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Reconhecimento de João Cândido como herói enfrenta resistência da Marinha
Força diz não reconhecer heroísmo no movimento que exigiu fim da chibata; projeto que o declara herói avançou no Senado
Fernanda Canofre / Folha de S. Paulo
"A Marinha me pediu que eu pedisse vistas, que ela me traria vários argumentos e documentos que eu não conheço", explicou o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), por videoconferência, em uma sessão da Comissão de Cultura, Educação e Lazer do Senado.
Na ocasião, no começo de outubro, era discutido o projeto de lei que propunha inserir o nome de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata (1910), no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Duas semanas depois, em 28 de outubro, o senador deu voto favorável à proposta, aprovada por unanimidade na comissão, mas pediu licença para ler a nota enviada pela Marinha.
Nela, é defendida uma posição expressa há anos: a Marinha cita quebra de hierarquia e disciplina e diz não considerar o movimento —que teve cerca de 2.300 marinheiros amotinados pelo fim do castigo físico— "ato de bravura" ou de "caráter humanitário".
A nota da Marinha fala das ameaças de bombardeio à cidade do Rio e afirma que vidas foram sacrificadas, incluindo duas crianças, atingidas por projétil —historiadores dizem que os marinheiros juntaram dinheiro para ajudar as famílias delas.
A Marinha diz ainda não considerar que os castigos físicos estivessem corretos, mas salienta que reconhecer erros não justifica avalizar outros, citando a exaltação das ações dos revoltosos como exemplo.
Caso o projeto avance na Câmara dos Deputados e seja sancionado, será a conclusão de mais de uma década de tentativas de reconhecer o "Almirante Negro", oficialmente, entre os nomes da história nacional.
Para que um nome seja gravado no Livro de Aço é preciso que uma lei ordinária seja aprovada nas duas Casas, por maioria simples, e sancionada pela Presidência da República. O livro tem hoje 49 nomes inscritos e outros 9 já aprovados —os mais recentes foram inseridos em 2018.
Relator do projeto na comissão do Senado, Paulo Paim (PT-RS) foi também o primeiro a propor o reconhecimento de João Cândido na Casa, por meio de um projeto de lei que acabou arquivado na Câmara. O atual é de autoria do ex-senador Lindbergh Farias (PT-RJ).
Ao ver a comissão aprovando, em setembro, a homenagem a Alberto Mendes Jr., tido como herói e patrono da Polícia Militar de São Paulo, ele diz que aproveitou para trazer a proposta sobre o marinheiro de volta à pauta.
"Se a Marinha tivesse pressionado senadores, não tenha dúvida que não teria essa votação unânime. Quando fui para a votação, tinha dúvidas se íamos conseguir aprovar", diz Paim. "Se a Marinha jogasse pesado, o projeto não seria aprovado. Eu não tenho dúvida".
A Marinha não respondeu às perguntas enviadas pela Folha.
Paim propôs reconhecer João Cândido como herói nacional em 2007, um ano antes de o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionar o projeto de Marina Silva (na época, PT-AC), que concedeu anistia póstuma a ele e aos outros marinheiros da revolta.
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O trecho que garantia todos os efeitos da anistia, citando promoções que os anistiados teriam tido direito caso tivessem seguidos no serviço ativo e pensão por morte, foi vetado. A justificativa do governo foi o impacto orçamentário que geraria para a União.
Na época da revolta, a anistia foi aprovada por unanimidade no Congresso, mesmo assim, marinheiros foram presos, outros expulsos da Marinha, alguns fuzilados.
O próprio João Cândido foi expulso, preso, morreu pobre anos depois e nunca foi promovido a almirante, apesar de ter sido chamado assim pela imprensa e pela população da época.
"Foi uma batalha enorme para fazer essa aprovação, e a razão é sempre de natureza política e ideológica", diz Marina. "Essa visão reacionária está dentro do Congresso desde sempre", afirma.
