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Mark Lilla: 'Há uma psicologia de intimidação e medo, uma covardia para a qual fomos arrastados'
Promotor da polêmica carta, assinada por 150 intelectuais, que denuncia a “intolerância” de certo ativismo progressista, o analista político e ensaísta norte-americano responde à onda de críticas
Andrea Aguir, El País
O analista político e ensaísta Mark Lilla (Detroit, 64 anos), professor de História das Ideias na Universidade de Columbia, em Nova York, e autor, entre outros livros, de The Once and Future Liberal: After Identity Politics (“o liberal de outrora e do futuro: depois da política de identidade”) e A Mente Imprudente: os Intelectuais na Atividade Política, não tem conta no Twitter, mas não está alheio à polêmica nas redes sociais. O artigo de opinião que ele publicou no The New York Times após a vitória de Donald Trump em 2016, no qual pedia que a esquerda nos EUA abandonasse a “era do liberalismo identitário” e buscasse a unidade diante da especificidade das minorias, foi seu batismo no mundo agitado das brigas nas redes. Nesta semana, voltou ao que chama de “esgoto” decido à já célebre carta aberta publicada na Harper’s.
Lilla foi um dos promotores desse texto, que denuncia a “intolerância” de um certo ativismo progressista que tem provocado a demissão de editores e o cancelamento da publicação de livros. Os 150 intelectuais que assinaram a carta, entre eles Noam Chomsky, Gloria Steinem, Martin Amis e Margaret Atwood, reivindicam o direito de discordar sem que isso ponha em perigo o emprego de ninguém, e rejeitam a autocensura que sentem prevalecer. No calor da batalha em defesa da carta, Lilla concorda em responder a algumas perguntas por videoconferência e se mostra um pouco agitado.
Pergunta. Qual foi a origem da carta?
Resposta. Após a demissão de James Bennet, editor de opinião do The New York Times, há algumas semanas [depois de publicar um artigo do senador republicano Tom Cotton que pedia a mobilização do Exército contra os manifestantes após a morte de George Floyd], começamos a escrever uns aos outros, e esse intercâmbio de ideias finalmente deu frutos.
P. Muitos críticos apontaram que os signatários gozam de amplo reconhecimento e espaço para expor suas opiniões.
R. Desde que existe o Twitter, ninguém está silenciado, todo mundo pode entrar em qualquer discussão, e esse diferencial de poder não é exato. Reduzem tudo a uma luta pelo poder e não falam sobre o que a carta expõe. Além disso, consideram que as pessoas de uma mesma raça ou gênero tenham os mesmos interesses e opiniões, e isto foi assinado por pessoas diversas.PUBLICIDADE
P. Por que não mencionaram o caso que inspirou essa iniciativa?
R. Tratava-se de denunciar o clima geral, não um caso específico. O de Bennet tem a ver com brigas no The New York Times sobre os artigos, mas também com o fato de que ele não fez seu trabalho [não leu o texto antes que fosse publicado]. O que tentamos captar é o clima, o que é complicado, porque você pode sentir a pressão atmosférica, mas isso nem sempre significa que possa apontar o que está acontecendo. As pessoas pertencentes a minorias entendem isso muito bem quando denunciam que trabalham em um lugar em que há um ambiente hostil contra elas, é muito difícil falar de coisas concretas. Acredito que hoje há uma psicologia de intimidação e medo, uma covardia para a qual fomos arrastados.
P. Como sente que a política de identidade evoluiu desde que publicou seu artigo e seu livro?
R. Como Andrew Sullivan apontou, todos nós passamos a viver em um campus universitário. Nossos filhos são educados com uma consciência racial e dentro de uma narrativa específica sobre a história dos EUA. E isso tem aspectos positivos. O assassinato de George Floyd demonstrou que o país estava preparado para abordar a questão racial. Isso é muito bom. Mas também parece ter nos levado a um tipo de política histérica e de espetáculo.
P. Como ocorreu isso?
R. Nos EUA, o que está acontecendo não é algo tão novo. No final do século XX, o país, em vez de avançar para o século XXI, retornou, na verdade, ao século XIX. E aquele século foi de fervor religioso, denúncias, censura, indiferença às artes, ignorantes. Estamos em um novo século XIX.
P. Vocês quiseram aumentar o volume e gerar debate e polêmica com a carta?
R. Vimos que ninguém estava levantando a voz contra as campanhas de perseguição. Agora temos mais 100 pessoas que querem aderir. Também achávamos que a carta seria ignorada. E, por último, estimamos que poderia provocar uma terrível tempestade, e foi o que aconteceu.
P. Quais são suas primeiras conclusões sobre essa tempestade?
R. É muito cedo, estou no meio dela, apagando incêndios a cada meia hora. É deprimente ver o nível de discussão e rancor que existe na sociedade norte-americana. Este é um momento incrivelmente importante, com a covid-19, os protestos, Trump, as eleições. É isso que preocupa as pessoas progressista, não o resto. Não sou otimista.
P. Muitos apontam que a carta faz o jogo de Trump e dá munição à direita radical. O que responde a isso?
R. O mesmo que Orwell quando falou das pessoas que querem silenciar o intelecto e o debate. Sempre dirão que, ao falar e dizer a verdade, você está beneficiando o outro lado. Mas a verdade nunca é inimiga da causa.
P. Vocês tinham consciência de que incluir J. K. Rowling seria ainda mais polêmico do que a própria carta?
R. Fizemos, no começo, uma lista para ver com quem entraríamos em contato. Alguns queriam dizer a ela, porque sofreu parte do que a carta denuncia. Não previ que isso seria uma desculpa para que algumas pessoas dissessem que o texto é transfóbico. É uma loucura, porque não há nenhuma palavra sobre esse assunto, e há algumas pessoas trans que também assinaram e foram muito atacadas. Isso mostra o tipo de fanatismo e solipsismo que existe. Malcolm Gladwell escreveu que assinou precisamente porque havia outros signatários cujos pontos de vista sobre outros assuntos ele detesta. É isso que faz com que uma sociedade seja liberal.
P. Essa discussão revigorou a classe intelectual norte-americana?
R. Na verdade, revelou como as coisas estão ruins. Alguém escreveu que talvez a carta em si não se sustente muito bem a priori, mas a reação contra ela realmente demonstrou quanta razão ela tem.
A RESPOSTA DAS “VOZES SILENCIADAS”
Dois dias depois da publicação da carta na Harper’s, veio a réplica em theobjective.substack.com. Ela questiona diretamente um dos promotores, o escritor negro Thomas Chatterton Williams, e assinala que na carta original não há nenhuma menção “às vozes que foram silenciadas durante gerações no jornalismo e no mundo acadêmico”. Embora reconheça que alguns dos casos são reais e preocupantes, nega que seja uma tendência. “A carta não aborda o problema do poder, quem tem e quem não tem”, assinala.
Também procura analisar caso a caso e abordar a história de alguns dos signatários. Por último, uma nota de esclarecimento precede a lista de novos signatários, principalmente jornalistas, deixando claro que muitos não quiseram revelar seu nome e preferiram simplesmente mencionar o veículo de comunicação para o qual trabalham. Quem fez questão de se identificar e atacou aqueles que denunciam “a cultura do cancelamento” foi a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez: “As pessoas que são realmente canceladas não publicam suas ideias na grande mídia”.
Paulo Fábio Dantas Neto: Insigths de Mark Lilla e chances de uma política democrática no Brasil
Circulando no Brasil, há meses, provocando comentários elogiosos e indisposições, o livro de Mark Lilla, "O progressista de ontem e o do amanhã", que agora li, animou-me a tocar em temas não habituais para mim. O argumento liberal (mas não tanto), norte-americano (mas não só), pegou-me pela veia, como discurso crítico vigoroso da onda identitária que, segundo Lilla, teria capturado, há décadas, as mentes da esquerda liberal do seu país e feito o Partido Democrata capitular, face ao desafio de falar à nação.
Textos de Antônio Risério já vinham me ajudando a entender o viés político-cultural da argamassa identitária que tem murado – há menos tempo, mas também não de hoje – parte relevante da esquerda brasileira. O livro de Lilla sugeriu-me uma analogia, que arrisco, mesmo ponderando a razão de quem me alerta para uma distinção: identitários brasileiros não refletem tanto o individualismo “pseudopolítico” que Lilla vê nos movimentos que pautam seus correligionários. O sotaque “anti”, “pós”, ou “de”colonial, que movimentos brasileiros sustentam – mesclado, em curioso mix, com retóricas marxistas e perspectivas comunitaristas, religiosas e não – faz com que a sua ancoragem político-partidária dê-se em (ou em torno de) partidos e parlamentares da esquerda iliberal, acentuando, nessa última, o seu pendor histórico a ser uma esquerda “negativa”.
Além dessa discussão, é interessante, no livro, a visão reiterada de Trump como início de nada, exacerbação degenerada do ocaso da era Reagan. Interessante, também, essa visão não levar o autor a um otimismo partidarista, que poderia parecer pragmático, mas seria politicamente tolo. O seu raciocínio é outro: se o liberalismo norte americano está enredado na política identitária, logo, desarma-se, politicamente, para ocupar o vácuo que se apresenta. E mais interessante ainda é onde Lilla resgata cartas de navegação para sair em busca de um discurso liberal “progressista”, capaz, em tese, de fazer o PD voltar a falar ao grande público. É no repertório de métodos e valores de um conservadorismo político que em nada se confunde com a onda reacionária mundial, da qual Trump é a expressão mais notória e Bolsonaro, um arremedo tropical.
Conservadorismo do bem, em primeiro lugar, porque o valor mais acenado no livro é o de uma solidariedade associada à ideia de bem comum. Lilla reivindica, com razão, essa ideia como parte do patrimônio do liberalismo democrático. Mas quando, no contexto da sua crítica à política identitária, ele propõe alterar a agenda dos democratas para não deixar, na mão da direita, a bandeira do sentimento nacional americano, o bem comum surge como obra de uma cidadania política vivida através de instituições do Estado, não de movimentos sociais. Desse modo, o valor da solidariedade tem tradução diretamente política, como antídoto para um déficit que é mais de república do que de democracia. Nesse ponto pode-se chegar, também, a uma analogia com o contexto brasileiro.
Em segundo lugar, conservadorismo moderado, pelo método político. A distinção, até mesmo oposição, entre um espírito político conservador e a anti política, populista e reacionária, que se expande hoje, é um nó a desatar, para que o pensamento democrático saia do aperto em que se encontra. Lilla ajuda a desatá-lo, saltando por cima da dicotomia entre “nova” e “velha” política. Propõe prioridade à política institucional (a “política dos políticos”) e a define como a mais autêntica política dos cidadãos. Contribui, assim, ao debate em que Marco Aurélio Nogueira tanto nos tem feito pensar.
