Maria Cristina Fernandes
Maria Cristina Fernandes: A armadilha do capitão
No enfrentamento com a toga, generais fazem o jogo de Bolsonaro e arriscam reacender temas como a revisão da Lei da Anistia
Ao mandar o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ligar para Gilmar Mendes para explicar sobre a presença de militares e as ações da Pasta, o presidente Jair Bolsonaro realoca para o colo das Forças Armadas aquilo que o ministro do Supremo Tribunal Federal pôs no seu. Era Bolsonaro que o ministro alvejava ao dizer que os militares estavam se associando a um genocídio. Com as instruções a Pazuello, o presidente deixa claro que é no mesmo balaio de responsáveis pelo pandemônio, ao lado de Supremo e governadores, que pretende colocar as Forças Armadas.
Não é de hoje que as Forças Armadas caem nas armadilhas do capitão. Arma-se um vespeiro. A ameaça a Gilmar Mendes com a Lei de Segurança Nacional, tese urdida pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, pode fazer ressurgir dois processos, o julgamento dos embargos de declaração na revisão da Lei de Anistia e a incompetência da justiça militar para crimes cometidos por civis em operações de Garantia da Lei e da Ordem e por militares contra civis em situações não relacionadas com o desempenho de suas atividades.
Ainda que a composição do tribunal tenha mudado desde que a revisão da Lei de Anistia foi negada, é improvável que uma nova leitura se forme sobre o tema. A rediscussão do tema, porém, desagrada sucessivas gerações de militares que buscaram, até aqui, virar a página da ditadura.
Ainda mais porque se daria numa conjuntura em que um ministro do Supremo, ao saber da cobrança do vice-presidente, Hamilton Mourão, de que Gilmar Mendes tem que pedir desculpas aos militares, reagiu: “Antes ele tem que fazer a mesma coisa pelas homenagens a Brilhante Ustra”. O clima de radicalização só serve, como se sabe, às milícias digitais bolsonaristas.
Já a incompetência da justiça militar para o julgamento de civis incriminados em GLOs e de militares que atentem contra civis em situações não relacionadas com a farda, é um tema que acende convicções no tribunal, como a do ministro Celso de Mello, e tem Gilmar Mendes como um dos relatores.
Ao se deixar capturar pela armadilha bolsonarista, os militares dificultaram a interlocução em ambos os temas que dormitavam na “diplomacia judicial”. Isso acontece num momento em que a opinião pública, com a anuência do presidente e a provocação do ministro, já começa a associar a farda às tragédias da pandemia.
Se foi Bolsonaro quem atraiu os militares para a armadilha, é Gilmar Mendes quem ameaça virar o trinco. Primeiro o ministro reconheceu o terreno. Pediu audiência com o comandante do Exército, Edson Pujol. Explicou-lhe as decisões do Supremo na pandemia e tentou desfazer impressões de que haveria uma conspiração em curso. Saiu de lá com a convicção de que daquele quartel não partiriam cabo ou soldado rumo à Praça dos Três Poderes, ainda que Bolsonaro continuasse a bafejar o dispositivo militar.
A prisão de Fabrício Queiroz e o cerco sobre o senador Flávio Bolsonaro forçaram o capitão a um recuo tático. Ao mesmo tempo, Bolsonaro colocou o Ministério da Saúde de Eduardo Pazuello para operar na lógica de sua blindagem política. Vai precisar dela na medida em que enfatiza, cada vez mais, a responsabilização dos governadores e do Supremo pelo pandemônio.
Essa lógica se operou, inicialmente, pelo congelamento dos recursos do SUS. Em seis meses desde a publicação do plano de contingência para a pandemia, foram executados R$ 12,1 bilhões de créditos extraordinários para o Sistema Único de Saúde, o equivalente a menos de um terço da dotação disponível.
Este valor corresponde a pouco mais de 5% do total pago pela União para o enfrentamento da covid-19. Neste período, de planos de saúde a seguro de bancos, várias rubricas superaram os recursos do SUS. Os dados foram levantados pela procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto.
Foi com este Ministério da Saúde em ação que o Brasil assumiu a vice-liderança na disputa macabra do recorde mundial de vítimas. Quando, ao final do campeonato, Bolsonaro mandar o troféu para a Federação e para o Supremo, terá rearranjado os gastos da Pasta para eleger os prefeitos com os quais pretende reconstruir sua base e se safar do prejuízo.
Depois que a Instituição Fiscal Independente, do Senado, mostrou os primeiros números da sub-execução dos gastos do SUS, em junho, o Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar as razões pelas quais a Pasta da Saúde não consegue gastar.
Um mês depois, Pazuello baixou portaria para distribuir a municípios um valor (R$ 13,8 bilhões) acima do que havia sido executado até então. Quando esse dinheiro chegar na ponta, não apenas os deputados e prefeitos aliados já terão faturado a distribuição, pelo apadrinhamento de cotas dos valores nas redes sociais, como o Brasil já estará no limiar das 100 mil mortes, com gestores públicos capturados pelos atravessadores de testes, medicamentos, respiradores e equipamentos.
Publicada no dia 1º, a portaria ainda não havia surtido efeito na execução orçamentária. Ontem, já sob o fogo cruzado com Gilmar Mendes e ameaçado de omissão no enfrentamento da pandemia, o ministério registrou uma repentina e extraordinária execução de R$ 5 bilhões desses novos recursos.
A captura desses valores por gestões sem coordenação nacional, é um troféu que ninguém tira do Ministério da Saúde. Nada é mais ilustrativo da responsabilidade da Pasta do que a determinação do secretário de Atenção Especializada, Luiz Otávio Duarte, para que os gestores públicos comprem equipamento superfaturado e registrem a queixa no MP.
Ao fazê-lo, Duarte, um dos três coronéis do Exército no secretariado da Saúde, demonstrou não apenas a soberba de quem se considera inimputável em suas ordens, como também o preço de se ter a Pasta nas mãos da itinerância balística dos militares. Além das 60 mil vidas acumuladas durante a gestão militar, alvejou o erário.
Houvesse centralizado as compras para posterior distribuição aos Estados, diz Élida, o ministério teria mais condições de exigir o cumprimento de prazos de entrega e de enfrentar as máfias de atravessadores. Isso vale para equipamentos, testes, medicamentos e para a futura vacina. A logística militar faz com que sua distribuição seja, de fato, a operação de uma guerra que só admite o presidente Jair Bolsonaro como vencedor.
Houvesse centralizado as compras para posterior distribuição aos Estados, diz Élida, o ministério teria mais condições de exigir o cumprimento de prazos de entrega e de enfrentar as máfias de atravessadores. Isso vale para equipamentos, testes, medicamentos e para a futura vacina. A logística militar faz com que sua distribuição seja, de fato, a operação de uma guerra que só admite o presidente Jair Bolsonaro como vencedor.