"Os atos de reparação por parte do Estado quando se comete erros, crimes, danos são previstos na lei. É justo que, da mesma forma que haja atos de reparação em relação às vítimas da ditadura militar, nesse caso também haja ato de reparação para os familiares", avalia.
Ainda em 2008, Lula inaugurou uma estátua de João Cândido no Rio, em um evento sem a Marinha ou representante do Ministério da Defesa.
"Precisamos aprender a transformar os nossos mortos em heróis", declarou. À Folha a Marinha afirmou que não reconhecia heroísmo no movimento, mas não se opunha à estátua.
"Como os rebeldes deixaram claro, tratava-se de uma revolta contra o uso de castigos físicos, contra as condições de trabalho e os baixos salários. Embora proibida pela Constituição, legislação paralela permitia a continuação das chibatadas na Marinha (no Exército, usavam-se as espadeiradas) e isto 22 anos depois da abolição da escravidão", aponta o historiador José Murilo de Carvalho.
"Na expressão usada pelos rebeldes, queriam uma Armada de cidadãos, não uma fazenda de escravos. A Marinha tinha tido tempo mais que suficiente para fazer as mudanças exigidas pelas novas tecnologias no recrutamento de praças, no treinamento de praças e oficiais, já adotadas em outras Marinhas e não o fez. Tínhamos os melhores encouraçados do mundo numa organização totalmente defasada".
Assessor de Marina Silva na época do projeto de lei, Erlando Melo conta que, tentando entender as dificuldades para a pauta avançar, ouviu de outros assessores petistas que a Marinha tinha objeções a ela.
"Lá na Câmara, no Salão Verde, conversei com um assessor da Marinha, que não lembro do nome, e ele me externou a divergência deles com o que foi publicado nos livros de história sobre a Revolta da Chibata", lembra.
Mais de uma década depois, o deputado federal Chico D’Angelo (PDT-RJ), autor de um projeto semelhante ao aprovado no Senado, diz que recebeu duas vezes em seu gabinete pessoas da Marinha, contando sobre a história da corporação, depois de ter apresentado a proposta, em 2019.
"Eram pessoas com uniforme da Marinha, tinham um papel muito educado, conheciam a história do João Cândido, mas pediam que eu retirasse o projeto em função da quebra de hierarquia", diz ele.
"Eu sei a importância da Marinha, mas são coisas distintas. A história do João Cândido é muito importante para a história do Brasil."
Pouco depois de a proposta começar a tramitar, o então presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), apresentou requerimento para que o projeto fosse examinado na sua comissão —o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) fez solicitação semelhante no Senado, retirada depois.
O texto do pedido diz que "a matéria está claramente inserida no campo temático" da comissão.
"Cabe destacar que o projeto de lei nada menciona sobre a subversão da hierarquia e da disciplina militares, dos assassinatos cometidos em pleno navio na cidade do Rio de Janeiro, vitimando inclusive crianças. Portanto, reconhecer erros não justifica avalizar outros, exaltando as ações dos revoltosos", segue.
Com o projeto parado desde então, porém, D’Angelo pediu à presidência que o texto voltasse à Comissão de Cultura, onde tradicionalmente tramitam propostas do tipo. "A expectativa é que na Comissão de Cultura a gente aprove isso, como foi aprovado o Senado", diz ele.
Longe do Congresso Nacional, João Cândido é reconhecido como herói estadual no Rio de Janeiro, e municipal em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, onde morou a maior parte da vida, e, desde agosto, em Encruzilhada do Sul (RS), sua terra natal.
"Foi muito bem aceito aqui, inclusive pelos movimentos negros do nosso município, que sempre lutaram pelo reconhecimento do João Cândido", diz o vereador Adriano Horna (Republicanos), autor da proposta no município gaúcho de 26 mil habitantes.
O projeto aprovado na comissão agora segue para análise na Câmara, já que o prazo para recurso no Senado se encerrou no último dia 10.
"O que aconteceu há 110 anos não pode ser motivo, com a evolução dos tempos, de não reconhecer a bravura da história dele. Zumbi mesmo se levantou contra o poder da época, foi morto e está nos Heróis da Pátria, Tiradentes também", diz Paim.