Quanto mais começo a conhecer (estimulado por alunos, é bom assinalar) pensamento de gente conservadora como Russel Kirk, Oakeshott ou mesmo Roger Scruton, mais persuadido fico de que, em suas reflexões, há afinidades, no modo de pensar a política como processo, com a esquerda positiva, que Gildo Brandão tão brilhantemente interpretou e em cuja tradição me reconheço. Por vezes vieram-me à mente, ao ler algo daqueles conservadores, ou sobre eles, passagens de Armênio Guedes (“politizar a ideologia, em vez de ideologizar a política”) e coisas que escreveu Marco Antônio Tavares Coelho, à guisa de enquadramento imediatamente político de uma perspectiva programática. Isso para ficar só em dois desbravadores de nexos entre socialismo, democracia e política, antes de 64, no antigo PCB. Vejo o rastro metódico de Armênio em Luiz Sergio Henriques e, de outro modo, em Luiz Werneck Vianna. São intelectuais que se sofisticaram estudando Gramsci, sem se concluírem como “gramscistas”. Para justificar essa menção, feita sem licença prévia deles, lembro dos belos usos que fazem, respectivamente, das obras de Giuseppe Vacca e Aléxis de Tocqueville.
Mas, pelo que sei, em geral, os reformistas de matriz comunista nunca levamos essas afinidades muito a sério, a ponto de conferi-las. Já tensionados pela necessidade de avistar pontes com o campo reformista liberal para reelaborar "metas" (o que parece ser o caso, por exemplo, de alguns quadros históricos do PPS), deixamos de prestar atenção mais simpática a essa direita tradicional, quase virtual, não para pedir “filiação”, mas como possível diálogo para aperfeiçoar um método que esse reformismo encontrou e adotou nos seus enfrentamentos críticos com esquerdas negativas, em variados tempos e países. Esse método, assimilado e curtido na política, parece ter mais parentesco com o da tradição política conservadora do que com o modus operandi da política liberal.
A cogitação não sai da cabeça, por mais que seja óbvia - e ideologicamente inibidora - a oposição entre o conservadorismo político e o reformismo, esse que é, hoje, talvez, nossa razão se ser. Mas como fazer, nesse canto do mundo atual e nas circunstâncias do Brasil, acontecerem reformas, num sentido "progressista", adjetivo que está no título do livro de Lilla? Vai e volta a ideia que ouvi, há mais de um ano, quase por acidente (ele talvez nem se lembre e aqui vai amistosa indiscrição), de Rubem Barboza Filho: devemos pensar em reconstruir, pela esquerda, a ideia de nação. Um tema conservador?
Parece-me impossível fazer isso, democraticamente, sem dormir com alguns dos que sempre vimos como aristocratas e, portanto, inimigos. Assim como será impossível, a pensadores conservadores brasileiros “do bem”, seguir, à risca, a cartilha anti reformista (embora receptiva a reformas sem ismos) de seus primos anglo saxões. No passado foi Nabuco quem melhor compreendeu isso e, no entanto, seu “reformismo conservador” permanece até hoje como uma espécie de elo perdido no pensamento político brasileiro.
Talvez Lilla tenha me impressionado tão bem precisamente por ser - como foi Nabuco, em outro tempo e lugar - um auto declarado liberal, ciente do valor que o método político conservador tem no embate que trava em seu próprio campo reformista. Talvez devamos, os reformistas mestiços de matriz comunista, fazer algo assim no nosso campo. E com isso, quem sabe, acharmos o elo perdido de uma boa tradição truncada.
A recepção positiva ao tipo de afinidade que Lilla explora, ao pensar, universalmente, sobre o seu país, pode ter, no mínimo, entre nós, o sentido político de propor uma saída de compromisso para evitar a aliança do conservadorismo político esclarecido brasileiro (se é que esse sujeito existe) com a impostura populista que venceu as últimas eleições.
Até certo ponto, é bom que hoje o DEM esteja lá, se puder prevenir (mais) desatinos. Mas haverá um ponto em que será desejável o seu desembarque, para se juntar à reconstrução, como fez o embrião do PFL ao deixar o ninho da ditadura, em 1984/85.
Há um vácuo de opções de diálogo desse tipo no Brasil atual, porque o centro e a centro direita liberais estão bloqueados pela tirania de um fundamentalismo econômico que não nos deixa esquecer o que Gramsci chamava de cosmopolitismo postiço. Também porque há algo de atávico no fato do PSDB não conversar bem com o MDB. O convívio no governo Temer (saudades daquele carnaval) foi a enésima demonstração disso. De outro lado, porque a esquerda não petista (incluindo a nossa franja, auto definida como reformista e democrática) está rouca e de mãos atadas, pelo êxito do fundamentalismo resistencial do petismo, em ambientes onde ela atua. Por fim, porque parece quimérica a ideia de que o PT possa se reabilitar, no sentido democrático e pluralista.
Isso tudo sinaliza que o resgate de uma política de compromisso talvez tenha que surgir de uma ligação direta entre direita e esquerda democráticas, sem a mediação, até aqui esperada, de um ex-centro político que é social democrata na fala, liberal na meta e doutrinário no método. Se tiver futuro, essa ligação evocará a imagem arendtiana da política como um milagre de "nascimento", tornado possível pelos atos de prometer e perdoar. Virtualmente, começaria por um compromisso entre atores hoje invisíveis, sendo até provável que seja preciso criá-los. Mas sem novos instrumentos políticos já nascidos, que tipo de ação pode ter lugar, hoje? Antes de tudo, há os instrumentos da “velha” política real, que podem ser operados com disposição nova, como recentemente argumentou, por exemplo, Eduardo Jorge, num encontro pós eleitoral da Roda Democrática. Além disso, a ação do pensamento, como tem insistido Werneck Vianna.
* Cientista político e professor da UFba.
Mark Lilla: Dois caminhos para a direita francesa
Marion Maréchal e a vanguarda do conservadorismo europeu
Em fevereiro de 2018, ocorreu em Washington D.C. a convenção anual da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês). É uma espécie de Davos da direita, em que iniciados e interessados se reúnem para inteirar-se das novidades. O orador da abertura, que estava longe de representar algo novo, foi o vice-presidente americano Mike Pence. A segunda pessoa a falar, esta sim, foi uma grande novidade: uma elegante francesa de 28 anos, chamada Marion Maréchal-Le Pen.
Marion, como é amplamente conhecida na França, vem a ser neta de Jean-Marie Le Pen, o fundador do partido de extrema direita Front National (Frente Nacional), e sobrinha de Marine Le Pen, atual presidente da agremiação. Os franceses conheceram Marion ainda criança, sorrindo no colo do avô nos cartazes da campanha presidencial deste, e ela nunca mais sumiu das vistas do público. Em 2012, aos 22 anos, tornou-se a pessoa mais jovem a se eleger para a Assembleia Nacional [equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil] desde a Revolução Francesa. Decidiu, porém, não concorrer à reeleição em 2017, a pretexto de dedicar mais tempo à família. Na verdade, vem cuidando de projetos bem ambiciosos.[1]
Seu desempenho na CPAC foi fora do comum – imagina-se qual terá sido o impacto na plateia daquela manhã. À diferença de seu avô e de sua tia, conhecidos pelo temperamento exaltado, Marion se mostra sempre calma e contida, transmite sinceridade e demonstra inclinações intelectuais. Com um leve e encantador sotaque francês, começou o discurso em inglês contrastando a independência dos Estados Unidos com a “sujeição” da França à União Europeia. Na qualidade de país-membro da UE, afirmou ela, a França não pode escolher as próprias políticas econômica e externa nem defender suas fronteiras contra a imigração ilegal e a presença de uma “contrassociedade” islâmica em seu território.
A partir daí, porém, seu discurso tomou um rumo inesperado. Falando para uma plateia republicana de absolutistas da propriedade privada e fanáticos do porte de armas, atacou o princípio do individualismo, proclamando que o “primado do egoísmo” estava na base de todos os males da nossa sociedade. Exemplo disso, apontou, é a economia global que escraviza estrangeiros, roubando empregos de trabalhadores locais. Encerrou louvando as virtudes da tradição e invocando uma frase geralmente atribuída a Gustav Mahler: “A tradição não é o culto das cinzas, mas a transmissão do fogo.” Nem é preciso dizer que essa foi a primeira vez que um orador da CPAC fez alusão a um compositor austríaco da passagem do século XIX ao XX.
Há algo de novo na direita europeia e envolve mais que rompantes de populistas xenófobos. Ideias vêm tomando corpo, com a criação de redes transnacionais para a sua disseminação. Os jornalistas tendem a encarar como arroubos exibicionistas de Steve Bannon os esforços que ele vem fazendo no sentido de congregar os partidos e pensadores populistas da Europa no que chama de “O Movimento”. Mas a intuição de Bannon, tanto em relação à política europeia como à americana, está bem sintonizada ao nosso tempo. (E, de fato, um mês depois do pronunciamento de Marion na CPAC, Bannon viria a discursar na convenção anual da Frente Nacional.) Em países tão diferentes quanto França, Polônia, Hungria, Áustria, Alemanha e Itália, registram-se esforços no sentido de desenvolver uma ideologia coerente capaz de mobilizar os europeus contrariados com a imigração, as grandes mudanças econômicas, a União Europeia e a liberação dos costumes, e então recorrer a essa ideologia para governar. É tempo de começarmos a prestar atenção às ideias do que parece ser uma Frente Popular de direita em evolução. E a França é um bom lugar para isso.
A esquerda francesa, aferrada ao secularismo republicano, nunca teve muita sensibilidade para a vida católica e às vezes nem percebe que cruzou uma linha divisória. No início de 1984, o governo do presidente François Mitterrand [do Partido Socialista] propôs um projeto de lei que pretendia aumentar o controle do Estado sobre as escolas católicas privadas, pressionando seus professores a se tornarem funcionários públicos. Em junho daquele ano, quase 1 milhão de católicos marchou nas ruas de Paris em protesto, e muitos outros no resto do país. O primeiro-ministro de Mitterrand, Pierre Mauroy, foi forçado a renunciar, e retiraram a proposta. Foi um momento importante para os católicos laicos, que puderam perceber o quanto continuavam a ser, a despeito do secularismo oficial do Estado francês, uma força cultural e às vezes política.
