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Maria Hermínia Tavares: Na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, só promessas, nem pensar

Se depender do ex-capitão, os compromissos serão menos palpáveis do que a fumaça das queimadas

Sob pressão, o governo mudou o discurso. O mesmo mandatário que, em 2019, afirmou ser a questão ambiental de interesse exclusivo de "veganos que só comem vegetais" [sic], escreveu ao homólogo Joe Biden dizendo-se disposto a eliminar o desmatamento ilegal até 2030. Colaborou na redação o assim chamado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, unha e carne dos madeireiros que namoram a ilegalidade, com os quais, por sinal, confraternizou logo depois de terem organizado violenta manifestação contra o Ibama.

Em dois anos e tanto de mandato, o negacionista da mudança climática disparou uma enxurrada de medidas que enfraqueceram os organismos e instrumentos de monitoramento, controle e penalização de crimes ambientais. Ibama, Inpe, CNBio, Funai, todos perderam lideranças, quadros e recursos financeiros, enquanto as multas despencaram vertiginosamente.

Estudos mostram que acordos internacionais —de variada natureza— podem ser instrumentos aptos a induzir governos a fazer a coisa certa: sempre e quando logrem impor condições aos participantes, estabelecer mecanismos que estimulem o seu cumprimento e tornem crível a ameaça de punição aos transgressores. Ou seja, quando são capazes de criar os chamados mecanismos de trancamento (lock in), facilitando o respeito aos compromissos negociados e sua defesa diante dos opositores domésticos.

A cláusula democrática na União Europeia é sempre citada como poderoso exemplo de trancamento que ajudou a institucionalizar sistemas livres e competitivos na Espanha, em Portugal e na Grécia, recém-emersos de longas e sangrentas ditaduras.

Perversamente, a adesão a acordos internacionais pode ser uma cortina de fumaça para governos mal-intencionados, piorando o que era já um horror. Há uma década, os cientistas políticos americanos Peter Rosendorff e Peter Hollyer mostraram que as violações de direitos humanos cresciam quando ditadores assinavam pactos multilaterais contra a tortura.

Se depender do ex-capitão, as seis páginas enviadas a Biden e as promessas que fará nesta quinta e sexta serão ainda menos palpáveis do que a fumaça das queimadas. Não é demais lembrar que o agronegócio mais atrasado, os desmatadores ilegais e os invasores de terras indígenas são adeptos do ex-capitão e com ele compartilham as mesmas crenças retrógradas de como lidar com o patrimônio ambiental do país e os povos da floresta.

Deste governo só se pode aceitar —e olhe lá!— compromissos definidos, prazos e metas claras e mensuráveis que possam ser monitoradas pela sociedade e seus representantes políticos.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: A farra do centrão

Arthur Lira deve pensar que é um bom momento para passar a sua boiada

Na hora em que a morte é mais rápida que as vacinas, o presidente da Câmara e chefe do centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), decidiu trazer a reforma política de volta à agenda do Congresso.

Talvez imaginando que este seja um bom momento para passar a sua boiada, criou duas comissões destinadas a produzir uma pretensiosa revisão da legislação eleitoral e partidária, com mudanças na forma de escolha dos representantes, na propaganda e financiamento de campanhas e no papel da Justiça Eleitoral.

Assim reassume o seu lugar à mesa de debates o fim do sistema de voto proporcional de lista aberta, que distribui as cadeiras no Legislativo entre as legendas segundo a proporção de votos recebidos por elas, uma a uma, respeitada a preferência do eleitor pelos candidatos que compõem as listas partidárias. Em seu lugar, entraria o "distritão", apelido dado ao sistema que os especialistas denominam, com uma ponta de pedantismo, "voto único não transferível". Nele, as cadeiras nas Câmaras e Assembleias iriam para os mais votados, em seus distritos eleitorais, cujos limites, aqui, coincidiriam com os estados da Federação.

