Brasília

Obras

A coleção tem os seguintes títulos:

A biografia O revolucionário cordial, de Martin Cezar Feijó, completa o conjunto, que sai com desconto especial.

Autor de livros como O que é marxismo (2017) e Karl Marx: uma biografia (2020), José Paulo Netto nasceu em Minas Gerais, graduado em serviço social e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida


Travessia política: Gramsci

Gilvan Cavalcanti de Melo, Blog Democracia Política e Novo Reformismo

Agradeço o convite para debater, nesta travessia política as ideias de um italiano que há anos se tornou referência para mim. Trata-se de Antonio Gramsci, o mais importante - talvez o maior - pensador da tradição marxista-ocidental do século passado, cujos 116 anos do nascimento foram celebrados em 22 de janeiro de 2007.

Gramsci morreu em 27 de abril de 1937, aos 46 anos. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade. Dois dias antes, recebera o documento assinado pelo Juiz do Tribunal Especial de Roma com a declaração de que fora suspensa qualquer medida de segurança em relação a ele, que foi preso por ordem de Mussolini em 8 de novembro de 1926. No processo-farsa montado pelo Estado fascista, o promotor pediu aos juízes sua condenação; olhando-o sentenciou: ”É preciso impedir este cérebro de funcionar”. O castigo ocorreu, mas não se conseguiu impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental, para a eternidade (Für ewig).

Condenado, Gramsci fez com que sua inteligência penetrasse na densidade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo mofado dos outros. Não pensou em formular uma nova e original filosofia da práxis.  Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua reelaboração. Ousou, do interior do cárcere, na solidão, inclusive política, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi por muito tempo negligenciado e desconhecido até pelos que, ao contrário, deveriam  tê-lo amado e o honrado mais intensamente.

Por que minha curiosidade por esse homem e sua obra? Originalmente, meu contato com Marx se deu com leituras de textos de outro italiano, Antonio Labriola (1843/1904). Era uma espécie de vacina antidogmática. A partir daí, descobri Gramsci rapidamente. No início senti comoção por aquele homem frágil, sofredor e perseguido. Na sequência, admiração pela sua coragem e combatividade. Depois, interesse crescente pelo seu pensamento denso. Mais tarde, aceitei seus ensinamentos e visão sobre a filosofia de Marx. Esse encontro ocorreu entre os anos 1958 e 1962, por meio de publicações argentinas que chegavam a Recife. Nesse contexto, um papel importante foi desempenhado nessas minhas descobertas pelo gerente da livraria Editora Nacional, na Rua da Imperatriz.

Até hoje, há uma polêmica sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo materialismo ou marxismo. Uma grande parte de estudiosos atribui o fato a uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. É preciso ressaltar, entretanto, que aqueles termos estavam relacionados a uma visão economicista, dogmática e ortodoxa, cujo símbolo mais conhecido era o manual Ensaio popular, de Nicolau Bukarin. Em sua defesa Gramsci foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O capital. Ali, o corifeu da nova filosofia falava de “dialética racional” e “dialética mística” em vez de dialética materialista e dialética idealista.

Estou convencido de que o uso do termo filosofia da práxis foi consciente, no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra os dogmáticos, Gramsci considerava que a filosofia da práxis deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara o pensamento moderno preconceituoso em relação a  Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, o pragmatismo e, através de Spengler, Nietzsche também.

Seria interessante recordar a crítica de Gramsci às duas correntes principais existente na época: a ortodoxa e a oposta. A primeira era representada por Plekhanov, cuja obra Os problemas fundamentais do marxismo, não foi a poupada por Gramsci, que a chamou de materialismo vulgar e a considerou típica do método positivista. Já a segunda queria ligar a filosofia da práxis ao kantismoou outras correntes não positivista e não materialistas; era representada por Otto Bauer, que chegou a afirmar que o marxismo poderia ser baseado em - e integrado por - qualquer filosofia. Daí, a preocupação de Gramsci em colocar em circulação o pensamento de Antonio Labriola. Tratava-se do contraponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Gramsci valorizava a ideia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.