Em 1999, o governo do presidente gaullista Jacques Chirac aprovou uma lei criando uma nova situação jurídica chamada Pacto Civil de Solidariedade (PaCS, na sigla em francês), que beneficiava casais que estavam juntos havia muito e pediam proteção legal ao direito de herança e a outras questões relacionadas ao fim da vida, mas não queriam se casar formalmente. Adotado pouco depois da epidemia de Aids, o PaCS foi concebido sobretudo em apoio à comunidade gay, mas logo se tornou popular entre casais heterossexuais interessados numa relação que poderia ser dissolvida com maior facilidade. Entre os casais heterossexuais, o total de pacsés, ou seja, dos que aderiram ao PaCS, aproxima-se hoje do número dos que se casaram. Para gays e lésbicas, a lei foi uma conquista inquestionável.
Decidido a capitalizar esse sucesso, o socialista François Hollande, durante a sua campanha à Presidência em 2012, prometeu legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e facultar o direito de adoção, entre outros, aos casais homossexuais. O slogan que usava era Mariage pour tous – Casamento para todos. Hollande tentou cumprir a promessa de campanha assim que se tornou presidente, mas repetiu o erro de Mitterrand ao não antever a forte reação da direita. Pouco depois de sua posse, começou a se formar na França uma rede de leigos apoiada fortemente em grupos de oração de católicos carismáticos. Essa rede foi chamada La Manif pour tous – A manifestação para todos.
Em janeiro de 2013, pouco antes da aprovação do casamento gay pelo Parlamento francês, La Manif conseguiu atrair mais de 300 mil pessoas a um comício em Paris, deixando atônitos o governo e a imprensa. O que mais surpreendeu foi a atmosfera lúdica do evento, mais parecido com uma parada gay do que com uma peregrinação a Santiago de Compostela. Havia muitos jovens presentes, mas, em vez de arco-íris coloridos, eles exibiam faixas azuis e cor-de-rosa, representando meninos e meninas. As palavras de ordem nos cartazes tinham um tom de Maio de 68: “François, resista! Prove que você existe!” Como se não bastasse, a porta-voz do movimento era uma espalhafatosa atriz e artista performática conhecida como Frigide Barjot, solista de uma banda chamada Les Dead Pompidou’s.[2]
De onde saíam essas pessoas? Afinal, a França, pelo menos ao que se diz, não é mais um país católico. É verdade que cada vez menos franceses batizam seus filhos e comparecem regularmente à missa, mas quase dois terços da população ainda se identificam como católicos, e cerca de 40% destes se declaram “praticantes”, seja lá o que isso signifique. E o mais importante: como constatou um estudo feito em 2017 pelo Pew Research Center,[3] os franceses que se identificam como católicos – em especial os que vão com regularidade à missa – têm opiniões políticas significativamente mais à direita do que os que se identificam de outra maneira.
E esses achados são consistentes com as tendências observadas no Leste Europeu, onde pesquisas do Pew Research constataram que, na verdade, a auto-identificação dos indivíduos como cristãos ortodoxos vem crescendo em paralelo com o nacionalismo, ao contrário do que indicavam as expectativas do pós-1989. Isso pode indicar a reversão, na Europa, da relação entre as identidades religiosa e política: não é mais a filiação religiosa de cada um que ajuda a definir sua posição política, mas a posição política que ajuda a definir se cada indivíduo se autoidentifica como religioso. Podem estar sendo definidos os pré-requisitos para o surgimento de um movimento nacionalista cristão europeu, como prevê há muito tempo o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán.
Qualquer que tenha sido a motivação dos muitos milhares de católicos que participaram da Manif original, além de outras manifestações semelhantes por toda a França, os primeiros frutos logo começaram a surgir.[4] Alguns de seus líderes formaram em pouco tempo um grupo de ação política chamado Sens Commun [senso comum], que, apesar de pequeno, quase decidiu a eleição presidencial de 2017. O candidato do grupo era o antipático François Fillon, ex-primeiro-ministro conservador e católico praticante que apoiou La Manif e mantinha laços estreitos com o Sens Commun. Fillon declarou abertamente suas opiniões religiosas durante as primárias do seu partido, Les Républicains, no fim de 2016 – opondo-se ao casamento, ao direito de adoção e ao uso de barrigas de aluguel por casais homossexuais – e surpreendeu a todos ao vencer a disputa pela candidatura. Saiu das primárias com boa vantagem nas pesquisas e em razão da profunda impopularidade dos socialistas depois do governo de François Hollande, bem como da incapacidade da Frente Nacional para conquistar o apoio de mais de um terço do eleitorado francês, era visto por muitos como o favorito à Presidência.
Entretanto, assim que Fillon iniciou sua campanha nacional, Le Canard Enchaîné, um semanário que combina a sátira ao jornalismo investigativo, revelou que, ao longo dos anos, sua mulher havia recebido mais de meio milhão de euros de salário por empregos aos quais nem comparecia, e que o próprio candidato havia aceitado uma série de favores de empresários, entre eles – ao estilo de Paul Manafort[5] – o presente de ternos no valor de dezenas de milhares de euros. Para um homem cujo lema era “a coragem da verdade”, a revelação foi um desastre. Fillon foi indiciado em inquéritos e abandonado por seus assessores, mas recusou-se a deixar a disputa, possibilitando o avanço do centrista Emmanuel Macron, que acabaria vencendo as eleições. Ainda assim, devemos ter em mente que, apesar de todo o escândalo, Fillon conquistou 20% dos votos no primeiro turno, enquanto Macron teve 24% e Marine Le Pen, 21%. Não fosse a implosão de sua candidatura, podia ter sido eleito; e a história do que realmente acontece na Europa de hoje seria bem outra.
A campanha da direita católica contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo estava fadada ao fracasso, e afinal fracassou. Uma grande maioria dos franceses apoia o casamento homossexual, embora não mais que 7 mil casais recorram anualmente a ele. Todavia, temos motivos para achar que a experiência de La Manif ainda pode afetar a política francesa nos próximos tempos.
O primeiro motivo é que o movimento revelou a existência de um vácuo ideológico entre os republicanos tradicionais, de um lado, e de outro a Frente Nacional. Muitos jornalistas tendem a descrever com excesso de simplicidade o populismo na política europeia contemporânea. Imaginam que existe uma linha clara separando os partidos conservadores tradicionais, como Les Républicains, conformados com a ordem neoliberal europeia, dos partidos populistas de ideologia xenofóbica, como a Frente Nacional, que propõem o fim da União Europeia, a destruição das instituições liberais e a expulsão do maior número possível de imigrantes, especialmente muçulmanos.
Esses jornalistas têm dificuldade para imaginar que possa haver uma terceira força à direita, sem representação nos partidos mais tradicionais nem entre os populistas xenófobos. E essa visão estreita torna difícil, mesmo para os observadores mais experientes, entender os partidários de La Manif, mobilizados em torno das chamadas questões sociais e convencidos de não terem endereço próprio na política atual. Os Republicanos não têm ideologia dominante fora a visão econômica globalista e o culto ao Estado; mantendo a coerência com seu legado secular gaullista, sempre tenderam a tratar as questões morais e religiosas como um assunto estritamente pessoal, pelo menos até a candidatura anômala de François Fillon. A Frente Nacional é quase tão secular quanto eles, e dotada de ainda menos coesão ideológica, servindo mais como refúgio para o refugo da história – os colaboracionistas de Vichy,[6] os ressentidos pieds-noirs[7] expulsos da Argélia, os românticos à la Joana d’Arc, gente que odeia os judeus e/ou os muçulmanos, e os skinheads – do que como um partido com um programa afirmativo para o futuro da França. Um prefeito que já foi próximo a esse grupo hoje prefere defini-lo, com muita propriedade, como “a direita Điên Biên Phu”.[8]
O outro motivo que contribui para que La Manif continue a fazer diferença é ter sido uma experiência formadora para a consciência de um grupo de ativos jovens intelectuais, em sua maioria católicos conservadores, que se enxergam como a vanguarda dessa terceira força. Nos últimos cinco anos, tornaram-se uma presença nos meios de informação, escrevendo em jornais como Le Figaro e em revistas semanais como Le Point e Valeurs Actuelles, criando novas publicações impressas e virtuais (Limite, L’Incorrect), lançando livros e aparecendo regularmente na televisão. Muita gente os observa com atenção, e um livro alentado e imparcial a seu respeito acaba de ser publicado na França.[9]
É difícil saber se alguma consequência política mais significativa irá resultar de toda essa atividade, dado que na França as modas intelectuais costumam ser trocadas com a mesma frequência do plat du jour [prato do dia]. No último verão, passei algum tempo lendo e entrevistando esses jovens escritores em Paris, e o que encontrei pode ser mais bem descrito como um ecossistema do que um movimento coeso e disciplinado. Ainda assim, fiquei impressionado com a seriedade deles e o que os distingue dos conservadores americanos. Todos compartilham duas convicções: que um conservadorismo vigoroso é a única alternativa coerente para o que definem como o cosmopolitismo neoliberal do nosso tempo, e que esse conservadorismo pode contar com recursos provenientes dos dois lados da divisa tradicional entre esquerda e direita. E o mais surpreendente: todos são admiradores de Bernie Sanders.[10]
O ecumenismo intelectual desses escritores é visível em seus artigos, todos repletos de referências a George Orwell, à escritora mística e ativista Simone Weil, a Pierre-Joseph Proudhon, anarquista francês do século XIX, a Martin Heidegger e Hannah Arendt, ao jovem Marx, ao filósofo católico e ex-marxista escocês Alasdair MacIntyre e, especialmente, ao historiador americano Christopher Lasch, politicamente de esquerda, mas culturalmente conservador, cujas boas tiradas – “A perda das raízes nos deixa sem raiz alguma, salvo a necessidade de raízes” – são repetidas como mantras. Previsivelmente, recusam a União Europeia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a imigração em massa. Mas também rejeitam a desregulamentação dos mercados financeiros globais, a austeridade neoliberal, as modificações genéticas, o consumismo e a AGFAM (Apple-Google-Facebook-Amazon-Microsoft).
Essa mistura pode soar meio estranha aos nossos ouvidos, mas é muito mais consistente que as posições atuais dos conservadores americanos. O conservadorismo da Europa continental data do século XIX e sempre se baseou numa concepção orgânica da sociedade. Vê a Europa como uma única civilização cristã composta de diferentes nações com variados idiomas e costumes. Essas nações compõem-se por sua vez de famílias, que também são organismos em que papéis e deveres diferentes mas complementares cabem às mães, aos pais e aos filhos. Desse ponto de vista, a tarefa fundamental da sociedade é transmitir o conhecimento, a moral e a cultura às gerações vindouras, perpetuando a vida de todo o organismo da civilização, e não se submeter a um aglomerado de indivíduos autônomos dotados cada um dos seus direitos.