Forma raramente adotada de sistema majoritário, hoje, existe apenas na Jordânia, no Afeganistão e em paragens exóticas como Vanuatu e Ilhas Pitcairn. Seus efeitos mais notórios são limitar a representação das minorias e estimular os partidos a apostar em candidatos com grande potencial de votos: pastores, celebridades de TV e formadores de opinião nas redes sociais.

Além disso, o pacote representa um robusto retrocesso nas regras recém-aprovadas para reduzir o número de partidos representados no Legislativo. Pois propõe a revogação da cláusula de desempenho, pela qual cada legenda deve obter ao menos 2% dos votos em nove estados —ou eleger 11 candidatos—, e a volta das coligações nos pleitos para a Câmara e Assembleias Legislativas. Uma e outra coisa estimulam a multiplicação de legendas, fazendo do Brasil um caso extremo de fragmentação partidária.

Finalmente, muitas propostas intentam enfraquecer a Justiça Eleitoral, guardiã eficiente e indispensável da integridade do processo, sem a qual a democracia desaba.

Propostas de reforma política foram recorrentes no país. Por discutíveis que fossem, sempre miraram a melhoria da competição eleitoral e da capacidade de governar. A iniciativa do presidente da Câmara só pretende favorecer os interesses miúdos dos partidos idem que sustentam um governo de ainda mais baixa estatura. É a farra do centrão, que debilita a ordem democrática enquanto a Covid faz a sua parte.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: Não é o que eles dizem: o piso de gastos em educação e saúde e seus críticos

Vinculação de receita é a forma possível de garantir prioridades

Na versão de seu relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), a proposta da emenda emergencial à Constituição, entre várias iniciativas para lidar com o presente aperto fiscal, extingue os pisos obrigatórios do gasto público com saúde e educação, assegurados na Carta de 1988.

A discussão sobre o tema não diz respeito ao reconhecimento das severíssimas limitações daquilo que o governo pode desembolsar sem comprometer sua capacidade política e administrativa ou travar de vez o já trôpego andar da economia. Só os nefelibatas —com ou sem diploma em ciências econômicas— podem imaginar que limites fiscais são perversas invenções do neoliberalismo.

Tampouco se trata de debate sobre liberdade de escolha, em que um imaginário prefeito governaria melhor se pudesse decidir, por conta própria, despender mais com a crescente população idosa do que com escolas de primeiro grau cuja clientela minguou. Só pode achar que esse é o dilema quem se imagina no país de Birgitte Nyborg, a simpática primeira-ministra dinamarquesa da série Borgen, da Netflix.

Não é demais lembrar a maneira pela qual instrumentos tão pesados —toscos, em português claro—, como as vinculações mandatórias, adentraram a Constituição. No texto original, saúde, Previdência e assistência social foram reunidas sob o mesmo princípio do direito universal à seguridade, garantido por um Orçamento único. No percurso da teoria à prática, descobriu-se porém que o cobertor era curto demais: para atender à Previdência, era comum deixar a saúde desassistida --em plena montagem do SUS. Por isso, não por uma perversa maquinação antiliberal, a EC (emenda constitucional) número 29 criou o piso de gasto.

Já a vinculação obrigatória de recursos à educação é anterior aos trabalhos da Constituinte: foi introduzida pelas chamadas emendas Passos Porto (EC 23/83) e João Calmon (EC 24/83), ambas visando assegurar recursos permanentes ao sistema público de ensino, nos três níveis da Federação. Incorporada à Carta, a vinculação foi aprimorada com a criação do Fundef em 1996 e sua transformação em Fundeb, dez anos depois. A meta sempre foi assegurar financiamento adequado e prover estímulos para reduzir o vergonhoso atraso educacional brasileiro.

Os pisos de gasto em saúde e educação destinaram-se a proteger as duas áreas da inevitável disputa por recursos quando as demandas são muitas; os interesses, divergentes; e o dinheiro, curto. Ou seja, uma forma de dizer que aquelas devem ser políticas de Estado, com estabilidade e permanência asseguradas, acima —e apesar— das intenções dos governantes de turno.

*Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Acolhida assegurada

O jornal registrou com destaque a grande manifestação coletiva da comunidade acadêmica contra o regime militar

"Com 6 mil inscritos, SBPC abre sua reunião", foi a chamada de primeira página da edição de 6 de julho de 1977 desta Folha, anunciando a 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. O destaque se explica por não ser aquele mais um evento como os que a organização promovia para discutir, com reduzido grupo de iniciados, trabalhos geralmente ininteligíveis para os leigos.

Proibido de se realizar na Universidade Federal do Ceará, o encontro foi transferido para a PUC de São Paulo, onde se tornaria a primeira grande manifestação coletiva de repúdio da comunidade acadêmica ao regime militar, dando assim a partida ao seu engajamento aberto na luta pela democracia.

Durante uma semana, nenhum tema relevante para o país foi esquecido: do acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha, alvo de críticas da Sociedade Brasileira de Física, à desigualdade de renda produzida pela política de arrocho salarial da ditadura; do papel do Estado na economia ao modelo político autoritário; das mudanças demográficas ao surgimento de novos movimentos e demandas sociais. Ao longo desse período, os principais debates foram registrados por este jornal. Podem ser lidos no seu arquivo digital.

Foi um momento importante da década de transição do autoritarismo para a democracia. A ele se seguiram outros como os protestos estudantis, as greves operárias no ABC paulista, pronunciamentos empresariais, as eleições de 1982 e a campanha das Diretas Já. Mas o episódio da SBPC, importante em si mesmo, marcou também a abertura de espaço neste diário para o debate de ideias e para os intelectuais que as vocalizaram. Até então, eram território quase exclusivo da imprensa chamada nanica —em semanários como O Pasquim, Opinião ou Movimento. Abrigados pelos grandes veículos, ganharam outra ressonância. Produziram ideias e valores que iriam desembocar na visão generosa de país plasmada na Constituição Cidadã de 1988 e nas políticas sociais das décadas seguintes.

O restabelecimento do regime de liberdades, depois de 20 anos, foi uma obra tocada a muitas mãos e em diferentes palcos, erguidos na sociedade e na esfera da política. Assim também a defesa do sistema democrático hoje ameaçado pela extrema direita virulenta, cujo mentor, de arminha apontada para o direito à informação sem mordaça, vocifera que "o certo" seria "tirar de circulação" os principais órgãos da imprensa. Eis por que o debate informado e acessível a um público amplo é uma dimensão desse interminável empreendimento coletivo, com acolhida assegurada em um jornal centenário.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Maria Hermínia Tavares: Para Bolsonaro a prioridade é devastar

Quatro projetos de lei tem tudo para agravar a destruição da Amazônia e colocar em perigo as populações indígenas

Na semana passada, o presidente da República entregou ao novo titular da Câmara dos Deputados a pauta legislativa de interesse do Executivo, contendo 35 projetos já em tramitação no Congresso. Quem tem tantas metas a rigor não tem nenhuma. Ainda mais quando se considera o escasso tempo —coisa de um ano— antes que as disputas voltadas para as próximas eleições paralisem os trabalhos legislativos.

Em meio à pandemia, é de estarrecer a ausência de qualquer iniciativa para fortalecer o sistema público de saúde, apoiar as redes de escolas públicas confrontadas com o desafio da reabertura em circunstâncias difíceis ou, enfim, para fortalecer a capacidade do país de produzir ciência e conhecimento aplicado a fim de enfrentar a calamidade sanitária.

Em compensação, quatro projetos, considerados prioritários pelo presidente, tem tudo para agravar a devastação da Amazônia e colocar em perigo o modo de vida --se não a própria existência-- de suas populações originárias.

