mario vargas llosa

Merval Pereira: O futuro adiado

Ao ler que o prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa declarou apoio a Keiko Fujimori na disputa presidencial do Peru, alegando ser ela “o mal menor” diante o candidato de esquerda Pedro Castillo, fui tomado por uma sensação desalentadora de futuro adiado que experimento há anos, em relação ao Brasil e à nossa região.

Nós também no Brasil votamos no “mal menor”, raras vezes em um projeto de governo. Em busca permanente do “salvador da pátria”, acabamos escolhendo o “erro novo”. Jair Bolsonaro em 2018, Collor em 1989. Agora, possivelmente ficaremos em 2022 diante de dois “erros antigos”.

Lula, liberado pela Justiça para concorrer à eleição, deixa de ser “ficha suja”, sem ser “ficha limpa”, num paradoxo tão brasileiro que faz com que um ministro do Supremo, o “novato” Nunes Marques, vote a favor e contra a mesma ideia.

Ele considerou, na Segunda Turma, que o ex-juiz Sérgio Moro não é suspeito, mas aceitou, por questões regimentais controvertidas, que prevalecesse no plenário com seu voto a tese da falta de isenção de Moro no julgamento do triplex do Guarujá. A ministra Carmem Lucia mudou também de voto, de insuspeito para suspeito, em meio ao julgamento. Assim como ministro Gilmar Mendes votou a favor e contra a prisão em segunda instância, em julgamentos distintos, e ajudou a salvar Lula, assim como ajudara a prendê-lo. Lula foi vítima e beneficiário desses “passos trôpegos”, da balbúrdia jurídica oferecida pelo Supremo.

Apenas dois presidentes depois da redemocratização foram eleitos por projetos políticos: Fernando Henrique em 1994, com o Plano Real, e Lula em 2003, como alternativa ao que chamava de projeto neoliberal. Os dois foram reeleitos em 1988 e 2006, esgotando as últimas reservas dos projetos vitoriosos.

Lula chegou ao poder em 2003, depois de perder quatro eleições, porque se reinventou criando o personagem Lulinha Paz e Amor. E lançou a Carta aos Brasileiros. Mas também porque o segundo governo de Fernando Henrique, que teve méritos evidentes como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Rede de Proteção Social, origem do Bolsa-Família, dos genéricos e do combate à Aids, ficou marcado pela desvalorização do Real logo nos primeiros dias, o apagão de energia e a economia em situação difícil.

Paradoxalmente, para acalmar o mercado financeiro, Lula teve que escrever a Carta aos Brasileiros onde se comprometia a manter o tripé da política econômica: câmbio flutuante, meta de inflação e equilíbrio fiscal. Foi isso que garantiu o bom desempenho econômico no primeiro governo Lula, e o tripé é a base da política econômica até hoje. Ou era, pois o Centrão está aos poucos minando esse tripé, com o auxílio de Bolsonaro que, candidato à reeleição, escolhe aumentar os gastos.

O julgamento do STF que decidiu pela suspeição do juiz Sérgio Moro foi uma grande vitória política do ex-presidente Lula, e uma grande derrota do combate à corrupção do Brasil, que não cansa de regredir. Um país que teve avanço brutal no combate à corrupção volta à estaca zero, supostamente na defesa do estado de direito, de um justo julgamento. Um ministro como Ricardo Lewandowski, que admite que os diálogos roubados por um hacker são provas ilícitas “mas, enfim, foram amplamente divulgadas”, não deveria poder falar sobre suspeição.

Nem diante de todo o escândalo revelado, as forças políticas que continuam no poder, e a manter controle da situação, sempre encontram jeito de prevalecer, mesmo depois de cinco, seis anos. Tanto o combate à corrupção quanto o equilíbrio fiscal foram conquistas da sociedade brasileira, mas estão colocadas em perigo por um governo que se elegeu justamente para defendê-las.

O país do futuro de Stefan Zweig vai sendo eternamente adiado para ficar do tamanho de sua elite política e empresarial. E seguimos elegendo o populista da vez, revezando entre esquerda e direita, sem entendermos que o mundo lá fora, pelo menos o mundo que funciona, já está em outro patamar, discutindo o futuro.


Mario Vargas Llosa: Rumo à Estação Finlândia

Em livro, Edmund Wilson resolve o difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa

Edmund Wilson publicou dezenas de livros – artigos, ensaios críticos, polêmicas, um longo estudo sobre a literatura da guerra civil americana, Patriotic Gore, e seus diários pessoais, bastante libidinosos. Em toda essa extraordinária obra se destaca Rumo à Estação Finlândia (Companhia das Letras), que tem como subtítulo Um Estudo Sobre Escrever e Atuar na História, publicado em 1940. É um livro absolutamente atual, que pode ser lido e relido como os grandes romances e que, no passar dos anos desde sua publicação, ganhou encanto e vigor, a exemplo das obras-primas literárias.

Seu propósito é narrar, como o faria um romance, a ideia socialista, desde que o historiador francês Michelet descobriu Vico e sua tese de que a história das sociedades nada tinha de divino, era obra dos próprios seres humanos, até dois séculos depois, quando, numa noite chuvosa, Lenin desembarca na Estação Finlândia, em São Petersburgo, para liderar a Revolução Russa. É um livro de ideias, que parece ficção pela habilidade e imaginação com que foi escrito e pela originalidade e força compulsiva dos personagens que nele aparecem – Renan, Taine, Babeuf, Saint-Simon, Fourier, Owen, Marx, Engels, Bakunin, Lassalle, Lenin e Trotski – os quais, graças ao poder de síntese e à prosa de Wilson, ficam gravados na memória do leitor como os personagens de Os Miseráveis, Os Irmãos Karamazov ou Guerra e Paz. É uma obra-prima que, por motivos políticos, foi marginalizada, apesar de seu alto valor do ponto de vista literário.

A ideia socialista é a ideia de um paraíso na terra, de uma sociedade sem ricos e sem pobres, onde um estado justo e generoso distribuiria riqueza, cultura, saúde, lazer e trabalho para todos, de acordo com suas necessidades e capacidades, e onde, pelo mesmo motivo, não haveria injustiças nem desigualdades e o ser humano viveria desfrutando do bem da vida, a começar pela liberdade. Essa utopia nunca se materializou, mas mobilizou milhões de pessoas ao longo da história e produziu greves, motins e revoluções, violências e repressões indizíveis, além de um punhado de personagens fascinantes que trabalharam até a loucura para incorporá-la à realidade. O resultado dessa odisseia irrealizável – em grande medida, graças às lutas que motivou – foi corrigir boa parte das ferozes injustiças da velha sociedade, para que a classe trabalhadora e seus sindicatos renovassem profundamente a vida social, adquirissem direitos que antes lhes eram negados e fossem transformadas de forma radical a economia e as relações humanas.

O homem que Lenin mais odiava provavelmente era Eduard Bernstein, o líder dos social-democratas alemães, a quem acusou de “oportunismo” e “reformismo”, palavras terríveis no jargão marxista. Por que esse ódio? Porque Bernstein, de fato, passou de revolucionário a reformista, graças às concessões que o poderoso movimento operário alemão vinha arrancando da burguesia: melhores salários para trabalhadores, escolas e hospitais, padrões de vida que se confundiam com os da baixa classe média, reconhecimento e proteção jurídica aos sindicatos. Nesse ambiente, era um delírio continuar postulando a revolução total. Mas a Rússia não era a Alemanha social-democrata. Havia ali um czar e uma polícia que assassinavam e torturavam irrestritamente e campos de concentração no Polo Ártico, onde os revolucionários passavam muitos anos, se sobrevivessem à fome e ao frio. Lenin e a incrível Krupskaya ficaram detidos lá. Nesse contexto, as teses social-democratas de Bernstein não tinham razão de ser e prevaleciam as de Lenin: um partido de militantes revolucionários que exigia “todo o poder” para realizar as reformas que transformariam as raízes da sociedade russa e, acrescento, criariam a mais perfeita sociedade totalitária da história. Esta é apenas uma das inúmeras rupturas e inimizades que a luta pela ideia socialista gerou. E talvez não seja tão luminosa e romântica como aquela que separou Marx e Bakunin, ou Marx e Lassalle. O anarquista Bakunin era imensamente popular; nos cárceres perdeu os dentes e músculos, mas não as convicções e, viajando por meia Europa, ele espalhou – e nele acreditaram – sua doutrina básica: que a “destruição” era uma ideia fundamentalmente criativa.

Outras páginas inesquecíveis do livro se dedicam à extraordinária amizade que uniu Marx e Engels: a descrição que Edmund Wilson oferece da generosidade e dedicação de Engels a Marx e sua família, convencido de que ele mudaria a história humana, é imperecível. Engels não apenas sustentou os Marxs por longos anos; chegou a escrever crônicas para o jornal americano que contratara Marx como colaborador. Lendo esse capítulo, é impossível não sentir a mesma simpatia por Engels e reconhecer seu heroísmo discreto, como faz Edmund Wilson em páginas comoventes. Engels odiava ser empresário em Manchester e se sacrificou vários anos nesse ramo para que Marx pudesse escrever o primeiro volume de O Capital. O segundo, com Marx já falecido, foi mais difícil de editar, ainda que o autor houvesse deixado muitas notas e fragmentos. O próprio Engels deu início à tarefa, mas não conseguiu terminá-la, constrangido pela enormidade do empreendimento, e acabou substituído por Karl Kautsky. No livro de Edmund Wilson, todos esses episódios têm cor, graça e a convicção de que por trás daqueles acontecimentos minúsculos e obscuros foram dados passos decisivos para a transformação da história humana. Não foi exatamente assim, mas, no livro, foi. E um de seus grandes méritos é nos convencer disso.