Quase todos os argumentos desses jovens conservadores franceses se fundamentam nessa concepção orgânica. Por que consideram a União Europeia um perigo? Porque ela nega a base comum cultural-religiosa da Europa e tenta forjar um pacto continental baseado no interesse econômico pessoal dos indivíduos. Para piorar a situação, eles sugerem, a União Europeia ainda estimulou a imigração de massas oriundas de uma civilização diferente e incompatível (o Islã), esgarçando ainda mais laços já gastos. Além disso, em vez de fomentar a autodeterminação e uma saudável diversidade entre as nações, vem promovendo um lento golpe de Estado em nome da eficiência econômica e da homogeneização dos países-membros, centralizando em Bruxelas todo o poder de decisão. Finalmente, à medida que impõe aos países-membros onerosas políticas fiscais que só favorecem os mais ricos, a União Europeia impede que os Estados se responsabilizem pelos cidadãos mais vulneráveis e pela solidariedade social. Hoje, na opinião desses autores, a família está abandonada à própria sorte num mundo econômico sem fronteiras, num meio cultural que teima em ignorar as necessidades dela. À diferença de seus equivalentes americanos, que enaltecem forças econômicas ainda mais ameaçadoras para a “família”, que eles imaginam sob pressão, os jovens conservadores franceses aplicam sua visão orgânica também à economia, afirmando que esta deveria subordinar-se aos imperativos sociais.
O mais surpreendente para o leitor americano são as fortes convicções ambientalistas desses jovens escritores, para os quais os conservadores, como a palavra indica, deviam justamente preocupar-se com a conservação. O melhor periódico que publicam é a revista trimestral Limite, colorida e bem diagramada, cujo subtítulo é “revista de ecologia integral”. Ela traz críticas tão severas à economia neoliberal e à degradação ambiental quanto as formuladas pela esquerda americana. (Na França, ninguém nega a mudança climática.) Alguns dos autores defendem o crescimento zero; outros leem Proudhon e apoiam uma economia descentralizada de coletivos locais. Há ainda os que abandonaram as grandes cidades e relatam suas experiências no cultivo de lavouras orgânicas, ao mesmo tempo que denunciam o agronegócio, a manipulação genética de sementes e a intensa suburbanização do campo. Todos parecem inspirados pela encíclica Laudato si’ [Louvado sejas, 2015], do papa Francisco, um abrangente apanhado dos ensinamentos sociais católicos em relação ao meio ambiente e à justiça econômica.
Como têm sua origem em La Manif, as opiniões sobre a família e a sexualidade desses jovens conservadores são as mesmas do tradicionalismo católico. Mas os argumentos que enumeram para defendê-las são estritamente seculares. Em sua proposta de um retorno a normas mais antigas, chamam a atenção para problemas reais: um número decrescente de novas famílias, a geração de filhos em idade mais e mais avançada, a proporção cada vez maior de mães e pais solteiros, os adolescentes imersos em pornografia e confusos quanto à própria sexualidade, além de pais e filhos estressados que fazem as refeições em separado, com os olhos grudados no celular. Tudo isso, afirmam eles, deve-se ao individualismo radical que nos torna cegos para a necessidade social de famílias fortes e estáveis. O que esses jovens católicos não conseguem perceber é que os casais homossexuais que planejam casar-se e ter filhos desejam constituir famílias assim, transmitindo seus valores para a próxima geração. Não pode haver instinto mais conservador.
Muitas mulheres mais jovens vêm propondo um “alter feminismo”, como dizem, rejeitando o que chamam de “fetichismo da carreira” do feminismo contemporâneo, que acabaria por reforçar, involuntariamente, a ideologia capitalista segundo a qual a liberdade é mourejar sob as ordens de um patrão. Por outro lado, não acham que as mulheres deviam ficar em casa se não quiserem; na verdade, consideram que elas precisam de uma autoimagem mais realista que a formulada pelo feminismo e o capitalismo contemporâneos. Marianne Durano, em seu livro recente Mon Corps Ne Vous Appartient Pas [Meu Corpo Não lhes Pertence], descreve assim a situação:
Somos vítimas de uma visão de mundo segundo a qual devemos aproveitar a vida até os 25 anos, depois trabalhar loucamente dos 25 aos 40 (a idade em que chegamos ao fim da vida profissional), evitando filhos e relações mais profundas antes dos 30. E isso contraria totalmente o ritmo de vida das mulheres.
Eugénie Bastié, outra alter feminista, responde a Simone de Beauvoir em seu livro Adieu, Mademoiselle. Presta homenagem à primeira onda da luta feminista pela conquista da igualdade de direitos, mas critica Beauvoir e as feministas francesas que vieram depois por afastar as mulheres de seus próprios corpos, ao considerá-las criaturas pensantes e desejantes, mas não seres reprodutores que, no fim das contas, possam almejar um marido e uma família.
Qualquer que seja nossa opinião sobre elas, essas ideias conservadoras a respeito da sociedade e da economia integram uma visão de mundo coerente; o mesmo já não se pode dizer da esquerda e da direita tradicionais na Europa de hoje. A esquerda combate a fluidez descontrolada da economia global, e quer contê-la em nome dos trabalhadores, ao mesmo tempo que enaltece a imigração, o multiculturalismo e uma fluidez maior dos gêneros, coisas que boa parte dos trabalhadores rejeita. A direita tradicional assume as posições opostas, denunciando a livre circulação de pessoas como causa de instabilidade social, enquanto defende a livre circulação do capital que produz justamente esse efeito. Já esses conservadores franceses criticam a fluidez excessiva em suas formas tanto neoliberal quanto cosmopolita.
Mas o que exatamente propõem no lugar disso? Como os marxistas do passado, que só se referiam em tom muito vago às implicações concretas do comunismo, esses autores parecem menos preocupados em definir a ordem por eles imaginada do que em trabalhar para o advento dela. Embora constituam apenas um pequeno grupo sem expressivo apoio popular, já se preocupam em formular grandes questões estratégicas (pequenas revistas existem justamente para publicar grandes ideias). Será possível restaurar as conexões orgânicas entre os indivíduos e as famílias, as famílias e as nações, as nações e a civilização? De que maneira? Por meio da ação política direta? Tentando conquistar logo o poder político? Ou encontrando algum modo de transformar lentamente a cultura ocidental em seu cerne, como prelúdio à instauração de uma nova política? A maioria desses escritores acredita que, antes de tudo, é preciso mudar a mentalidade dos seus leitores. E é por isso que parecem incapazes de terminar um artigo, ou mesmo uma refeição, sem mencionar o nome de Antonio Gramsci.
Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, morreu em 1937 depois de um longo período detido nas prisões de Mussolini, e deixou pilhas de cadernos com férteis reflexões sobre a política e a cultura. É mais lembrado nos dias de hoje pelo conceito de “hegemonia cultural” – a ideia de que o capitalismo não é sustentado apenas pelas relações de produção, como queria Marx, mas também por certo consenso cultural que funciona como facilitador, enfraquecendo a disposição à resistência. A experiência com os trabalhadores italianos convenceu Gramsci de que, a menos que estes fossem libertados de suas crenças católicas relacionadas ao pecado, ao destino e à autoridade, jamais poderiam insurgir-se e fazer a revolução. Era necessária uma nova classe de intelectuais engajados que pudesse funcionar como uma força contra-hegemônica atuando no sentido de minar a cultura dominante e dar forma a uma cultura alternativa passível de ser adotada pela classe trabalhadora.
Tenho a impressão de que esses jovens escritores não leram os vários volumes dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Na verdade, ele é invocado como uma espécie de talismã retórico, a garantia de que a pessoa que fala ou escreve é um ativista cultural, e não um mero observador. Do que precisa, então, uma contra-hegemonia? Até aqui, identifiquei entre esses jovens, talvez com um excesso de certeza, a mesma visão geral e um conjunto comum de valores. Acontece, porém, que, assim que surge a velha pergunta de Lênin – Que fazer? –, tornam-se aparentes entre eles divergências importantes e com sérias implicações. O que parece estar em desenvolvimento são dois estilos diversos de engajamento conservador.
A leitura de uma revista como Limite deixa a impressão de que a contra-hegemonia conservadora implicaria trocar a cidade grande por algum povoado ou lugarejo rural, envolver-se nas escolas locais, nas paróquias e nas associações de defesa do meio ambiente, e especialmente criar os filhos segundo os valores conservadores – em outras palavras, tornar-se exemplo de um modo de vida alternativo. Esse conservadorismo ecológico parece aberto, generoso e ancorado na vida cotidiana, bem como nos ensinamentos sociais da tradição católica.
Mas a leitura de publicações como o diário Le Figaro, a revista semanal Valeurs Actuelles ou, especialmente, o mensário L’Incorrect, que tem um tom bem mais belicoso, produz uma impressão muito diversa. Aqui, o conservadorismo é agressivo e rejeita a cultura contemporânea, concentrando-se em travar uma verdadeira Kulturkampf [luta cultural] com a geração de 1968, uma obsessão permanente. Como afirma o editor de L’Incorrect, Jacques de Guillebon, 40 anos, nas páginas da revista: “Os herdeiros legítimos de 68 […] acabarão por afundar nas latrinas do tédio pós-cisgênero, transracial, com os cabelos azuis […]. O fim está próximo.” Para acelerar sua chegada, sugere outro autor, “precisamos de um projeto real de direita que seja revolucionário, identitário e reacionário, capaz de atrair tanto a classe média quanto os trabalhadores”. Esse grupo, embora não professe um racismo declarado, manifesta uma profunda desconfiança em relação ao Islã, jamais mencionado pelos articulistas de Limite. E desconfia não apenas do islamismo radical, do tratamento dado às mulheres pelos muçulmanos, da recusa de alguns estudantes que seguem esse credo de estudar a evolução – todas elas questões procedentes –, mas até mesmo dos muçulmanos moderados e assimilados.[11]
Todas essas conversas sobre uma guerra cultural declarada nem mereceriam ser levadas muito a sério caso a ala mais combativa desse grupo não contasse agora com a atenção de Marion Maréchal.
Era difícil situar Marion em matéria de ideologia. Ela mostrava-se mais conservadora nas questões sociais que a liderança da Frente Nacional, mas bem mais neoliberal no que diz respeito à economia. Só que isso mudou. Em seu discurso na CPAC, falou de guerra cultural, apresentando La Manif como um exemplo da disposição dos jovens conservadores franceses para “retomar o país”. E descreveu suas metas usando a linguagem da organicidade social:
Sem a nação, sem a família, sem os limites do bem comum, desaparecem a lei natural e a moral coletiva e mantém-se o primado do egoísmo. Hoje, mesmo as crianças foram transformadas em mercadoria. Ouvimos, em debates públicos, que temos o direito de encomendar uma criança num catálogo, temos o direito de alugar o ventre de uma mulher… Será essa a liberdade que queremos? Não. Não queremos esse mundo pulverizado de indivíduos sem gênero, sem pai, sem mãe e sem nação.