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-armadilha-do-capitao.ghtml
Maria Cristina Fernandes: Gilmar se antecipa à estratégia bolsonarista
O mais recente episódio de confrontação entre os poderes, a ameaça do Ministério da Defesa de representar judicialmente contra Gilmar Mendes, originou-se da estratégia do ministro do Supremo Tribunal Federal de levantar barreiras à escalada com a qual o presidente Jair Bolsonaro busca responsabilizar a Corte, governadores e prefeitos pelos danos à saúde dos brasileiros e à economia do pais.
Já corria 1h30 do debate promovido no sábado à tarde pelo Instituto de Direito Privado (IDP), do qual é sócio, quando o ministro disse que não seria mais possível tolerar o que se passa no Ministério da Saúde: “É péssimo para a imagem das Forças Armadas. O Exército está se associando a este genocídio”.
Gilmar Mendes foi secundado por dois dos palestrantes, o médico Drauzio Varella, que disse que a entrada dos militares no Ministério da Saúde “não honra as Forças Armadas do Brasil”, e pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, para quem a intervenção de militares na Pasta, substituindo todo o corpo técnico, é tão ou mais sério que uma intervenção do governo na Polícia Federal. O general Eduardo Pazuello, que responde pela Pasta desde 15 de maio, com a saída do ex-ministro Nelson Teich, preencheu todo o segundo escalão com nomes egressos das Forças Armadas.
A resposta do Ministério da Defesa veio, por nota, na tarde do domingo. Nesta nota, assinada pela assessoria de comunicação, a Pasta se limita a prestar informações sobre o envolvimento das Forças Armadas no combate à pandemia, como, por exemplo, o contingente de 34 mil militares, maior, como costumam lembrar, do que aquele enviado à Segunda Guerra Mundial.
Nesta segunda, porém, veio uma nota mais dura. Assinada pelo ministro Fernando Azevedo e Silva, além dos três comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, os signatários, nesta segunda nota, se dizem “indignados” pelos comentários do ministro do Supremo: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana”.
O texto cita a lei do genocídio (2.889), de 1956, para dizer que se trata de crime “gravíssimo”, no âmbito nacional, como na justiça internacional, o que, “é de pleno conhecimento de um jurista”. A nota conclui pela afirmação de que as Forças Armadas, incluindo a Marinha, o Exército e a Força Aérea, “estão completamente empenhadas justamente em preservar vidas”. E informa que o Ministério da Defesa encaminhará representação ao Procurador-Geral da República para a “adoção das medidas cabíveis”.
O presidente Jair Bolsonaro não se manifestou, mas o vice, Hamilton Mourão, que já subscreveu críticas ao Supremo Tribunal Federal, reagiu com a linguagem do polo, esporte do qual é adepto: “Gilmar Mendes não foi feliz. Ele cruzou a linha da bola. Atribuir essa culpa ao Exército é forçar uma barra”.
Apesar de dura, a resposta da Defesa se destaca por não incluir o comandante-em-chefe ao lado das Forças Armadas, no empenho em preservar vidas, e citar um recurso a um instrumento da democracia (representação judicial), em contraposição às ameaças veladas que o ex-comandante do Exército, Eduardo Villas-Boas, fazia ao Supremo.
Apesar da nota dura, a cúpula das Forças Armadas já havia concluído que uma parte da fatura da pandemia cairia em seu colo. Por isso, a permanência do general Pazuello como ministro-interino desagrada a instituição. Um general próximo ao comandante Edson Leal Pujol diz que o Exército não responde pela decisão do general de aceitar o cargo.
Pazuello está sendo pressionado a tomar o mesmo rumo do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, que gostaria de encerrar sua carreira como comandante militar do Leste, no Rio, mas irá para a reserva antes do que desejava. A transferência deverá ser efetivada até sexta-feria. Restaria ainda Flávio Rocha, almirante quatro estrelas da Marinha, que hoje exerce o cargo de secretário de Assuntos Estratégicos, subordinado diretamente à Presidência da República.
A nota marca ainda uma reaproximação do ministro da Defesa e dos comandantes militares, estremecidos desde que Azevedo e Silva referendou, em nome deles, a participação do presidente em manifestações de apoio em plena pandemia. Desta vez, foram os comandantes que fizeram questão de subscrever a nota em resposta ao ministro do Supremo.
Indagado se Pujol voltaria a receber Gilmar Mendes, como o fez há um mês, um general do gabinete do comandante disse: “O ministro está em Portugal e nós estamos aqui trabalhando pelo povo brasileiro”.
Desde ontem, Azevedo e Silva e o ministro Dias Toffoli, a quem assessorava antes de ir para o governo Bolsonaro, têm discutido uma forma de pacificar a tensão entre Supremo e Forças Armadas, a partir da percepção comum de que Gilmar Mendes exagerou nas tintas.
De Portugal, onde não fez mais declarações, o ministro tem dito a quem o procura para comentar o episódio, que já havia alertado, no plenário do Supremo, sobre a armadilha que Bolsonaro preparara para as Forças Armadas, ao usá-las para um papel, no Ministério da Saúde, que nenhum médico ou profissional que preze por sua reputação, se presta a cumprir.
A opinião foi referendada, no Valor, por Maria Elizabeth Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar: “É cômodo para o presidente escolher militares para compor o alto escalão, preenchendo lacunas que, politicamente, talvez ele não conseguisse manejar. São pessoas que nunca vão confrontá-lo, pois ele é o chefe supremo das Forças Armadas”.
Gilmar Mendes tampouco está isolado na sua Corte. O ministro Luis Roberto Barroso já disse que o presidente Jair Bolsonaro, ao povoar o governo de militares, está levando o Brasil a uma “chavização” da política, o seja, transformando o país numa Venezuela de Hugo Chávez.
Desde que chegou a Portugal, Gilmar Mendes tem ficado impressionado com as referências negativas da imprensa europeia ao Brasil. Chegou a comentar que o presidente Jair Bolsonaro não deve pisar na Europa sob o risco de ser notificado pelo Tribunal Penal Internacional.
É na reação a este cerco que o ministro firmou convicção de que Bolsonaro jogará, cada vez mais, sobre o Supremo e os governadores, a responsabilidade pelos crimes da pandemia. Bolsonaro nunca aceitou a decisão da Corte de que a União não podia impor aos Estados as diretrizes para o combate à covid-19, como o uso da cloroquina, uma vez que a Constituição prevê a gestão compartilhada para o Sistema Único de Saúde.
No Supremo não se descarta que governadores que hoje se veem prejudicados por uma distribuição sem critérios técnicos dos recursos da Saúde, venham a interpelar a Corte com uma Ação de Preceito Fundamental, contra o Ministério. Foi sob este fogo cruzado que os militares, pela presença de um general da ativa no comando da Pasta, se colocaram.
Ao acusar os militares de terem se deixado usar pelo presidente no que chamou de “genocídio”, o ministro pagou pra ver o que será a reação fardada quando a acusação for formalizada contra o presidente. Na nota, os militares saem em defesa da corporação mas não estendem a blindagem ao presidente.