"Se houve um erro naquela época —como houve, a Marinha reconhece que houve exagero— se tudo isso é verdadeiro, não há motivo de não dar a justiça pós-morte a alguém que já foi anistiado, homenageado."
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/reconhecimento-de-joao-candido-como-heroi-enfrenta-resistencia-da-marinha.shtml
João Cândido nunca existiu na Marinha, disse líder da Revolta da Chibata
Documentos sobre ele foram localizados apenas em 2008 por pesquisadores, no Arquivo Nacional
Fernanda Canofre / Folha de S. Paulo
Em 1968, um ano antes de morrer, João Cândido Felisberto, o homem que ficou conhecido como líder da Revolta da Chibata (movimento de 1910 que acabou com os castigos físicos na Marinha), concedeu uma entrevista onde recordava sobre o episódio e sua vida como marinheiro.
"João Cândido nunca existiu na Marinha", disse ele ao MIS (Museu da Imagem e do Som).
No fim de outubro, comissão do Senado aprovou proposta para incluir o nome do marinheiro no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Caso o projeto avance e seja sancionado, será a conclusão de mais de uma década de tentativas de reconhecer o "Almirante Negro", oficialmente, entre os nomes da história nacional.
Há mais de 50 anos, o entrevistador questiona se é verdade que nos arquivos da Marinha não consta nada em seu nome.
"Foi sonegado. Sonegado mesmo. Pelo fato de haver tomado a posição que tomaram na revolta, pelo ódio. Muitos oficiais não conseguiam comandar o Minas Gerais [encouraçado] e eu tive o sobejo poder de dominá-lo, fazer o que eles jamais fariam na baía do Rio de Janeiro", conclui.
Documentos e a ficha funcional de João Cândido na Marinha vieram a público apenas em 2008, graças a pesquisa de um grupo de historiadores da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), no Arquivo Histórico Nacional.
A reportagem da Folha na época registrou que a ficha do ex-marinheiro, que entrou em 1895, como grumete, apontava que ele foi castigado nove vezes com prisões, ficando de dois a quatro dias em solitária, e duas vezes rebaixado de cabo para marinheiro.
Não havia registro de castigo físico. Dos dez elogios recebidos por ele, o último por bom comportamento fora três meses antes da revolta.
O historiador José Murilo de Carvalho explica que João Cândido não foi o líder intelectual da revolta, posição de Francisco Dias Martins, paioleiro do Scout Bahia, mas salienta que a revolta começa pelo Minas Gerais, onde ele era o timoneiro, já que foi o último local onde a chibata foi aplicada como castigo — a punição de 250 chibatadas a um marinheiro foi o estopim.
O próprio João Cândido diz que era "um dos chefes", citando os comitês revolucionários que formaram na época, ainda antes da revolta, e diz que assumiu a liderança já indicado por eles.
"[Queríamos] combater os maus-tratos e má alimentação da Marinha, e acabar definitivamente com a chibata na Marinha. O causo era este. Nós que viemos da Europa, em contato com outras Marinhas, não podíamos mais admitir que, na Marinha do Brasil, um homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem", diz João Cândido na gravação.
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Passados 111 anos da revolta, a Marinha diz não reconhecer "ato de bravura" no episódio, como afirmou em nota recente lida no Senado, chama a atenção para a quebra de hierarquia e disciplina, cita mortes e se posiciona contra exaltar os revoltosos.
"Aquilo foi uma pequena revolução social e toda revolução social é uma quebra de hierarquia. A Independência do Brasil foi uma quebra de hierarquia, a República também", diz Mário Maestri, historiador e autor de "Cisnes negros: uma história da Revolta da Chibata" (Ed. Moderna).
"O que incomoda é que João Cândido dirigiu uma revolta da mais poderosa Marinha de Guerra que já teve no Brasil, venceu contra os oficiais e as elites brasileiras, e ainda por cima era negro", avalia Maestri.