E prosseguiu, numa veia gramsciana:
Nossa luta não pode se limitar ao momento das eleições. Precisamos divulgar nossas ideias na mídia, na cultura e na educação, a fim de conter o domínio dos liberais e dos socialistas. Precisamos formar os líderes de amanhã, que terão a coragem, a determinação e o talento para defender os interesses do seu povo.
Mais adiante, Marion surpreendeu todo mundo na França ao anunciar, para uma plateia americana, que estava fundando uma escola de pós-graduação com essa exata finalidade. Três meses depois, seu Instituto de Ciências Sociais, Econômicas e Políticas (Issep, na sigla em francês) foi inaugurado em Lyon, com o objetivo de, nas palavras de Marion, desalojar a cultura que domina nosso “sistema liberal errante, globalizado e desenraizado”. É basicamente uma escola de negócios, mas que deverá oferecer cursos teóricos de filosofia, literatura, história e retórica, além de cursos práticos de administração e “combate político e cultural”. O responsável pelo currículo é Jacques de Guillebon.
Entre os escritores e jornalistas franceses que conheço, poucos são os que levam muito a sério essas iniciativas intelectuais. Preferem descrever os jovens conservadores e suas revistas como soldados voluntários ou involuntários da campanha de Marine Le Pen para “desdemonizar” a Frente Nacional, e não como uma possível terceira força. A meu ver, enganam-se ao não lhes dedicar a devida atenção, assim como se enganaram ao não levar a sério, na década de 80, a ideologia do livre mercado promovida por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. A esquerda tem o velho e mau costume de subestimar seus adversários e explicar as ideias deles como simples camuflagem para atitudes e paixões desprezíveis. Essas atitudes e paixões podem de fato estar presentes, mas as ideias têm um poder próprio de dar-lhes forma e passagem, de moderá-las ou torná-las mais inflamadas.
E essas ideias conservadoras poderiam repercutir além das fronteiras francesas. É possível, por exemplo, que um conservadorismo orgânico renovado e mais clássico acabe atuando como força moderadora nas democracias europeias hoje em crise. Muitas delas sentem-se acossadas pelas forças da economia global, frustradas pela incompetência dos governos em conter o fluxo da imigração ilegal, ressentidas com as regras da União Europeia e desconfortáveis com a rapidez das mudanças nos códigos morais em relação a questões como a sexualidade. Até hoje, essas preocupações só foram tratadas e exploradas por demagogos populistas de extrema direita. Se existe uma parte do eleitorado que simplesmente sonha com um mundo mais estável e menos fluido, tanto econômica quanto culturalmente – pessoas cuja motivação primária não seria um antielitismo xenofóbico –, então um movimento conservador moderado poderia servir como um anteparo contra as fúrias da direita alternativa[12], ao enfatizar a tradição, a solidariedade e o cuidado com a terra.
Outro desdobramento possível é que o conservadorismo agressivo que também vemos na França acabe servindo como um instrumento poderoso para a construção de um nacionalismo cristão reacionário e pan-europeu, ao estilo proposto no início do século XX pelo escritor e líder político francês Charles Maurras, antissemita e propagandista do “nacionalismo integral”, mais adiante principal pensador do regime de Vichy. Uma coisa é convencer os líderes populistas atuais da Europa, tanto Ocidental quanto Oriental, que eles têm interesses práticos comuns e deviam trabalhar juntos, como vem tentando Steve Bannon. Coisa muito diferente, e bem mais ameaçadora, é imaginar esses líderes dispondo de uma ideologia desenvolvida para o recrutamento de jovens quadros e elites culturais, capaz de conectar a todos em nível continental tendo em vista uma ação política conjunta.
Nem todos os franceses têm os olhos fixos em Marion, mas deveriam ter. Marion não é o avô dela, embora na telenovelesca família Le Pen tenha o costume de defendê-lo. E tampouco é a tia dela, uma política grosseira e corrupta cujos esforços para passar um batom novo no partido da família não deram resultado. E nem, acredito eu, sua sorte estará associada à da Reunião Nacional, née Frente Nacional. Emmanuel Macron demonstrou que um “movimento” que desdenhe os partidos consagrados pode vencer as eleições francesas (mas não necessariamente governar ou ser reeleito). Se Marion lançasse um movimento semelhante girando em torno dela própria, a exemplo do que fez Macron, poderia muito bem unificar a direita dando, ao mesmo tempo, a impressão de pessoalmente transcendê-la. Em seguida, estaria em boa posição para cooperar com os partidos de direita no governo em outros países.
A história moderna nos ensina que as ideias defendidas por intelectuais obscuros em pequenos periódicos tendem a ir além dos propósitos muitas vezes bem-intencionados de seus propagandistas. Quando lemos os jovens intelectuais franceses de direita, há duas lições a extrair dessa história. A primeira é que não se pode confiar em conservadores apressados. A segunda, que é melhor tirar a poeira dos livros de Gramsci da sua biblioteca.
Notas
[1] Em meados do último ano, tanto ela quanto o Front National mudaram de nome. Ela deixou de usar o sobrenome Le Pen e agora insiste em ser chamada apenas de Marion Maréchal. Enquanto isso, sua tia trocava oficialmente o nome do partido para Rassemblement National (Reunião Nacional). Rassembler, no jargão político francês, significa reunir e unificar um grupo em prol de uma causa comum. [Nota do autor]
[2] Georges Pompidou foi primeiro-ministro da França de 1962 a 1968 e presidente do país de 1969 até sua morte, em 1974, aos 62 anos.
[3] O Pew Research Center é um instituto norte-americano de pesquisas de opinião e estatísticas.
[4] Também inspirou o espetacular suicídio à la Mishima [escritor japonês que cometeu haraquiri] de um de seus mais conhecidos partidários, o historiador nacionalista Dominique Venner, que poucos dias depois da aprovação da lei do casamento gay deixou um bilhete de suicida no altar da Catedral de Notre Dame e em seguida estourou os miolos diante de mais de mil turistas e frequentadores da catedral. [Nota do autor]
[5] Paul Manafort, lobista e ex-assessor da campanha de Donald Trump, foi condenado em 2018 por fraudes bancárias e fiscais. Chamou a atenção da Justiça que tivesse uma vida luxuosa, não condizente com a renda apresentada em seu imposto de renda – descobriu-se que gastou mais de 1 milhão de dólares em roupas. Manafort é também um dos principais envolvidos no processo que investiga a influência dos russos no pleito que elegeu Trump.
[6] Após o armistício franco-alemão em 22 de junho de 1940, o território francês foi dividido em duas zonas. Os nazistas ocuparam o norte, incluindo Paris, e o sul foi destinado ao Estado francês, nominalmente soberano. O governo da França instalou-se em Vichy, comandado pelo marechal Philippe Pétain, que manteve estreita colaboração com Hitler. Em 1942, quando os alemães ocuparam todo o país, extinguiu-se a pouca autonomia de que dispunham os franceses. O regime de Vichy, porém, só foi abolido em 1944, com a libertação da França pelas forças aliadas.
[7] A expressão Pied-noir (pé negro) designa as pessoas de origem francesa nascidas nos protetorados e colônias da França no norte da África (Tunísia, Marrocos e Argélia).
[8] Referência à última batalha da Guerra da Indochina, ocorrida na região de Điên Biên Phu, no noroeste do Vietnã. Em 7 de maio de 1954, os franceses (que ocupavam o país desde o final do século XIX) sofreram humilhante derrota para as forças comunistas de Ho Chi Minh.
[9] Le Vieux Monde Est de Retour: Enquête sur les Nouveaux Conservateurs [O Velho Mundo Está de Volta: Estudo sobre os Novos Conservadores], de Pascale Tournier (editora Stock, 2018). [Nota do autor]
[10] Bernie Sanders (1941), que se autodefine como “socialista democrático”, é senador norte-americano. Em 2015, filiou-se ao Partido Democrata com o objetivo de lançar-se candidato à Presidência nas eleições do ano seguinte, mas foi derrotado por Hillary Clinton nas primárias do partido.
[11] Certa noite, eu jantei com alguns jovens escritores num bistrô cujo proprietário, obviamente partidário da Frente Nacional, queixava-se em voz alta de que uma estação pública de tevê tinha programado um especial sobre as festividades do Eid al-Fitr, que assinala o fim do Ramadã. Curioso, assisti ao programa quando voltei para casa. Era totalmente banal, uma celebração que parecia uma festa comum de casamento, com os convidados em suas mesas assistindo a shows de música popular. A apresentadora caminhava em meio aos presentes, perguntando-lhes que significado o Ramadã tinha para eles, e a resposta de uma jovem foi bem típica: “Quero levar minha vida como mulher, e obter o que desejo.” Uma esforçada empresária muçulmana, cujo sucesso nos negócios era evidente, foi entrevistada e falou de sua fé… em si mesma. Era o assimilacionismo dos sonhos. [Nota do autor]
[12] Em inglês, alternative right ou alt-right: grupo não organizado de pessoas de extrema direita nos Estados Unidos, com grande atividade na internet, que milita contra a globalização, a imigração, a sociedade multiétnica, o politicamente correto e o feminismo, entre outras bandeiras. Prega o nacionalismo e a hegemonia da raça branca.
*Mark Lilla, ensaísta e professor na Universidade Columbia, é autor de O Progressista de Ontem e o do Amanhã, da Companhia das Letras
Marcos Sorrilha Pinheiro: Liberalismo identitário e as ciladas da diferença
Uma das grandes bandeiras de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais foi o combate daquilo que se convencionou chamar de "políticas identitárias", com enfoque na questão de gênero, tanto com ataques aos grupos feministas e Lgbt+, quanto à educação sexual nas escolas.
É inegável que na última década, não apenas no Brasil, os movimentos identitários ganharam espaço na luta ao combate à desigualdade e ao preconceito de classe, etnia ou gênero. Em geral são grupos progressistas ligados aos direitos de minorias e que defendem a diversidade como um valor a ser respeitado. Em suma: advogam pelo direito a ser diferente dos “padrões estipulados pela sociedade” sem que se sofra sanções legais ou sociais por isso.
Durante esse tempo, algumas pautas extrapolaram as barreiras dos grupos identificados com a causa e ganharam amplo destaque na mídia e na opinião pública, com proeminência àquelas defendidas pelo Black Live Matters e ao #MeToo, ambos em território estadunidense.