Ao mesmo tempo que criavam tipos extraordinários e forças da natureza, como o anarquista Bakunin e o socialista Lassalle, as lutas sociais iam renovando a Europa. Os sindicatos e partidos políticos dos trabalhadores transformavam a sociedade, deixando-a menos injusta. Exceto na Rússia, onde o czar Alexandre III nunca fez a menor concessão e continuou com a ferocidade de outrora e a perseguição aos adversários, fossem moderados ou intransigentes. Assim ele cavou sua própria sepultura e embarcou seu país e o mundo na mais ruinosa das aventuras. Tudo isso acontece em Rumo à Estação Finlândia, antes que Stalin ascenda ao poder e a revolução mostre sua face mais horrível: a liquidação dos dissidentes, reais ou inventados. Em suas últimas páginas, Lenin e Trotski ainda são amigos e se respeitam – e este último acaba de publicar um ensaio vibrante: A Revolução de 1905.

Trotski não tinha a convicção fanática de Lenin, nem estava disposto a fazer os mais trágicos sacrifícios para impulsionar a revolução; era mais culto e melhor escritor. Mas as revoluções não são feitas por homens de cultura, mas sim por revolucionários, e Lenin o fez de corpo e alma, com a ajuda de Krupskaya, exigindo que os militantes não se esquecessem nem por um segundo da ideia da revolução e estivessem dispostos a fazer todos os sacrifícios.

O livro relata as teorias, as rivalidades e inimizades, as vaidades em jogo, as intrigas e futilidades que regulavam a vida desses grandes homens. E, ao mesmo tempo, narra como, trabalhando pela justiça, eles estavam coagulando futuras injustiças. Esse difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa Edmund Wilson o resolve de maneira soberba, destacando, por exemplo, no caso de Marx, a vida miserável que ele e sua família levavam morando em dois quartinhos do Soho e a fantástica transformação social daquele que tinha a convicção absoluta de ser um porta-estandarte.

Havia uma edição antiga de Hacia la Estación de Finlandia em espanhol, que quase passou despercebida. Agora, numa tradução aprimorada, a editora Debate a relança. Preparemo-nos para receber com dignidade esse trabalho excepcional. / Tradução de Renato Prelorentzou.


Mario Vargas Llosa: A função da crítica

É também seu papel detectar as relações entre as fabulações literárias e a realidade social

Descobri Edmund Wilson em 1966, quando deixei Paris e fui morar em Londres. As aulas, primeiro na Queen Mary College e, depois, na King’s College, não tomavam muito do meu tempo, e podia passar várias tardes por semana lendo no belíssimo Reading Room da British Library, na época ainda situada dentro do Museu Britânico. Havia dois críticos de leitura indispensável aos domingos: Cyril Connolly, autor de Enemies of Promise e The Unquiet Grave, cuja coluna versava às vezes a respeito da literatura, mas mais frequentemente a respeito da pintura e da política, e as críticas teatrais de Kenneth Tynan, uma maravilha repleta de graça, ideias, insolências e cultura em geral.

O caso de Tynan é muito apropriado para denunciar a hipocrisia da Grã-Bretanha da época (que desapareceu naqueles mesmos anos). Tynan era imensamente popular até circular a suposição de que seria masoquista e que, de acordo com uma sádica, tinha alugado com ela um quarto no centro de Londres, onde ela o chicoteava uma ou duas vezes por semana (e aplicava também a arnica, imagino). O que faziam não importa tanto; mas o fato de isso chegar a conhecimento público já é outra história. Tynan desapareceu dos jornais após o sucesso de Oh! Calcutta! (ele dizia que se tratava de uma tradução inglesa do francês: Oh! Quel cul tu as! (Oh! Que bunda você tem) e deixou-se de falar nele. Partiu rumo aos Estados Unidos, onde morreu, esquecido por todos. Mas suas inesquecíveis críticas teatrais ainda estão por aí, à espera de um editor corajoso que as publique.

Edmund Wilson continua famoso, e espero que ainda seja lido, pois foi o maior crítico literário de antes e depois da Segunda Guerra Mundial, não apenas nos EUA. Acabo de reler pela terceira vez seu Rumo à Estação Finlândia (Companhia das Letras) e voltei a ficar maravilhado com a elegância da sua prosa e sua enorme cultura e inteligência nesse livro que relata as origens da ideia socialista e das loucuras engendradas por esta, desde o momento em que Michelet descobre Vico em uma nota de rodapé e decide aprender italiano, até a chegada de Lenin à Estação Finlândia, em Petrogrado, para comandar a Revolução Russa.

Há dois tipos de crítica. Uma universitária, que está mais próxima da filologia, e trata, entre outras coisas, do indispensável estabelecimento das obras originais tal como foram escritas, e a crítica dos jornais e revistas, a respeito da produção editorial recente, que ordena e elucida esse bosque confuso e múltiplo que é a oferta editorial, no qual nós, leitores, andamos sempre um pouco perdidos. Ambas estão em baixa nos nossos tempos, e não por falta de críticos, e sim de leitores, que assistem à muita televisão e leem poucos livros, e sentem-se assim muito confusos nessa época em que o entretenimento está matando as ideias, e portanto os livros, e destacam-se tanto os filmes, as séries e as redes sociais, onde prevalecem as imagens.

Edmund Wilson, que nasceu em 1895 e morreu em 1972, estudou em Princeton, onde foi colega e amigo de Scott Fitzgerald, mas sempre se negou a ser professor universitário e fazer esse tipo de crítica erudita que só é lida pelos colegas, e às vezes nem mesmo por eles. Seu estilo se destinava ao grande público, que ele alcançava com suas extraordinárias crônicas semanais, primeiro na New Republic, em seguida na New Yorker e, finalmente, na New York Review of Books.

Depois as reunia em livros que nunca perdiam a atualidade. E não escrevia apenas a respeito de autores modernos. Lembro como um de seus melhores ensaios o grande estudo que dedicou a Dickens. Sua prodigiosa capacidade de aprender idiomas, vivos e mortos, era tal que, dizia-se, quando a New Yorker o incumbiu de escrever a respeito dos manuscritos do Mar Morto, ele pediu um prazo de algumas semanas para aprender antes o hebreu clássico. E lembro de ter lido nas páginas do extinto Evergreen sua polêmica com Nabokov a respeito da tradução que este tinha feito de Eugene Onegin, o romance em versos de Pushkin, comentando cada aspecto das quimeras e segredos da língua russa.

Quem descobriu a chamada “geração perdida” de grandes romancistas americanos entre os quais figuravam Dos Passos, Hemingway, o soberbo Faulkner e Scott Fitzgerald? Foi Edmund Wilson que, em seus artigos e ensaios, foi promovendo e decifrando os grandes achados e as novas técnicas e maneiras de narrar do gênio literário americano, sem deixar de mencionar que tinham sido eles que aproveitaram melhor do que ninguém os ensinamentos do Ulisses de Joyce.

Os grandes críticos sempre acompanharam as grandes revoluções literárias e, por exemplo, na América Latina, o chamado “boom” do romance não teria existido sem críticos como os uruguaios Ángel Rama e Emir Rodríguez Monegal, o peruano José Miguel Oviedo e muitos outros. Não surpreende, portanto, que, na França, Sainte-Beuve, e na Rússia, Visarión Belinski, tenham acompanhado o período mais criativo e ambicioso de suas revoluções literárias, dando-lhes alguma ordem e hierarquia. A função da crítica não é somente descobrir o talento individual de certos poetas, romancistas e dramaturgos; é também detectar as relações entre essas fabulações literárias e a realidade social e política que expressam ao transformá-la, o que há nelas de revelação e descoberta, e, portanto, de queixa e protesto.

Estou convencido de que a boa literatura é sempre subversiva, como estavam os inquisidores e censores que proibiram durante os três séculos coloniais a publicação de romances nas colônias da América Espanhola, sob o pretexto de que esses livros disparatados – sua referência era o romance de cavalaria – poderiam levar os índios a acreditar que assim era a vida, a realidade e, com isso, desorganizar e arruinar a evangelização. É claro que houve muito contrabando de romances, e devia ser formidável, naquela época, ler esses romances proibidos. Mas se o contrabando permitiu a leitura dos romances, a proibição se aplicava rigorosamente no que tange a sua edição. Durante os três séculos coloniais não foram publicados romances na América Latina. O primeiro, El Periquillo Sarniento, só foi publicado no México em 1816, após a independência.