Maria Cristina Fernandes: Os sócios do vírus
Ninguém a desejava, mas há quem se beneficie da pandemia
A pandemia do coronavírus matou, em quatro meses, 60 mil brasileiros, o que deixa o país na condição de vice-campeão mundial em número de vítimas. No mesmo período, o Brasil acumulou mais de 28 milhões de desempregados e desalentados.
O vírus, no entanto, não fez apenas vítimas. Ao longo desse tempo, angariou também muitos sócios. Ninguém desejava a pandemia, mas há quem mais do que sobreviver, está a tirar vantagem dela. Na política e na economia, as desigualdades pregressas só se acentuam com as medidas governamentais.
A queda de juros, por exemplo, melhora a vida de todo mundo, mas beneficia muito mais a das grandes empresas que, em condições de emitir debêntures (dívidas) com taxas mais baixas do que aquelas que vigoravam antes da pandemia, se capitalizam não necessariamente para investir agora, mas para largar na frente quando a atividade voltar. Até porque da sucessão de reformas trabalhistas pré-pandemia às medidas provisórias mais recentes, as empresas puderam reduzir custos trabalhistas.
Mas não são apenas as medidas do governo que produzem sócios do coronavírus, mas a falta delas. O presidente Jair Bolsonaro se elegeu, em grande parte, não para mudar o Estado mas para dizimá-lo. A covid-19 mobilizou as atenções e facilitou a tarefa em áreas como o meio-ambiente, como tão bem traduziu Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril. Um mês depois, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que o ministro escancarou a passagem da boiada, com um aumento de 55% no desmatamento no primeiro quadrimestre do ano em relação ao mesmo período de 2019.
Nas selvas urbanas da periferia a ausência de uma política de segurança pública também facilitou a sociedade entre o vírus e a letalidade policial. Com menos circulação de pessoas nas ruas, os policiais ganharam, finalmente, o ansiado excludente de ilicitude do bolsonarismo. O Rio teve o abril de maior letalidade policial dos últimos 18 anos. Em São Paulo, as mortes em conflitos com a presença de policiais cresceu mais de 50%. A pandemia facilitou o cumprimento do ideário bolsonarista "na dúvida, atire". Mas isso não impediu que o Centrão se valha da situação para pressionar por mais um cargo de primeiro escalão no governo, a Pasta da Segurança Pública.
Durante a pandemia, o bloco não apenas se acercou de órgãos cujos gastos têm impacto direto nas prefeituras, como FNDE e Funasa, como se aproximou do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, recentemente desfiliado do PSDB e titular de outro manancial de obras, e avançou para aumentar seu domínio sobre agências reguladoras.
Uma delas, a Agência de Vigilância Sanitária, é uma das maiores chanceladoras da carteirinha de sócios da pandemia. É sobre a Anvisa que os atravessadores de respiradores superfaturados fazem pressão contra o licenciamento de aparelhos baratos desenvolvidos nas universidades. É a agência também que chancela a licença para a comercialização, nas farmácias, de um dos embustes da pandemia, os testes rápidos. Tão caros quanto ineficientes, os testes fizeram a festa de algumas indústrias farmacêuticas, sócias da tragédia desde o apogeu da cloroquina.
Se as sessões remotas adotadas na pandemia permitiram a aprovação de projetos importantes para a sobrevivência de milhões de brasileiros, como o auxílio emergencial, tem também favorecido a concentração de poder nas mãos do Centrão. Em decisões cada vez mais monocráticas, os líderes decidem a pauta e controlam as votações remotas com possibilidades restritas de debate ou obstrução. Se o cerco dos milicianos sobre o presidente da República aumenta o cacife do bloco, é pela condução da pauta remota de votações que seus líderes exercem redobrado poder.
O repique da covid-19 no Distrito Federal já arrisca prolongar ainda mais o funcionamento remoto do Congresso. O governador Ibaneis Rocha, um dos primeiros a adotar medidas restritivas, liberou a cidadela do poder antes da hora e possibilitou um novo pico que hoje ocupa nove de cada 10 leitos de UTI privados. Ibaneis não se mostra disposto a arredar o pé para a abertura total do Distrito Federal no início de agosto, mas o repique pode impedir que o Congresso Nacional o faça.
Com a consultoria do ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, já se estudavam as medidas para o retorno, com a presença facultativa dos parlamentares do grupo de risco, medição de temperatura e sem confirmação digital do voto. O adiamento das sessões presenciais, porém, não prejudica o Centrão. Na verdade, até ajuda.
Com as sessões remotas, as comissões e os conselhos de ética da Câmara e do Senado não funcionam. Com isso, se contêm as pressões para que sejam analisadas as representações lá protocoladas contra Eduardo e Flávio Bolsonaro. Com o adiamento se evitaria que a retomada dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal em agosto, tenha repercussão nas Casas. É depois do recesso que o STF deve mandar voltar para a primeira instância o processo que investiga a rachadinha no gabinete do ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro.
Foi na casa de um dos expoentes do Centrão, o deputado e ex-ministro Marcos Pereira (Republicanos-SP), que representantes do bloco e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, receberam o senador Flávio Bolsonaro, o mais afável e mais encrencado dos filhos do presidente. Na versão de um dos participantes, a ideia era mostrar ao presidente da República que não havia predisposição, entre os comensais, contra seu primogênito. Só faltou Flávio Bolsonaro sair de lá com um cartão de visitas de cada um: “Guardiões de seu mandato”.
Até as eleições municipais é assim que pretendem se fazer valer. Até lá, além da prorrogação do auxílio emergencial, vão tratar de arrancar dos cofres públicos dinheiro suficiente para prefeitos e vereadores inundarem a campanha de cestas básicas. É pelo assistencialismo, outro acionista desta tragédia, que o Centrão pretende fazer a festa da situação.
Passadas as eleições, contados mortos, feridos e desempregados, terá chegado a hora de a assembleia de acionistas decidir se o presidente Jair Bolsonaro ainda deve se manter na condição de sócio majoritário desta pandemia.
Maria Cristina Fernandes: Democracia remota blinda Congresso
Sob deliberação remota há quatro meses, parlamentares terceirizaram ao STF o enfrentamento com o Executivo e agora se preparam para enfrentar pressão redobrada pelo impeachment
A aprovação do projeto que transfere terras da União para os Estados de Roraima e Amapá, antigos territórios federais, arrancou vivas tanto do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), integrante da turma que morde o bolsonarismo, quanto do seu principal artífice, o presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), capitão da banda que assopra.
O dueto de antagonistas conterrâneos foi interrompido pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN). Votara a favor da iniciativa, mas denunciava a manobra que havia levado todos a retirar projetos prioritários de pauta em função do acordo para apenas colocar em votação remota o que estivesse relacionado à doença: “Ou a gente muda a regra ou cumpre a regra. Isso não tem absolutamente nada a ver com a covid”.
Não era a única queixa do senador. Prates reclamou ainda que os colegas que pediam para falar “pela ordem” deviam ser colocados para o fim da fila de quem se inscreveu para falar os três minutos regulamentados pela norma da votação remota.