De fato, várias conquistas se deram por conta da pressão exercida por esse ativismo, desencadeando um amplo debate em torno da relação entre o racismo e a violência policial ou sobre o abuso sexual e machismo dentro do mundo do entretenimento naquele país. Como consequência de toda essa manifestação, campanhas publicitárias, programas televisivos, filmes, séries, desenvolvimento de produtos, entre outros, passaram a ter uma preocupação em promover maior inclusão desses segmentos à sua estrutura.
Para além do mundo privado, este assunto também refletiu nas políticas governamentais com a elaboração de ações inclusivas de minorias ao corpo do Estado e na ressignificação do próprio imaginário público sobre o seu passado e sua história. Aqui no Brasil, a inclusão do feriado da Consciência Negra no calendário nacional (ainda que de acordo com a decisão dos municípios) e a ampliação dos programas de cotas raciais apontam para vitórias nesse caminho.
Evidentemente que tais lutas não começaram na última década e remontam a uma origem muito mais antiga, para além de meados do século XIX, mas que ganhou uma importância midiática mais contundente a partir da década de 1960, com especial destaque para a campanha dos Direitos Civis no EUA.
Porém, assim como naquela época, o que se viu foi uma forte reação a esses movimentos, primeiramente junto aos grupos conservadores da sociedade, mas que, a partir de 2016, começou a ecoar em setores mais amplos da comunidade civil ao ponto de se converter em plataforma de campanha do candidato eleito à presidência no Brasil.
De maneira apressada, pode-se buscar entender tal fenômeno por meio do crescimento de uma onda conservadora (termo do qual discordo) que se converteu em um verdadeiro tsunami eleitoral em vários países ao redor do mundo. No entanto, parece que a resposta não encontra morada apenas nessa direção.
Para Mark Lilla, historiador e cientista político norte-americano, o grande problema reside na incapacidade dos movimentos identitários em produzir uma pauta que seja articulável com a sociedade de maneira geral, mobilizando-a. Segundo ele, as reivindicações não apenas ficaram restritas aos grupos que as apresentam, mas apenas aqueles que pertencem aos mesmos podem se manifestar sobre elas. Por conta disso, defendem apenas os interesses de seus nichos, perdendo a dimensão do bem público, tornando-se incapazes de agir politicamente. Conforme afirmou: “Hoje, os jovens só se interessam pelo que os afeta pessoalmente e não enxergam a necessidade de se engajar numa luta comum com outras pessoas. São despolitizados no sentido de não saber como ganhar o poder político”.
A isto, Lilla deu o nome de Liberalismo Identitário(1). Tratar-se-ia, portanto, de uma espécie de narcisismo coletivo que não se contenta em buscar a construção de consenso junto à sociedade, mas, ao contrário, tentaria molda-la segundo a sua imagem e semelhança. “Isso jogou as pessoas umas contra as outras”, como disse o historiador e, na dimensão do político, acabou por dissolver os laços de solidariedade em prol de um projeto comum de sociedade.
Assim, por mais incrível que possa parecer, em um plano global, a bandeira da diversidade que tanto espaço deu à esquerda na última década, teria inviabilizado a criação de uma pauta que possuísse capilaridade eleitoral suficiente para mobilizar todos os setores da comunidade política. Além disso, teria imposto barreiras que impedem que alguns assuntos sérios, como a criminalidade, sejam tratados de maneira pragmática sem que esbarre nas aspirações idealistas de cada grupo.
Para Mark Lilla, isso ficaria mais evidente quando se compara o movimento das minorias da década de 1960 com o atual. Conforme aponta: “A primeira dizia ‘somos todos iguais e queremos ser tratados com igualdade’. Já essa segunda política identitária se baseia na afirmação da diferença e na exigência de respeito à singularidade. Ninguém pode falar em nome de ninguém”.
Este diagnóstico proferido pelo professor da Universidade de Columbia é bastante interessante, mas está longe de ser novo. De certa forma, ele corrobora algo que já havia sido dito pelo sociólogo brasileiro Antonio Flávio Pierucci em um artigo intitulado Ciladas da Diferença, em 1990. Um livro homônimo surgiria nove anos depois, dando ainda maiores argumentos à sua tese central, qual seja: a defesa da diferença é um valor inerente à direita.
Segundo Pierucci, a “nova esquerda”, como ele chamava os “movimentos de minorias”, cometia um erro gigantesco ao abandonar a igualdade como seu leitmotiv e abraçar a diferença enquanto um valor. É preciso esclarecer que o saudoso professor da USP não desconsiderava a existência da diversidade e a importância de seu debate, apenas entendia que no discurso político cotidiano (aquele feito no chão de fábrica, no ponto de ônibus ou no almoço dominical) ela apenas reforçava a ideia de que as pessoas eram, de fato, diferentes.
Neste ponto, limitava a capacidade de persuasão da esquerda, pois, tais argumentos poderiam ser facilmente capturados pelo seu adversário político. O discurso da diferença jamais poderia ser levado até o fim, afinal, seu destino era a comprovação de que a busca pela igualdade não passava de uma ficção. Assim, a mensagem final que restaria era a de que, numa sociedade marcada pela desigualdade, nada mais “natural” do que oferecer tratamentos diferentes para pessoas diferentes. Por diferentes, leia-se: mulheres, homossexuais, negros, indígenas, entre outros.
Do ponto de vista de Pierucci, portanto, poderíamos dizer que isto que vemos acontecer agora não é exatamente uma reação conservadora aos discursos identitários, mas o disparo de uma armadilha engatilhada ainda na década de 1990. Ao se apoderar do discurso de seu adversário (a defesa da diferença) a esquerda entrou em um campo minado cujo o resultado foi a implosão das bases de sua essência. Assim, ao lutar com as armas do outro, o simples uso das mesmas operou contra si e jogou em favor do adversário em um “efeito de retorsão”. Conforme vaticinou: “nas relações entre etnias, raças gêneros, nacionalidades, tradições culturais etc. a via da afirmação da diferença, comporta agora, mais do que nunca, o risco de o feitiço virar contra o feiticeiro”.
Ao recorrer à defesa da diferença como um valor, a esquerda tornaria seu discurso confuso e muito pouco palatável para setores mais amplos da sociedade. Enquanto isso, o conservadorismo apostaria em sua fórmula histórica de afirmar que as coisas são realmente aquilo que elas aparentam ser. Sabemos que isso não é bem verdade e que camadas de significados estão distribuídas de maneira bastante complexas entre a realidade e nossa capacidade de apreendê-la. Porém, será que é possível explicar isso sem se cair em contradição? Não seria melhor e mais eficiente defender que as pessoas merecem ser respeitadas em suas particularidades justamente porque são iguais e tem os mesmos direitos que os demais?
A defesa de valores elementares podem resultar em ganhos políticos mais eficientes. Uma demonstração disso pode ser visto no crescimento de outra força política que ganhou espaço nos últimos anos e roubou simpatizantes da esquerda, os liberais. Neste caso, os movimentos libertários apostam em uma fórmula histórica bastante eficiente na defesa da diversidade: a liberdade.
(1) Aqui o termo liberalismo é empregado em seu significado anglo saxão. Uma tradução mais precisa para o Brasil seria Progressismo Identitário.
*Marcos Sorrilha Pinheiro é autor de Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol. Professor de História — Unesp/Franca. Apreciador de um bom lúpulo e fanático pelo ludopédio mundial.
Vinícius Müller: Mark Lilla e seu liberalismo universal
No terceiro e último artigo dedicado à obra e ao pensamento de Mark Lilla, Vinícius Müller escreve sobre "O progressista de ontem e o de amanhã", obra mais recente do pensador americano. Lilla estará no Brasil em novembro para o Fronteiras do Pensamento.
O que Franklin Delano Roosevelt e Ronald Reagan têm em comum? Além de terem sido presidentes dos Estados Unidos, o que mais os une? Um democrata, presidente do país entre 1933 e 1945, quando pouco antes do término da Segunda Grande Guerra faleceu. Outro republicano, ator de destaque intermediário em produções hollywoodianas, que governou o país entre 1981 e 1989, ano da queda do muro de Berlim. Na verdade, um olhar superficial nos revela que poucas coisas os aproximam.
Roosevelt enfrentou dois dos mais graves momentos do século XX, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na primeira, em meio à crise considerada como a maior que o país já enfrentou e, por muitos, como a grande crise já experimentada pelo capitalismo, venceu a eleição com a proposta que entrou para a história como o New Deal. Seu plano, implementado nos primeiros anos de governo, previa uma ampla reformulação tanto da economia quanto do comportamento do Estado frente aos desafios imputados pelos efeitos da crise de 1929. Na contramão da tradição do país e de certos valores enraizados na sociedade, Roosevelt propôs a ampliação da participação estatal na economia, como regulador, como incentivador da demanda e como gerador de empregos, além de fornecedor de certos fundamentos mínimos ao bem estar social. Isso em um país de tradição liberal e de baixa tolerância com as intervenções estatais na economia e/ou na determinação de padrões de comportamento e de costumes. Por isso, gerou polêmicas e ódios que, mesmo menores do que os admiradores e eleitores (Roosevelt venceu quatro eleições seguidas – 1932, 1936, 1940 e 1944), foram suficientes para gerar pesado boicote por parte daqueles que o chamavam de socialista e ditador. Para além dos exageros de seus críticos, deixou também uma legítima controversa acerca dos resultados de seu programa de recuperação econômica e social, principalmente em relação à retomada do emprego no país. Se já não fosse suficiente para entrar no rol dos grandes presidentes da história norte-americana, Roosevelt ainda enfrentou a Segunda Grande Guerra, tendo sido fundamental para a formação da aliança entre seu país, a Inglaterra e a antiga União Soviética, responsável pela derrota do nazismo.
Já Ronald Reagan, republicano, assumiu a presidência em 1981 cercado pelo descrédito derivado da crise que o país vivenciara durante a década anterior. Crise esta que começara em 1970, com o abandono pelo país do acordo de Breton Woods e pela renúncia de Richard Nixon em 1974. Também pelas reviravoltas promovidas pelos choques do petróleo de 1974 e 1979, este último vinculado à revolução islâmica no Irã. Paralelamente, o fim da Guerra do Vietnã, ainda sob o governo Nixon, assim como a aproximação com a China e a assinatura de acordos voltados à diminuição das tensões com a URSS no ambiente da Guerra Fria, significava, para muitos, um atestado de fragilidade norte-americana ante a resiliência do bloco socialista. Mesmo com o choque dos juros de 1979 – e a sensível melhora na economia do país – a sensação mais comum no início da década de 80 apontava para a ‘derrota’ dos EUA na Guerra Fria e para a superação de sua liderança no mundo capitalista pelo Japão. O sucesso dos Jogos Olímpicos de Moscou em 1980, mesmo com a ausência da equipe norte-americana, parecia ser a prova final da derrocada do país.
