Marielle
Alvaro Costa e Silva: A cruzada dos marombados
Dois deputados invadem o tradicional colégio Pedro 2º e recebem uma lição dos alunos
Na sexta-feira (11), dois deputados marombados —um estadual, outro federal— invadiram o colégio Pedro 2º, em São Cristóvão, com a desculpa de fazer uma vistoria. Segundo eles, tratava-se de “uma nova cruzada pela educação”. Como não tinham autorização para inspecionar o local, o reitor Oscar Halac tentou impedir a entrada dos dois na instituição fundada em 1837. Eles insistiram e, armados com celulares, fizeram imagens de crianças, também sem autorização.
No melhor estilo Festival de Besteiras que Assola o País, o marombado federal tentou se explicar: “Tiramos fotos de vários locais: de murais, de infiltrações, de salas de aula que tivessem livros ou qualquer coisa também. Nosso intuito não é ideologia. Contudo, se for visto ideologia, é evidente que também iremos catalogar e levar ao ministério para que eles também possam tomar medidas, caso haja medidas a serem tomadas”.
Pelo discurso incoerente e mal construído, o invasor faria melhor se voltasse aos bancos escolares. Mas preferiu parar em frente a um mural e questionar um cartaz com referência a mortes de crianças a tiro nas favelas. O diálogo travado a seguir foi puro Twitter. Reitor: “O número de mortes está imenso no Rio”. Marombado: “De bandido”. Reitor: “Mas tem criança de oito anos que não pode ser bandido”. Marombado: “Já fez a perícia?”. Reitor: “Pra saber se ela é bandida?”. Marombado: “Não, para saber se ela foi morta por policiais”.
Ambos foram expulsos pelos alunos, que improvisaram um coro: “Ô, Marielle, quero justiça, não aceitamos deputado da milícia”. Explica-se: os marombados são aqueles que, em setembro do ano passado, durante um comício, quebraram uma placa em homenagem à vereadora.
Se gostassem de ler e não de puxar ferro, eles conheceriam a obra de Nelson Rodrigues, para quem o aluno do Pedro 2º “é a única sanidade mental do Brasil”.
Bernardo Mello Franco: Marielle, 580 dias sem respostas
Wilson Witzel sancionou lei com nome de Marielle, mas se recusa a prestar informações atualizadas sobre o caso. Depois de 580 dias, as perguntas ainda são as mesmas
Hoje completam-se 580 dias do assassinato de Marielle Franco. Ontem a família contou um ano e sete meses desde a noite do crime. As datas se sucedem tanto que já deixaram de ser notícia. As perguntas permanecem as mesmas: Quem mandou matar? Por quê?
A vereadora foi fuzilada quando voltava para casa após um debate com jovens negras. Era conduzida pelo motorista Anderson Gomes, que ficou na linha de tiro e também morreu na hora. Os criminosos nem se preocuparam em simular um assalto. A execução à queima-roupa, no centro do Rio, deixou todos os sinais de um crime sob encomenda.
Em novembro de 2018, o então ministro da Segurança Pública denunciou uma “grande articulação envolvendo agentes públicos, milicianos e políticos” para impedir a elucidação do caso. Quase um ano depois, o público ainda assiste a um festival de fatos mal explicados e manobras de acobertamento.
No domingo, o portal UOL informou que a Polícia Civil alega ter perdido “imagens relevantes” guardadas num pendrive. O delegado que relatou o sumiço já havia tentado emplacar a versão de “crime de ódio”. Pela tese dele, matadores profissionais teriam tirado um único dia para trabalhar de graça.
O governador Wilson Witzel sancionou uma lei com o nome da vereadora, mas se recusa a prestar informações atualizadas sobre o caso. Um ofício da Anistia Internacional repousa em sua mesa desde o início de setembro. Pede o básico: uma apuração “célere, transparente, independente e imparcial”, que seja capaz de identificar os mandantes do crime.
“A gente compreende o sigilo das investigações, mas não o silêncio das autoridades”, diz a diretora-executiva da Anistia, Jurema Werneck. “Nenhum defensor dos direitos humanos está seguro no Brasil enquanto esse caso permanecer impune”, acrescenta.
Nas últimas semanas, Marielle foi homenageada no Rock in Rio e deu nome a um jardim público em Paris. Enquanto isso, o governo Bolsonaro censurou um programa da TV Brasil que mostrava sua imagem por míseros cinco segundos.
El País: Lula e Marielle, símbolos de duas esquerdas separadas nas ruas
Ato da campanha Lula Livre, semanas depois das homenagens à vereadora assassinada, marcam as diferenças de idade e prioridades temáticas das mobilizações progressistas
O ato realizado em São Paulo neste domingo pedindo a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi marcado por algumas ausências. A pequena multidão reunida na avenida Paulista entre às 14h e 17h para recordar o primeiro ano de prisão do petista era composta, em sua maioria, por pessoas oriundas de uma classe média trabalhadora que possuíam uma média de idade que facilmente beira os 50 anos. Sobrou melancolia e nostalgia por tempos vividos num passado não muito distante, quando o país fazia sua transição para a democracia ou vivia o auge da inclusão social e do pleno emprego durante os Governos do Partido dos Trabalhadores. Mas, salvo exceções, como os militantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) ou do Levante Popular da Juventude, faltaram os jovens. Jovens negros e periféricos que há menos de um mês, no dia 14 de março, engrossavam outra manifestação, a que recordava o primeiro ano da brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.
Lá os protagonistas eram outros. Chamou atenção o fato de que poucos homens e lideranças partidárias — com exceção das deputadas Talíria Petrone, Mônica Francisco, Dani Monteiro e Renata Souza, consideradas as herdeiras políticas de vereadora assassinada — tenham subido no palco montado na Cinelândia, no centro do Rio. No festival de música e poesia organizado por Anielle e Luyara Franco, irmã e filha de Marielle, estavam artistas e coletivos negros e feministas como o Slam das Minas, que dizia que "a justiça não é cega, é daltônica". Também escutava-se uma multidão entoando o samba enredo da Mangueira, campeão do carnaval de 2019, que evoca um país "que não está no retrato" e que deve ouvir "as Marias, Mahins, Marielles, malês". Ao invés de um discurso político como gran finale, o ato terminou com um grande baile funk — porque, quando era adolescente, Marielle fugia de casa para escutar Furacão 2000, recordava Anielle no microfone.
A vereadora representa para Amanda Gabriela, uma estudante de História de 30 anos que participava do ato, "a força da mulher dona de seu mundo, de sua verdade e de seu caminho". Também enxergava um sentido de urgência em estar na rua. "Se ficarmos em casa, sem trazer as pautas para a rua, vamos morrer", dizia.
Em São Paulo, escutava-se o clássico Guantanamera, uma marca da ainda reivindicada Revolução Cubana, apesar do Governo autoritário da ilha, e o vereador Eduardo Suplicy acalentando corações com Blowing in the Wind, de Bob Dylan. Maria de Lourdes, uma bancária aposentada, de 64 anos, viajou de Marília, interior de São Paulo, para acompanhar o ato. "Eu poderia estar em casa descansando na piscina, assistindo de camarote. Mas não consigo. Me sinto fazendo parte de um momento importante da vida do país. E também retribuindo por todas as oportunidades que tive, por terem dado o direito ao voto e aberto o mercado de trabalho para as mulheres", explicava.
Havia jovens com suas famílias e jovens que estavam de passagem. Alguns chegaram a fazer fila para tirar foto com Guilherme Boulos, principal liderança do MTST e candidato a presidente pelo PSOL em 2018. Uma liderança política nova que começa seu discurso com um "boa tarde a todos e todas", ao invés do velho "companheiros e companheiras" que seus colegas tanto usaram neste domingo para defender Lula e a democracia.
