martin césar feijó
RPD || Martin Cezar Feijó: Era uma vez no Planalto - Regina Duarte na Secretaria Nacional da Cultura
"Namoradinha do Brasil", Regina Duarte é a quarta pessoa a comandar a Secretária de Cultura em 14 meses de governo Bolsonaro e diz que vai buscar o diálogo e a pacificação com o setor cultural
Era uma vez no Planalto. A namoradinha do Brasil resolveu se casar. Pensava ser a Bela que transformaria a Fera através do Amor e da Pacificação, mas descobriu, logo depois do casamento, que havia se casado com Gastón, o bonitão que se transforma em um implacável vilão; o que havia prometido “carta branca”, mas que preferia mesmo eram “porteiras fechadas”. O Mito mostrava a face bruta da realidade e o afeto parecia se encerrar, deixando a então princesa deprimida.
Tudo parecia um conto de fadas, mas se anunciava uma história de terror de uma das mais importantes atrizes da teledramaturgia brasileira: Regina Duarte. E é da realidade que se trata aqui, dos caminhos e descaminhos da política cultural do governo eleito em 2018. Nem é para menos: um governo eleito com um discurso baseado na guerra ideológica e cultural não poderia ser diferente. E, mais ainda, se utilizando de redes sociais inundadas de fake news.
A própria demissão de um secretário da Cultura com mania de Goebbels é a demonstração da complexidade que envolve uma política cultural em um regime democrático, por mais ameaçado que esteja.
Vejamos o que disse um figurão da República: “Nenhum governo democrático impõe cultura. Só o Estado totalitário. No Brasil, durante o Estado Novo, houve tentativas nesse sentido, mas a própria força de nossa cultura repeliu esse projeto. Lembremo-nos do papel de Gilberto Freyre, nosso intelectual de maior prestígio internacional, na resistência à ditadura de Getúlio. Um governo democrático promove, não impõe cultura”. E não é qualquer funcionário não, até porque não pode ser demitido, mas sim o vice-presidente eleito, General Hamilton Mourão, em entrevista à Revista Istoé (nº 2612, 5/2/2020, p.22).
A repercussão, nacional e internacional, da demissão do obscuro funcionário da Cultura obrigou o governo de Jair Messias Bolsonaro a procurar alternativa mais palatável para ocupar a função de quem iria desempenhar a parte mais visível – e por que não dizer a mais sensível –, da política cultural de sua gestão.
Regina Duarte
O nome da atriz Regina Duarte, conhecida como a “namoradinha do Brasil” desde 1971, quando interpretou na Rede Globo de Televisão Minha Doce Namorada, com pouco mais de vinte anos. Mas a carreira da atriz começou bem antes, aos 18 anos, na TV Excelsior, em 1965, na trama escrita por Ivani Ribeiro A Deusa Vencida, como demonstra Patrícia Kogut em seu livro 101 atrações que sintonizaram o Brasil (Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2017).
A partir daí, uma carreira de sucessos, em várias telenovelas, não só no Brasil, mas no mundo, na América Latina, sendo admirada até em Cuba, onde foi recebida com honras por Fidel Castro. Uma carreira artística de sucessos, da televisão ao teatro. E admiração do público. Teve participações políticas decisivas – e corajosas –, na campanha pelas Diretas Já. Também protagonizou, ao lado de Lima Duarte e José Wilker, a mais importante telenovela da Globo no fim da ditadura militar, Roque Santeiro, de Dias Gomes, em 1985, na qual interpretou a viúva Porcina, a que foi sem nunca ter sido. Era a história de um herói tido como morto que havia se tornado um mito na cidade.
A origem desta narrativa era uma peça de teatro proibida pela ditadura logo após o golpe de 1964: Berço de Herói, do próprio Dias Gomes. Sobre um mito construído por interesses políticos, depois, claro, desmascarado. Um texto premonitório do genial Dias Gomes, perseguido em toda sua trajetória, como demonstra Laura Mattos em seu brilhante estudo de jornalismo investigativo: Herói mutilado – Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura (São Paulo, Companhia das Letras, 2019).
Em seu discurso de posse, no dia 4 de março de 2020, Regina Duarte exaltou a cultura diversificada, com exemplos, talvez para agradar o chefe, até pueris em suas metáforas de “puns de palhaços”, mas com uma clara demonstração de que defende uma cultura plural e livre. Até relativista, do ponto de vista antropológico. Por isso, vem sofrendo ataques do que chamou de “facção de terrorismo digital”, associada ao guru Olavo de Carvalho, que mora nos EUA, onde também forma fiéis seguidores, mas que está sendo acusado pela própria filha, Heloísa de Carvalho, em livro recém-publicado (Meu pai, o guru do presidente. Curitiba, Kotter Editorial, 2020).