O procedimento, comum nos apartes parlamentares, virou uma guerra no plenário virtual. O presidente do Senado, cuja contemporização com o bolsonarismo rendeu, além da transferência de terras, benesses como um hospital de campanha federal no Amapá, prometeu resolver o rolo dos apartes, mas não disse palavra sobre os jabutis da pauta.
Quatro meses depois, os procedimentos adotados pelas mesas da Câmara e do Senado para manter os trabalhos em funcionamento durante a pandemia se transformaram num poço de controvérsias. Se todos concordam que as sessões remotas foram a saída possível para manter as deliberações do Congresso, sobram divergências em relação ao poder redobrado dos presidentes, do colégio de líderes e até dos burocratas das mesas diretoras.
Os presidentes das Casas e os colégios de líderes definem a pauta, abrem a sessão e depois de manifestações parlamentares de três minutos, os projetos são votados. Se houver acordo com os líderes, o projeto entra em regime de urgência, o que não permite qualquer obstrução. Nos chats, foi aos funcionários que os parlamentares passaram a dirigir pedidos desesperados de que querem se fazer ouvir.
Apesar de ter como objetivo o bloqueio dos mais de 40 pedidos de impeachment que lá se acumulam, as negociações do governo com os parlamentares do Centrão também tiveram como pano de fundo o poder redobrado dos líderes partidários na nova dinâmica.
Paralelamente, a oposição, além de perder poder de manobra, também não tem como se articular para reagir ao governo.
Os grupinhos que tradicionalmente se formam para articular, dentro e fora do plenário, as votações e encaminhamentos, estão inviabilizados. Se os parlamentares decidirem fazer uma chamada coletiva para discutir um projeto, paralelamente à sessão, correm o risco de perder a votação.
A discussão dos projetos também perdeu qualidade técnica porque nem sempre é fácil para o parlamentar manter conversas paralelas com os consultores legislativos durante a sessão. No plenário físico é mais fácil saber a quem se deve ou não prestar atenção. No virtual, o parlamentar que se descuidar pode acabar perdendo o encaminhamento de um projeto.
“As discussões muitas vezes se dão depois da votação”, queixa-se a senadora e presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS).
Foi o que aconteceu na votação do projeto de ajuda aos Estados, quando o senador José Serra (PSDB-SP) acabou só tendo oportunidade de falar três horas depois que a votação já havia se encerrado. “Não dá para achar que, ao colocar sua posição em rede social o parlamentar esgota a discussão. A defesa de posições, a contestação e o debate se dá em plenário”, diz a presidente da CCJ.
É difícil encontrar, no Congresso Nacional, quem negue a mitigação da democracia remota. Foi essa a razão de o mecanismo ter enfrentado resistências no mundo inteiro. No Reino Unido foi aprovado em abril, mas se limitou a regulamentar sessões para discussão de temas relativos à pandemia, não votações. Sem reuniões deliberativas desde então, o Parlamento britânico tenta retomar as sessões 100% presenciais, mas enfrenta a resistência dos integrantes mais velhos em comparecer.
Nos Estados Unidos, onde a Câmara também adotou sessões remotas, as deliberações foram permitidas contra o voto de 189 deputados (e 217 a favor). As regras, no entanto, exigem que o voto seja dado em plenário por um representante do parlamentar devidamente autorizado a fazê-lo. A resistência dos republicanos ao sistema se deve à percepção de que se trata de um instrumento de força nas mãos da presidente da Casa, a deputada democrata Nancy Pelosi, que estaria a suprimir o debate e os espaços de contestação.
Desde o início do funcionamento do Sistema de Deliberação Remota no Brasil, os entraves à negociação confirmam, em grande parte, os temores mundo afora em relação ao sistema. Na votação do projeto de lei de ajuda aos Estados e municípios, um parlamentar quis tirar o destaque a uma emenda, já contemplado por um colega, e foi impedido pelo presidente da Casa. “Ligue para ele, deputado”, disse Rodrigo Maia, sugerindo que o colega colocasse a sessão no “mute” para negociar com o colega por telefone.
Maia não abriu mão da presença na Câmara. Enquanto comanda os trabalhos, o presidente da Casa, conhecido por não largar o celular, também troca mensagens com os deputados, registradas nas notas taquigráficas, mandando-os tirar o microfone da função mudo ou se valer do ícone com um aceno para pedir uma questão de ordem.
No Senado, o chat das sessões virtuais é conduzido pela secretária-geral-adjunta da mesa diretora, identificada nas notas taquigráficas apenas como SGM Adjunta, que passa quase todo o tempo domando os incautos. “Senadora Soraya [Thronicke], para se inscrever basta ‘levantar a mão no sistema’”, recomendou a funcionária numa sessão do dia 16 de abril. Oito minutos depois, a senadora bolsonarista do Mato Grosso do Sul, que continua no PSL, ainda não havia descoberto onde ficava a mãozinha virtual.
Câmara e Senado também adotaram meios distintos para regulamentar o trabalho remoto. O presidente da Câmara aprovou, em plenário, uma resolução com as normas. O do Senado se limitou a baixar um ato da mesa diretora. No Congresso, valeu o modelo do Senado e passou a ser regulado por um ato da mesa. Ambas as Casas desenvolveram um aplicativo que o parlamentar pode baixar ou acessar o Zoom para ter acesso. Depois que foram identificadas falhas de segurança, as duas Casas passaram a adotar uma senha enviada apenas meia hora antes de seu início. Maia conduz as sessões da própria mesa da Câmara, enquanto Alcolumbre o faz de uma sala no Prodasen, a Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado. Para validar o voto, o parlamentar deve se colocar frente à câmera do computador.
O Sistema de Deliberação Remota tem se restringido ao plenário. “É nas comissões onde, de fato, se dá o processo legislativo. Como são poucas as sessões, as matérias chegam cruas ao plenário”, diz o consultor legislativo do Senado, Luiz Alberto dos Santos. “Foi a saída possível para o Congresso, mas acaba atrofiando seu papel. É nas comissões, por exemplo, onde são realizadas as audiências públicas, onde se dá a interlocução com a sociedade”, confirma o deputado Silvio Costa Filho (PE), primeiro vice-líder do Republicanos.
Há um acordo tácito para que as deliberações remotas não sejam alvo de judicialização. Nem todos os pressupostos desse acordo, no entanto, são cumpridos. A ausência de sessões deliberativas nas comissões ampliou as brechas para a inclusão de temas não relacionados à proposição original das medidas provisórias, os chamados “contrabandos”. O Supremo havia imposto um limite para isso determinando que as MPs só seriam levadas ao plenário depois de apreciação pela comissão mista. Com a pandemia, a restrição caiu por terra.
No Senado, durante a votação sobre as novas atribuições do Banco Central na operação de títulos no mercado, a mesa diretora acabou chancelando o acolhimento de uma emenda de mérito sob a roupagem de “emenda de redação”. O quiproquó acabou no Supremo.