"Esses mais de 2.300 e tantos marinheiros sofreram uma repressão grande que ainda não foi devidamente calculada. Cerca de 1.300 foram expulsos da Marinha na época, um total de 30 e tantos foram processados pelo Conselho de Guerra, os que foram mortos e fuzilados não existe um levantamento completo, mas até onde levantei, pelo menos cerca de 30 se conhece o nome e como morreram — fuzilados em terra firme ou no mar. Houve um expurgo na Marinha", diz Marco Morel, um dos historiadores que localizou os documentos de João Cândido.
Ele é neto de Edmar Morel, jornalista e autor de "A Revolta da Chibata" (Ed. Paz e Terra), que batizou o movimento dos marinheiros com esse nome e trouxe o episódio e João Cândido de volta à memória com a publicação de seu livro em 1959.
"O principal que ficou disso é que, tamanho o medo da repressão, tanto as pessoas queriam se proteger dela, que se criou um silêncio de memória sobre isso. Até hoje os descendentes dos marinheiros que participaram da revolta não sabem, porque ficou escondido", conta Morel.
Apesar da anistia aprovada na época, a anistia a João Cândido e outros revoltosos só foi reconhecida de fato, postumamente, em 2008.
Depois da revolta, ele foi expulso da Marinha, preso e, segundo o filho caçula, Adalberto Cândido, o Candinho, 82, sofreu perseguições quanto tentou entrar na Marinha mercante. Trabalhou por anos com peixes na Praça 15, no Rio de Janeiro.
"Meu pai nunca falou para a família [sobre a revolta], ele era uma pessoa muito discreta. Com o lançamento do livro, que foi um best-seller, que ele chegou a falar para mim", diz Candinho, que acompanhou o pai em homenagens e recebeu outras tantas, durante anos, em nome dele.
Morel conta que seu avô também pagou um preço apenas por ressuscitar a história da revolta: seus direitos políticos foram cassados após o golpe de 1964.
"A cassação encerrou a carreira dele de jornalista e foi causada pelo livro", diz. "O que eu ouvi contarem, colegas dele jornalistas, é que, depois do golpe, quando meu avô arranjava emprego em uma redação, ia lá um grupo de oficiais da Marinha, fardados, e ameaçavam, que ele tinha que ser demitido".
Aparício Torelly, o Barão de Itararé, chegou a ser agredido por oficiais da Marinha depois de publicar capítulos de um livreto sobre a revolta em seu jornal, em 1934.
Já durante a ditadura, Aldir Blanc teve de comparecer ao departamento de censura mais de uma vez, devido a música composta por ele e João Bosco em homenagem a João Cândido, "O Mestre-Sala dos Mares".
O título teve de ser mudado duas vezes, porque o censor achava que "O Almirante Negro" e "O Navegante Negro" eram apologia aos negros.
"Foi a maior manifestação de racismo que já vi", disse Blanc, que relatou ainda ter ouvido ameaças veladas do Cenimar (Centro de Informações da Marinha).
Naquele mesmo 1968 da entrevista de João Cândido, o regime militar baixou o AI-5, ato que marcou o endurecimento da ditadura.
Quatro anos antes, poucos dias antes do golpe, João Cândido participou de um encontro no Sindicato dos Marinheiros, em comemoração a associação, o que era visto como ilegal — a reunião foi proibida pelo ministro da Marinha da época.
Na gravação com o MIS, o ex-marinheiro chama o movimento militar que resultou no golpe de "movimento de salvação pública".
"A Revolta foi episódio traumático para os oficiais da Marinha. O trauma pode ter sido reforçado pela revolta dos marinheiros de 1964 e ainda não foi superado. A prova é que, 111 anos após a Revolta da Chibata, tenha havido a reação da corporação à colocação de João Cândido na lista dos heróis da pátria, mesmo sendo ela hoje uma instituição totalmente diferente da de 1910, e mesmo da de 1964", avalia o historiador José Murilo de Carvalho.