Menina dos olhos de Bolsonaro, a mineração nas terras teoricamente protegidas que esses povos, por lei, ocupam é objeto do projeto de lei 191/2020, que pretende regulamentar a exploração de recursos minerais —incluindo o garimpo—, hídricos e orgânicos naquelas reservas. Hoje praticados de forma ilegal, se guiados por regras frouxas, mineração e garimpo poderão desfigurar 50% das terras indígenas da Amazônia Legal, 28% delas em toda sua extensão, afetar 28 comunidades indígenas e cerca de 65 povos isolados, segundo calcula o ISA (Instituto Socioambiental).

A regularização fundiária é tratada no projeto de lei 2633/2020, que substituiu a chamada medida provisória da grilagem (MP 910) e que, no entender dos especialistas, ao estimular a ocupação predatória e ilegal de terras, pode produzir retrocesso ambiental.

A lista do desastre se completa com os textos que tratam do licenciamento ambiental (projeto 3729/2004) e das concessões florestais (5518/2020). Nos dois casos, um cabo de guerra opõe os defensores de normas claras que imponham custos elevados à depredação àqueles que mexem os pauzinhos junto ao governo pela licença ilimitada para desmatar.

Os destinos da floresta e de seus povos são inextricáveis: é o que torna o Brasil original como cultura e decisivo, graças ao seu patrimônio ambiental, para o futuro do planeta --valores espezinhados pela combinação de cegueira, ignorância e vocação destrutiva da extrema direita que desgoverna o país. O Legislativo terá de enfrentar mais uma vez o desafio de impedir o pior. Resta saber se terá ânimo para tanto.

Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Ligações perigosas

Conversas inadequadas entre juiz e promotores, intimidade entre políticos e empresas são tão comuns quanto reprováveis

Graças ao ministro Ricardo Lewandowski, do STF, tem-se agora acesso ao registro das conversas privadas —e tóxicas— do então juiz Sergio Moro com procuradores da Operação Lava Jato quando se instruía a denúncia contra o ex-presidente Lula. As 50 páginas de transcrições desvendam uma relação mais do que imprópria entre um magistrado, que deveria primar pela isenção, e os membros do Ministério Público responsáveis pelas alegações que justificassem transformar o líder do PT em réu no célebre caso do tríplex do Guarujá.

Advogados relatam que conversas inadequadas entre juiz e promotores durante o processo de instrução são tão comuns quanto reprováveis, pois se dão sempre em prejuízo do acusado. Mas, além de inaceitável do ponto de vista ético, o escambo entre Moro e os acusadores de Curitiba produziu um resultado politicamente letal: excluiu do jogo, na marra, o candidato que, goste-se disso ou não, detinha àquela altura a preferência dos eleitores, constatada nas pesquisas.

Aos que se debruçarem sobre o texto agora liberado --ou o seu resumo na imprensa-- recomenda-se fortemente a leitura de "A Organização", da competente jornalista Malu Gaspar.

Melhor livro brasileiro de análise política publicado no ano passado, ali está a narrativa da irresistível ascensão da Odebrecht no negócio da construção pesada, à sombra de todos os governos democráticos desde meados de 1980.

As relações de intimidade da empresa com os líderes do PT e de outros partidos que compartilhavam o poder, descritas em sua crueza, são o centro do exemplo notável do que a literatura especializada chama de "rent seeking", a busca de ganhos privilegiados, em tradução livre. Ou seja, a obtenção por empresas privadas de lucros à margem da competição no mercado --graças a ligações espúrias com líderes políticos e agentes públicos de alto escalão.

A amizade entre dois presidentes —o da Odebrecht e o da República— e um sofisticado esquema de financiamento arquitetado pela empresa sob o elegante codinome "Departamento de Operações Estruturadas" tornaram possíveis tanto a expansão dos contratos públicos da construtora quanto o financiamento, via caixa dois, de expoentes de partidos governistas.

Revelada pela Lava Jato, a trama de relações perigosas em torno da Petrobras desnudou o mecanismo do "rent seeking", tão corriqueiro como venenoso para a democracia.

Talvez a prática não possa ser de todo eliminada. Resta, por isso mesmo, encontrar formas de reduzir a sua radioatividade política, sem atropelar as boas condutas jurídicas. Eis o desafio permanente para os democratas.