Em uma entrevista para este jornal sobre a falta de renovação da esquerda, a filósofa e matemática Tatiana Roque falava sobre como os protestos de junho de 2013, que eclodiu em todo o país, embaralhou o campo progressista. "Novos atores estavam se apresentando ali na cena política e foram rechaçados pela esquerda, que não conseguiu até hoje dar um sentido para junho de 2013 e entender as pautas, as formas de organização, a estética... Não conseguiu entender o movimento". É dela também a explicação de que a esquerda ainda carrega uma ideia de trabalhador muito "homogeneizante" que dificilmente se aplica nos dias de hoje. "Os modos de vida, as experiências, as sensibilidades se tornaram muito mais importantes ao se inserir num coletivo. Não à toa vemos tantos coletivos feministas, negros, LGBTs, de legalização das drogas, de ambientalistas... Os coletivos se organizam mais em função daquilo que os afeta de modo singular", explicava em outra entrevista para este jornal.
"A esquerda precisa de unir em grande frente progressista", dirão uns. Uma frente que chegou a se desenhar nas ruas com o movimento #EleNão, contra o então candidato e atual presidente Jair Bolsonaro. O problema é que questões temáticas e até estéticas parecem separar essas duas esquerdas, que têm pautas em comum e se solidarizam uma com a outra, mas nem sempre se encontram nas ruas. Uma tem Lula como símbolo. A outra tem Marielle Franco como símbolo. Uma acha graça quando o ator José de Abreu se autoproclama presidente e diz que Marielle seria sua primeira dama in memorian. A outra acha a piada ofensiva e gostaria que Marielle tivesse sido a presidente. Uma veste camiseta vermelha. A outra exibe com orgulho cabelo estilo black power. Uma mira com nostalgia o passado e se apoia em antigas lideranças. A outra surge como uma grande potência transformadora, aponta questões consideradas mais urgentes — o racismo, o machismo e a LGBTfobia que mata milhares diariamente, por exemplo — e quer ser protagonista do futuro, não apenas mera espectadora.
Lula e Marielle representam, ontem e hoje, lutas pela democracia mais que legítimas. Nessa equação está uma imensa massa de pessoas historicamente abandonada pelo Estado que ainda tem o petista como principal referência e fizeram que Fernando Haddad chegasse ao segundo turno no ano passado. Mas isso já não é suficiente. Resta saber agora quando essas esquerdas voltarão a confluir, se é que isso acontecerá, em um novo projeto que volte a conquistar os setores populares, geralmente ausentes das ruas. Não é fácil.
Ricardo Noblat: O Estado do Crime
Por que mataram Marielle
Enquanto não se souber quem mandou matar a vereadora Marielle Franco, e por que, a prisão dos executores do assassinato de pouco adiantará para dar início ao que de fato importa – o eventual desmanche do Estado do Crime. Pois foi isso o que se tornou o Estado do Rio de Janeiro.
O Brasil é um dos países campeões do mundo em número de homicídios. São mais de 66 mil por ano. O crime organizado está espalhado por toda parte. Mas foi no Rio que as facções criminosas e os grupos paramilitares chamados de milícias capturaram o aparelho do Estado.
Não existe o Estado de um lado e o Estado do Crime do outro. Os dois são uma coisa só. Cerca de 2 milhões e meio de cariocas vivem em regiões onde a presença do Estado do Crime se faz sentir de maneira avassaladora, permanente e cruel. Mas os demais não estão a salvo de suas consequências.
Ali, o Estado de Direito foi praticamente abolido. Há segmentos dele que ainda sobrevivem, embora cada vez mais enfraquecidos, minados por dentro. A reconstrução do Estado de Direito cobraria muito tempo e um preço que talvez o país, e especialmente os cariocas, não estejam dispostos a pagar.
É o que ouço há anos de autoridades federais da área de segurança pública. É o que a sucessão dos fatos parece demonstrar. O esclarecimento da morte de Marielle, por si só, infelizmente não significará muita coisa. Tristes tempos, estes, que custarão a passar. Se é que, um dia, de fato passarão.
Bolsonaro quer saber quem mandou matá-lo
Eles contra nós
Ninguém escolhe os pais que tem, nem os filhos, quanto mais os vizinhos. Mas presidente da República, os habilitados a votar escolhem. E também seus representantes no parlamento.
Bolsonaro, que à época do assassinato da vereadora Marielle Franco preferiu nada comentar a respeito, ontem, provocado por jornalistas, abriu a boca para dizer platitudes e mais uma grossa besteira.
A besteira, e tomara que fosse apenas uma besteira: ele disse que está interessado em saber quem encomendou sua morte ao pedreiro Adélio Bispo que o esfaqueou em Juiz de Fora.
Do seu ministro da Justiça e da Segurança Pública, Bolsonaro já ouviu como resposta que Adélio agiu sozinho, por conta própria, e que o atentado não foi encomendado por ninguém.
Foi o que concluíram dois inquéritos da Polícia Federal que viraram pelo avesso o presente e o passado de Adélio. Peritos indicados pela Justiça atestaram também que Adélio é um doente mental.
A inconformidade de Bolsonaro com os resultados nada tem de inocente, nem trai apenas um justo sentimento de revolta com o que quase lhe custou a vida. Ele pode ser tosco, mas bobo, não.
Bolsonaro precisa manter viva a narrativa de que foi vítima de uma conspiração da esquerda, empenhada em evitar sua eleição. Se o PT inventou o nós contra eles, Bolsonaro inventou o eles contra nós.
Depende disso para manter sua tropa coesa. Depende disso para governar. Depende disso para se reeleger ou eleger o seu sucessor. Enfim, depende disso para não passar à história como uma fraude
Bernardo Mello Franco: Saber quem puxou o gatilho é só o começo
Mais importante que saber quem matou Marielle é identificar os mandantes do crime. O espetáculo de ontem deixou um cheiro de exploração política no ar
A prisão de dois acusados de matar Marielle Franco está longe de solucionar o caso. Mais importante que saber quem puxou o gatilho é identificar os mandantes do crime, que também tirou a vida do motorista Anderson Gomes. Pelo que se ouviu ontem, a Polícia Civil e o Ministério Público ainda vão demorar a apresentar respostas convincentes.
O delegado Giniton Lages, chefe da Delegacia de Homicídios, disse não ter “nem ideia” de quem ordenou a execução. “Hoje não sabemos se havia mandantes”, afirmou. Ele sugeriu que o ex-PM Ronnie Lessa, apontado como autor dos tiros, pode ter agido sozinho porque tinha “ódio a políticos de esquerda” e “resolvia diferenças ideológicas com violência”. Essa versão não combina com as características do crime nem com o perfil do acusado.
É difícil acreditar que um crime premeditado, que exigiu dias de planejamento, tenha como motivo uma mera antipatia pela vereadora. Além disso, Lessa era uma figura conhecida no submundo policial. Passou dos batalhões da PM para a guarda pessoal de um chefão do crime na Zona Oeste do Rio.
Nos últimos anos, o ex-sargento diversificou os negócios e a clientela. Ele foi preso num condomínio de alto padrão na Barra da Tijuca, onde é vizinho do presidente Jair Bolsonaro. Também tem casa em Angra dos Reis e circula em carro blindado. Até 2017, recebia pouco mais de R$ 7 mil de salário.
Depois de um ano de cobranças, é natural que os investigadores se sintam tentados a apressar a conclusão do caso. No entanto, restam inúmeras perguntas sem resposta. Uma delas foi levantada em janeiro, quando a Polícia Federal detectou uma armação para atrapalhar a identificação dos assassinos. A quem isso interessa?