"Ele é um herói popular, não é da gente, porque a história dele é toda verídica, não tem farsa. Toda classe social aceita ele como herói e a família agradece por esse movimento que vem sendo feito para ele. É como a música do João Bosco e Aldir Blanc, vai passar séculos e ainda vão cantar ‘há muito tempo nas águas da Guanabara’", diz o filho Candinho.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/joao-candido-nunca-existiu-na-marinha-disse-lider-da-revolta-da-chibata.shtml
Exercício da Marinha não encerra a crise aberta por desfile em Brasília
General Brito diz que comandantes militares viraram 'artistas circenses' após desfile de tanques dos fuzileiros navais no Distrito Federal
Marcelo Godoy / O Estado de S.Paulo
Caro leitor,
Após ordenar o desfile dos fuzileiros pela Esplanada, em Brasília, Jair Bolsonaro se fará acompanhar, hoje, no campo de instrução de Formosa, em Goiás, dos comandantes militares para assistir ao que o Ministério da Defesa chama de "Demonstração de Manobra Tática para autoridades e imprensa". Lançadores de foguete, tanques e aviões usarão munição real. Segue-se uma tradição. Há quase 80 anos, o exercício era em Gericinó, no Rio. Lá também uma fileira de ministros compareceu ao lado de um presidente – Getúlio Vargas – que incentivava o desembarque militar na política.
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A cena de Vargas em Gericinó marcou o então coronel Humberto de Alencar Castelo Branco. Ele costumava chamar os militares que tinham um pé no quartel e outro na política de "anfíbios". Contou Luiz Viana Filho que, após Vargas, na mensagem de 15 de novembro de 1933, ter julgado "natural que, como qualquer cidadão, o militar exerça atividade política", Castelo decidiu manifestar-se. Assinou um artigo anônimo no jornal Gazeta do Rio, como "Coronel Y".
"O oficial do Exército, como qualquer cidadão, pode aspirar os cargos políticos. Seria odioso vedar-lhe o ingresso ao Parlamento e aos cargos administrativos, fechar-lhe as portas da política, que devem ser acessíveis ao militar que 'evidencie competência e pendores especiais' corno bem diz o chefe do governo em sua mensagem." E completou: "O que, porém, deve ficar assentado é em que situação o oficial fica, quando ingressa na política. O militar, antes de tudo, pertence a uma classe, faz parte de uma hierarquia, concorre em promoções e conta tempo de serviço em seu próprio benefício. Passando a desempenhar uma função civil, é militarmente lógico e individualmente honesto que ele se tome um egresso de sua classe."
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Bolsonaro e seus generais romperam com o ensinamento de Castelo. Não faltam Pazuellos nessa história. E essa foi apenas uma das exceções criadas por um governo que as produziu aos borbotões, 'cupinizando' o Estado e a democracia. Castelo, cujo retrato é exposto na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, preocupava-se com a ciência e a arte militar, com o profissionalismo dos que, em silêncio, treinavam em Gericinó, enquanto colegas compareciam à manobra ao lado de Vargas, trajando terno e gravata. A vida nos gabinetes e salões lhes parecia natural. Tentavam, sobretudo, disfarçar a corrupção dos modos sob a máscara da missão.
Bolsonaro não inventou nada neste País. Nem os generais que o apoiam. O capitão esteve no sábado, dia 14, ao lado do comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, em uma solenidade da Academia das Agulhas Negras. E instigou ambição nos cadetes. Não a do compromisso de se preocupar com a Defesa Nacional, mas a do querer seguir seus passos. Bolsonaro quer ver os jovens na política, que tenham o desejo da Presidência e pensem no orgulho do exercício de um poder, que não é o militar.
A captura do Estado por uma corporação leva inexoravelmente à degradação. Não faltam exemplos no mundo. Da Venezuela a Mianmar. Aos cadetes, o presidente se mostrou como quem voltou a pôr os pés na Academia como comandante supremo das Forças Armadas, algo que, nas suas palavras, "não tem preço". Mas esse preço existe. Quem o paga é a democracia e sociedade brasileiras. Sua defesa ficará descurada e ineficaz, na medida em que a Presidência se transforma na ambição de seus futuros oficiais.