Maria Hermínia Tavares: Combate sem comando na luta contra o vírus

A dimensão da catástrofe não deve impedir que se veja o que tem sido feito apesar do presidente

Na luta contra a Covid-19, Bolsonaro tomou o partido de costume —da irresponsabilidade, da ignorância e da morte. Consagrando a incompetência, disseminando a mentira, estimulando o egoísmo e nutrindo a discórdia, ele só fez agigantar a tragédia nacional. Beirando os 220 mil óbitos, o país tem o perverso privilégio de ser o vice-campeão mundial na categoria.

Mas a dimensão da catástrofe não deve impedir que se veja o que tem sido feito, à revelia ou a contragosto do presidente, para evitar que a pandemia imponha à nação danos talvez irreparáveis. Graças ao Congresso, um robusto pacote emergencial protegeu os rendimentos dos mais pobres e a capacidade das empresas de produzir e empregar. Segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), o socorro foi o maior e mais amplo da região, contendo o avanço da pobreza e da desigualdade de renda.

Governadores e prefeitos fizeram o possível para que o SUS pudesse dar conta, com menos ou mais êxito, da imensa tarefa de atender os cerca de 150 milhões de brasileiros que dele dependem. O horror de Manaus não pode asfixiar o fato de o Brasil ser o 12º país em mortes por 100 mil habitantes —em situação melhor que México, Colômbia, Argentina e Peru, para não falar de Inglaterra, Itália, EUA, Espanha e França, segundo o Corona Virus Resource Center, da Universidade Johns Hopkins (EUA).

Finalmente, graças ao patrimônio científico do Instituto Butantan e da Fiocruz foi possível fechar acordos de cooperação com empresas estrangeiras, dando a partida ao inevitavelmente longo processo de imunização dos brasileiros. Caso único na América Latina, tais acordos permitirão, a prazo curto, o domínio da técnica de feitura de vacinas contra a Covid-19 --respiro para o presente e aprendizado para o futuro.

Estivesse a cargo de um titular minimamente alfabetizado na matéria, o Ministério da Saúde teria feito a sua parte, complementando o esforço daqueles institutos com a importação de vacinas prontas. A situação seria outra, e a angústia, bem menor.

Governos subnacionais, no espaço de autonomia que a federação lhes proporciona, bem como o sistema público de saúde e a capacidade científica construídos ao longo de décadas, vêm se demonstrando aptos a conter e, em parte, a circunscrever a lava destrutiva que jorra do centro do poder. Ainda assim, não podem substituir de todo uma liderança nacional que, além de ser dotada de alguma racionalidade, infunda ânimo, robusteça a confiança nas instituições, estimule a solidariedade e restaure o sentimento de união dos cidadãos.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Freios políticos em bom estado sustentam a democracia

Com o mandato a meio caminho só é possível esperar de Bolsonaro mais do mesmo

No dia em que portadores da Covid-19 em Manaus começaram a morrer asfixiados por falta de oxigênio, Jair Bolsonaro participou, sem máscara, de uma festinha de aniversário no Clube Naval de Brasília. Apostou contra a imunização e, quando a vacina do Butantan, finalmente aprovada, começou a ser produzida, fez pouco de sua eficácia.

O país entrou em 2021 com repique da pandemia e nenhuma iniciativa federal para contê-la ou reduzir seu impacto devastador na vida da população mais pobre e na atividade das empresas. Em cada área de atuação do governo federal —educação, ambiente, segurança, economia, política exterior—, incompetência e irresponsabilidade se deram as mãos.

Nas suas muitas horas vagas, o presidente se ocupa alimentando suspeitas sobre as instituições eleitorais e soltando disparates sobre as Forças Armadas e a democracia. Comprova, dia sim, o outro também, que, além de não ter nem aptidão, nem ânimo para governar, abomina os valores e as regras do sistema.