O espetáculo de ontem também deixou um cheiro de exploração política no ar. O governador Wilson Witzel convocou a imprensa ao Palácio Guanabara e tentou se apresentar como chefe da investigação. As promotoras do caso foram convidadas, mas preferiram não participar do circo. Na campanha, Witzel festejou a quebra de uma placa com o nome de Marielle.
Luiz Carlos Azedo: Os fantasmas de Marielle e Anderson
“O presidente Bolsonaro vive aquela situação do devoto que quanto mais reza, mais assombração aparece”
Os fantasmas da vereadora Marielle Franco (PSL) e do motorista Anderson Gomes atormentam o clã Bolsonaro, por causa do envolvimento político e eleitoral com as milícias fluminenses. Por isso mesmo, não deixa de ser muito relevante a afirmação de Jair Bolsonaro no sentido de que as investigações cheguem aos mandantes do crime. Para a Divisão de Homicídios da Capital, porém, o caso é um crime de ódio, ou seja, estará resolvido com a punição dos dois acusados: o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz.
O presidente Bolsonaro vive aquela situação do devoto que quanto mais reza, mais assombração aparece. Ronnie foi preso em casa, no condomínio na Avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, onde o presidente também tem residência. Pra complicar, a filha de um dos assassinos namorou um dos seus filhos. Mera coincidência, disse a promotora que investiga o caso, Simone Sibílio, também coordenadora do Gaeco. Afinal, é muito comum o filho namorar a filha do vizinho.
“É possível que tenha um mandante. Eu conheci a Marielle depois que ela foi assassinada. Não a conhecia, apesar de ela ser vereadora lá com meu filho no Rio de Janeiro. E também estou interessado em saber quem mandou me matar”, disse Bolsonaro. Chegar aos mandantes do crime não é uma tarefa fácil, mas é uma necessidade para separar o joio do trigo e desfazer mal-entendidos. O presidente da República precisa exorcizar esses fantasmas, até porque o caso Marielle Franco pautou os debates na Câmara, ontem, com a oposição na ofensiva; e a base governista, baratinada.
A Operação Lume, que investiga o caso, tem possibilidades de puxar o fio da meada. Realizou 32 mandados de busca e apreensão contra os denunciados para apreender documentos, telefones celulares, notebooks, computadores, armas, acessórios, munição e outros objetos. Houve buscas em dezenas de endereços de outros suspeitos.
Pacto macabro
Havia um pacto corrupto na política fluminense, cuja relação com as milícias passava pelos chefões do jogo do bicho. O chamado “escritório do crime” era uma espécie de estado-maior das milícias encarregado das execuções e cobranças no submundo do crime organizado. Os principais atores desse esquema são conhecidos, bem como suas conexões com a banda podre das polícias Civil e Militar. Com a prisão do ex-presidente da Assembleia Legislativa Jorge Picciani (MDB), a mediação política com os chefões do bicho e os líderes das milícias deixou de existir. O assassinato de Marielle foi o recado de que as milícias assumiram a hegemonia desse pacto macabro.
Não foi à toa que o interventor federal no Rio de Janeiro, general Braga Neto, e o então secretário de Segurança, general Richard Nunes, quando no comando das investigações do caso, ou seja, até dezembro de 2018, não chegaram aos criminosos. Havia uma barreira de proteção aos envolvidos, que só foi desnudada pela força-tarefa da Polícia Federal ao desmontar a tese de que o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, e o vereador Marcello Siciliano (PHS) eram autor e mandante do crime, respectivamente. No esquema clássico dos crimes de mando, porém, eram os “bodes”.
A força-tarefa entrou no caso em outubro do ano passado, depois que Curicica denunciou à Procuradora-Geral da República, Rachel Dodge, que estaria sendo coagido pela Delegacia de Homicídios da Capital (DH) a assumir o crime. À época, Curicica acusou a DH de receber R$ 200 mil por mês de propina. Segundo o miliciano, esse “fixo” sofria acréscimos quando os investigadores negociavam imagens de câmeras de segurança que poderiam identificar os assassinos e servir de prova nos inquéritos. O ex-PM está preso no presídio de segurança máxima de Mossoró (RN), para evitar uma “queima de arquivo”.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-fantasmas-de-marielle-e-anderson/
Bernardo Mello Franco: Marielle, um ano depois
Na próxima quinta, o assassinato da vereadora faz um ano. Até aqui, a apuração revelou mais sobre a polícia do Rio do que sobre o crime
Eram quase cinco da madrugada quando a Mangueira revelou o segredo. Na última ala da escola, grandes bandeiras em verde e rosa exibiram o rosto de Marielle Franco. Era a surpresa do desfile que já começou a homenagear a vereadora no samba-enredo. “Brasil, chegou a vez / De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”, dizia o refrão, que embalou o 20º título da Estação Primeira.
O assassinato de Marielle e do motorista Anderson Gomes completa um ano na próxima quinta-feira. O crime continua sem castigo, apesar das seguidas promessas de autoridades federais e estaduais.
Em 10 de maio de 2018, o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, inaugurou a série de bravatas. “A investigação do caso Marielle está chegando à sua etapa final, e eu acredito que em breve nós devemos ter resultados”, anunciou.
Em 31 de agosto, foi a vez do general Braga Netto, que comandava a intervenção federal no Rio. “Estamos perto. Até o fim do ano, quando a intervenção tiver sido concluída, o caso já deverá estar solucionado”, prometeu.
Em 1º de novembro, o delegado Rivaldo Barbosa garantiu que o crime estaria “muito próximo de sua elucidação”. Três semanas depois, o então secretário estadual de Segurança, Richard Nunes, disse que o caso seria resolvido até o fim do ano. “Alguns participantes nós temos, com certeza”, assegurou o general.
O ano acabou, a intervenção passou, e as promessas continuaram a ser lançadas ao vento. Em 12 de janeiro, o novo governador, Wilson Witzel, disse que os investigadores estavam “próximos da elucidação do caso e, evidentemente, da prisão daqueles que estão envolvidos”. “Talvez isso aconteça até o final desse mês”, acrescentou.
Na campanha, Witzel participou de um ato em que dois aliados quebraram uma placa com o nome de Marielle. Um deles, o deputado estadual Rodrigo Amorim, circulou pela Sapucaí como bicão na noite em que a Mangueira homenageou a vereadora.
Até aqui, a apuração revelou mais sobre a polícia do Rio do que sobre o crime que ela deveria resolver. No mês passado, a PF fez buscas para desvendar “ações que estariam sendo praticadas com o intuito de obstaculizar as investigações”. Em português corrente, isso significa que houve uma operação abafa para encobrir mandantes e autores dos assassinatos.
O governo federal guarda um estranho silêncio sobre as execuções. Essa atitude remete a um ano atrás, quando Jair Bolsonaro foi o único candidato à Presidência que se recusou a comentar o caso. Dos 70 deputados estaduais, seu filho Flávio foi o único a votar contra a concessão da Medalha Tiradentes como tributo póstumo à vereadora.
Uma das linhas de investigação liga o assassinato de Marielle ao Escritório do Crime, grupo de extermínio chefiado por milicianos. Em janeiro, vieram à tona os laços do clã presidencial com Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado como fundador da quadrilha. Ex-capitão do Bope, ele foi condecorado por Flávio e elogiado por Jair na tribuna da Câmara. Sua mãe e sua mulher ganharam cargos no gabinete do primeiro-filho, hoje senador. Nóbrega está foragido há 47 dias.
El País: Ameaças a defensores dos direitos humanos colocam a democracia brasileira em xeque
Polícia desbaratou plano de milicianos para executar deputado do PSOL Marcelo Freixo. Brasil é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções
Na última sexta-feira, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) comparecia na frente de jornalistas na Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ) para comentar a revelação feita pelo Jornal O Globo, um dia antes, de que sua vida poderia não ter passado deste sábado. A polícia carioca havia descoberto que milicianos, grupos paramilitares formados por ex-policiais que dominam atividades ilícitas em bairros pobres, planejavam matá-lo. Se a ação não tivesse sido descoberta, ele poderia ter sido o segundo político de visibilidade a ser morto na cidade em menos de um ano —em março, a vereadora Marielle Franco, também do partido de esquerda PSOL, foi fuzilada em plena rua, junto a seu motorista, em uma das áreas mais populares do centro, em um crime até hoje não esclarecido.