Aqueles inquisidores e censores que acreditavam que os romances eram subversivos estavam corretos, mas não ao decretar sua proibição. Eles sempre expressam um descontentamento, a ilusão de uma realidade diferente, seja por bons ou maus motivos. O Marquês de Sade, por exemplo, detestava o mundo de sua época porque não era permitido aos pervertidos que saciassem seus desejos, e seus longos discursos, tão enfadonhos, pedem uma liberdade irrestrita para a luxúria e a violência contra o próximo.

O que os bons romances não aceitam é a realidade como ela é. E, nesse sentido, são motores permanentes da transformação social. Uma sociedade de bons leitores é, portanto, mais difícil de ser manipulada e enganada pelos poderes deste mundo. Isso não fica claro nas democracias, porque a liberdade parece diminuir ou anular o poder subversivo dos romances; mas, quando a liberdade desaparece, os romances se convertem em uma arma de combate, uma força clandestina que contraria o status quo, erodindo-o, de forma discreta e múltipla, apesar dos sistemas de censura, muito rigorosos, que tentam impedi-la. A poesia e o teatro nem sempre são veículos daquele descontentamento secreto que sempre encontra uma válvula de escape no romance, ou seja, são mais passíveis de uma adaptação ao seu meio, ao conformismo e à resignação. Tudo isso deve ser apontado e explicado pelos bons críticos, como fez Edmund Wilson ao longo de toda a sua vida. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


Mario Vargas Llosa: Casa de loucos

Livro de Bolton fala o que sabíamos: Trump carece de preparo para ocupar o cargo

Embora a Casa Branca tenha tentado de todas as formas impedir a publicação das memórias de John Bolton, que foi conselheiro de Segurança Nacional do presidente Donald Trump, entre abril de 2018 e setembro de 2019, o livro, intitulado The Room Where It Happened (A sala onde tudo aconteceu, em tradução livre), acaba de ser lançado nos EUA, logo após ser autorizado por juízes.

Trata-se de um ensaio volumoso no qual Bolton narra com riqueza de detalhes sua experiência de trabalhar por um ano e meio com Trump e o critica severamente, dando exemplos abundantes do que todos já sabíamos. O presidente dos EUA carece da preparação mais elementar para ocupar o cargo que tem e os erros e as contradições que comete a cada dia, por essa mesma razão, apesar da popularidade que conquistou nos primeiros anos de seu governo e parece ter perdido. Segundo as últimas pesquisas, o democrata Joe Biden venceria as eleições de novembro.

A expectativa que o livro suscitou nos EUA e no mundo se deve, sobretudo, ao fato de Bolton ser um ultraconservador, mas culto e bem instruído, que colaborou em cargos importantes com os governos de Ronald Reagan e George Bush, dos quais foi embaixador na ONU.

Tanto em seus trabalhos públicos como em seus comentários na Fox News, Bolton sempre defendeu as opções mais extremas - como, por exemplo, no caso de Israel, tornar Jerusalém a capital do Estado sionista, a ocupação militar da Cisjordânia e, agora, sua anexação. Desde que ganhou as eleições presidenciais, Trump sinalizou que ele teria um cargo importante em seu governo.

De fato, foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional, encarregado de orientar diariamente o presidente em questões internacionais, acompanhá-lo em suas viagens e junto ao secretário de Estado, de coordenar e dar uma direção coerente à política internacional dos EUA.

A primeira coisa que Bolton descobriu em seu novo trabalho foi que o presidente não gostava dos grossos bigodes de morsa que ele usa e, a segunda, foi como Trump não tem noção de coisas tão elementares como a situação da Finlândia, a qual o presidente americano acreditava, ingenuamente, que não era um Estado independente, mas fazia parte da Rússia.

Embora esses erros tão grosseiros, que documentam uma ignorância suprema da geopolítica, apareçam às vezes nas memórias de Bolton, estas não têm em nada o caráter fofoqueiro e delator que muitos leitores esperavam. Pelo contrário, é um documento rigoroso, praticamente um diário de sua experiência de ter de informar, primeiro, e em seguida, lidar com as iniciativas intempestivas, e muitas vezes desconcertantes, do presidente (corrigir seus erros, pode-se dizer), que têm marcado sua gestão governamental.

Bolton pertence a uma família da classe trabalhadora de Maryland e cursou direito em Yale graças a uma bolsa de estudos e a empréstimos. Desde muito jovem, é republicano e defende as opções mais conservadoras e reacionárias, com argumentos, é preciso dizer, muito mais sólidos do que aqueles que se costuma usar naquela unidade política.

Desde cedo, declarou-se seguidor das teses do filósofo e historiador irlandês Edmund Burke e seu primeiro livro, no qual explica suas convicções políticas, Surrender Is Not an Option (Render-se não é uma opção, em tradução livre), foi um best-seller. Este novo livro também estará entre os mais vendidos e, talvez, seja o mais divertido, pois, em razão da oposição a Trump, a esquerda foi rápida em festejá-lo.

Bolton chegava em seu escritório na Casa Brancas às 6 horas e ali tomava o café da manhã com autoridades diplomáticas e militares, era a primeira reunião de trabalho do dia. Em teoria, seu trabalho consistia em traçar as grandes linhas da política dos EUA em seu âmbito internacional. Na verdade, sua obrigação era, sobretudo, tentar entender o que Trump queria neste domínio e tratar de pôr em ordem, dar algum sentido e fazer desaparecer os infinitos erros que o chefe de Estado cometia diariamente nessa área.

O que conta é perfeitamente explicável. Como geralmente não sabia onde estava, o presidente Trump desconfiava de todo mundo - exceto, talvez, de sua filha Ivanka e de seu genro - e prestava muito mais atenção à imprensa e, acima de tudo, à televisão, do que aos grandes assuntos do dia.

As reuniões com seus colaboradores mais próximos se caracterizavam, principalmente, pela abundância de palavrões ferozes que proferia e pelo frenesi com que demitia e mudava de assessores. Bolton ter permanecido ao seu lado por mais de um ano e meio foi algo milagroso. No final, ele o forçou a renunciar, acusando-o de ter abusado ao viajar demais usando aviões militares, uma acusação sem sentido quando alguém lê essas memórias, onde Bolton especifica com doentia meticulosidade as viagens que fez e as condições em que viajou.

O livro desenvolve todos os tópicos internacionais importantes nos quais Bolton interveio, da Líbia à China, do Irã a Cuba, da Rússia à União Europeia, do Afeganistão ao Reino Unido e, sinceramente, o leitor fica tonto com essa atividade frenética que, além disso, era pouco valorizada por Trump, se não brutalmente contradita por suas declarações prematuras à imprensa, as quais, mais tarde, os conselheiros, e especialmente Bolton, tiveram de dar um jeito, sem parecer que estavam desmentindo seu chefe. O caos que esse livro documenta sem humor, e no qual o mau humor aparece fatalmente, nos permite chamar a Casa Branca, sem exagero, de uma verdadeira casa de loucos.

Por razões óbvias, as quase 50 páginas que Bolton dedica à Venezuela são de especial interesse para o escritor desta coluna. Observa-se, desde o primeiro momento, que Trump e seus principais colaboradores ficaram surpresos com a enorme oposição a Maduro, que parecia apoiar Guaidó, e imediatamente concordaram em apoiá-lo, mas descartando de cara a possibilidade de uma ação militar contra o regime chavista. Como deve ser lembrado, apesar deste acordo, o presidente Trump ameaçou Maduro mais de uma vez com uma ação armada, sabendo perfeitamente que isso estava descartado de antemão e suas bravatas careciam de toda a consistência.

Por outro lado, naquelas reuniões privadas e secretas, Trump mostrava certo ceticismo com a figura de Guaidó e, mais ainda, certa simpatia secreta por Maduro, “esse cabeça dura”, a mesma que, apesar de tudo, também tinha pelo novo czar da Rússia, Vladimir Putin.

Bolton analisa, com rigor, as difíceis relações que Trump manteve com seus antigos aliados na Europa Ocidental e sua tendência sistemática de realizar reuniões com ditadores meio malucos, como o gordo que lidera a Coreia do Norte com mão de ferro ou o senhor da Rússia.

O que acontecerá agora nos EUA se a maioria do povo americano mantiver Trump no poder nas eleições de novembro? Eu acho que seria uma grande desgraça para os EUA, em particular, e para o mundo livre, em geral. Por causa de sua ignorância e arbitrariedade, Trump conseguiu distanciar seu país de seus aliados tradicionais e, em vez disso, se aproximar de seus inimigos, sem nem mesmo perceber que era esse o caso.

Este é o testemunho mais importante dessa memória de John Bolton. Se isso acontecer, por mais quatro anos, eles ganhariam ainda mais terreno do que já alcançaram nesses primeiros quatro anos de governo. Que paradoxo que um americano ultrarreacionário como Bolton tenha mostrado como e por que Trump deve ser derrotado nas eleições. / Tradução de Romina Cácia

  • É Prêmio Nobel de Literatura

Mario Vargas Llosa: A Espanha na vitrine

Ensaio de José Varela Ortega apara as arestas das mentiras excessivas e elogios desmedidos

José Varela Ortega deve ter trabalhado muitos anos na pesquisa para seu extraordinário livro España: Un Relato de Grandeza y Odio, e não há dúvidas de que continuará trabalhando em cada uma de suas reedições – já está na segunda –, porque o ensaio é uma daquelas tentativas impossíveis que certos autores excepcionais impõem a si mesmos e das quais resultam às vezes obras admiráveis, como os ensaios históricos da famosa polêmica entre Américo Castro (España en su Historia) e Sánchez Albornoz (España: Un Enigma Histórico).