Mas, como lembrou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, em entrevista a esta Folha, "o regime democrático é para impedir que um governante subjetivamente autoritário possa emplacar um governo objetivamente autoritário". Desse ponto de vista, as coisas estão funcionando.

De acordo com levantamento recente do jornal O Estado de S. Paulo, nos dois últimos anos o Executivo federal sofreu 33 derrotas no STF em ações iniciadas por partidos de oposição, questionando nomeações, decretos e outros atos administrativos. Da mesma forma, até este Congresso —de maioria francamente conservadora— engavetou às pencas medidas provisórias vindas do Palácio do Planalto. Nada menos de 64 perderam a vigência sem ser apreciadas e quatro diretamente rejeitadas, ante 58 convertidas em lei —algo inédito desde que a Constituição de 1988 entregou ao titular do governo esse poderoso instrumento legislativo.

No combate à Covid-19, muitos governadores desempenharam papel de contrapeso ao presidente, alheio ao que importa e dedicado a estimular os piores impulsos de seus ainda muitos apoiadores. Do lado da sociedade, também se destaca a disposição da grande imprensa de monitorar os governantes e das organizações sociais de denunciar seus malfeitos.

Com o mandato a meio caminho, só é possível esperar de Bolsonaro mais do mesmo. Eis por que, do estado desses freios que sustentam o sistema democrático —contra as piores intenções do ex-capitão— continuará dependendo sua sorte e a possibilidade de que os eleitores sigam tendo a chance de decidir com liberdade.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Bolsonaro tem roteiro para o golpe

Insuflar a desconfiança nas eleições é tática dos políticos populistas para se manter no poder a qualquer custo

A democracia começa a ter um sério problema quando os vencidos numa eleição contestam os seus resultados. Embora sejam muitas as condições que asseguram a estabilidade do sistema, a escolha dos governantes pelo voto —com as instituições garantindo a lisura do jogo— e a aceitação do desfecho por todos os competidores formam o alicerce da ordem democrática.

Em 2014, um desatinado Aécio Neves se recusou a ouvir a voz das urnas favorável a Dilma Rousseff e abriu caminho para a crise política que culminaria com a ascensão da extrema direita ao poder quatro anos depois.

É cedo para dizer como estará o país em 2022. A pandemia e a crise econômica, agravadas por um assombroso desgoverno, tornam fútil qualquer exercício de previsão eleitoral. Mas, hoje como hoje, pelo menos um candidato ao Planalto parece ter um plano pronto.

Prevendo o fracasso provável de sua gestão sem rumo e sem compromisso, Jair Bolsonaro trata de reduzir a frangalhos o processo eleitoral. Para tanto, lança suspeitas descabeladas sobre a lisura do registro e da contagem de votos depositados na urna eletrônica. E quer fazer crer que, não fosse a fraude, teria saído vitorioso já no primeiro turno. Nunca apresentou nem sequer um fiapo das provas que alega ter. Pode parecer mais uma de suas efervescências, como a campanha contra as lombadas nas rodovias, mas não é.

Insuflar a desconfiança no mecanismo democrático de escolha dos governantes faz parte da caixa de ferramentas dos políticos populistas, a fim de se manter no poder a qualquer custo, mesmo sem votos para tal. É assim que alimentam seus seguidores sempre prontos a consumir receitas conspiratórias da política. Foi o que fez Donald Trump, é o que faz o seu adepto Bolsonaro.

Só que o brasileiro não se limita àquela manobra mambembe. Enquanto dissemina suspeitas vazias, trata de agradar aos militares —com gestos de apreço, cargos em diversos escalões do governo e atendimento de demandas corporativas—, na expectativa de ter ao seu lado, na hora certa, as Forças Armadas. Eis aí um sistemático investimento em cooptação, cujo retorno ainda se desconhece, mas que a nação deve temer.