É neste quadro tenebroso, de inseguranças e temores, de promessas de censuras e vetos, que a atriz Regina Duarte, de uma carreira artística plena de sucessos, na televisão e teatro, renova seu compromisso de uma vida com a arte e a cultura, da qual ninguém pode duvidar. Apesar das opções ideológicas, que nunca escondeu, resolveu se meter em uma história de um “casamento” que só o futuro vai esclarecer, não só para si própria, mas também, principalmente, para um público que se mobiliza para ver a mocinha vencer uma realidade bem mais complexa.
“Há algo mais entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”, como dizia o bardo inglês. Das telas ficcionais, da namoradinha do Brasil à viúva que foi sem nunca ter sido, ao enfrentamento da realidade da política em um quadro de definições rígidas; mas aparentemente disposta a enfrentar milícias digitais; apesar de tantas expectativas negativas – e preconceituosas (neste caso, não exclusivamente por parte da direita mais extrema) –, restando aos que defendem a democracia como valor universal torcer para que o final desta novela seja feliz. E a diversidade da cultura seja preservada mais uma vez, mesmo nas mais obscuras condições.
‘País vive em tempos sombrios’, alerta Martin Cezar Feijó à Política Democrática de dezembro
Revista online da FAP publica artigo do historiador afirma que teorias como a da Terra Plana estão na cabeça de alguns brasileiros
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O historiador Martin Cezar Feijó, doutor em comunicação pela USP (Universidade de São Paulo) e professor de comunicação comparada na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), afirma que o Brasil vive em tempos sombrios. Em artigo de sua autoria publicado na revista Política Democrática online de dezembro, ele diz que teorias sobre a Terra plana, bruxas e conspirações são alguns dos temas que permeiam a mente de alguns brasileiros em pleno século XXI.
» Acesse aqui a 14ª edição da revista Política Democrática online
“Quem poderia imaginar que, em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, como o Brasil, com todos seus problemas de desigualdade ainda existentes, se acreditasse em Terra Plana, em bruxas e conspirações satânicas?”, questiona. “E não por pessoas comuns, que não tivessem nenhuma educação formal e responsabilidade social, mas por pessoas que ocupam cargos públicos importantes na esfera federal.”, afirma ele, na publicação produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).
No artigo exclusivo produzido para a edição de dezembro da revista Política Democrática online, ele também afirma que a cultura é cheia de contradições. “Principalmente riscos. Mas o maior risco é o de sua instrumentalização. Seja satanizando o rock como causador de aborto e adorador do diabo, ou questionando a escolha de uma poeta para uma homenagem em um encontro literário em Parati, como o caso de Elisabeth Bishop”, observa Feijó.
Na avaliação o historiador, ambos padecem de um mal anunciado, o da confusão entre conhecimento e estética e política no sentido de partidarização e ideologia. “Claro que um caso se insere na questão de liberdade de opinião, mas o primeiro se trata de um claro posicionamento, com implicações práticas, como imposição de uma política que abre caminho para cerceamentos e censuras. O pior dos cenários, portanto”, assevera.
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Revista Política Democrática || Martin Cezar Feijó: AOS QUE VÃO NASCER - Uma política cultural para o século XXI
Brasil vive em tempos sombrios, obscuros, avalia Martin Cezar Feijó. Terra plana, bruxas e conspirações são alguns dos temas que permeiam a mente de alguns brasileiros em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, escreve o articulista
Vivemos em tempos sombrios, lembrando Brecht. Na verdade, obscuros. Quem poderia imaginar que, em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, como o Brasil, com todos seus problemas de desigualdade ainda existentes, se acreditasse em Terra Plana, em bruxas e conspirações satânicas? E não por pessoas comuns, que não tivessem nenhuma educação formal e responsabilidade social, mas por pessoas que ocupam cargos públicos importantes na esfera federal. E, mais ainda, com poder em áreas como a Cultura e a Educação?
Claro que, como dizia o jornalista Paulo Francis, pessoas “que despontam para o anonimato”... Até porque eles passam, todos passarão, e nós, talvez, passarinhos.