Outro acordo rompido foi o de que, durante o trabalho remoto, nenhuma emenda constitucional seria votada. Abriu-se exceção para a votação do “Orçamento de Guerra”, que deu plenos poderes para o Executivo nos gastos relativos à pandemia.
Nem o ato da mesa do Senado nem o projeto aprovado pela Câmara estabeleceram prazo para o funcionamento remoto, mas tanto Maia quanto Alcolumbre já se comprometeram com o retorno do trabalho presencial em julho.
A extensão do trabalho remoto tem preservado os presidentes das duas Casas tanto das pressões pelo andamento das representações contra os filhos do presidente, o deputado Eduardo (sem partido-SP) e o senador Flávio (sem partido-RJ), no Conselho de Ética, quanto do acolhimento de um dos mais de 40 pedidos de impeachment já protocolados.
É mais confortável para os comandantes do Congresso terceirizar o embate com o Executivo para o Judiciário, até porque o presidente da República tem sido agressivo na atração de parlamentares para sua base de apoio. A pressão para que o Congresso entre na briga, no entanto, só cresce. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) se valeu do Twitter para deixar pública sua pressão: “É imperioso retomar as sessões presenciais. Com distanciamento, votação em gabinetes, poucos assessores, mas com a tribuna aberta. Precisamos engrossar o respaldo ao Judiciário”. Preservado da covid-19 pelas sessões remotas, o Congresso está com os dias contados para ser contaminado pela disputa em torno da abreviação do bolsonarismo.
Maria Cristina Fernandes: Mourão rima, mas não é a solução
Sem interlocução com partidos, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, vice se coloca, com seus ataques, para fora do tabuleiro
O vice-presidente da República deu início ao mandato do presidente Jair Bolsonaro como alvo número 1 do gabinete do ódio. Identificado como pretendente ao cargo, passou a ser tratado pelos filhos do presidente e seus acólitos como traidor em potencial e inimigo a ser abatido em todas as suas movimentações.
Hamilton Mourão nem parecia o general insubordinado que, mesmo punido, continuou a desobedecer o estatuto dos militares. Cultivou relações com empresários, partidos e até sindicatos, como a face civilizada de um governo cujo titular sempre demonstrou desapreço pela liturgia e pela missão constitucional da qual foi investido pelo eleitor. Acossado, se retraiu.
A bordo de um avião da FAB, passou a percorrer o país em palestras nas associações comerciais do interior para manter os motores em funcionamento sem o escrutínio da imprensa ou do gabinete do ódio.
Voltou à cena, primeiro com o artigo em que se apresentava como um vendedor de seguro para o titular. Mirou nos governadores e acertou todas as instituições. Um velho quatro estrelas diria a um ministro do Supremo: se parece difícil lidar com um capitão desabalado é porque ele ainda não topou com o general que o secunda.
Em novo artigo em “O Estado de S. Paulo”, o vice dobrou a aposta, desta vez, contra os manifestantes que foram às ruas no domingo e voltarão no próximo. A estes, que portavam faixas em defesa da democracia, denominou-os de baderneiros, extremistas, depredadores e criminosos. Voltou-se até contra “um ministro do STF”, que começa com Celso e termina com Mello, como “intelectualmente desonesto”.
Àqueles que ocupam a Praça dos Três Poderes nos fins de semana conclamando intervenção militar, agredindo enfermeiros em atos de solidariedade a colegas mortos e brandindo símbolos do ódio supremacista americano contra o Supremo Tribunal Federal, o vice limitou-se a denominar de portadores de “exagero retórico”.
Mourão se coloca como porta-voz não autorizado das Forças Armadas ao defendê-las da partidarização, mas acaba por atiçar os fantasmas da intervenção com a carta da baderna. Ao fazê-lo, distancia-se ainda mais de seus colegas da ativa que têm colecionado dissabores pela insistência com a qual Bolsonaro e seus ministros militares os empurram para a praça pública.
Com o artigo, Mourão se coloca como representante maior dos VIPs (valentes, inteligentes e patriotas), categoria em que os generais da ativa colocam os colegas que passam para a reserva e, sem tropas a comandar, se põem a ditar as ordens para a República.
À exceção de vozes solitárias como o ex-ministro e general Carlos Alberto dos Santos Cruz, tem faltado, à farda, apoio para que se mantenha longe das ruas, como o fez, nos Estados Unidos, o secretário de Defesa.
Mark Esper se manifestou ontem publicamente contra o uso da lei do fim do século 18 (“Insurrection Act”) para colocar a Guarda Nacional na repressão às manifestações de rua contra a violência policial que resultou na morte do ex-segurança George Floyd. Em vídeo que circula nas redes sociais, soldados da Guarda Nacional, depois de ouvirem o apelo de uma manifestante (“marchem conosco e nos protejam”), posam para uma foto com o grupo que os cerca.
Em artigo publicado no início desta semana na “The Atlantic”, Mike Mullen, que foi comandante do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas americanas, nos governos Bush e Obama, também se insurgiu contra o uso de seus ex-companheiros de farda para reprimir movimentos que têm sua solidariedade: “Os cidadãos não são nossos inimigos e nunca devem sê-lo”.
No Chile, que tem sido invocado por Bolsonaro desde as manifestações estudantis do ano passado, como exemplo de país em que as Forças Armadas, convocadas, agiram na repressão aos movimentos sociais, o que aconteceu foi exatamente o inverso.
Sebastián Piñera conseguiu arrancar um estado de sítio do Congresso e, durante duas semanas, as Forças Armadas foram para as ruas numa atuação sem violência em contraposição ao cassetete policial que vigorara até ali. Com o fim do prazo da medida, os militares voltaram pra casa mas os manifestantes, não.
O presidente chileno insistiu em nova incursão militar nas ruas de Santiago mas, desta vez, os comandantes se recusaram a acatar suas ordens. Não estavam dispostos a pôr em risco o prestígio reconquistado a duras penas junto à sociedade ao longo das três décadas passadas desde a sangrenta ditadura chilena.
A recusa levou Piñera a recuar, pedir desculpas à população e aceitar um acordo com os partidos que levou à convocação de um plebiscito, adiado pela pandemia, que vai decidir sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte.
O papel ao qual as Forças Armadas brasileiras têm sido forçadas a colocariam na contramão da história, a isolariam do mundo e, ao contrário do contexto do golpe de 1964, até de seus vizinhos e da própria sociedade. É a pandemia que impede que os signatários dos manifestos marchem ao lado das torcidas de futebol. Se as Forças Armadas se orgulham de terem golpeado a Constituição em 1964 para defender a marcha em defesa de Deus, da família e da propriedade, desta vez estariam ao lado de quem?
O presidente está seguro no cargo enquanto os partidos não se puserem de acordo em relação à alternativa de poder. É esta, na verdade, a razão de fundo para as dificuldades da grande frente anti-Bolsonaro. O vice-presidente é a opção constitucional para comandar o país em caso de impeachment, mas se força para fora do jogo ao tomar posições mais elaboradas mas tão inconsequentes quanto a do capitão e fortalece saídas como a cassação da chapa pelo TSE, que opõe quatro votos a 57 milhões.