Seu livro está nessas alturas intelectuais e, em seu campo específico, não há nenhum que se compare a ele.

É preciso antes de tudo dizer que esse ensaio tem muito pouco a ver com o livro de Elvira Roca Barea Imperiofobia y Leyenda Negra, relato interessante que comentei nesta mesma coluna e que estuda, como indica o título, as falsidades, exageros e fantasias absurdas que, para diminuir o prestígio da Espanha, seus inimigos difundem. O ensaio de José Varela Ortega é muito mais ambicioso e se propõe a nada menos que historiar tudo – sim, tudo – que dizem a favor ou contra a Espanha, seus amigos e adversários, entre eles, claro, não apenas os estrangeiros, mas os próprios espanhóis. E a verdade é que, embora a meta seja inatingível, ao se ler esse grosso volume fica a impressão de que o autor esteve a ponto de alcançá-la. Sua pesquisa não se limita a livros e jornais, mas engloba também filmes, de ficção ou documentários, quadros, gravuras, fotografias, histórias em quadrinhos e até boatos e fofocas.

Ainda que pareça mentira, o livro está longe de ser um simples catálogo e é lido com grande interesse graças às amenidades e ironias que Varela Ortega deve ter herdado de seus professores ingleses, pois se formou na Grã-Bretanha, e com as quais, mantendo uma perfeita naturalidade sobre aquilo que conta, apara as arestas das mentiras excessivas ou dos elogios desmedidos, zomba das tolices e idiotices e detalha com simpatia as coisas inteligentes e criativas que tantos críticos quanto defensores têm dito sobre a Espanha.

Uma conclusão evidente é que, em cada período histórico em que gozaram de liberdade – e não foram muitos em sua trajetória –, houve mais espanhóis que criticaram ferozmente seu país do que os que o defenderam e valorizaram. Isso não é uma crítica, mas um elogio, porque o que mantém viva uma sociedade e a faz progredir não são louvações e adulações, mas o espírito combativo e atitudes indômitas – ou seja, o questionamento constante de suas instituições e costumes por seus intelectuais e dirigentes políticos.

A Espanha é o único caso, na história, de um império que em plena conquista da América reúne, por exigência de seus críticos, sobretudo os religiosos, uma grande assembleia em Salamanca para determinar se a conquista era justa ou injusta e se os indígenas – eram filhos de Deus? tinham alma? – estavam sendo bem tratados. Na Inglaterra ou Holanda, alguém como o indomável agostiniano Bartolomé de las Casas, com seus fulminantes ataques à ocupação da América pelos conquistadores, sem dúvida teria sido enforcado.

E o Século de Ouro, quando a Espanha alcança uma superioridade intelectual sobre o restante da Europa, antes que comece a decadência, é uma época de crítica profunda – saudável, no caso de um Cervantes, e contorcida e amarga no caso do desafortunado Quevedo, por exemplo.

O caso da geração de 1898 e suas ramificações está esplendidamente resenhado no livro de Varela Ortega. O desaparecimento da última colônia – Cuba – na derrota na guerra com os Estados Unidos leva os membros dessa geração a descobrir o próprio país, com olhar crítico, sim, mas também compreensivo e generoso. Ao abrir-se a Europa para o mundo de que seus congêneres estiveram afastados por tanto tempo, é através desse contato que escritores como Azorín, Valle-Inclán, Unamuno, Pérez de Ayala, para não falar no principal demolidor de fronteiras, Ortega y Gasset, se conectaram com o restante do planeta. A Espanha volta ser, do ponto de vista intelectual, um país europeu, não apenas consumidor, mas produtor de ideias e conquistas artísticas, literárias e filosóficas. O país vira moda e muitos estrangeiros o visitam ou nele se instalam, atraídos pela “cor local”, o flamenco, as ruínas, as touradas. Alguns deles deixam testemunhos estimulantes, como Gerald Brenan ou George Borrow.

As notas de pé de página de España: Un Relato de Grandeza y Odio merecem menção à parte. São abundantes e às vezes muito extensas, mas nunca supérfluas, e podem ser lidas como pequenos ensaios independentes. Servem para Varela Ortega montar um relato à parte, menos importante que o principal, mas sempre iluminador e com frequência divertido graças às pitadas de humor e erudição pictórica que embute. Essas notas me lembram as que acompanham o esplêndido ensaio La Celestina de María Rosa Lida de Malkiel. “Cada nota é um verdadeiro artigo”, admirava-se meu amigo Sergio Beser, ao lermos ao mesmo tempo essa soberba obra de agudeza crítica e erudição, quando éramos professores na Inglaterra nos anos 1970.

As conclusões que podem ser tiradas do ensaio de Varela Ortega são perfeitamente previsíveis: sobre a Espanha e os espanhóis já foi dito tudo, principalmente o contraditório: o país é triste e alegre, seus habitantes são falastrões e taciturnos, apaixonados e austeros, místicos e sensuais, violentos e pacíficos, cruéis e generosos, como se encarnassem sempre as idiossincrasias e os valores de cada época. Mas, não se poderia dizer o mesmo de todos os países? Sem dúvida, simplesmente porque a unidade buscada em fórmulas nunca existiu, a não ser na fantasia dos ideólogos.

Um país é um formigueiro onde, sob uma superfície aparentemente uniforme, as diferenças explodem. E muito mais nesta época, que fez desaparecer todas as tribos, ou seja, aquele período histórico no qual o indivíduo ainda não existia e o ser humano era só parte da comunidade. As diferentes línguas foram diferenciando as sociedades, assim como as crenças religiosas e os usos e costumes. Um dos grandes méritos do livro de José Varela Ortega é demonstrar isso num caso concreto e específico. As diversas visões de Espanha revelam muito mais a subjetividade dos que a elogiam ou condenam do que a realidade diversa e múltipla do que ela é – um país antigo, o mais longevo do império europeu, que, através de inúmeras adversidades, foi se estendendo e formando um gigantesco conglomerado de seres diversificados, unidos pelo idioma e a história e no qual, visto sem preconceito, cabe o mundo inteiro em sua fantástica diversidade.

O livro de José Varela Ortega será um desses ensaios memoráveis que continuaremos lendo quando tudo isso fique evidente, se os preconceitos nacionalistas – quem diria que eles ressuscitariam? – permitirem e não nos cegarem outra vez.

Tradução de Roberto Muniz


Mario Vargas Llosa: O enigma chileno

Diferente das outras revoluções ao redor do mundo, no Chile, a falha está na falta de igualdade de oportunidades e mobilidade social

Em meio a esta catastrófica quinzena para a América Latina – derrota de Mauricio Macri e retorno do peronismo com Cristina Kirchner, na Argentina, fraude escandalosa nas eleições bolivianas que permitirá ao demagogo Evo Morales eternizar-se no poder e agitações revolucionárias dos indígenas no Equador – há um fato misterioso e surpreendente que me recuso a relacionar aos antes mencionados: a violenta explosão social no Chile contra o aumento das passagens de metrô, com saques e depredações, 20 mortos, milhares de presos e, por fim, manifestação de um milhão de pessoas nas ruas contra o governo de Sebastián Piñera.

Por que misterioso e surpreendente? Por uma razão muito objetiva: o Chile é o único país latino-americano que travou uma batalha eficaz contra o subdesenvolvimento e cresceu de maneira admirável nos últimos anos. Embora eu saiba que os relatórios internacionais não comovem ninguém, lembremos que a renda per capita chilena é de US$ 15 mil anuais (e o poder de compra é de US$ 23 mil, de acordo com organizações como o Banco Mundial).

O Chile acabou com a pobreza extrema, e em nenhuma outra nação latino-americana tantos setores populares passaram a fazer parte da classe média. O país desfruta de pleno emprego e de investimentos estrangeiros e o notável desenvolvimento de seu empresariado fez com que seu padrão de vida aumentasse rapidamente, deixando o restante do continente para trás.

No ano passado, viajei pelo interior chileno e fiquei impressionado ao ver o progresso que se manifestava por toda parte: os povoados esquecidos de 30 anos atrás são hoje cidades prósperas e modernas, com qualidade de vida muito alta, frente aos padrões do terceiro mundo.

É por isso que o Chile quase deixou de ser um país subdesenvolvido: está muito mais próximo do primeiro mundo que do terceiro. Isso não se deve à feroz ditadura do general Augusto Pinochet. Deve-se ao resultado do referendo de 31 anos atrás, com o qual o povo chileno pôs fim à ditadura (e no qual, aliás, Piñera fez campanha contra Pinochet), e ao consenso entre esquerda e direita em manter a política econômica que trouxe um progresso gigantesco para o país.