Depois da cerimônia na Aman, o comandante do Exército disse ao jornal O Globo que "não há interferência política na Força". E garantiu que o Alto Comando (ACE) está com o comandante. Ou seja. Não haveria divisões entre bolsonaristas e antibolsonaristas no ACE. Quando esteve há um mês no Rio Grande do Sul, o general Paulo Sérgio se encontrou com o governador Eduardo Leite (PSDB). Discutiam sobre a nova escola de sargentos que a Força estuda abrir, quando o general disse que o Exército tem compromisso com a legalidade e não se envolverá em aventuras.
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O problema seria então apenas Bolsonaro? E o papel dos demais? Quando as manobras e cerimônias militares viram provocações, o espetáculo do poder se transforma em violência simbólica, e a política, em circo. Bolsonaro fez isso em Brasília com a ajuda do comandante da Marinha, almirante Almir Garnier. E quem afirma é um oficial general. Assim escreveu o general Francisco Mamede de Brito Filho, que participou do governo, mas dele se dissociou abertamente. "Com todo o respeito devido aos artistas de circo e teatro mambembe, o que vimos foi a ultrajante transmutação de comandantes militares em profissionais do gênero para oferecer um triste espetáculo de subserviência e anacronismo. Decepção, é o que sinto como militar da reserva."
Com todo o respeito devido aos artistas de circo e teatro mambembe, o que vimos foi a ultrajante transmutação de comandantes militares em profissionais do gênero para oferecer um triste espetáculo de subserviência e anacronismo.
Decepção, é o que sinto como militar da reserva. https://t.co/I3fU7wKHIC
— General Brito (@GeneralBrito) August 10, 2021
A subserviência apontada pelo general Brito é dos que dão mais importância às eleições futuras do que aos desafios do dia a dia. Jean-Paul Sartre escreveu em 1945 um artigo, publicado em Nova York: Qu’est-ce qu’un Collaborateur? O que é um colaborador começa com o relato do príncipe Olaf, o futuro rei Olaf V, da Noruega, que retornara ao país escandinavo após a ocupação alemã. Ele estimava que os colaboradores com o invasor seriam em torno de 2% da população. Quantos são os que apoiam o golpismo de Bolsonaro afinal? Seu número é maior do que os 45 cavaleiros húngaros da Guerra dos 30 anos?
Independentemente de sua dimensão, Sartre dizia que sempre houve colaboradores dissimulados em nossas sociedades. Na França de Vichy, nenhum deles acreditava na derrota da Alemanha, assim como nenhum dos que favorecem Bolsonaro acredita em uma futura derrota nas urnas. Não apenas a ambição e o interesse os movem. Dizem ser realistas; não podem lutar contra fatos. E é fato: Bolsonaro é o presidente. Nas Forças Armadas isso significa o dever de obediência ao comandante supremo.
Mas Garnier foi além. Conforme o relato de Eliane Cantanhêde, propôs a Bolsonaro o desfile dos tanques. E viu tudo como "coisa normal". Bolsonaro é presidente, e o exercício dos fuzileiros se prestaria a mostrar o preparo da Marinha. Seria um fato que tudo fora planejado antes de o Congresso marcar para o mesmo dia a votação da PEC do Voto Secreto. Muito barulho – e fumaça – por nada.
Os colaboradores – dizia Sartre –usam um certo realismo para dissimular o temor de assumir a tarefa dos homens, que consiste em dizer sim ou não de acordo com princípios, em "empreender sem esperança, perseverar sem sucesso". Preferem o cálculo, um certo "apetite místico por mistério, uma docilidade para o futuro, que se renuncia a forjar, limitando-se a desejar, a sonhar". A submissão aos fatos logo se torna submissão aos caprichos do líder. Contenta-se com um papel subalterno, pois, ao menos, haverá um papel a desempenhar na nova ordem. O colaborador é o inimigo que as sociedades democráticas trazem em seu interior.