E o Brasil é bem maior que qualquer abismo, já dizia o filósofo português Agostinho da Silva, que inspirou o último trabalho poético-musical-filosófico de Jorge Mautner: Não há abismo que caiba. Mas o quadro é grave, até assustador. Lembra até o período de uma narrativa que marcou os anos 1930-1940: o nazismo. Havia um dirigente alemão nazista que citava um dramaturgo também alemão, também nazista, que dizia o seguinte:
- “Quando ouço a palavra cultura, logo carrego meu revólver”.
Eram tempos sombrios, como definiu uma filósofa alemã judia refugiada, Hannah Arendt. Quando acabou a guerra, um milionário norte-americano, Nelson Rockefeller, tripudiou sobre a fala do nazista:
- “Quando ouço a palavra cultura, logo pego um talão de cheques”.
A cultura é assim, plena de contradições. Principalmente riscos. Mas o maior risco é o de sua instrumentalização. Seja satanizando o rock como causador de aborto e adorador do Diabo, ou questionando a escolha de uma poeta para uma homenagem em um encontro literário em Parati, como o caso de Elisabeth Bishop. Ambos padecem de um mal anunciado, o da confusão entre conhecimento e estética e política no sentido de partidarização e ideologia. Claro que um caso se insere na questão de liberdade de opinião, mas o primeiro se trata de um claro posicionamento, com implicações práticas, como imposição de uma política que abre caminho para cerceamentos e censuras. O pior dos cenários, portanto.
E é disso que se fala aqui, de bases para uma política cultural em um sentido específico. Como pensar uma política cultural para os que vão nascer, ou que nasceram neste século, e vão vivenciar todas as transformações em curso. Uma verdadeira revolução, nunca antes imaginada, ou prevista.
Quem se debruçou sobre este cenário foi o historiador israelense, Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers mundiais, Homo Sapiens e Homo Deus, em seu livro 21 Lições para o Século 21, chama a atenção para o fracasso das três narrativas que predominaram no século XX - fascista, comunista e liberal – e que acabaram por gerar profunda desilusão. E que a revolução em curso, no âmbito da biotecnologia e Big Data, pode comprometer uma das maiores conquistas da narrativa liberal: o regime democrático, sem o qual não há solução possível, independente do lado que se esteja. E nesse aspecto, a cultura tem papel decisivo, seja no âmbito dos empregos, da civilização e do meio-ambiente.
Por isso, a destruição da cultura é o principal aspecto que marca uma emergência do que podemos chamar de neofascista, mesmo que nascida das democráticas urnas. E isto vem ocorrendo em grande parte do mundo, apesar dos alertas de uma imprensa livre, por isso perseguida e atacada pelos fakenews através de milícias digitais; assim como a arte de modo geral, seja no teatro, no cinema, na literatura, nas artes plásticas. Nesse sentido, a cultura passa a ser não apenas um apêndice da política, mas um eixo central na sobrevivência da própria espécie.
E cultura em seu sentido amplo, que envolve não só uma radical liberdade de expressão que garanta uma diversidade plena, mas também um investimento na educação em todos os níveis. Em uma atualização constante, e respeito às nossas crianças, que merecem um mundo melhor, como demonstram os ativismos de jovens como a paquistanesa Malala e a sueca Greta; uma chamada de “pirralha” por um pretenso ditador, e outra levando um tiro no rosto só porque querida estudar. Uma reconhecida com um Nobel, e outra, como Personalidade do Ano pela revista Time. Aí está a promessa de futuro contra as reações que ocorrem!
Uma política cultural para o século XXI deve levar em conta a complexidade do quadro, as ameaças do emprego, as restrições às liberdades e um descrédito do conhecimento científico e filosófico como marca de uma direita agressiva e ativa. Recorrendo mais uma vez aos alertas do historiador israelense:
“O...surgimento da inteligência artificial pode expulsar muitos humanos do mercado de trabalho – inclusive motoristas e guardas de trânsito (quando humanos arruaceiros forem substituídos por algoritmos, guardas de trânsito serão supérfluos). No entanto, poderá haver algumas novas aberturas para os filósofos, haverá subitamente grande demanda por suas qualificações – até agora destituídas de quase todo valor de mercado. Assim, se você for estudar algo que lhe assegure um bom emprego no futuro, talvez a filosofia não se seja uma aposta tão ruim.”
Em outras palavras, seja no âmbito das novas tecnologias, seja no âmbito dos riscos políticos, o conhecimento e a cultura serão decisivos. E uma política cultural que leve isso em conta será fundamental.