Em 29 anos de democracia, a direita governou apenas cinco e a esquerda – quer dizer, a Concertación – 24 anos. Não seria impróprio afirmar, portanto, que a esquerda contribuiu mais do que ninguém para essa política – de defesa da propriedade e das empresas privadas, de incentivo aos investimentos estrangeiros, de integração do país aos mercados mundiais e, é claro, de eleições livres e liberdade de expressão – que propiciou o extraordinário desenvolvimento do país. Um progresso de verdade, não apenas econômico, mas também político e social.

Como explicar o que aconteceu? Para tanto, precisamos dissociar os últimos acontecimentos chilenos da revolta camponesa equatoriana e dos distúrbios bolivianos ocasionados pela fraude eleitoral. A que comparar a explosão chilena, então? Ao movimento dos coletes amarelos na França e ao mal-estar generalizado na Europa, os quais denunciam que a globalização aumentou as diferenças entre pobres e ricos de maneira vertiginosa e exigem uma ação estatal para detê-la.
É uma mobilização de classe média, como a que agita grande parte da Europa e tem pouco ou nada a ver com as explosões latino-americanas daqueles que se sentem excluídos do sistema. No Chile, ninguém está excluído do sistema, embora a disparidade entre quem já tem e quem está começando a ter alguma coisa seja grande, é claro. Mas essa distância se reduziu bastante nos últimos anos.

Falhas
O que falhou, então? Creio que foi um aspecto fundamental do desenvolvimento democrático liberal: a igualdade de oportunidades, a mobilidade social. Estas últimas existem no Chile, mas não de maneira tão eficaz a ponto de reduzir a impaciência, perfeitamente compreensível, daqueles que se tornaram parte da classe média e aspiram progredir cada vez mais graças a seus esforços.

Ainda não existe uma educação pública de primeiro nível, nem uma saúde que consiga competir com a privada, nem aposentadorias que cresçam no ritmo dos padrões de vida. Não é um problema chileno, é algo que o Chile compartilha com os países mais avançados do mundo livre.

A sociedade aceita diferenças econômicas, diferentes níveis de vida, somente quando todos têm a sensação de que o sistema, justamente por ser aberto, permite que cada geração tenha um notável progresso individual e familiar, ou seja, que o sucesso – ou o fracasso – esteja no destino de todos. E que isso se deva ao esforço e à contribuição da sociedade como um todo, não ao privilégio de uma pequena minoria.

Esta é, provavelmente, a questão não resolvida do progresso chileno, como argumentou, em um ensaio muito inteligente, o colombiano Carlos Granés, de cujas opiniões compartilho, em grande medida.

Nesta crise, a obrigação do governo chileno não é, portanto, recuar em suas políticas econômicas, como pedem alguns loucos que querem que o Chile retroceda até se tornar uma segunda Venezuela, mas completá-las e fortalecê-las com reformas na educação pública, na saúde e nas aposentadorias, para dar à maior parte da população chilena – que nunca esteve melhor do que agora ao longo de toda a sua história – a sensação de que o desenvolvimento abrange também a igualdade de oportunidades, indispensável a um país que rejeitou o autoritarismo e escolheu a legalidade e a liberdade. A justiça deve estar no coração da democracia e todos devem sentir que a sociedade livre premia o esforço, e não as conexões e os apadrinhamentos.

O segundo homem da “revolução venezuelana”, o tenente Diosdado Cabello, teve a desfaçatez de dizer que todas as mobilizações e protestos latino-americanos se devem a um “terremoto chavista” que está abalando o continente. Parece não ter conhecimento do fato de que 4,5 milhões de venezuelanos fugiram de seu país para não morrer de fome, porque, na Venezuela socialista dos dias de hoje, só comem aqueles que estão no poder e seus companheiros, ou seja, aqueles que roubam, traficam e gozam dos privilégios típicos que as ditaduras da extrema esquerda (e, muitas vezes, da direita) concedem a seus súditos submissos.

Não é impossível que agitadores venezuelanos, enviados por Maduro, tenham turvado e agravado as reivindicações dos indígenas equatorianos e até ajudado Cristina Kirchner a retornar ao poder, meio oculta sob o guarda-chuva do presidente Fernández. Mas, no Chile, está claro que não. É de se imaginar que a cúpula venezuelana esteja comemorando com champanhe francês as dores de cabeça do governo de Piñera.

Mas é inconcebível que a Venezuela seja o motor da revolta, pois foram os garotos que queimaram 29 estações do metrô de Santiago e defenderam o socialismo no século 21. O paradoxo é que essas crianças nem pagam a passagem do metrô: a carteira de estudante os isenta desse trâmite. / Tradução de Renato Prelorentzou

*É prêmio Nobel de Literatura


Mario Vargas Llosa: Cem anos de Mario Benedetti

Ele era um escritor que evitava as “grandes questões” e abordava as pessoas comuns com delicadeza e ternura

Embora fôssemos bons amigos, não me lembro quando conheci Mario Benedetti. Provavelmente, na primeira vez em que fui ao Uruguai, em 1966: uma viagem maravilhosa, na qual descobri que um país na América Latina poderia ser tão civilizado, democrático e moderno quanto a Suíça ou a Suécia. Nas ruas de Montevidéu, havia cartazes anunciando um Congresso do Partido Comunista e os jornais – El País, La Mañana, Marcha – eram muito bem escritos e bem diagramados, o teatro era soberbo, as livrarias formidáveis, se respirava por toda parte uma liberdade sem antolhos. Aquele país tão pequenino tinha uma vida cultural de primeira ordem e, se alguém pudesse pagar por elas na livraria Linardi e Risso, eram encontradas todas as primeiras edições de Borges. Eu já havia dado palestras para pequenos públicos, mas, na Universidade de Montevidéu, onde José Pedro Díaz me levou, eu falei sobre literatura ante um público que abarrotou o auditório, algo que me deixou pasmo.

Se foi então que nos conhecemos, eu deveria tê-lo felicitado por seus contos e poemas, que havia lido em Lima e que me entusiasmaram, em especial Montevideanos, mas também a poesia de Poemas de la Oficina e Poemas del Hoyporhoy. Ele era um escritor que evitava as “grandes questões” e abordava as pessoas comuns com delicadeza e ternura, como funcionários de escritório, estenógrafos, empregados em geral, famílias sem história, aquela classe média que só no Uruguai parecia representar todo um país na América Latina daqueles dias de desigualdades hediondas. Benedetti o fazia com prosa e versos simples, claros, diretos e impecáveis. Era uma voz nova e surpreendente, especialmente na literatura da época, porque evitava o brilho e a agitação e transmitia sinceridade e limpeza moral.

Nós nos víamos muitas vezes em lugares diferentes e trocávamos copiosas correspondências. Às vezes, brincamos para adivinhar quais escritores latino-americanos entrariam no céu, se esse existisse, e lembro-me de um empate entre dois candidatos: Rulfo e Benedetti. Isso foi antes do “caso Padilla”, um cataclismo do qual ninguém se lembra agora e que, no início dos anos 1970, rompeu relações e dividiu ideologicamente alguns escritores do novo mundo que, até então, apesar da diversidade de opiniões, mantínhamos o diálogo e até a amizade. Como ele e eu adotamos posições radicalmente opostas sobre essa questão, desde então nos encontramos pouco e as breves reuniões ao longo dos anos foram quase sempre formais, desprovidas da cumplicidade e do afeto de antigamente.

Mas eu sempre continuei lendo seus livros e admirando-o, especialmente ao escrever histórias, romances, poesias e ensaios que não eram políticos. E devo ter sido um dos poucos leitores que defenderam como uma conquista muito ousada: El Cumpleaños de Juan Angel (O aniversário de Juan Angel), um romance escrito em versos, uma experiência que os críticos, em geral, receberam com ceticismo. Tivemos uma polêmica bastante enérgica no jornal El País e, alguns anos depois, acho que da última vez que nos encontramos, ele se lembrou com nostalgia, me dizendo que alguns leitores do jornal escreveram pedindo que continuássemos polemizando porque o fizemos com bons argumentos e, acima de tudo, sem insultos.

Eu me perguntei muito, nos últimos anos, o que Benedetti teria pensado dos acontecimentos políticos dos últimos tempos. Acima de tudo, a queda e, para todos os efeitos práticos, do desaparecimento do comunismo. Alguém ainda pode pensar que Cuba, Venezuela ou Coreia do Norte poderiam ser os modelos para acabar com o subdesenvolvimento e criar uma sociedade mais justa e próspera? Ou que a lenta, mas inequívoca resignação da extrema esquerda na América Latina ante eleições livres e a coexistência na diversidade que antes se rejeitava como os gatos evitam a água. Ninguém pode responder a essas perguntas em seu nome, agora que ele está ausente, é claro. Emir Rodríguez Monegal, que fora seu amigo e do qual também se distanciou por motivos políticos, disse a respeito de Mario Benedetti que sua formação no Colégio Alemão de Montevidéu o converteu em um “puritano” de ideias rígidas, que, uma vez adotando uma posição, era incapaz de dar o braço a torcer. Eu o refutei, convencido de que, embora ele estivesse equivocado em muitas coisas, como todo mundo, sempre o fez de boa fé e por razões generosas.