"A democracia sempre foi um viveiro para os fascistas porque tolera, por natureza, todas as opiniões", disse. Sartre defendia uma política baseada em princípios e leis para que não houvesse liberdade de se agir contra a liberdade. A guerra havia acabado. O nazismo e o fascismo de Vichy foram derrotados. "A resistência mostra que o papel dos homens é dizer não aos fatos mesmo quando parece que a eles nós devemos nos submeter." Há coragem em dizer a verdade. E ela está ligada nas instituições militares à discordância leal. Não adianta culpar Bolsonaro por tudo o que acontece em Brasília quando não lhe faltam sócios e colaboradores.
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O Globo: Pensionistas de militares ganham até R$ 58 mil por mês
Acúmulo de benefícios custa R$ 5 milhões mensais; gastos com pensões de filhas casadas impactam em mais de R$ 200 milhões aos cofres públicos
Por André de Souza, de O Globo
BRASÍLIA — Em meio ao debate sobre a reforma da Previdência, as pensionistas de militares não têm muito do que reclamar. Há na Aeronáutica e no Exército pelo menos 281 mulheres acumulando duas pensões. Elas custam aos cofres públicos mais de R$ 5 milhões por mês, recebendo, em média, quase R$ 19 mil mensais cada uma. Na Marinha, elas são 345, mas não há informações sobre valores. São, em geral, viúvas que, por serem filhas de militares, tiveram direito a duas pensões: dos maridos e dos pais. Na ponta de cima da tabela está uma pensionista da Aeronáutica que recebe todo mês mais de R$ 58 mil.
Além dos pagamentos em dobro para uma mesma pensionista, há um outro aspecto do benefício que fará com que ele continue pesando nas contas públicas por décadas. Até o fim de 2000, qualquer filha de militar falecido tinha direito à pensão, independentemente da idade. Houve então uma mudança na lei, extinguindo o benefício. Quem já recebia, contudo, continuou recebendo. E uma brecha permitiu que novos benefícios fossem autorizados.
Hoje são cerca de 110 mil filhas pensionistas nas três forças. Dados parciais obtidos pelo GLOBO referentes a 37,8 mil mulheres mostram que pouco menos de 23 mil, ou três de cada cinco, conseguiram o benefício após a mudança na lei.
Limite desde 2000
Isso ocorre porque o direito à pensão é definido pela data de entrada do militar em uma das três Forças, e não pela data da morte dele. Desde o fim de 2000, a pensão é garantida apenas a filhos ou enteados de até 21 anos, ou 24 se forem estudantes universitários. Mas, no caso de militares que ingressaram no Exército, Marinha ou Aeronáutica até aquele ano, suas filhas ainda poderão ter o benefício, ainda que os pais venham a morrer só daqui a 50 anos. Para isso, é preciso apenas que o militar pague uma contribuição adicional de 1,5%.
Os dados são da folha de julho de 2018, podendo variar mês a mês, e foram obtidos pelo GLOBO em setembro e outubro após um ano e oito meses solicitando-os por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Eles foram repassados somente depois que a Controladoria-Geral da União (CGU) aceitou um recurso e mandou as três forças levantarem as informações pedidas. A Marinha, cujo prazo para responder terminou em outubro, não cumpriu a decisão.
No caso das mulheres que recebem mais de uma pensão, são 221 na Aeronáutica e 61 no Exército. Os maiores valores são pagos a uma pensionista nascida em 1935. Em 1993, ela obteve da Aeronáutica o direito a uma pensão de R$ 27.254,45. Em 2016, conseguiu outra de R$ 30.999,62, fazendo com que seus vencimentos superem os R$ 58 mil. No Exército, a campeã de rendimentos nasceu em março de 1935, recebendo mais de R$ 52 mil por mês.