Ao meu ver, é interessante destacar o núcleo do pensamento gramsciano: a palavra chave era o homem como bloco histórico. O tema foi polemizado com Lukács. Vejamos a refutação da teoria da dualidade:

“Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo”.

E reafirmando sua concepção unitária do homem, Gramsci escreve:

“É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser - nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações”.

Nessas palavras, está presente uma visão, uma interpretação da décima primeira tese sobre Feuerbach, escrita por Marx: conhecer a realidade e transformá-la.

A chave bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não-intelectuais, por meio dos conceitos senso comum e de bom senso. Gramsci salientava que todos os homens são filósofos e definia os limites e as características dessa peculiaridade. Essa singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos, bom-senso. Em segundo lugar, no senso-comum, na religião popular, em todo o sistema de crenças, superstições, etc.

Gramsci também encontrou a chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia, através da análise do conceito de senso comum bom senso. Vejamos como ele resolve a questão de maneira muito clara:

“Passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber. O elemento popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente. É preciso reconciliar os dois extremos. Sem essa conexão entre intelectuais e povo/nação, não se faz política: unidade, bloco histórico”.

Esse conceito, unitário perpassa todo o trabalho e a formação de outros conceitos e categorias. Está presente também na relação estrutura e superestrutura. Vejamos outro exemplo, quando Gramsci se refere às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chama a atenção para o exagero de economicismo ou de doutrinarismo pedante; e, de outro, para o limite extremo de ideologismo.

Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e dar lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens. Por isso, Gramsci estabeleceu uma distinção metodológica de dois momentos para a análise de uma situação concreta, circunstância ou conjuntura. O primeiro está unido à estrutura, objetiva, ao grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, à formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa realidade permite investigar se numa determinada sociedade já existem as condições indispensáveis e suficientes para sua transformação. O segundo é a relação das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e organização adquirido pelos diferentes grupos sociais. Gramsci considerava que esses momentos se confundiam reciprocamente na vida real.

Mais uma vez, ele procurava resolver duas questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da economia política: a) uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente forte e vigorosa, e novas relações de produção mais adiantadas jamais se firmarão antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade; b) a humanidade mira apenas os problemas que pode resolver, pois a tarefa só aparece  onde as condições materiais da solução já existem, ou, pelo menos, onde são captadas no processo do seu devir.

Gramsci, ainda desenvolveu o conceito de revolução passiva, deduzindo-o dos dois princípios estabelecidos por Marx, no mesmo prefácio e reportando-o à descrição daqueles dois momentos que podem distinguir a situação concreta e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo: a relação de forças políticas.

O mesmo conceito de bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema da separação - que só existe metodologicamente - entre Estado e sociedade civil. Mas Gramsci deixou bem explicitado que essa relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Ao analisar formações sociais atrasadas (Oriente) e adiantadas (Ocidente), estabeleceu um critério de estudo: Nos países pouco desenvolvidos, o Estado é tudo, e a sociedade civil, primitiva e viscosa; nos países capitalistas mais avançados, há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência, e diante de qualquer tremor ou oscilação do Estado, descobre-se imediatamente, uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada. Partindo dessa visão Gramsci reexaminou o conceito leniniano de hegemonia.

Entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: as organizações e instituições políticas e culturais nas quais esse sistema se materializa e os sujeitos, forças sociais e instituições que o constroem e se reproduzem. Ao mesmo tempo, demonstrou que os sistemas hegemônicos não são eternos, mas históricos, bem como salientou o processo e a possibilidade de se construir uma nova hegemonia político-moral.

Mais uma vez, estou convencido de que por meio de uma série de problemas examinados por Gramsci dentro do pensamento filosófico, no início da década de 30, foi possível antecipar as novas contradições das sociedades modernas - suas complicações, crises econômicas e morais - e a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. De fato Gramsci vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com o famoso texto “Americanismo e fordismo” demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.

A mesma coerência unitária é destacada em sua visão de partido político. Ele partia do questionamento da necessidade histórica de sua existência, recusando-se a aceitar um tipo de organização oriental burocrática, e propunha algumas condições, para a sua realização, entre elas a possibilidade de seu triunfo, ou, pelos menos, uma via pera esse triunfo fosse alcançado.