Agora restam-nos, acima de suas posições políticas, os belos poemas e histórias que ele escreveu, reivindicando com amor aquelas vidas incrustadas na monotonia da rotina, sem grandeza, do heroísmo discreto, que vão pontualmente ao escritório e poupam parte do salário. Fazendo sacrifícios para gozar pequenas férias, que pensam várias vezes antes de comprar um vestido novo ou terno, e que sempre vivem com pressa, aqueles cidadãos sem história que costumam ser os grandes excluídos da literatura, aos quais ele deu vida, cor, destacando a sua decência e mostrando que eles são os verdadeiros pilares de uma sociedade, uma vez que depende deles para prosperar ou retroceder, para se modernizar ou voltar para à selvageria da tribo.

Era uma voz surpreendente porque evitava o brilho e transmitia limpeza moral

O mundo que Benedetti construiu não teria sido possível sem a experiência uruguaia que o marcou com fogo, embora, já um grande homem, ele tenha vivido no exílio por muitos anos. Mas, sem dúvida, ele levou consigo, quando era cidadão do mundo, a memória de seu pequeno país, a exceção à regra na América Latina para suas instituições representativas, seu amor pela liberdade e cultura, e por ter representado tantos anos de civilização em um continente que parecia ter escolhido a barbárie. Seu grande mérito foi ter mostrado que esta sociedade, que se aproximava da perfeição, não era nada perfeita quando era explorada de perto com o amor que aquelas pessoas inspiravam sem o saber ou com a intenção de construir um país através de seus esforços diários. Quando os jovens revolucionários chamados tupamaros decidiram que ali também fazia falta uma revolução cubana – o sonho ideológico da época – e introduziram a violência, esse país tolerante desapareceu e se tornou outro país latino-americano prototípico, com tortura de revolucionários militares e terroristas. O Uruguai parecia ter chegado ao fundo. Felizmente, foi sendo reconstruído e volta a se assemelhar, pouco a pouco, aos poemas e histórias dos grandes escritores uruguaios daquela notável geração: Juan Carlos Onetti, Ideia Vilariño, Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal, Carlos Real de Azúa, Mario Benedetti e muitos outros.

*A última vez que nos encontramos foi em Buenos Aires. Eu estava jantando com alguns amigos em uma pequena pousada onde eles preparavam bons bifes e alguém me disse que Benedetti estava lá também. Fui cumprimentá-lo e encontrei-o cansado e envelhecido. Trocamos algumas lembranças afetuosas e, na hora de dizer adeus, tenho certeza de que, em vez de um aperto de mão, nos abraçamos. / tradução de Claudia Bozzo


Mario Vargas Llosa: Nicarágua, hora zero

Não há saída para a Nicarágua a não ser a renúncia de Ortega e a realização de eleições

O comandante Daniel Ortega, amo e senhor da Nicarágua desde 2007, propôs retardar as eleições para 2019 a fim de ficar mais um ano no poder, período em que imagina, sem dúvida, encontrar novas artimanhas que lhe permitam se eternizar na presidência, à qual chegou por meio de um conluio eleitoral em que se juntaram remanescentes do sandinismo, empresários ambiciosos e membros da Igreja Católica, como seu antigo adversário, o cardeal Miguel Obando (que morreu recentemente), que conquistou para sua causa com uma oportuna conversão, que chegou até a celebrar seu casamento com sua antiga companheira e cúmplice, a atual vice-presidente Rosario Murilo.

Como todos os tiranos, o desejo de poder deixa cego o comandante Ortega e não lhe permite ver, apesar dos massacres que sua polícia política e os paramilitares sandinistas continuam cometendo (no momento em que escrevo, já são 160 mortos e mais de mil feridos), que sua impopularidade é gigantesca em todos os setores da sociedade, a começar pelos empresários, que decretaram uma greve nacional exigindo sua renúncia, além dos estudantes, operários, camponeses, a Igreja Católica, ou seja, o grosso de uma sociedade que decidiu se mobilizar com uma grande coragem contra a corrupção, os roubos, a demagogia, a censura, os crimes e os desmandos do casal presidencial, com o objetivo de pôr fim a um dos regimes mais abjetos da história da América Central.

A história do comandante Ortega é digna de um romance. Lutou contra a ditadura de Somoza, foi preso por isso e, quando a revolução triunfou, liderou o governo sandinista. Em 1990, derrotado nas eleições por Violeta Chamorro, ele e um grande número de dirigentes do governo se envolveram num enorme escândalo, a famosa “Piñata”, se apoderando de casas, terras e bens do Estado, o que levou muitos sandinistas autênticos e decentes, como o escritor Sergio Ramírez, a romper com eles e os denunciarem.

Para voltar ao poder, Ortega aparentou uma dupla conversão democrática e religiosa, com pactos delirantes (como o que fez com Arnoldo Alemán, que ajudou a sair da prisão, condenado por corrupção) e se aliando a empresários sem escrúpulos, oferecendo-lhes tudo o que desejassem desde que não interferissem na política de governo, e com apoio do cardeal Obando. Desta maneira, assumiu o governo em eleições fraudulentas.

Desde então, tem se mantido no poder, afundando o país em operações duvidosas, como a que forjou com um empresário chinês para construir um novo canal que ligaria o Caribe ao Pacífico, projeto que deu em nada, e outros caprichos delirantes, como o bosque de árvores metálicas construído por Rosario Murilo, que os estudantes rebelados destruíram em uma operação catártica.

O levante popular que começou em abril teria ocorrido muito antes se a Nicarágua endividada e arruinada não tivesse contado com o petróleo venezuelano que o comandante Chávez, primeiro, e depois Nicolás Maduro ofereciam generosamente para seu aliado sandinista.

As manifestações encabeçadas pelos estudantes e apoiadas pela maioria da opinião pública tinham como objetivo imediato protestar contra uma reforma do regime de aposentadoria que aumentava a quota devida pelos pensionistas, mas, na verdade, esta foi a gota d’água, pois a indignação popular contra os abusos e canalhices do casal na presidência, que já fermentava em silêncio graças à repressão, encontrou uma via de escape e deixou o governo e o restante do mundo surpreendidos pela magnitude dos protestos e pela coragem dos manifestantes face à brutalidade com que o regime procurou sufocá-los.

Não há outra saída para o país de Rubén Darío e de Sandino senão a renúncia imediata de Ortega e de sua mulher e a convocação imediata de eleições, como exige o povo da Nicarágua. O relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a selvagem violência do governo contra os pacíficos manifestantes mostra, claramente, que o sistema político que eles presidem violou todas as normas e princípios democráticos e age com a ferocidade repressiva das piores ditaduras. O sangue derramado nos últimos dois meses pelo valente povo nicaraguense, enfrentando balas, assassinatos, prisões e torturas, colocará um fim a uma das últimas tiranias que, lembrança de uma época funesta, sobrevivem na América Latina.

Para isso, é indispensável que os países democráticos e organizações internacionais, como as Nações Unidas, OEA e União Europeia se solidarizem com os patriotas nicaraguenses, exigindo a renúncia de Ortega e Rosario Murillo e a realização, no menor prazo possível, de eleições livres, com observadores internacionais, para o país recuperar sua liberdade e começar a reconstrução das suas instituições democráticas depois de tantos anos de sofrimento.

A Nicarágua, provavelmente, é um dos países latino-americanos que mais sofreu ao longo da história: foram ocupações, ditaduras, saques, guerras civis. A derrota da ditadura de Somoza, uma das piores já vistas no continente, foi uma façanha que despertou grandes esperanças. Mas os sandinistas que ocuparam seu lugar optaram pela utopia coletivista excludente e, em vez de lançar as bases de uma sociedade democrática, criaram uma guerra civil e uma divisão social que até agora impediram o país de edificar as instituições que garantem o progresso econômico e a liberdade política. Mas nunca é tarde para iniciar esse processo e, depois das terríveis experiências que marcaram sua história recente, a saída de Ortega e da sua sinistra companheira deve dar início a uma nova era para essa terra de heróis e de grandes poetas.

A realidade do nosso tempo não tem lugar para sistemas tirânicos nem utopias sociais, que só trouxeram miséria e dor para os países que sucumbiram a elas. A América Latina vem compreendendo isso e a prova é que quase já não restam regimes dessa natureza, com exceção de Cuba e Venezuela, e países que respaldam o “socialismo do século 21” (por oportunismo e cobiça, pois só o praticam em teoria e não na prática) estão dele se afastando, caso do Equador e agora a Nicarágua, de modo que finalmente a democracia substituirá essa deprimente realidade política que reinou na América Latina na minha juventude, quando de um ponto ao outro do continente havia ditaduras militares, com exceção da Costa Rica e do Uruguai. Não é por acaso que a liberdade nesses dois países esteja mais enraizada com que em outros, assim como a coesão social e a paz. / Traduçã de Terezinha Martino.