A coletiva chamada pelo político se deu em uma semana simbólica: no mesmo dia em que a brutal execução de Marielle completava nove meses; um dia depois do aniversário de 50 anos do Ato Institucional de número 5 (AI-5), que representou o endurecimento da ditadura militar brasileira; quatro dias depois que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fez 70 anos. E em meio a uma preocupação crescente dos defensores de direitos humanos do país com um possível cenário de maior vulnerabilidade a partir do ano que vem, quando chega ao poder Jair Bolsonaro, um presidente de extrema direita que declarou, pouco antes de ganhar a eleição, que era preciso "metralhar a petralhada" ou que costumava repetir o bordão "direitos humanos para humanos direitos".
As ameaças contra Freixo são a ponta do iceberg e se estendem não só a outras figuras públicas, como também às que atuam longe dos holofotes, principalmente no campo, com a defesa da Reforma Agrária, dos direitos indígenas ou dos recursos naturais. De acordo com a Front Line Defenders, que utiliza dados da ONG brasileira Comissão Pastoral da Terra, o país é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções entre as mais de 300 registradas em todo o mundo. Isso coloca o país no seleto grupo de nações, junto a Colômbia, México e Filipinas, que concentra a maior parte destes homicídios. "Essa questão do Marcelo Freixo é como se coroasse isso tudo hoje. A gente não consegue ter esclarecida a morte da Marielle, e agora a gente tem uma ameaça a uma pessoa diretamente ligada a ela", argumenta Eliana Sousa, ativista e fundadora da ONG Redes da Maré.
Freixo, que há dez anos presidiu na Assembleia do Rio uma investigação contra as milícias, foi eleito neste ano deputado federal. Atuará em Brasília com escolta da polícia legislativa ao mesmo tempo que espera continuar contando com sua escolta pessoal, com ele há dez anos e fornecida pela Secretaria de Segurança do Rio, nos dias em que estiver em seu Estado. "A morte de Marielle tem que ser esclarecida. Foi um grupo político, mas que grupo foi esse? Foi um dos crimes mais sofisticados da história do Rio. Que grupo é capaz no século XXI de mandar matar uma vereadora?", cobrou o deputado. "Enquanto isso não acontecer não tem como dizer que existe democracia no Rio". "Defensor de direitos humanos não é defensor de bandidos. Defensor de direitos humanos defende a lei. E a lei não pode permitir que um grupo tão criminoso domine a vida das pessoas", complementa Freixo.
Em Brasília, Freixo terá como companheiro de bancada partidária o deputado Jean Wyllys, que também relatou estar recebendo ameaças. Ele foi um dos maiores rivais de Bolsonaro na Câmara federal e o confrontou diretamente quando o agora presidente eleito homenageou o coronel Brilhante Ustra, torturador de Dilma Rousseff na ditadura, durante a votação do impeachment dela, em 2016. Após a fala de Bolsonaro, Wyllys cuspiu em direção a ele.
As ameaças ao deputado federal fizeram com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitasse ao Governo brasileiro que tome medidas para proteger a sua vida, ao mesmo tempo sejam investigadas as ameaças. "A decisão da CIDH é uma reação da comunidade internacional à inação do Estado brasileiro diante de uma situação que tem se prolongado no tempo e que, no último ano, agravou-se muito", disse o parlamentar ao EL PAÍS. "As constantes ameaças de morte que recebo há anos, e que passaram a incluir referências explícitas à minha família, se intensificaram especialmente durante o processo de impeachment da presidenta Dilma e depois do assassinato da Marielle", acrescentou Wyllys. "Não posso ir a lugar nenhum sem a escolta, porque essas são as condições para me proteger, de modo que é como se eu estivesse em cárcere privado sem ter praticado crime nenhum, sendo eu a vítima. Isso tem afetado muito minha saúde física e emocional."
A antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) que atua na defesa dos direitos das mulheres, também teve sua vida completamente modificada recentemente. Ela recebeu ao longo dos últimos meses dezenas de ameaças de morte e acabou incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo federal, sendo aconselhada a deixar o país, o que fez. As ações contra ela, que atua publicamente há ao menos 15 anos, não são novidade, mas se tornaram mais graves depois de ela acionar o Supremo Tribunal Federal em prol da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. “Sou vítima de ataques que colocam em risco o sentido de democracia no Brasil”, afirmou ao EL PAÍS.
Participação do Estado
"Em um país como o nosso, ninguém que luta está protegido. Existem várias medidas que devem ser tomadas pelas autoridades para garantir um ambiente e valorização para essas pessoas", argumenta Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil. Ela diz que "esse tipo de ameaça e de assassinato de defensores não acontecem sem a participação do Estado" e destaca a diferença entre as mortes que são fruto "de um ambiente de extrema violência armada" e o assassinato de ativistas pelos direitos humanos. "Eles foram calados para que essas violações [aos direitos humanos] continuem. No caso de ameaças a parlamentares, como Freixo, Wyllys e Marielle, existe uma ameaça à democracia adicional uma vez que são "ferramentas, independentemente de sua coloração partidária, para o exercício" dela.
Atila Roque, diretor da Ford Foundation no Brasil e ex-diretor da Anistia Internacional no país, concorda que "todos e todas que se empenham na luta pelos direitos humanos" no Brasil já se viram diante de alguma ameaça. "Comigo não foi diferente e lidei tomando as precauções e adotando os protocolos de segurança que me foram então recomendados".
Na década de 1980, ainda muito jovem, Roque trabalhava diretamente com conflitos agrários e convivia com o assassinato "quase cotidiano" de lideranças camponesas, religiosas e advogados que atuam em defesa do direito a terra. "Um dos crimes que me marcou mais profundamente foi o assassinato do Padre Josimo Tavares, em 1986, poucos dias antes de um encontro que tínhamos marcado em Imperatriz, Maranhão. Acabei indo para o seu enterro". "Essa é também uma rotina na vida da juventude de favelas e periferias, especialmente dos jovens homens e mulheres negros que vivem o cotidiano do racismo e da militarização dos territórios onde vivem", acrescenta.
Sousa, a fundadora da ONG Redes da Maré que também já foi alvo de ameaças em diferentes momentos, acredita que a vulnerabilidade hoje é maior porque também as denúncias são maiores. Há mais resposta e resistência daqueles que são vítimas de uma violência que também é causada pelo próprio Estado. "Depois de uma operação na favela, sempre no final você tem uma fala oficial que vai para o jornal que cria uma narrativa sobre o resultado da operação e que coloca os moradores em condição de suspeitos. Hoje, por conta das redes e outros meios, você acaba conseguindo pautar outras vozes e mostrar que a coisa não é bem assim. Se por um lado isso é positivo, expõe o que acontece, por outro nos torna mais vulneráveis", argumenta ela. Existe, segundo diz, um projeto que "tem como ideologia um enfrentamento que gera mais violência", o que se materializa em uma ameaça à democracia porque "nas áreas de favela e periferias as mesmas leis não são obedecidas ou vistas porque ali é uma favela, e as pessoas não são reconhecidas como pessoas de direito". Se uma democracia presume direitos iguais para todos, "um morador da favela não vive essa experiência de direitos estabelecidos, como o de ir e vir".