Contudo, pouco mais de dois anos após a posse de Reagan, a sensação era oposta. A economia se recuperava, os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, eram sucesso estrondoso e Gorbatchev, líder soviético, anunciava em 1985 suas reformas que, ao fim, significaram a queda do regime socialista no país. Os EUA ‘venciam’ a Guerra Fria, o que foi confirmado em 1989, poucos meses depois do fim do mandato de Reagan, pela queda do Muro de Berlim e pela ampliação, em escala mundial, do modelo norte-americano de democracia liberal associada à economia de mercado. Era a Globalização (neo) liberal ou o “Fim da história” de Francis Fukuyama. Mas, ao contrário de Roosevelt, Reagan foi mentor de uma proposta econômica que ampliava a abordagem liberal, diminua a presença do Estado e de seus gastos em bem estar e resgatava de modo quase que irrestrito a noção de individualismo, de empreendedorismo e de valorização do ‘self made man’. Ou seja, após cinco décadas do New Deal e de sua proposta de reconstrução do país a partir da redefinição do papel do Estado como condutor do desenvolvimento e da coesão social, Reagan resgatava a tradição liberal mais exaltada, valorizando o individualismo e a livre iniciativa como valores fundamentais daquilo que caracterizaria a trajetória do país.
Neste sentido e aparentemente, eram opostos. Mas, ambos, em suas versões particulares, só obtiveram sucesso porque ofereceram à sociedade uma narrativa e um projeto que, por motivos e caminhos diferentes, se associavam aos valores que compõe a história norte-americana. E, principalmente, a uma história que remete à formação de certo sentimento de coletividade. Roosevelt ecoava a solidariedade que estaria na origem dos colonos da Nova Inglaterra frente aos desafios de uma terra fria e inóspita. Já Reagan, na recusa que une os norte-americanos aos avanços e abusos do poder público em detrimento dos direitos individuais. Ou seja, por caminhos diversos, ambos apostaram em versões amparadas em uma narrativa que mais do que qualquer coisa, apelava àquilo que une, e não divide, a população do país.
Por outro lado, o fortalecimento de pautas e propostas que, ao contrário do que foi apresentado pelos dois ex-presidentes, mais separam do que unem os norte-americanos, estaria na origem da imensa incapacidade dos liberais do país em obter a simpatia de partes significativas da sociedade neste quarto inicial do século XXI. Assim entende o historiador da Universidade de Columbia Mark Lilla em sua obra “Os Progressistas de ontem e do amanhã” (Cia das Letras, 2018), que aponta, quase como uma denúncia, a incapacidade dos democratas (partido ao qual é associado) em propor alguma narrativa que resgate o sentido de unidade e não de separação da população do país. Para Lilla, este equívoco reside na opção por políticas identitárias e hipersensíveis feita pelos democratas em detrimento de uma outra, voltada aos valores fundamentais que deveriam ser defendidos pelos liberais. Ou seja, abdicaram de uma visão verdadeiramente política que dialogue com uma ampla tradição de defesa de igualdade de oportunidades e de direitos de todos os indivíduos pelo simples fato de que qualquer um é um cidadão. Por isso, são mais eficientes em criar polêmicas que servem ao ensimesmamento dos indivíduos em seus grupos identitários do que em vencer eleições.
Mais grave ainda, segundo Lilla, é a expansão da abordagem anti-política dos movimentos identitários em espaços que, em tese, deveriam ser universais. Tamanha expansão teria criado indivíduos que, ao olharem mais para si mesmo do que para os outros, se tornam ressentidos, assim como são incapazes de sequer perceber quais valores que levaram, ao longo da história do país, legítimas lideranças como Martin Luther King (e, porque não, Barack Obama?) a oferecer aquilo que realmente representaria o liberalismo norte-americano: uma cidadania amparada em direitos que qualquer norte-americano, independentemente de sua origem étnica e social, de sua condição econômica e de seus estilos e preferências, pudesse chamar de sua.
Em uma frase, tamanha sensibilidade e ensimesmamento, assim como as consequências pouco alvissareiras das (anti) políticas identitárias, são revelados por Lilla. Em resumo, “o paradoxo do liberalismo identitário é que ele paralisa a capacidade de pensar e agir em um sentido que realmente o levará a alcançar resultados que professa querer. É hipnotizado por símbolos: alcançar diversidade superficial nas organizações, recontar a história para focar em grupos marginais e mesmo minúsculos, inventar eufemismos inofensivos para descrever a realidade social, proteger jovens ouvidos e olhos, já acostumados a filmes de terror, de qualquer encontro perturbador com pontos de vista alternativos.” Ou seja, a insistência na narrativa identitária estimula a formação de indivíduos que, ao olharem e valorizarem apenas as suas aparentes diferenças, pouco se voltam a descobrir os valores que nos trouxeram, juntos, até aqui. Com isso, causa mais repulsa do que empatia, o que apenas reforça seu ressentimento. Por isso prefere a resistência à proposta, a anti-política à política. Por isso também não honra as lideranças que fizeram de suas posições e condições minoritárias trampolim para a defesa de uma política realmente inclusiva e cidadã. E por fim, mas não menos importante, não criam uma narrativa que identifique o coletivo, ou o que nos une. Por isso, ao contrário de Roosevelt e Reagan, não ganhará as eleições e, muito menos, marcará indelevelmente nossa história.
*Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper
Folha de S. Paulo: Esquerda deve tirar foco da pauta identitária para ser eleita, diz Mark Lilla
Em entrevista à Folha, autor do artigo político mais lido do New York Times em 2016 defende que a esquerda precisa de menos manifestantes e mais vitórias eleitorais. Ele critica a política identitária abraçada pelos democratas e a falha do partido em conceber visão de país na qual diferentes grupos se reconheçam
Por Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo
Mark Lilla se tornou o mais odiado dos pensadores de centro-esquerda ao criticar, em artigo no New York Times, em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, a política identitária abraçada pelo Partido Democrata.
Para o cientista político e professor da Universidade Columbia, o discurso que enfatiza identidades e isola os eleitores de grupos minoritários é responsável pelas seguidas derrotas dos democratas nos Estados Unidos.
Ao segmentar o eleitorado e customizar a mensagem para hispânicos, negros, mulheres e cidadãos LGBT, os liberais americanos —no sentido que a palavra tem nos EUA, de pessoas de centro-esquerda que defendem atuação do Estado para reduzir desigualdade— teriam perdido a capacidade de formular uma visão de país que atraísse toda a população.
O texto "O fim do liberalismo identitário" foi o artigo político mais lido do jornal naquele ano, e acabou se transformando em um livro, "The Once and Future Liberal: After Identity Politics" (O liberal de então e o do futuro: depois da política identitária), lançado nos EUA em agosto do ano passado pela HarperCollins. Novamente, seu argumento foi recebido com críticas viscerais.
Lilla, que virá ao Brasil para participar de uma das conferências do ciclo Fronteiras do Pensamento, em novembro, diz que se transformou em um elemento "tóxico" para a esquerda, mas dobra a aposta. "Não se trata de parar de lutar pelos direitos das minorias, mas sim de começar a ganhar essas lutas", disse, em entrevista à Folha.
Para ele, uma outra prova de que as políticas identitárias são equivocadas é que líderes autoritários populistas de direita, como Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán e até o grupo racista americano Ku Klux Klan fazem da identidade sua razão de ser.
Folha - O senhor afirma que os liberais deveriam abandonar o discurso focado nas minorias para voltar a ganhar eleições. Mas ao fazer isso, os liberais não se arriscam a abandonar a luta pelos direitos das minorias, das pessoas que ainda não têm direitos assegurados?
Mark Lilla - As pessoas interpretaram meu livro da forma errada. Eu não defendo que se abandone a luta pelos direitos das minorias. O sentido de se lutar pelos direitos das minorias é conseguir governar de forma que seja realmente possível proteger esses direitos. Para isso, é preciso ganhar as eleições. Você não vai conseguir proteger ninguém se não vencer, você estará apenas envolvido em um teatro simbólico.
No governo americano, os estados têm muito poder. Por exemplo: no país, existe um direito constitucional ao aborto. Mas, em muitas partes do país, principalmente no Sul e no Sudoeste, uma mulher não consegue fazer um aborto porque os estados impõem muitos obstáculos para os médicos que fazem o procedimento, exigem que as mulheres passem por um período de espera ou se submetam a exames e testes humilhantes.
Mas as legislaturas estaduais podem fazer isso, mesmo o aborto sendo um direito constitucional?
Sim, porque a Suprema Corte não diz exatamente o que é necessário fazer para garantir que uma mulher tenha direito ao aborto. Então, para proteger os direitos de uma jovem negra no Texas, você precisa ganhar um cargo eletivo naquele estado.
O único jeito de vencer eleições é persuadir texanos, que vivem em um estado religioso, de maioria branca, e para isso é preciso achar uma mensagem que ressoe com eles.
Ou seja, não estou dizendo que nós devemos deixar de lutar pelos direitos das pessoas ou nos voltar para outros grupos. Meu ponto é que os democratas perderam a capacidade de conceber e comunicar uma visão de país na qual pessoas de vários grupos diferentes se reconheçam, e sintam que o programa político é para elas também.
Se você falar em princípios gerais democráticos, como solidariedade e proteção de direitos, isso atinge igualmente o trabalhador branco e a jovem negra que acabei de mencionar.
Mas o problema da política identitária é que ela mudou o foco. Priorizaram a política simbólica de querer reconhecimento, em vez de ganhar eleições. E essa política enxerga o país apenas como uma série de tribos... Então como eles vão conseguir chegar a uma visão geral se eles não acreditam na nação como um todo?
O senhor acredita que existe o risco de as minorias, que estão acostumadas a serem o foco da mensagem, sentirem-se excluídas se a esquerda passar a ter um discurso mais abrangente?
Eu acho que não. Não estou dizendo que não devemos falar em direitos das minorias, estou dizendo que não devemos falar nesses direitos em termos de identidade.
Tudo o que preciso fazer para ajudar a jovem negra é convencer o eleitor branco de que os princípios de solidariedade e proteção igualitária se aplicam aos dois. O eleitor branco não precisa reconhecer a concepção da jovem negra sobre ela mesma, sobre sua experiência como negra, sobre a história dos negros. Eu só preciso que os dois concordem em relação a um programa político, para que eles consigam nos eleger.