 


Mario Vargas Llosa: A Caixa de Pandora

A decisão de mudar a embaixada para Jerusalém criou confusão e uma matança estúpida

Enquanto Ivanka Trump, usando um vaporoso vestido que deu o que falar aos presentes, descerrava a placa inaugurando a vistosa Embaixada dos EUA em Jerusalém, o Exército israelense matava a tiros 60 palestinos e feria 1.700 que, lançando pedras, tentavam se aproximar do alambrado que separa a Faixa de Gaza do território de Israel. Os dois acontecimentos não coincidiram por acaso, o último foi consequência do primeiro.

A decisão do presidente Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel, medida que já anunciara durante sua campanha eleitoral, põe um fim a 70 anos de neutralidade dos EUA. O país e seus aliados no Ocidente até agora sustentavam que o estatuto de Jerusalém, como capital reivindicada por palestinos e israelenses, deveria ser decidido com base em um acordo entre ambas as partes que contemplasse a criação de dois Estados coexistindo na região.

Embora a tese de dois Estados seja verbalizada, às vezes, por dirigentes dos dois países, ninguém acredita que a fórmula ainda seja viável, dada a política expansionista israelense cujos assentamentos na Cisjordânia continuam devorando territórios e a cada dia que passa isolando povoados e cidades que formariam o Estado Palestino. Se existir, um Estado Palestino, na verdade, será pouco menos do que uma caricatura dos bantustões da África do Sul à época do apartheid.

Trump afirmou que sua decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel era “realista” e ela não se tornaria um obstáculo ao acordo, mas o facilitaria. É possível que ele não só afirmou isso, mas, diante da sua formidável ignorância dos assuntos internacionais sobre os quais opina diariamente de maneira tão irresponsável, acredite no que disse. Mas duvido que mais alguém acredite nisso, além dele e do punhado de fanáticos que aplaudiu muito quando Ivanka descerrou a placa e Bibi Netanyahu, com lágrimas nos olhos, exclamou: “Que dia glorioso!”.

Na verdade, Trump abriu a Caixa de Pandora com essa medida e, além da confusão e do transtorno causado entre seus aliados, foi responsável, em grande parte, pela cruel e estúpida matança que veio se acrescentar ao suplício em que há muito tempo vivem os desventurados habitantes de Gaza.

A criação de dois Estados convivendo em paz é a fórmula mais sensata para acabar com essa guerra disfarçada que perdura há 70 anos no Oriente Médio. Infelizmente, nos tempos de Yasser Arafat, os palestinos rechaçaram um projeto de paz em que Israel fez concessões notáveis, como a devolução de boa parte dos territórios ocupados e a aceitação de que Jerusalém fosse compartilhada como capital de Israel e da Palestina.

Desde então, o enorme movimento da sociedade israelense que desejava a paz foi se extinguindo e, ao mesmo tempo, foi crescendo o número daqueles que, como Ariel Sharon, achava que a negociação era impossível e a única solução viria somente de Israel e imposta aos palestinos pela força. E há muita gente no mundo, como Trump, que acredita nisso e está disposta a apoiar essa política insensata que jamais resolverá o problema e continuará cobrindo o Oriente Médio de tensão, sangue e cadáveres.

Esse processo tornou possível um governo como o presidido por Netanyahu, o mais reacionário e prepotente jamais visto em Israel e com certeza o menos democrático, pois, convencido da sua superioridade militar absoluta em toda a região, ele persegue sem trégua seus adversários, roubando a cada dia um pouco mais de seus territórios e, acusando-os de terroristas e de colocar em perigo a existência da pequena Israel, os fuzila, os fere e assassina ao menor pretexto.

Gostaria de citar aqui um artigo de Michelle Goldberg publicado no New York Times, no dia 15, sobre o que ocorreu no Oriente Médio, que leva o título Um grotesco espetáculo em Jerusalém. Ela descreve com detalhes a fantástica concentração de extremistas israelenses e fanáticos evangélicos americanos que festejaram a abertura da nova embaixada, e a bofetada na população palestina que foi essa nova afronta infligida pela Casa Branca. A autora não omite a intransigência do Hamas, nem o terrorismo palestino, mas lembra a condição indescritível em que os habitantes de Gaza estão condenados a viver. Vi com meus olhos e sei o nível de degradação a que essa população sobrevive a duras penas, sem trabalho, sem comida, sem remédios, com hospitais e escolas em ruínas, edifícios derrubados, sem água, sem esperança, submetida a bombardeios cegos cada vez que há um atentado. A jornalista explica que o sionismo se tornou alvo de críticas da opinião pública mundial com a guinada para a extrema direita dos governos israelenses e uma parte importante dos judeus nos EUA já não apoia a política atual de Netanyahu e dos pequenos partidos religiosos que lhe propiciam a maioria parlamentar.

Creio que isso ocorre também no restante do mundo, com milhões de homens e mulheres que, como eu, se identificaram com um povo que ergueu cidades modernas e fazendas-modelo onde só havia deserto, criou uma sociedade democrática e livre e da qual um segmento muito grande quer realmente a paz negociada com os palestinos. Esta Israel já não existe. Hoje, é uma potência militar e de certo modo colonial, que acredita somente na força, sobretudo, graças ao apoio do país mais poderoso do mundo, representado pelo presidente Trump.

Todo esse poder não serve para muita coisa quando uma sociedade se perpetua esperando atacar ou ser atacada, se armando cada dia mais, pois sabe que é odiada por seus vizinhos e até por seus próprios cidadãos, quando exige que seus jovens passem três anos no Exército para garantir a sobrevivência do país e continuar vencendo guerras. E, além disso, castiga ferozmente e sem trégua, à menor agitação ou protesto, aqueles que não têm outra culpa senão a de estar ali, há séculos, quando começaram a chegar os judeus expulsos da Europa depois das atrozes matanças cometidas pelos nazistas. Não é civilizado nem desejável viver entre guerras e extermínios, por mais forte e poderoso que seja um Estado.

Os verdadeiros amigos de Israel não devem apoiar a política suicida de Netanyahu e companhia. É uma política que está tornando essa nação, que era amada e respeitada, um país cruel e impiedoso com um povo que maltrata e tiraniza, ao mesmo tempo em que afirma ser uma vítima da incompreensão e do terror.

Tenho muitos amigos israelenses, sobretudo escritores, e defendi muitas vezes o direito de existência de Israel dentro de fronteiras seguras, e principalmente que se encontre uma maneira pacífica de coexistir com o povo palestino. Sinto-me honrado de ter recebido o Prêmio Jerusalém e me alegra saber que nenhum de meus amigos israelenses participou daquele “grotesco espetáculo” protagonizado pela elegante Ivanka, descerrando aquela placa. Estou certo de que sentiram tanta indignação e tristeza quanto eu pela matança nos alambrados de Gaza.

Eles representam um Estado de Israel que parece ter desaparecido. Esperemos que ele retorne. Em nome deles e da justiça, é preciso proclamar em alto e bom som que não são os palestinos que constituem o maior perigo para o futuro de Israel, mas sim Netanyahu e seus sequazes e o sangue que derramam. / Tradução de Terezinha Martino

*Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de literatura.


Mario Vargas Llosa (El País): Lula atrás das grades

Graças à coragem de juízes e promotores está se perseguindo o grande inimigo latino: a corrupção

A entrada de Lula, ex-presidente do Brasil, em uma prisão de Curitiba para cumprir uma pena de doze anos de cadeia por corrupção deu origem a grandes protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela e da Nicarágua, o que era previsível. Mas menos do que o fato de muita gente honesta, socialistas, social-democratas e até liberais considerarem que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que se preocupou muito em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, ao que parece, aproximadamente 30 milhões de brasileiros da miséria quando esteve no poder.

Os que pensam assim estão convencidos, pelo visto, de que ser um bom governante tem a ver somente com realizar políticas sociais avançadas e que isso o exonera de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi preso pelas boas coisas que fez durante seu governo, mas pelas ruins, e entre essas se encontra, por exemplo, a gigantesca corrupção na empresa estatal Petrobras e suas empreiteiras que custou à sofrida população brasileira nada menos do que dez bilhões de reais (desses, 7 bilhões em propinas).

Quem pensa tão bem de Lula, aliás, se esquece do feio papel de leva e traz que ele representou como emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes e ministros para que favorecessem a transnacional com bilionários contratos de obras públicas.

É por essa razão e outros casos que Lula tem não só um, mas sete processos por corrupção em andamento e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari Neto e José Dirceu, seu chefe de Gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, esquemas ilícitos e outras operações criminosas. Entre as últimas acusações que pendem sobre sua cabeça está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em Guarujá.

Os protestos pela prisão de Lula não levam em consideração que, desde que ocorreu a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava asfixiar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários e banqueiros foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e várias dezenas deles o serão em um futuro próximo.

Jamais algo parecido havia ocorrido na história da América Latina: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais que, partindo de São Paulo, se estendeu depois por todo o país, não contra uma empresa, um político, mas contra a desonestidade, a enganação, os roubos, as propinas, toda a enorme corrupção que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a atividade política, em todo o país. Um movimento popular cuja meta não era a revolução socialista e derrubar um governo, mas a regeneração da democracia, que as leis deixassem de ser coisa sem importância e fossem verdadeiramente aplicadas, a todos por igual, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.