Em recente entrevista ao jornal Valor, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) fez um apelo à autonomia das instituições representativas e ao imperativo político de desvincular as três Armas deste governo. Ele sabe o que diz: o roteiro para o golpe é cristalinamente claro. Pode resultar num circo de horrores, como o que se instalou em Washington na semana passada. Mas pode também acabar numa tragédia nacional.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Maria Hermínia Tavares: Os fantasmas do chanceler

O mal causado pela caça aos fantasmas é real e presente

Inaugurando 2021, o chanceler Ernesto Araujo divulgou no Twitter sua mensagem de Ano-Novo. Trata-se do palavroso artigo "Por um reset conservador liberal", publicado no blog onde costuma expor sua míope e bizarra visão dos problemas mundiais. Para o ministro, no ano que passou teria ficado clara a gigantesca trama de interesses contra a liberdade e a dignidade humanas.

Os agentes da urdidura seriam —vale a pena transcrever— "a grande mídia; o narcosocialismo, a corrupção; a bandidagem em geral (crime organizado); o sistema intelectual politicamente correto; o climatismo (uso da questão climática como instrumento de controle econômico); o racialismo (programa de organização da sociedade segundo o princípio da raça); o covidismo (a histeria biopolítica e sua utilização como mecanismo de controle); o terrorismo; o multilateralismo antinacional (distorção e manipulação do sistema multilateral composto pelos organismos internacionais); a ideologia de gênero; o abortismo; o trans-humanismo [sic]; o anticristianismo e a cristofobia; o esquema de alguns megabilionários ou trilionários; o elitismo transnacional; e o marxismo de mercado megatecnológico ou neomaoísmo". Ufa!

Formando uma confraria espectral, estariam ligadas por uma invisível estrutura, de tal forma que "quando você compra a biopolítica do "fique em casa" talvez esteja ajudando o narcotráfico".

Fantasias maquiavélicas, com menção frequente a forças ocultas e inimigos externos, sempre habitaram a retórica da extrema-direita. Cumprem papel importante na arregimentação dos "nossos" contra "os outros". Muitas vezes serviram para justificar, por exemplo, a ação internacional de grandes potências, da supremacia ariana do nazismo à Guerra Fria entre o Ocidente e o bloco soviético.

Mas os pesadelos que assombram Araújo geraram um caso muito raro de política externa totalmente assentada numa teoria conspiratória da cena mundial. É o que argumentam os pesquisadores Feliciano de Sá Guimarães, Davi Moreira, Irma Oliveira e Silva e Anna Carolina de Mello em artigo ainda inédito sobre o lugar da ideia de "globalismo" na política externa de Bolsonaro. Intitula-se "When Conspiracy Theories Capture Foreign Policy Narratives" (Quando teorias da conspiração capturam as narrativas de política externa)."Globalismo" é a condensação daquele rol de fictícias ameaças à nação.

Para o país, o mal causado pela caça aos fantasmas é real e presente. Manifesta-se como descrédito internacional, isolamento e desmoralização de um serviço diplomático até então conhecido por sua competência.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Maria Hermínia Tavares: Poderia ter sido pior, mas a democracia brasileira barrou o populismo

Nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes

Fim de ano é época de dar sentido ao que aconteceu no período. Perguntar-se, por exemplo, como as instituições democráticas brasileiras se comportaram ao longo desses meses de medo e morte. Para fazê-lo com algum método, nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes. Com a vantajosa circunstância de ter o respaldo de dois estudos recém-publicados por organizações independentes que monitoram o estado da democracia no mundo.

O primeiro, da ONG americana Freedom House, intitula-se “Democracia sob lockdown – o impacto da Covid-19 na luta global pela liberdade”. Baseia-se em entrevistas com especialistas e membros da sociedade civil, realizadas entre janeiro e agosto, em 105 países. A análise conclui que a pandemia exacerbou um tremendo problema: a recessão democrática dos últimos 14 anos.

De acordo com o informe, a democracia se degradou em 80 nações, cujos governos responderam à virose com abuso de poder, silenciamento das vozes críticas, enfraquecimento ou liquidação de instituições cruciais e erosão dos sistemas de rendição de contas pelos governantes. Em nada menos de 59 desses países faltou transparência na maneira como as autoridades informaram o público sobre a Covid-19.