O Estado de S. Paulo: Milicianos mataram Marielle por causa de terras, diz general
O crime estava sendo planejado desde 2017, muito antes de o governo federal decidir decretar a intervenção federal no Rio, diz secretário de segurança pública do Rio
Por Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - A vereadora Marielle Franco (PSOL) foi morta porque milicianos acreditaram que ela podia atrapalhar os negócios ligados à grilagem de terras na zona oeste do Rio. O crime estava sendo planejado desde 2017, muito antes de o governo federal decidir decretar a intervenção federal no Rio. As revelações foram feitas pelo general Richard Nunes, secretário da Segurança Pública do Rio. Nunes, que assumiu a pasta no dia 27 de fevereiro, relatou os casos que encontrou na secretaria e diz que vários generais que vão assumir cargos na área no próximo ano procuraram o comando da intervenção no Rio para levar o modelo de gestão para outros Estados. Leia, a seguir, sua entrevista:
O senhor imaginava o tamanho do problema que encontraria aqui?
Imaginava. Primeiro porque sou do Rio e acompanhei a evolução do quadro da Segurança no Estado. Segundo, porque comandei a força de pacificação na Maré (ocupação militar de complexo de favelas, zona norte do Rio, de abril 2014 a junho de 2015), vendo de perto no nível tático, na ponta da linha, o que estava acontecendo no Estado e, depois, como comandante da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) era um tema de estudo nosso. Não me surpreendeu, mas o fato de não me surpreender não significa que eu não tenha me deparado com ações que eu não imagina.
Dos R$ 1,2 bilhão enviados pelo governo federal, por enquanto o gabinete da intervenção conseguiu empenhar 39,06% do total ou R$ 468 milhões. Qual foi a dificuldade para se conseguir gastar esse dinheiro?
Esse é um aspecto fundamental do início da ação: compreender as restrições impostas pelo regime de recuperação fiscal; Isso não estava claro para ninguém. O regime de recuperação fiscal estabelecido em setembro de 2017 nos causou embaraço de todas ordem. Tanto que a verba federal alocada aqui teve de ser administrada por uma estrutura que não existia, que nós tivemos que criar. Ai foi uma luta contra o tempo. Em uma intervenção de curta duração, tivemos de montar esse processo ao mesmo tempo em que montávamos a estrutura para fazer as licitações. No âmbito da secretaria, colocamos em funcionamento o Fised, o Fundo Estadual de Segurança Pública e e Desenvolvimento Social. Ele é uma dádiva. São 5% dos royalties do petróleo. Neste ano, já superamos R$ 300 milhões e no próximo nossa expectativa é superar R$ 400 milhões.
Como estava frota da polícia quando o senhor chegou?
O índice de indisponibilidade era de 50%. Metade da frota sem condições de rodar e as últimas aquisições datando dos grandes eventos, coisa de cinco anos. A crise econômica que se abateu sobre o Rio provocou dois efeitos graves: o atraso de pagamento de salário e o Estado deixar de honrar contratos, como o de manutenção. Os carros iam enguiçado e sendo encostados. Tinha batalhão com menos de dez viaturas para rodar. O policiamento virou a pé com consequências gravíssimas para os indicadores de criminalidade. Não tínhamos ostensividade. Mesmo que tivesse policial não tinha viatura para transportá-lo.
Víamos a criminalidade se expandir e não víamos mais a polícia. A polícia desapareceu. A polícia estava a pé. E a desmotivação era completa. O quadro que encontramos em fevereiro era muito negativo. Com pagamentos atrasados – o 13.º só foi sair no final de abril –, sem equipamento, sem capacidade de mobilização, pois algumas verbas de premiação não eram pagas, como o regime adicional de serviço, no qual o policial trabalha na folga. Criou-se um descrédito, porque a crise econômica cria uma crise moral e as pessoas começam a deixar o interesse público em segundo plano. Era um salve-se quem puder. Tivemos de atacar fortemente isso aí, e foi na garganta, pois não tínhamos o que entregar. Era pegar o pessoal e dizer: acredite que vai melhorar. Nossa intervenção foi de gestão, de atrair os policiais com maior senso de liderança para os postos chaves. Hoje, a situação da frota não é a ideal, mas nós conseguimos fazer a entrega e comprar cerca de 2 mil viaturas. Isso com recursos do Estado. As com recursos federais tem mais 1,5 mil viaturas que devem chegar de um licitação de R$ 200 milhões (hoje a PM do Rio tem 3,5 mil viaturas e a Polícia Civil tem 1,3 mil viaturas). E também criamos uma estrutura logística para a manutenção.
O senhor considera que esse foi o principal efeito da intervenção?
Esse foi o grande diferencial dessa intervenção, o legado que acredito que vai ser apropriado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. O general Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira virá aqui se reunir comigo e com o general Braga Netto; o (futuro) secretário de Segurança de São Paulo, o general João Camilo Pires de Campos, o futuro secretário do Paraná, general Luiz Carbonell, estiveram aqui conversando. Está havendo um interesse nas experiências da intervenção federal que possam ser úteis em outras partes do País. E o grande diferencial foi exatamente esse. Fizemos a intervenção com propósito muito mais de reestruturar os órgãos do que de tratarmos do dia a dia da criminalidade. Segurança Pública é muito absorvida pela temática da criminalidade, mas ela não é só isso. Nossa preocupação é que o legado da intervenção tenha prosseguimento. O maior risco que a gente corre aqui é a divisão da secretaria, como pretendido pelo novo governo. É como acabar com o Ministério da Defesa. Como acabar com essa estrutura e fazer a integração? Já deixei patente em várias reuniões. Eu e o general (interventor) Braga Netto, mas o tempo vai passando, e a gente vai ficando cada vez mais preocupado. Não adianta ficar pedindo GLO (operações de garantia da lei da ordem com emprego de tropa das Forças Armadas na segurança pública). Esse negócio de GLO virou uma panaceia.
Não. GLO morre com a intervenção, no dia 31 de dezembro.
O senhor é crítico do modelo das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Ele deve ser abandonado?
A minha crítica não é ao modelo em si, mas à maneira indiscriminada como ele foi empregado. Imaginar que em uma área de atuação de um batalhão existe uma organização comandada por um oficial inferior com efetivo superior ao do batalhão que não presta contas ao batalhão. Isso é um contrassenso. Há locais em que você pode ter uma polícia de proximidade dentro do conceito de pacificação perfeitamente e fazendo isso integrado ao batalhão da área. Não extinguimos as UPPs. Fizemos uma rearticulação. Sete delas deixaram de ser UPPs e passaram a ser companhias de batalhão, que é o caso da Cidade de Deus (favela na zona oeste do Rio). Ali não tem sentido fazer uma UPP. Como faz polícia de proximidade em uma área enorme daquela? É colocar no ombro da polícia uma responsabilidade maior do que ela pode assumir. E começa a dar errado, pois o policial se torna refém de uma estrutura montada no terreno inadequada para o enfrentamento daquela realidade. Imobiliza a polícia. Ela precisa ter dinamismo, deslocar-se no terreno, ter liberdade de ação. Determinadas UPPs se tornaram uma prisão para os policiais. Eles tinham de permanecer em bases sem a menor condição de fazer o patrulhamento daquela área. Foi um desperdício de recursos e daí a perda de credibilidade. Seria melhor preservar as UPPs naquelas iniciais para que elas se consolidassem. Porém, o interesse político falou mais alto e houve expansão das UPPs para outras áreas onde não havia condições de dar certo porque naquela época era uma marca positiva e trazia dividendos político-eleitorais. Tivemos de romper com isso e só a intervenção podia fazer isso. Pela autonomia política que desfrutamos a gente pode fazer esse movimento sem causar maiores comoções. O modelo UPP não está proscrito. Está sendo revisto e poderá funcionar em outras regiões do País.
General, o caso Marielle foi uma afronta à intervenção?