O extraordinário é que esse movimento plural encontrou juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, lhe deram uma via judicial, investigando, denunciando, enviando à prisão diversos executivos, comerciantes, industriais, políticos, autoridades, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é realizável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo se existe a vontade e o apoio popular para isso. Cito sempre Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nesses últimos anos vimos no Brasil como seu exemplo foi seguido por incontáveis juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e na liberdade que quase havia perdido.

O ex-presidente teve acesso a todos os direitos de defesa que existem em um país democrático

Há muitos brasileiros admiráveis; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de uma ação digna de punição; e atletas e esportistas cujos nomes correram o mundo. Mas, se eu precisasse escolher um deles como modelo exemplar ao restante do planeta, não hesitaria um segundo em eleger Sérgio Moro, esse modesto advogado natural do Paraná que, após se formar em advocacia, entrou na magistratura na oposição em 1996. Como já confessou, o que aconteceu na Itália nos anos noventa, a famosa Operação Mãos Limpas, lhe deu as ideias e o entusiasmo necessário para combater a corrupção em seu país, utilizando instrumentos parecidos aos dos juízes italianos da época, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada em troca da redução da pena e a colaboração da imprensa. Tentaram corrompê-lo, obviamente, e sem dúvida é um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos infelizmente não são uma exceção. Mas lá está, fazendo parte do que vem sendo uma verdadeira, apesar de ninguém ainda a ter nomeado assim, revolução silenciosa: o retorno da legalidade, o império da lei, em uma sociedade que a corrupção generalizada estava desintegrando e impedindo-o de passar de ser o “grande país do futuro” que sempre foi a ser o grande país do presente.

A decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo

O grande inimigo do progresso latino-americano é a corrupção. Ela faz estragos nos governos de direita e esquerda e um enorme número de latino-americanos chegou a se convencer de que ela é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não há defesa: os terremotos, as tempestades, os raios. Mas a verdade é que a defesa existe e justamente o Brasil está demonstrando que é possível combater a corrupção, se existirem juízes e promotores corajosos e responsáveis e, claro, uma opinião pública e imprensa que os apoiem.

Por isso é bom, para a América Latina, que homens como Marcelo Odebrecht e Lula tenham sido presos após ser processados, recebendo todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a Justiça é igual para todos, os pobres diabos do povo que são a imensa maioria, e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro e seus cargos. E são justamente esses últimos que têm maior obrigação moral de obedecer às leis e mostrar, em sua vida diária, que não é preciso transgredi-las para ocupar as posições de prestígio e poder que obtiveram, que elas são possíveis dentro da legalidade. É a única forma de uma sociedade acreditar nas instituições, repelir o apocalipse e as fantasias utópicas, sustentar a democracia e viver com a sensação de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la cada dia mais.


Mario Vargas Llosa: A derrota de Correa

 

Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela também sairá do pesadelo

No plebiscito realizado no Equador, dia 4, não foi derrotado apenas o ex-presidente Rafael Correa, que não poderá se candidatar novamente à primeira magistratura do país, mas também o chavismo e sua criação ideológica, o “socialismo do século 21”, da qual Correa foi um promotor entusiasta.

Durante os dez anos em que esteve no governo, o exuberante demagogo que alardeava seu “socialismo cristão” foi, como o comandante Daniel Ortega, na Nicarágua, Evo Morales, na Bolívia, e Fidel e Raúl Castro, em Cuba, um propagandista tenaz das políticas que destruíram a democracia venezuelana e a transformaram numa ditadura devastada pela ruína econômica, a violência repressora e a inflação.

Por sorte dos equatorianos ingênuos que o levaram ao poder, Correa não imitou todas as políticas chavistas de nacionalização de empresas, redução drástica do setor privado, inchaço do setor estatal, corroído por incompetência e roubo, e perseguição sistemática à imprensa livre e aos críticos - embora tenha golpeado de várias maneiras os empresários privados e, entre outras ações antidemocráticas, tenha criado, em 2013, uma vergonhosa Lei Orgânica da Comunicação, condenada por todas as associações internacionais de imprensa, que equivalia a uma forma de censura ao dissidente e ao crítico e deixava suspensa uma espada de Dâmocles sobre os meios de comunicação independentes. Apesar de essa lei não ser mais aplicada, ela ainda não foi revogada.

De resto, como costuma ocorrer sempre que caudilhos se instalam no poder, a corrupção também se alastrou no Equador nos anos de Correa. Apenas encerrado o plebiscito, ele teve de depor ante a Promotoria de Guayaquil, que investiga os contratos de venda antecipada de petróleo assinados pelo Equador com China e Tailândia, os quais, segundo a Controladoria-Geral do Estado, causaram graves prejuízos ao Tesouro.

Rafael Correa sentia-se muito seguro, acreditando que seu sucessor, Lenín Moreno, que havia sido seu vice-presidente, protegeria sua retaguarda. Mas Moreno nunca concordou com a reforma constitucional promovida por Correa para - à moda de Evo e Ortega - se reeleger quantas vezes quisesse.

Desde que assumiu o poder, Moreno procurou acalmar o ambiente político e propiciar uma coexistência pacífica entre as diversas forças e partidos, visando a um consenso que permitisse reformas e progresso. Essa tranquilidade, da qual se orgulha, contrasta radicalmente com o estado de sobressalto e convulsão no qual as arengas de seu antecessor mantinham o país. Não é de se estranhar que o conflito de temperamentos, ao lado das diferenças políticas, provocasse a ruptura entre Correa e Moreno.

O presidente decidiu, sob critérios democráticos, convocar um plebiscito com várias perguntas para que o povo equatoriano se pronunciasse sobre a reeleição. Os resultados foram meridianamente claros. Uma maioria inequívoca se declarou contra e uma maioria ainda mais contundente vetou o acesso a cargos do governo de pessoas envolvidas em corrupção.

Correa, que havia voltado da Bélgica para defender suas “reformas”, fez campanha por um mês inteiro pelo país, o que serviu para comprovar, pela chuva de insultos, pedras e ovos com que foi recebido em muitos lugares, a queda radical da popularidade que teve em outros tempos - em consequência, ao que parece, de um despertar do povo equatoriano para a liberdade.

É preciso comemorar esse processo, que ao lado do que ocorreu na Argentina e da mobilização popular no Brasil contra a corrupção e pela regeneração democrática, assinala uma tendência muito positiva em toda a América Latina em favor da depuração e fortalecimento das instituições.

A outra face da moeda é sem dúvida a Venezuela. Com o surpreendente apoio do ex-primeiro-ministro espanhol Rodríguez Zapatero, que sem corar de vergonha acaba de exortar a oposição a Nicolás Maduro a participar da farsa eleitoral de abril - ou seja, a pôr no pescoço a corda com que será enforcada -, o filho putativo de Hugo Chávez espera se reeleger presidente de um país em que pelo menos três quartos dos cidadãos fazem verdadeiros milagres para sobreviver a uma penúria cotidiana na qual não há comida, remédios, trabalho ou esperança, salvo para a máfia de demagogos e narcotraficantes encastelada no poder.

Para ganhar essa eleição, Maduro precisará contrariar violentamente a vontade popular. Tomara que a heroica e maltratada oposição venezuelana não se preste a dar ao pleito uma aparência de legitimidade participando dele. Nas condições atuais, não existe nenhuma possibilidade de uma eleição legítima. A comunidade democrática internacional deveria anunciar, desde já, que não reconhecerá seus resultados.

Já o plebiscito equatoriano deixa também entrever, no governo de Lenín Moreno, a esperança de que, abandonando o servil apoio que o governo de Rafael Correa deu à ditadura de Chávez e de Maduro, o Equador se una ao chamado Grupo de Lima, que há algum tempo vem mobilizando os países democráticos de todo o mundo para continuar isolando e pressionando a Venezuela para que seu governo aceite eleições verdadeiras, sob controle das Nações Unidas e da OEA, com observadores internacionais independentes. Só assim colocaremos fim a uma das mais ineptas ditaduras da história da América Latina, que em poucos anos conseguiu transformar um dos países mais ricos do mundo em um dos mais pobres.

O ocorrido na Venezuela ficará como um dos exemplos mais trágicos de suicídio político de uma sociedade. Durante 40 anos, a terra de Bolívar teve uma democracia com eleições livres nas quais eram renovados os governos e combatia resolutamente as ditaduras que naqueles anos assolavam o restante do continente. Embora nesse período houvesse corrupção, a sociedade venezuelana prosperou mais que nenhuma outra no continente.

Chávez foi um militar que traiu sua Constituição e seu Exército, sendo por este derrotado em sua tentativa golpista. Em lugar de ser indultado pela cegueira do presidente Rafael Caldera, deveria ter sido julgado e condenado pelos tribunais. Seria outra a realidade da Venezuela hoje se o povo venezuelano não se tivesse deixado seduzir pelo canto de sereia do caudilho revolucionário.

No entanto, pelo menos, ele soube reagir e agora luta com bravura pela democracia. Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela sairá do pesadelo. Tomara que aprenda a lição e esta seja a última ditadura de sua história. / Tradução de Roberto Muniz

*Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de Literatura