O senhor é a favor de políticas que tentam mitigar as desvantagens e injustiças sofridas pelas minorias, como ações afirmativas e cotas?
Sim, acho que são um programa de reparações que funciona. Mas eu gostaria que conseguíssemos justificar esses programas para os eleitores brancos.
Hoje em dia, ao darmos a vaga a um estudante negro que não tem nota suficiente para ser admitido, ficará de fora um estudante branco. Mas não vai ser um branco da burguesia, vai ser um branco da classe trabalhadora. E a realidade é que ambos, o negro e o branco de classe baixa, precisam de ajuda para entrar na universidade.
Gostaria que pensássemos em formas de abordar essa questão. Porque hoje, isso ajuda a direita, ao voltar segmentos de baixa renda uns contra os outros.
O senhor acredita que o fenômeno Donald Trump seja, em certa medida, uma reação à exacerbação da política identitária no país?
Há duas coisas acontecendo neste país. Uma é política eleitoral, a outra é uma espécie de revolução esperançosa na sociedade americana, ligada a minorias, a mulheres, à sexualidade.
Esse movimento é liderado pelas elites do país —nas universidades, em Hollywood, no mundo corporativo. Então Trump atrai as pessoas que sentem que a cultura delas está sendo modificada por pessoas de outra classe social, e elas não têm nenhum poder sobre isso.
Essas pessoas acham que não se trata de uma revolução democrática. E isso abre caminho para que os democratas sejam retratados como esnobes culturais, que desprezam essas pessoas e não estão nem aí para os interesses delas. O maior erro é que a política identitária impediu ativistas de pensar em termos de como se ganha uma eleição, impediu que desenvolvessem uma visão unificadora de país, que também incluiria as pessoas com as quais eles se importam.
Hillary Clinton não conseguiu articular esses temas e ficava constantemente mencionando esses grupos identitários. Ela não conseguiu unir o eleitorado.
É possível comparar a popularidade de Trump e a ascensão de líderes autoritários populistas, como Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria, como uma reação à exacerbação da política identitária e do politicamente correto?
Pelo contrário. Na realidade, esses líderes também usam a política identitária, por meio da identidade nacionalista. Historicamente, a política identitária era um reduto da direita, seja na Europa na primeira metade do século 20 ou agora, com esses líderes. E Trump também explora isso.
Nesses lugares, não existe a política identitária de esquerda de que estamos falando. Esse é um dos motivos pelos quais estou muito interessado em minha ida ao Brasil, um país multiétnico e multicultural. Quero ver que tipo de tensões políticas isso produz.
No artigo, o senhor afirma que a Ku Klux Klan foi o primeiro grupo identitário. Mas será que a comparação é válida? A KKK estava tentando eliminar uma minoria, os negros, enquanto grupos identitários de hoje querem apenas conquistar mais direitos, não eliminar o dos outros...
Eu obviamente não estava comparando moralmente a KKK com os grupos atuais. Estava simplesmente apontando que a política identitária branca tem uma longa história nos EUA. E é por isso que os liberais precisam se afastar de políticas identitárias, já que elas representam um risco de reação negativa séria e perigosa. Como estamos vendo hoje.
Entendo que o senhor enfatize que não está falando em abandono da luta pelos direitos das minorias...
As aspas corretas são: eu quero vencer essa luta. Não se trata de parar de lutar, mas precisamos começar a ganhar essas lutas.
Neste momento, os Estados Unidos têm um presidente famoso por suas posições ou opiniões misóginas e até racistas. O senhor acha que é um bom momento para abandonar o discurso de defesa dos direitos das minorias?
É exatamente por isso que agora é o momento ideal, porque nós precisamos ganhar. Precisamos vencer, mais do que nunca, porque temos um presidente que se opõe a esses direitos. É o momento exato para começar a vencer eleições, em vez de ficar apenas levantando nossas espadas no ar e nos expressando. É hora de realmente destronar o Partido Republicano.
O senhor esperava reações tão viscerais ao seu artigo publicado no New York Times?
Não, na verdade, não esperava. Eu escrevi aquilo em duas tardes, estava só desabafando, porque estava frustrado. Não esperava transformar aquilo em livro.
Mas a intensidade da reação na esquerda —uma crítica histérica que não abordava o meu argumento— apenas confirmou minha visão de que a política dos democratas foi simplesmente substituída por uma pseudopolítica de reconhecimento cultural.
O senhor enxerga um tipo de censura que o impede de questionar se a abordagem da esquerda está sendo eficiente? Katherine Franke, que também é professora na Universidade Columbia, o acusou de tornar a defesa da "supremacia branca" respeitável de novo...
Se eu estivesse diante de um juiz, diria: meritíssimo, "I rest my case" [expressão usada em tribunais, quando se acredita que algo que foi dito prova que a pessoa estava certa]. Essas pessoas apenas corroboram minha tese.
Em relação a Katherine Franke: de todos os professores de Columbia, eu escrevi o livro mais polêmico do ano, e ninguém, nem um único professor da universidade, convidou-me para debater, ou falar para a classe deles, fazer uma palestra. Nada, silêncio completo.
Na sua opinião, eles estão censurando o debate ou simplesmente não estão interessados?
Eles não querem debater, porque não querem legitimar uma discussão sobre isso.
Independentemente da enxurrada de críticas, o texto foi o artigo político mais lido do ano, tocou em algum ponto nevrálgico.
Houve uma reação histérica de gente que passa o tempo todo no Twitter e acha que apertar o botão "enviar" é um ato político. Mas fiquei muito feliz de também receber retorno de liberais que são muito comprometidos com reformas, mas estão cansados de perder eleições. Eles querem que os democratas ganhem, mas simplesmente não podem criticar a orientação do partido.
Uma líder de veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão me escreveu dizendo que tinha orgulho do país, orgulho de ser lésbica, e que estava esperando que alguém escrevesse um artigo como o meu.
Não apenas essas pessoas não podiam falar sobre esse direcionamento do partido, elas estavam sofrendo bullying. E não conseguiam articular sua crítica, pôr em contexto histórico, que foi o que tentei fazer no livro.
O senhor mencionou que coleciona os tuítes mais engraçados ou cruéis sobre seu trabalho...
Sim, guardei alguns, os que eram engraçados —intencionalmente ou não. Mandei como cartão de Natal aos amigos, em vez da foto da minha família [há uma tradição nos EUA de mandar uma foto de família com mensagem natalina].
Qual foi o papel das redes sociais no acirramento da polarização política e da controvérsia em relação ao seu livro?
Eu nunca tinha usado o Twitter. Foi a minha introdução ao pântano. E ficou claro algo que todos já sabem, que as pessoas tuítam um boato sobre um boato de um boato do que diz um livro. Passo muito tempo nas entrevistas corrigindo as pessoas porque elas não leram o livro.
Como você responde à crítica relacionada ao seu lugar de fala, de que, como homem, branco e heterossexual, o senhor não estaria autorizado ou qualificado para falar sobre direitos das minorias?
Uma argumentação é uma argumentação, não importa quem faça essa argumentação. Quem diz isso está tentando evitar uma discussão.
O senhor critica o movimento Black Lives Matter, dizendo que é o principal exemplo de como não lidar com a solidariedade, por causa das táticas agressivas de ativismo. Em que sentido o movimento é um desserviço à causa?
A rede Fox News é a única maneira de se comunicar com o eleitor republicano, e ela funciona como um filtro reverso: só deixa passar as coisas negativas sobre os democratas e deixa todo o resto de fora.
Então, se você faz maluquices como os ativistas do Black Lives Matter, que interromperam e acabaram com comícios de Hillary e Bernie Sanders, eles adoram.
Aquilo foi uma insanidade. E ficou passando sem parar na Fox News. Não à toa, Steve Bannon [ex-estrategista-chefe de Trump] disse torcer para que a esquerda continuasse falando em políticas identitárias, porque isso significa que os conservadores vão ganhar, e ele vai poder implementar sua agenda de nacionalismo econômico.
Todas as vezes que ativistas fazem algo desse tipo, eles estão servindo café da manhã na cama para Bannon.
Os liberais continuam surdos às suas críticas ou há alguns que entendem o que o senhor quer dizer?
Alguns entendem, outros não. Um senador me pediu que conversasse com ele sobre o tema, e alguns arrecadadores de campanha democratas me disseram que estão cansados de perder e querem conversar. Eu tenho várias ideias para a próxima eleição, não sei se serão artigos acadêmicos ou algum outro tipo de contribuição. Mas quero fazer alguma coisa.
O senhor acredita que, então, houve algum tipo de eco em relação a sua mensagem? Ela não foi em vão?
Com certeza. O argumento agora está presente, a questão é discutida com frequência. Eu também vejo pessoas que se denominam liberais ou de esquerda fazendo o mesmo tipo de argumentação que eu fiz, mas sem mencionar meu nome, claro, porque isso seria tóxico. Mas por mim tudo bem, o importante é a argumentação vencer.
O senhor se tornou tóxico na esquerda?
Ah, certamente. Ainda bem que tenho "tenure" [estabilidade na carreira acadêmica; é um professor que não pode ser demitido].
O que o senhor acha do movimento em que estudantes proíbem certas pessoas de fazer palestras nas universidades por questões ideológicas? Trata-se de uma forma válida de combater o chamado discurso de ódio, ou é simplesmente censura prévia?
Nós poderíamos falar sobre combater discurso de ódio, se as pessoas realmente se concentrassem no que é genuinamente discurso de ódio. Mas a definição foi ampliada e hoje inclui qualquer coisa com a qual eu não concorde e que eu não queira ouvir.
O senhor diz que não precisamos de mais manifestantes, precisamos de mais prefeitos. Não dá para ter os dois?
Eu quis dizer que já temos manifestantes suficientes, e precisamos de mais prefeitos. A única maneira de você subir na hierarquia e virar governador é começar como prefeito ou legislador. É preciso começar a fazer a longa marcha pelas instituições.
Ciclo de conferências também traz Mukherjee, Weiwei e Catherine Millet
Mark Lilla fará palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento no dia 19/11, em Porto Alegre, e 21/11, em São Paulo.
A série de conferências, que começa em maio, também traz o médico Siddhartha Mukherjee, ganhador do Pulitzer, a crítica de arte Catherine Millet, o psicólogo Joshua Greene, os artistas plásticos Ai Weiwei e Vik Muniz, os escritores Leïla Slimani, Alejandro Zambra e Javier Cercas e os colunistas da Folha Luiz Felipe Pondé e Fernanda Torres.
Mais informações no site fronteiras.com e no telefone (11) 4020-2050.
Patrícia Campos Mello, 42, é repórter especial da Folha.