Não foi. O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar. Era um crime que já estava sendo planejado desde o final de 2017, antes da intervenção. Isso aí nós temos já; está claro na investigação. O que aconteceu foi o contrário. Os criminosos se deram conta da dimensão que tomou o crime por ter sido cometido na intervenção. Não podemos entender como afronta porque eu assumi em 27 de fevereiro. E dei posse ao comandante da PM no dia 14 de março, que foi o dia do crime. Estávamos iniciando um trabalho. E hoje com os dados de que dispomos de 19 volumes de investigação fica claro que se superestimou o papel que ela desempenhava.
Que papel?
Ela estava lidando em determinada área do Rio controlada por milicianos, onde interesses econômicos de toda ordem são colocados em jogo. No momento em que determinada liderança política, membro do legislativo, começa a questionar as relações que se estabelecem naquela comunidade, afeta os interesses daqueles grupos criminosos. É nesse ponto que a gente precisa chegar, provar essa tese, que está muito sólida. O que leva ao assassinato da vereadora e do motorista é essa percepção de que ela colocaria em risco naquelas áreas os interesses desses grupos criminosos.
Como ela colocaria em risco?
A milícia atua muito em cima da posse de terra e assim faz a exploração de todos os recursos. E há no Rio, na área oeste, na baixada de Jacarepaguá problemas graves de loteamento, de ocupação de terras. Essas áreas são complicadas.
A atuação dela seria de fazer...
Uma conscientização daquelas pessoas sobre a posse da terra. Isso causou instabilidade e é por aí que nós estamos caminhando. Mais do que isso eu não posso dizer.
O sr. ou a intervenção receberam pressões por esse crime?
Zero. O que há é muita especulação. Houve um movimento para tentar federalizar esse investigação totalmente desprovido de fundamento. Então foi um incômodo que não auxiliou em nada a investigação. Houve essa sugestão sob a suspeita de que a Polícia Civil não estaria fazendo um trabalho isento. Isso não tem fundamento. Temos de ter muito cuidado em não dar voz a criminosos que se encontram preso e colocam em xeque o processo de investigação (ele se refere á acusação feita pelo miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, um dos suspeitos de participar do crime). É um absurdo em uma nação democrática colocar em xeque uma investigação a partir do depoimento de um preso.
Esse criminoso faz isso como peça de sua defesa?
É lógico. Ele está sendo muito bem tratado por certa parcela da mídia e de determinadas instituições que estão dando voz para ele. Aquilo ali não é uma delação premiada coisa nenhuma. Está colocando sombras onde as próprias famílias (das vítimas) estão seguras de que se está fazendo o melhor trabalho possível.
Hoje depois desse tempo todo pode-se dizer que as milícias são hoje um perigo maior para o Rio do que as facções criminosas?
Acho que se equivalem. O que há de perigoso nas milícia é o modo como ela explora determinadas atividades. Ela é mais insidiosa. Porém, facções de tráfico têm adotado práticas de milícia e vice-versa. Então, como secretário de segurança, não há como estabelecer um grau de risco diferenciado. No momento em que a milícia passa a aceitar o tráfico de drogas na comunidade de sua presença e quando o traficante também se dedica a modalidades de crimes semelhantes ao que a milícia tem realizado, para mim o cenário indica que temos de combater ambos esses movimentos criminosas com a mesma intensidade.
Não tenho ideia. Nossa luta é contra o tempo; é coletar muitos dados que precisamos checar, de característica técnica, em um quadro de deficiência estrutural grande que encontramos. Esse cruzamento de dados, para poder fechar em cima dos autores, é demorado e complicado; filtros têm de ser feitos com precisão para que não se cometa erro. O erro que a gente não pode cometer não é deixar de anunciar até 31 de dezembro. O erro é anunciar precipitadamente e essas pessoas virem a ser inocentadas por um inquérito mal concluído. Não sou um ator político, até porque continuo no Exército, vou seguir minha vida. Para mim, o mais grave seria tentar, de forma precipitada, apresentar alguns nomes que no futuro não sejam condenados. Centenas de depoimentos foram colhidos. Há 19 volumes de investigação. Nossa expectativa é resolver.
Alguns dos suspeitos estão mortos?
É provável que sim.
Queima de arquivo?
Queima de arquivo ainda é difícil de caracterizar. Mas porque são pessoas que vivem da prática de crimes com certa frequência estão mais sujeitos a esse tipo de desfecho.
Uma das críticas à polícia do Rio é sua letalidade. De 2013 a 2017, o Exército e a Marinha em suas operações mataram 19 pessoas e um militar morreu. Esse é nível de confronto menor do que os batalhões da PM. O que faz a ação das Forças Armadas tenham um nível de confronto menor do que a das polícias?
A capacidade dissuasória. A questão da mortalidade é mais complexa. Comparar o Rio com outros Estados é complicado. O Rio convive com três facções de tráfico que disputam espaço, além de grupos milicianos. É uma dinâmica de enfrentamento totalmente diferente do que ocorre em outros Estados, onde uma facção tem hegemonia. Então, temos no Rio uma quantidade de armamento nessas áreas considerável. Isso faz com que a polícia se depare com confrontos imprevistos. Nossa orientação é que operações em comunidade sejam feitas com absoluta superioridade de meios para dissuadir o enfrentamento. Não tem havido atuação indiscriminada da polícia. Isso é um exagero.
É necessário mudar procedimentos operacionais?
É questão de treinamento, que vamos tentar aperfeiçoar. Esse ano, tudo indica, vamos ter redução de mortes de policiais em confronto. Esse aumento de mortes em confronto com a polícia se tornou mais debatido porque outros indicadores de violência no Rio caíram, como roubos e homicídios, e esse não caiu na mesma proporção, pois tem havido uma atuação da polícia mais ostensiva. A polícia recuperou a ostensividade que havia perdido. Ela está mais presente. Muitos casos caracterizam a legítima defesa dos policiais. Eu não comparo com as Forças Armadas porque seria até uma deslealdade com as polícias. Quando ocupei a Maré, tínhamos a superioridade absoluta de meios. Ai de quem nos enfrentasse. Não nos enfrentávamos porque não eram loucos.
Sempre direcionei minha atuação como secretário para o nível político-estratégico e deixei o operacional e tático mais com diretrizes, pois não entendo que se resolva em nível tático um problema é que natureza estratégica. Mas é lógico que um criminoso armado com fuzil é uma ameaça. Não importa se ele está no ombro ou na mão. Alguém que porte fuzil sem ser policial ou militar é uma ameaça à sociedade e é lícito, no meu entendimento, que ele seja engajado pela polícia diante de atitude tão agressiva. Mas não é com regras de engajamento que se resolve isso. É com mudança cultural, para que a sociedade toda entenda que isso é uma ameaça. Tratar um criminoso desses como vítima do sistema é extremamente grave e infelizmente esse discurso ainda é escutado aqui e acolá.
Com o senhor aqui, o (João Camilo Pires de) Campos em São Paulo, e o (Luiz Felipe)Carbonell no Paraná, o que o senhor acha que se deve essa opção do mundo político de ir procurar nas Forças Armadas gerentes para a Segurança Pública?
A sociedade chegou a um ponto de amadurecimento de entender que nossa maior crise era ética, muito mais do que econômica e social. E as Forças Armadas conseguiram atravessar todo esse processo mantendo alto grau de credibilidade. Ela conseguiram preservar-se pelos valores que encarnam. Outro aspecto inegável foi a intervenção, que sinalizou para o País que há condições de se enfrentar problemas gravíssimos por meio de uma correta percepção da realidade e encaminhamento de soluções que não sejam midiáticas e pirotécnicas e traduzam algo que pode ser colhido no futuro, que é próprio de quem não tem interesse político imediato.Nas figuras dos generais da reserva, identifica-se que eles não têm outro interesse do que o da sociedade e construíram uma vida calcada em princípios e valores éticos sólidos.