Contudo, para que o partido exista, é necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, médios, cuja participação é oferecida pela disciplina e fidelidade; b) um elemento principal de coesão, que o unifique no campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjunto de forças (Esse grupo é dotado de determinadas premissas, como criatividade, perspectiva e união; c) um elemento médio, que  articule o primeiro grupo com o segundo, colocando-os em sólido contado intelectual e moral.

Evidentemente, não concordo com aqueles estudiosos e críticos de sua obra que tentam fragmentá-la, em várias interpretações: os que, em matizes, formas e graus diferentes, colocam Gramsci no campo exclusivo do leninismo; os fundamentalmente, interessados, nas inovações que ele introduziu nas análises das superestruturas; e os que o preferem como o filósofo da sociedade industrial.

Ora, Gramsci respondeu à pergunta: “O que é o homem?” e afirmou que esta é a primeira e principal questão da filosofia. Também perguntou: como respondê-la?  A resposta foi resumida mais ou menos assim: “O homem é o que o homem pode se tornar, se pode controlar seu próprio destino, se pode se fazer, se pode criar sua própria vida”. Portanto, o homem é um processo, exatamente o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos elementos: o indivíduo; os outros homens e a natureza, isto é, bloco histórico. Como fragmentá-lo?

Gramsci, modesto como era, não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e fecundo que grandes correntes de opinião formavam. Assim o faz quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce, um dos mais importantes filósofos italiano, seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do cárcere, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo. Hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas, nos meios acadêmicos, como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e de suas complexas superestruturas.

A vida de Gramsci, pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Mas a ignorância de uma época iluminou a extraordinária força moral e o rigor intelectual do sujeito que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, fontes de energia para recomeçar a avançar. Ele suportou o seu destino, com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos.

Diante disso, como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica, fecunda, dando-lhe o papel de herói num mundo cheio de vilões teóricos?

Para finalizar, nada melhor do que me referir a outro Italiano, Norberto Bobbio, Ele dizia que, para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve preencher estes três requisitos: a) ser considerado intérprete da época em que viveu, não se podendo prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) elaborar categorias gerais de compreensão histórica que não possam ser dispensadas para interpretar uma realidade, mesmo distinta daquela a partir da qual essas categorias derivaram e à qual foram aplicada.

Hoje, ninguém, duvida que Gramsci deva ser considerado um clássico na história do pensamento.

*O presente texto foi apresentado no Colóquio Internacional Travessias: políticas, urbanas, literárias e cinematográficas, realizado nos dias 10 e 11 de agosto de 2006, no auditório do Consulado Italiano, no Rio de Janeiro. Teve a parceria da Fundação Biblioteca Nacional com o Instituto Italiano de Cultura.

O mesmo texto foi reproduzido no livro TRAVESSIAS – Brasil-Itália – organizadores: Cléia Schiavo Weyrauch, Maria Aparecida Rodrigues Fontes e Aniello Ângelo Avella - Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2007 P. 129-136


Marco Aurélio Nogueira: O bode expiatório

O que está por trás dos ataques dos bolsonaristas ao chamado “marxismo cultural” e como isso pode empobrecer a democracia e prolongar a crise do sistema político

Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala.

Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.

A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.

A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.

Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate. Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.

O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.

Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.

A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.

Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.

Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Tudo isso não se deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje. Tanto quanto o pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares, fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos, diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a dialética chama de unidade na diversidade.

O fato é que não houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.

Em seus escritos, muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites. Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso. O debate sério sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo, sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que aprisionou os comunistas durante décadas.

Paradoxalmente, a cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o debate pode fluir de forma democrática.

É o que faz o antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle, reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos, suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula. Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma ideologia.

O ataque ao “marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus, transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita conservadora chegou tão longe.

Não se trata de um ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de “macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.

Afinal, o combate ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.

O desdobramento disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre menos técnicos.

Na hipótese de essa parábola se completar, perderemos todos.