Sem entrada nos partidos, sem interlocução com o empresariado que extrapole os viciados corredores da Fiesp, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, Mourão parece tentar se viabilizar junto ao que restou de apoio ao presidente, o bolsonarismo raiz, o mesmo do qual sempre foi vítimas. Se não deu com Cosme, aqui está Damião. Nem um nem outro. Se governar como escreve, Mourão pode até fazer rima, mas deixa de ser uma solução.
Maria Cristina Fernandes: Cassação da chapa é o labirinto mais curto
Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam quatro votos no TSE
Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.
São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso.
A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.
A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.
O inquérito é conduzido, a sete chaves, pelo ministro Alexandre de Moraes. Apesar de dispor de policiais federais para as investigações, apenas os juízes auxiliares e o delegado da Polícia Civil de São Paulo lotados em seu gabinete têm acesso ao conjunto de provas colhidas. O comando é de um ministro que, de tão obcecado por investigações, fez fama em São Paulo por chegar às 4h da manhã na sede da Secretaria de Segurança Pública, sob seu comando, para participar de operações policiais.
Com a saída da ministra Rosa Weber, na segunda-feira, Moraes assume um assento no TSE. Comporá, junto com Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, que presidirá o tribunal, a trinca de ministros do Supremo que atuarão como juízes eleitorais no restante do mandato presidencial.
A nova composição do TSE impulsionou a campanha de 100 entidades que atuam no campo da corrupção eleitoral (reformapolitica.org.br) pela agilização dos processos que hoje correm no TSE. Esta campanha pode dar amplitude ao que hoje está restrito a alguns gabinetes brasilienses. É uma articulação ora favorecida pela reaproximação de antigos adversários, como os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, ora contida por espantalhos como o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão atacando as instituições.
Ao contrário do que se passou por ocasião do julgamento da chapa Dilma/Temer, em que a cassação foi derrotada por 4x3, os carpinteiros da tese da separação da chapa, hoje estão de quarentena. Se for para cassar, que seja o presidente e seu vice. Por isso, o artigo de Mourão assustou.
Ao proteger o titular do cargo e bater em todas as demais instituições da República, o vice-presidente, na leitura dos artífices da “saída TSE”, buscou blindagem das Forças Armadas contra qualquer desfecho que o alije. A ocupação do Ministério da Saúde e a negociação com o Centrão hoje são vistos como um sinal de que, seja com Bolsonaro, seja com Mourão, os militares não pretendem arredar pé.
As dúvidas não se limitam à reação da farda em relação à cassação da chapa. Estende-se à composição do TSE. Ao contrário do tribunal que inocentou Dilma e Temer, aquele que estará empossado a partir de segunda-feira, conta com três ministros do Supremo que não são de sentar em cima de provas.
Três ex-ministros do TSE, em anonimato, concordam que o quarto voto não viria de nenhum dos dois ministros do Superior Tribunal de Justiça com assento na Corte eleitoral. O mandato do atual relator, Og Fernandes, se encerra em agosto. Como Fernandes também é o corregedor da Casa, o processo ficará com o futuro ocupante do cargo, o também ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, que passará a ter, como colega, também no TSE, Mauro Campbell.
Nenhum dos dois desfruta, em Brasília, da mesma reputação do independente Herman Benjamin, o ministro relator do processo Dilma/Temer que votou pela cassação. Sobre Salomão pesam ainda as expectativas de que ambiciona uma vaga no Supremo, situação que o deixaria em pé de igualdade com o procurador-geral Augusto Aras na condição de personagens-chave a quem o presidente poderia buscar atrair com as duas vagas que terá a preencher até julho de 2021.
Ainda que ambos venham a jogar no time anti-cassação, o quarto voto poderia ser buscado nos dois advogados do tribunal. A expectativa de recondução ao cargo, prerrogativa do presidente da República, pode vir a inibir um deles (Sergio Banhos), mas é inócua em relação ao segundo (Tarcísio Vieira), que está no último mandato na Corte. Somados os quatro votos, restaria ainda a dúvida sobre o prosseguimento do processo com um relator que venha a se mostrar desinteressado no desfecho.
Os percalços não param por aí. A lei diz que se a chapa é cassada no primeiro biênio do mandato presidencial, faz-se nova eleição. Se for no segundo, convoca-se eleição indireta, em até 90 dias. “Na forma da lei”, diz a Constituição. Lei esta que não existe. Teria que ser formatada e votada em pontos sensíveis, como desincompatibilização e filiação partidária, em meio ao caos de uma pandemia que, além de vidas, também vitima o bom combate da política.
E, finalmente, o processo de escolha de um presidente-tampão seria conduzido pelas futuras mesas da Câmara e do Senado, a serem escolhidas num Centrão repaginado pelo bolsonarismo, visto que os mandatos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se encerram em fevereiro. A pergunta de um ex-ministro do TSE resume o drama: “Quanto custaria esta eleição”?
Se a pedreira é tão grande, por que a “opção TSE” continua sobre a mesa? Porque todas as demais saídas parecem tão ou mais difíceis. A ver, porém, se os percalços permanecerão em pé se o país, no balanço dos milhares de mortos e milhões de desempregados, decidir que não dá para seguir adiante sem afastar o principal culpado.
Maria Cristina Fernandes: Um mandato blindado a R$ 600 per capita
Auxílio emergencial intimida parlamentares e contém adesão ao impeachment no Congresso
O futuro do governo Jair Bolsonaro hoje parece passar mais pelo auxílio emergencial do que pelo procurador-geral da República. Por mais que os inquéritos no Supremo Tribunal Federal avancem, nenhum processo contra o presidente poderá ser aberto sem a anuência da Câmara dos Deputados. E lá dificilmente se formará maioria contra Bolsonaro enquanto o governo fizer chegar ao bolso dos mais pobres um dinheiro nunca dantes visto para muitos.
O calendário eleitoral é favorável ao presidente. Parlamentares dispostos a se engajar pelo impeachment ficam acuados frente ao número de beneficiários do auxílio emergencial entre eleitores de vereadores e prefeitos que formam a base para sua recondução em 2022. A qualquer movimento desses parlamentares, os eleitores são bombardeados pelas redes sociais bolsonaristas com a exposição de uma conduta que, ao mirar contra o mandato do presidente, se coloca também como adversária do auxílio emergencial. Como a pandemia deve fazer com que esta campanha eleitoral seja ainda mais digital que as anteriores, a armadilha está posta.
Tome-se, por exemplo, o exemplo de Alagoas, Estado de segundo pior IDH do país. Na convalescença da covid-19, o secretário da Fazenda, George Santoro, se deparou com um impacto do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas que nunca havia visto antes. O dinheiro que chega hoje mensalmente ao Estado para o auxílio emergencial equivale a cinco vezes o valor destinado ao Bolsa Família.