Pior ainda, em 91 deles restringiu-se a liberdade de imprensa. Das 22 eleições marcadas para este ano, sete foram adiadas e quatro tiveram suas regras alteradas. A violência policial relacionada às medidas de restrição aumentou em 59 países. Num em cada quatro, multiplicaram-se as restrições a minorias étnicas e religiosas. O Brasil ficou no grupo daqueles nos quais a praga não debilitou o sistema democrático.

O segundo dos estudos citados é o “Balanço das tendências democráticas na América Latina e Caribe antes e durante a epidemia da Covid-19”, produzido pela organização Idea Internacional.

Embora a meta, o método e algumas das dimensões por ela observadas sejam diferentes, as conclusões se assemelham às da Freedom House. A pandemia aprofundou problemas crônicos das democracias na região. As respostas variaram muito e nem todas agravaram as grandes limitações do sistema político.

Apesar de tudo, graças à reação do Legislativo e do Judiciário, à força da Federação, à autonomia da imprensa e à resistência da sociedade organizada, a democracia brasileira logrou barrar as investidas do populismo de direita instalado no Planalto.

Pode não parecer muito, dada a enormidade dos desafios que o país já enfrentava e que a pandemia agrandou. Foi pior em muitos lugares. Poderia ter sido também aqui.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: Para além da emergência políticas de renda básica serão necessárias

Tendo perdido a hora de ficar mais justa, a nação deverá se preparar para conviver com a pobreza por muito tempo

O fim do ano chegou sem que o governo fosse capaz de propor qualquer coisa que se parecesse com uma política para enfrentar o rebote da epidemia —em boa parte resultante, por sinal, da sua negação da gravidade da doença. O Planalto tampouco apresentou um plano claro de vacinação: só chutes a esmo sobre as vacinas que ainda não temos, nem as datas, a todo momento alteradas, do início da imunização.

Decerto esgotado pela enormidade que deixou de fazer, o ministro da Fazenda tirou férias (logo canceladas pelo presidente) sem resolver a situação da massa de brasileiros que sobreviveram até aqui graças às transferências que terminam no fim do mês. O número dos que ficarão a descoberto é impressionante. Por trás dele há pessoas de carne e osso vivendo em total insegurança, sem saber como pagarão as contas a partir de janeiro.

A pandemia colocou o Brasil face a face com a precariedade na qual estão imersos dezenas de milhões de habitantes que, vivendo sempre à beira da linha de pobreza, podem cruzá-la ao primeiro soluço da atividade econômica. A chegada da Covid-19 agravou uma situação preexistente, que os governos comprometidos com a redução da iniquidade não foram capazes de alterar estruturalmente, ainda quando proporcionaram alguma mobilidade social.

Da mesma forma, os abissais desníveis de renda provavelmente persistirão até bem depois da volta à normalidade. Tendo perdido a hora de ficar mais justa, lá pelos anos 1950 ou 60, a nação deverá se preparar para conviver por muito tempo —mais do que a vista alcança— com um imenso contingente de pessoas vivendo da mão à boca. Tem mais: caso a revolução tecnológica trazida pela internet das coisas, inteligência artificial, robótica e 5G produza apenas uma parte dos impactos sobre o emprego já previstos por especialistas, incontáveis brasileiros pobres, de baixa escolaridade e vivendo em precária pobreza se tornarão supérfluos.

Assim, qualquer sistema de proteção social que possa surgir deste que temos hoje —quando dispusermos de governos que voltem a pensar no país— não poderá dispensar o alicerce de um programa de renda básica robusto e permanente. Nesse sentido, o projeto de Lei de Responsabilidade Social apresentado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), embora modesto nos valores que propõe, é promissor. Inova na concepção —combinando garantia de renda e seguro— e permite pensar para além da pandemia. Desde que seja entendido como firme e necessária fundação de um conjunto mais amplo de políticas sociais, focalizadas em saúde, educação e previdência.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.