A concessão da pensão a filhas de militares passou por várias fases. Uma lei de 1960 permitia o benefício "aos filhos de qualquer condição, exclusive os maiores do sexo masculino". Em outras palavras, podia até mesmo ser casada. Em 1991, a lei foi modificada e passou a permitir apenas filhas solteiras. Mas em 1993 o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou essa alteração inconstitucional e as casadas voltaram a ter o benefício. Em 28 de dezembro de 2000, a lei foi mudada novamente extinguindo o benefício daquele ponto em diante.
O GLOBO também solicitou, via Lei de Acesso, informações sobre os benefícios pagos às filhas casadas. Os dados mostram claramente que a extinção da pensão em 2000 não impediu que ela continuasse sendo concedida. No Exército, são 31.630 filhas casadas que recebem ao todo quase R$ 200 milhões por mês. Delas, 18.182 tiveram a pensão concedida após lei que a extinguiu, recebendo mensalmente mais de R$ 108 milhões. Na Aeronáutica são 6.162, uma despesa de cerca de R$ 35 milhões por mês. Delas, 4.724 obtiveram o benefício após a alteração na legislação no fim de 2000, recebendo no total mais de R$ 26 milhões por mês.
O GLOBO excluiu dos cálculos pensionistas que tinham até 24 anos em julho de 2018, uma vez que, mesmo pela nova lei, elas continuam tendo direito à pensão caso sejam universitárias. A maior parte nasceu nos anos 40, 50 e 60, mas a variação de idade é grande, havendo até mesmo algumas centenárias e outras bem mais jovens. À medida que o tempo passar e elas morrerem, o total gasto com as pensões de filhas de militares vai diminuir, mas num ritmo mais lento do que o esperado justamente em razão de novos benefícios que ainda poderão ser concedidos.
Em maio do ano passado, o GLOBO mostrou que, segundo o próprio Exército, os gastos da força com o pagamento de pensões de filhas de militares, que hoje ultrapassam os R$ 5 bilhões por ano (incluindo tanto as solteiras como as casadas), ainda serão elevados em 2060. A partir de dados fornecidos pelo Exército, foi possível estimar que a despesa daqui a 41 anos ainda estará próxima a R$ 4 bilhões.
O economista Pedro Fernando Nery, consultor legislativo do Senado, sugere como medidas para minimizar o déficit das pensões um aumento das alíquotas dos militares de 1,5% para 6%, e a criação de uma contribuição para as próprias pensionistas. Elas passariam a ter um desconto dos benefícios, no valor de 11%. Nas estimativas do economista, isso poderia gerar uma receita de cerca de R$ 2 bilhões.
— No serviço público, pensionista contribui. Pensionista de militar não. Essa é uma alternativa para essas pensões — afirmou Pedro Nery, acrescentando: — Em que pese a defasagem salarial da carreira militar, os benefícios são maiores mesmo do que a média do serviço público. Muitos países diferenciam a carreira, mas se aposentar cedo com integralidade e deixar pensão vitalícia pra filha não é comum.
Em maio do ano passado, o Exército informou ter gasto R$ 407,1 milhões na folha de abril de 2018 com essas pensões, o que representa um gasto anual de mais de R$ 5 bilhões. Todas as receitas previdenciárias das três forças ao longo de 2018 — e destinadas ao pagamento desse e outros benefícios — ficaram bem abaixo disso: R$ 2,36 bilhões.
Se incluídos todos os gastos previdenciários, como aposentadorias, de Exército, Marinha e Aeronáutica, a despesa total foi de R$ 46,21 bilhões em 2018. Como a receita foi bem menor, o déficit chegou a R$ 43,85 bilhões. Em 2017, o déficit, embora grande, foi consideravelmente menor: R$ 38,85 bilhões. Proporcionalmente, é um rombo maior do que entre os servidores civis federais e muito acima do que o registrado entre os trabalhadores atendidos pelo INSS.
Por meio da assessoria de imprensa, a Marinha afirmou que o órgão se encontra em fase de transição, que as filhas casadas que ganham pensão têm direito adquirido e que, por questões judiciais, podem acessar o benefício. A Aeronáutica, por meio da assessoria de imprensa, se recusou a comentar o assunto. O Exército não retornou o pedido da reportagem.