Famílias que recebiam o benefício médio de R$ 186 passaram a fazer jus a outro, de R$ 1,1 mil, por estarem cadastradas em nome de mães solteiras, com direito ao dobro do valor, descontado o Bolsa Família. Num Estado em que até a agricultura parou, pela entressafra da cana, o auxílio emergencial se transformou num inacreditável Xangrilá. A pandemia ruma para fechar a semana com duas dezenas de milhares de mortos que, cada vez mais, vão avançar para a classe social dos beneficiários, transformando o auxílio emergencial numa pensão-covid.
Nenhum parlamentar captou melhor o potencial do auxílio emergencial do que André Janones (Avante-MG). Advogado eleito em 2018 como uma das lideranças da greve dos caminhoneiros numa campanha majoritariamente digital, Janones usa a rede para explicar a seus eleitores como baixar o aplicativo e fazer o cadastro do auxílio emergencial. E ainda se oferece para ser o despachante das dúvidas e dificuldades enfrentadas pelos eleitores que tentam obtê-lo.
Sua posição é resumida num post de 30 de abril: “Os políticos de esquerda estão muito ocupados falando mal do presidente e os da direita defendendo ele. Entendeu porque ninguém tem tempo de correr atrás pra você receber seu auxílio emergencial?”. Levantamento de Manoel Fernandes (Bites) mostrou que a estratégia levou o deputado mineiro a mais do que dobrar sua base digital em 60 dias. Ele era o 15º parlamentar em seguidores nas redes. Hoje é o sétimo.
Janones ainda tem uma rede menor que a dos deputados Eduardo Bolsonaro (sem partido-SP) ou Joice Hasselman (PSL-SP), mas a quantidade de interações (reações dos usuários das redes sociais), obtidas a partir de suas postagens sobre o auxílio emergencial, supera a de qualquer um dos 513 parlamentares. Em 60 dias, suas postagens alcançaram 12,8 milhões de interações. Uma única ‘live’ sobre o auxílio emergencial provocou 1,7 milhão de reações de internautas interessados em saber o que deveriam fazer para obtê-lo.
Não é preciso uma grande parafernália digital para entender a temperatura do discurso político hoje. Em dois cliques, Fernandes, que optou por não trabalhar para políticos, fez uma busca comparativa no Google e concluiu que, nos últimos sete dias, a procura pelo termo ‘emprego’ foi equivalente a 10% daquela do ‘auxílio emergencial’.
Esta estratégia indica que o presidente Jair Bolsonaro terá dificuldade em interromper o benefício em 30 de maio, quando se concluem os três meses inicialmente programados para sua duração. O Ministério da Economia já tratou de desmentir o secretário Carlos da Costa, que acenou com sua prorrogação, mas ainda não mostrou como vai ser capaz de equacionar uma saída fiscal sem retirar do presidente sua blindagem política. Ao buscar a paternidade do auxílio, Bolsonaro continua à sombra de Donald Trump, cuja assinatura estampa os cheques destinados aos americanos de baixa renda desempregados pela pandemia. Não é capaz de fazer com que os mais pobres aprovem a irresponsabilidade de sua conduta na pandemia, mas o apoio a seu governo hoje se deteriora entre os mais ricos numa velocidade maior do que na base da sociedade.
Em três meses, a rubrica consumirá R$ 124 bilhões, o equivalente a quatro vezes o gasto do ano inteiro com o Bolsa Família. Como a economia dificilmente recuperará, até 2022, o vôo de galinha que manteve em 2019, a blindagem do auxílio emergencial, para ser eficiente, teria que ser estendida para além da sanidade fiscal.
O auxílio emergencial foi uma joint-venture Bolsonaro/Congresso. O governo propôs R$ 200. O PT sugeriu um valor dez vezes maior e o relator, do PP, fechou em R$ 500. O presidente cobriu a proposta e fixou em R$ 600. O valor aprovado segurou o comércio e conteve a queda na arrecadação. Acabou por equilibrar a redução, estabelecida pelo Senado, ao projeto de compensação a Estados e municípios pela perda de receita aprovado na Câmara.
No início do seu mandato, o presidente ouviu de um senador o vaticínio de que o arrocho do ministro Paulo Guedes o transformaria num novo Maurício Macri, o presidente argentino que perdeu a reeleição por ter reagido tarde demais à recessão provocada por sua política econômica.
Frente à armadilha do auxílio emergencial, há duas saídas. Uma é que Bolsonaro pague pra ver se o senador estava certo, interrompa o benefício e corra o risco de nem mesmo chegar à reeleição. A outra é aquela em que Congresso e Bolsonaro tornam-se mutuamente reféns do auxílio emergencial. Numa releitura da solidariedade da pandemia, é a ordem de que ninguém solta o mandato de ninguém. Pelo menos até a eleição municipal.
Maria Cristina Fernandes: Reação bolsonarista é de quem está acuado
O presidente segue a rota traçada no início da pandemia de provocar o cerco institucional para tentar angariar apoio militar
O presidente Jair Bolsonaro segue a rota traçada no início da pandemia de provocar o cerco institucional para tentar angariar apoio junto às Forças Armadas. Com o Congresso recuado, valeu-se do protagonismo do Supremo Tribunal Federal na contestação a atos do Executivo para buscar uma saída que margeie a Constituição. Segue sem sucesso.
A nota do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, segmenta o posicionamento das Forças Armadas para cada uma das peças em jogo. Ao abrir pela importância da independência e da harmonia entre os Poderes para a governabilidade, o ministro coloca em foco o desagrado provocado entre militares pela suspensão da expulsão de diplomatas venezuelanos por liminar do ministro Luís Roberto Barroso, do STF.
Não que concordem com a decisão do chanceler Ernesto Araújo, mas os militares consideram Venezuela um tema sensível para a defesa nacional e sobre o qual o Supremo teria se excedido com sua ingerência. O vice-presidente Hamilton Mourão verbalizou ontem esse desagrado. O Exército acompanha com preocupação o conflito com o país vizinho. O regime de Nicolás Maduro abateu, no domingo, um barco, supostamente vindo da Colômbia, e matou oito integrantes de sua tripulação.
O veto do ministro Alexandre de Moraes à posse de Alexandre Ramagem, diretor-geral da Agência Brasileira de Informações, como diretor-geral da PF também atiçou militares. A liminar consternou até generais não bolsonaristas e gerou indignação, em grupos de WhatsApp, de militares que não haviam se manifestado de maneira semelhante quando o Supremo impediu a posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Casa Civil do governo Dilma Rousseff ou da ex-deputada Cristiane Brasil, filha do presidente do PTB, Roberto Jefferson, para o Ministério do Trabalho, no governo Michel Temer.
A consternação, no entanto, não foi suficiente para o presidente obter o apoio desejado para um conflito com o Supremo insistindo na nomeação de Ramagem. Daí a decisão de buscar Rolando Alexandre de Souza, braço direito do diretor da Abin. Ao assumir, Souza trocou o superintendente da PF no Rio. A decisão, porém, não pode ser considerada parte da operação abafa. Carlos Henrique Oliveira, colocado no Rio por decisão do ex-diretor-geral, Maurício Valeixo, caiu para cima. Tornou-se o número 2 de Souza na corporação.