Mas esse interesse da política pelos militares não pode levar à divisões no Exército?
Estamos plenamente conscientes de que uma coisa são militares da reserva sendo chamados a atuar na esfera política. Outra coisa são as instituições militares se envolveram na vida político-partidária. Não vejo que isso seja um risco, pois estamos deixando bem separadas as duas coisas.
Não entraremos em ciclo que pode gerar novas divisões, Dizia-se que o Exército devia ter a política do Exército e não no Exército. Mas nas décadas de 1940 a 1960 isso não ocorreu. A partir do momento que se tem um partido como o PSL com imagem fortemente vinculado à Forças Armadas a oposição não tende a buscar referências nelas, podendo levar a divisões internas?
Acho que nós todos temos muita consciência de todo o fenômeno histórico que caracterizou a República. Isso é algo que tem de nos preocupar no sentido de uma vigilância permanente. Não como risco efetivo de que isso possa nos dividir. Não permitimos que haja qualquer desvio de nossas normas e estatutos.
NÚMEROS DA SEGURANÇA NO RIO
60.471
É EFETIVO PREVISTO DA PM DO RIO
43.804
É O EFETIVO ATUAL DA PM DO RIO
23.126
É O EFETIVO PREVISTO DA POLÍCIA CIVIL DO RIO
9.164
É O EFETIVO EXISTENTE DA POLÍCIA CIVIL DO RIO
4.896
É A FROTA DE CARROS DAS POLÍCIAS DO RIO
R$ 468,7 MILHÕES
É TOTAL DO DINHEIRO FEDERAL EMPENHADO PELA INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO
R$ 731 MILHÕES
É QUANTO FALTA PARA SER EMPENHADO PELA INTERVENÇÃO FEDERAL DO RIO
EVOLUÇÃO DOS DADOS CRIMINAIS DO RIO
(COMPARAÇÃO ABRIL A OUTUBRO DE 2017 COM MESMO PERÍODO DE 2018)
APREENSÃO DE DROGAS
+2%
ARMAS APREENDIDAS
+2%
PRISÕES EM FLAGRANTE
+2%
ROUBOS DE CARROS
-11%
ROUBOS DE RUA
-10%
ROUBOS DE CARGA
-24%
HOMICÍDIOS
-6%
El País: Os quatro meses de silêncio de um brutal crime político
Investigação da Polícia Civil do Rio sobre assassinato da vereadora Marielle e de seu motorista, Anderson, segue sigilosa. Pressão da Anistia Internacional por comissão externa cresce
Por Felipe Betim, do El País
A brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes completou quatro meses no sábado passado sem que se saiba ainda quem os matou e mandou matá-los. As investigações seguem sob sigilo absoluto do Departamento de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro, principalmente após vazar o depoimento de uma testemunha que acusou o vereador Marcello Siciliano e o miliciano Orlando de Curicica, que está preso, de serem os mandantes da execução. A pressão para que o crime fosse desvendado começou um dia depois do ocorrido, quando milhares de pessoas ocuparam as ruas nas capitais brasileiras, ao mesmo tempo em que se criava o entendimento de sua complexidade e do longo tempo que a apuração levaria. O apoio de familiares e amigos das vítimas aos investigadores sempre existiu, mas, diante de um deserto informativo imposto pela polícia, cresce a impaciência e a angústia.
"Estamos cada vez mais preocupados e ansiosos com os rumos das investigações. Cada vez que entramos em contato, eles dizem que estão avançando lentamente e que existe uma complexidade muito grande. Está na hora de a sociedade ter uma resposta", afirma o vereador Tarcísio Motta, colega de Marielle na Câmara dos Vereadores e no PSOL. Ele continua achando que de fato existe uma complexidade, mas a preocupação agora é se ela "é um limite que impede a polícia de avançar, ou se de fato estão avançando". Também garante: "Estamos num momento de virada entre a postura que tivemos até aqui, de confiança, para uma postura de cobrança".
O deputado estadual Marcelo Freixo, mentor político de Marielle, com quem trabalhou na Assembleia Legislativa do Rio, dialoga com os delegados com frequência e faz a ponte entre eles e familiares. Continua defendendo que o melhor foi que a Polícia Federal não assumisse o caso, como foi sugerido inicialmente por autoridades. Ele reafirma que a investigação não está parada, ainda que admita estar intranquilo. "Mais de uma equipe está trabalhando no caso, pessoas estão indo depor e estão buscando informações. É um crime muito sofisticado, não tem comparação com qualquer outro", argumenta o parlamentar, que também garante que quanto mais apoia os investigadores, mais cobra por resultados. "Não estou justificando a demora, mas não é um caso fácil de ser resolvido. Mas ele tem que ser resolvido, não há hipótese de que não seja resolvido", completa.
Freixo apoia o sigilo das investigações e critica o vazamento do depoimento que acusou o vereador Siciliano. Algo que, para ele, atrapalhou as apurações e serviu para desviar o foco. Acredita, porém, que "talvez falte um pouco de habilidade" da Polícia Civil "no sentido de deixar claro que algumas iniciativas estão sendo feitas". Para Renata Neder, coordenadora de pesquisa da ONG Anistia Internacional, sigilo não pode ser confundido com o silêncio das instituições e das autoridades do caso. "Detalhes devem permanecer em sigilo, mas a chefia da polícia, o secretário de Segurança, o interventor federal do Rio e o procurador-geral precisam sim se pronunciar publicamente e prestar contas à sociedade sobre de que forma estão priorizando as investigações e se comprometer em solucionar o caso da forma correta". O EL PAÍS tentou sem êxito contactar os responsáveis pelo caso. Oficialmente, a Polícia Civil reafirma o sigilo das apurações.
A pressão sobre a corporação se intensificou nos últimos dias, com a Anistia propondo a criação de uma comissão externa, formada por especialistas, peritos e juristas, que tenha acesso às investigações e possa acompanhá-las, sem nenhum tipo de conflito de interesse. Ainda que a Câmara dos Deputados tenha formado uma comissão externa, a organização fala sobre a necessidade de um mecanismo fora do aparato estatal que não esteja subordinado a seus interesses, e que possa "monitorar o trabalho da polícia, garantindo que esteja sendo feito como deve, que nada esteja sendo forjado e que não haja pressão ou interferência indevida externa", explica Neder.
A preocupação da organização se baseia sobretudo no histórico de assassinatos de defensores de direitos humanos no Brasil. De acordo com a Front Line Defenders, que utiliza dados da Comissão Pastoral da Terra, o país é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas 70 execuções no país —28 delas em chacinas— entre as 312 registradas em todo o mundo. A maior parte desses assassinatos ocorre no campo, durante conflitos por terra ou acesso à recursos naturais. Isso significa que o Brasil está num seleto grupo de países, junto com Colômbia, México e Filipinas, que concentra a maior parte dos homicídios. "O padrão é de não investigação devido a uma negligência do Estado, que não quer enfrentar interesses de certos grupos. Alguns casos, inclusive, contam com a participação de policiais diretamente, como foi a chacina de Pau D'arco", explica Neder, em referência ao assassinato de dez trabalhadores rurais no Pará, em 2017.
Outro padrão recorrente, e em especial no Estado do Rio, é a falta de apuração de crimes nos quais existe a possibilidade de policiais estarem envolvidos, lembra Neder. Um relatório de 2015 da Anistia mostrava que dos 220 registros de homicídios decorrentes de intervenção policial feitos em 2011, 183 permaneciam em aberto em 2015. "Um Boletim de Ocorrência foi aberto, mas nenhuma diligência foi feita", explica a especialista.
O caso Marielle reúne as duas características descritas acima: ela era uma defensora dos diretos humanos, com atuação nas favelas e periferias do Rio, e existe uma forte suspeita de que agentes estatais estejam envolvidos, dado o grau de profissionalismo e a arma utilizada —uma submetralhadora HK MP5, de alta precisão e utilizada por forças policiais de elite. "Precisamos desde já exigir a resposta adequada, não podemos esperar um ou dois anos de impunidade para mobilizar. Marielle era uma vereadora, então esse assassinato não foi apenas um ataque aos direitos humanos, mas também às instituições democráticas. O Estado precisa responder à altura, porque senão o recado é de que você pode fazer isso e se dar bem", indica Neder.
A diferença do caso Marielle com relação aos demais é a mobilização popular, à exemplo do que aconteceu após os assassinatos do pedreiro Amarildo de Souza Lima, morador da Rocinha morto por PMs em 2013, e da juíza Patrícia Acioli, executada em 2011 por policiais após ter julgado agentes que praticavam homicídios e extorsões no município de São Gonçalo. Ambos os casos foram investigados —o caso dela demorou um mês para ser elucidado; o dele, três meses— e julgados, lembra Freixo.
A falta de uma cultura investigativa
Jacqueline Muniz, antropóloga, cientista política e especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que o maior obstáculo para a Polícia Civil, quatro meses depois da morte de Marielle e Anderson, é o tempo: "No mundo todo, os crimes de homicídios tendem a ser elucidados em menos de um mês. Quanto mais próximo da ocorrência, maior a chance de elucidação", explica. "Nos primeiros dias os fatos estão quentes, os envolvidos estão mais expostos à ação da polícia. Quatro meses depois, pistas se perdem, provas são descaracterizadas, pessoas que possuem informações tendem a se dispersar...", acrescenta.
No mundo inteiro, a taxa média de resolução ronda 60%, aponta Muniz, que chama a atenção para o fato de que homicídios tendem a ser de mais fácil resolução, devido a fatores como uma forte intencionalidade e a possibilidade de mapear a vida da vítima. Mas no Brasil, mais de 90% dos assassinatos não são apurados ou esclarecidos. "E boa parte dos que são descobertos são de autoria presumida. Trata-se mais de confirmar a autoria, buscar ou fabricar materialidade, do que investigar", argumenta. "A imprensa falou que o assassinato de Marielle foi limpo, profissional. Então por que os outros homicídios, que são sujos, em que o mentor deixa rastros, não são elucidados?". Para ela, não falta know how ou tecnologia, mas sim "prioridade política" em valorizar um trabalho de inteligência que significa construir um "grande acervo de conhecimento" e apostar na "qualidade intelectual e analítica das polícias", mas que é pouco visível, por vezes lento e cheio de reviravoltas — ao contrário do "espetáculo das grandes operações" policiais.
Muniz defende ainda que as investigações do caso Marielle devem seguir discretas para "preservar as garantias individuais de suspeitos, vítimas e testemunhas", uma vez que a apuração deve também "inocentar pessoas". Contudo, ela critica a falta de "uma política de comunicação social junto a população" da Polícia Civil, o que acaba gerando um cenário de desinformação "que retroalimenta o medo e a insegurança", fazendo com que os cidadãos "desconfiem ainda mais" de sua capacidade. "A polícia pode dar um conjunto de informações sobre o andamento do trabalho, o que renova a paciência e a tolerância em busca de resultados. Já a desinformação reduz a capacidade de conseguir testemunhas que deem algum fragmento de informação".
Fernando Gabeira: Uma luz no caso Marielle
Uma boa investigação é artigo de primeira necessidade. É ela, no final das contas, que vai desmontar crimes que pareciam perfeitos
Finalmente, uma luz no assassinato de Marielle Franco. Todos apostavam que não era um crime perfeito. Não era. Mesmo se fosse, todos aceitariam o desafio de desvendá-lo. No princípio, o foco era numa saída técnica e científica, como nesses programas de TV americana.
Era mais difícil por aí. As câmeras na região do crime foram desligadas um dia antes. Os carros não apareceram. As balas serviram para ajudar no exame de impressões digitais. Mas foram desviadas da PF, o que adensa o enigma. Restava, finalmente, a clássica pergunta: a quem interessa o crime? Começamos todos a desconfiar das milícias e da PM.
Marielle havia denunciado o batalhão de Acari. Mas não se mata tanto pela honra de um batalhão. O flanco das milícias estava mais a descoberto.
O GLOBO publicou uma série de reportagens sobre elas. No meio da matéria, um parágrafo meio perdido falava do projeto das milícias de verticalizar Rio das Pedras e Gardênia Azul. E mencionava um grupo de mulheres apoiado por Marielle que era contra essa pretensão.
Logo em seguida, morre assassinado um assessor de Marcello Siciliano, chamado Alexandre Cabeça. Queima de arquivo.
Andei pela Gardênia Azul documentando a onipresença de Siciliano. Há cartazes seus na praça, o espaço esportivo é apresentado como uma oferta do vereador à comunidade. Só outro nome aparecia nas faixas: Cristiano Girão, saudando os moradores da Gardênia Azul. Também ele foi acusado de dirigir milícias, até enquanto estava preso. Desde a morte de Alexandre Cabeça, cujo nome real é Carlos Alexandre Pereira, as atenções já se voltavam para a Gardênia Azul e Siciliano. Uma queima de arquivo nesse período era mais do que suspeita.
A aparição de uma testemunha contando como o crime foi planejado e executado acabou respondendo a quase todas as dúvidas. Inclusive, ela menciona outro crime, também uma queima de arquivo relacionada com o assassinato de Marielle.
Siciliano é acusado de tramar o crime com um chefe de milícias conhecido como Orlando Curicica, que, aliás, está preso há algum tempo. A tese do miliciano preso é de que a testemunha é um rival que quer liquidar com seu trabalho e, por isso, inventou seu acordo com Siciliano para matar Marielle.
Não sei que proveito a polícia tirou de tudo isso. Ela trabalha em sigilo. Mas seria interessante voltar ao velho esforço do princípio. A testemunha deu o nome dos dois homens que clonaram a placa do carro. Mais do que isso, deu os nomes de um PM e um ex-PM que estariam no carro dos assassinos. Imagino que essas quatro figuras já estejam presas, ou pelo menos sendo procuradas.
Assim como no caso do pedreiro Amarildo, alegro-me com a possibilidade de ver as coisas esclarecidas. Num programa de TV afirmei que, apesar da competência da polícia do Rio, a investigação criminal é o calcanhar de Aquiles de nossa política de segurança.
E uma boa investigação é um artigo de primeira necessidade, sobretudo num país em que há 60 mil assassinatos por ano. Assim como nos bons goleiros de futebol, a sorte é essencial, mas não é tudo.
O assassinato de Marielle e Anderson deu margem a inúmeras especulações políticas. É sempre assim. Mas o que interessa mesmo é saber o que aconteceu, punir os criminosos. O cinzento trabalho cotidiano de investigação não tem o charme dos grandes discursos. Mas é ele, no final das contas, que vai desmontar crimes que pareciam perfeitos.
Cristovam Buarque: Assassinos de Marielle
Latifundiários e governantes deram passos na direção do assassinato
Marielle foi morta por alguns bandidos, mas seus assassinos não cabem em um carro: são os governantes que ao longo de décadas se negaram a fazer as reformas de que o Brasil precisa: agrária, educacional, urbana, tributária, de gestão do Estado. No lugar das reformas, fizeram a sistemática corrupção nas prioridades, negando escola de qualidade para as nossas crianças, água e esgoto, assistência à saúde, apropriando-se do Estado para servir aos privilegiados e, sobretudo, manifestando absoluta insensibilidade diante do sofrimento dos pobres e da fragilidade do país.