A nomeação busca conter os danos futuros à investigação sobre o presidente mas não impediu que Moro fosse ouvido, no fim de semana, pela equipe da Polícia Federal designada por Disney Rossetti, nome da preferência do ex-ministro, que respondia interinamente pelo cargo. O ministro Celso de Mello se antecipou à nomeação de Bolsonaro determinando prazo de cinco dias para a PF tomar o depoimento de Moro.
Depois do cravo no Supremo, a nota da Defesa vai na ferradura da imprensa. Defende a liberdade de expressão, leia-se a exaltação bolsonarista, mas classifica de “inaceitável” o ataque a jornalistas. Em entrevista ontem à tarde, Braga Netto foi além: disse que qualquer tipo de agressão tem que ser apurada e é “inadmissível”.
A afirmação do presidente, neste domingo, de que Forças Armadas estão “ao lado do povo” é, por enquanto, mais um movimento defensivo do que de quem tem poder de fogo. O último parágrafo da nota de Fernando Azevedo e Silva, de que as Forças Armadas estarão sempre ao lado “da lei, da ordem, da democracia e da liberdade” sugere que o movimento do presidente não passou de um “balão de ensaio”.
Acontece num momento em que o presidente está acuado pela confluência da queda de popularidade e o avanço do Supremo nos inquéritos que investigam as acusações do ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, o envolvimento de sua família com a rede de divulgação de notícias falsas e grupos de milícia.
O cumprimento com o cotovelo do comandante do Exército, Edson Leal Pujol ao presidente, durante a posse do novo comandante militar do Sul, Gustavo Stumpf, em Porto Alegre na quinta-feira, fartamente explorado pela milícia digital bolsonarista, é interpretado por generais como sinal da preocupação de Pujol com a contaminação de sua tropa pela covid-19. “Ele não é um estrategista como o [Eduardo] Villas Bôas nem tem sua liderança, mas é legalista e incapaz de criar problema”, resume um general que foi seu professor na Escola do Alto Comando do Exército.
Sua substituição, noticiada pela “Folha de S.Paulo”, foi negada ontem com veemência pelo secretário de governo, Luiz Eduardo Ramos. Em entrevista, o ministro repetiu argumentos usados, ao longo do dia, nos grupos de WhatsApp de seus colegas de turma da Academia Militar das Agulhas Negras e que reportam lealdade aos valores de merecimento e antiguidade das Forças Armadas.
É fato de que há cinco generais que o precedem no Exército. Pela ordem, são eles: Claudio Moura (chefe do Departamento de Engenharia do Exército), Augusto Nardi (chefe de Assuntos Estratégicos do Ministério da Defesa), Artur Moura (chefe do Departamento Pessoal do Exército), Décio Shons (comandante do Departamento de Ciência e Tecnologia) e José Luiz Freitas (comandante de Operações Terrestres).
Isso, porém, não impede Ramos de assumir comando do Exército. A obediência ao princípio da antiguidade é uma tradição, não uma norma. Os generais Zenildo Zoroastro, Eduardo Villas Boas, Gleuber Vieira e Carlos Tinoco, para ficar em nomes pós-ditadura, assumiram o comando do Exército a despeito de não serem os mais antigos na Força.
O vazamento de que Pujol possa vir a ser substituído interessa à agenda bolsonarista por excelência de provocar inquietação e sublevação nos quartéis, mas não preocupa os generais do Alto Comando do Exército, especialmente aqueles generais que têm sob suas ordens os comandos regionais. Eles contam muito mais do que os chamados generais de escrivaninha, como alguns dos que precedem Ramos em antiguidade na Força.
É rara a substituição do comando do Exército durante o exercício do mandato. A primeira vez foi quando o general Artur da Costa e Silva deixou o cargo para assumir a Presidência da República em 1967. E a última, dez anos depois, quando o presidente Ernesto Geisel enfrentou o general Silvio Frota, de quem o atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, foi ajudante de ordens. Era um ou outro. Ficou Geisel e ganhou a abertura. A repetição do gesto, hoje, seria na mão inversa.
Maria Cristina Fernandes: O decano encara cabo, soldado e capitão
Celso de Mello não deixará outra alternativa ao procurador senão denunciar o presidente
O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para diretor-geral da PF pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostra que, se o presidente Jair Bolsonaro pretendia ter pontes com a Corte, com suas recentes indicações para a Advocacia- Geral da União e o Ministério da Justiça, a pinguela despencou antes de estabelecida.
Procurador-geral da Fazenda Nacional, Levi Mello do Amaral foi secretário-executivo do MJ na gestão Alexandre de Moraes, hoje relator de dois inquéritos que cercam o mandato presidencial, o das “fake news” e da manifestação do dia do Exército.
Além de segundo de Moraes no MJ, o novo AGU também é próximo de Gilmar Mendes. Compõe com novo ministro da Justiça, André Mendonça, ex-colega do ministro Dias Toffoli na AGU e seu candidato para a próxima vaga no Supremo, uma dupla que prometia azeitar a interlocução com a Corte.
A pinguela começou a ser dinamitada em sua própria base. A deputada Carla Zambelli, da tropa de choque bolsonarista, acusou Moraes, que foi secretário de Segurança em São Paulo, de vínculos com o PCC. Apresentou como única evidência o fato de o ministro “estar envolvido na causa de investigar pessoas que fazem o bem pelo Brasil”.
Na primeira vez em que o STF interferiu numa nomeação do Executivo, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil de Dilma Rousseff, com base num grampo ilegal do ministro Sergio Moro, deu início à queda da ex-presidente. Não foi a última.
Durante o governo Michel Temer, a ministra Carmen Lúcia suspenderia a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e o ministro Celso de Mello manteria a de Moreira Franco. Nenhuma delas abalou o mandato presidencial.
Por controverso, Moraes achou por bem fiar sua liminar na abertura de investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, autorizada por Celso de Mello com base nas denúncias de Moro. Deixa claro que é a autoridade do decano que vai avançar os limites da Corte em relação aos atos do presidente da República.
Assim tem sido antes mesmo da posse de Bolsonaro. No dia seguinte à circulação de vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro disse que bastaria cabo e soldado para fechar o Supremo, o então candidato pelo PSL à Presidência enviou uma carta a Mello. Nela, dizia que as manifestações “emocionais” da campanha se deviam à “angústia e às pressões sofridas”.
Mello não era presidente da Corte e se insurgira contra o vídeo da mesma maneira que outros colegas, mas Bolsonaro justificava a escolha do destinatário pela “conduta impecável” e pela “ponderação”.
O constitucionalista Diego Arguelhes (Insper) diz que a atuação do ministro em defesa das minorias parlamentares pode ter despertado empatia no então candidato. Mas ele também tinha ao seu lado Gustavo Bebianno, que trabalhara no escritório de Sérgio Bermudes, e estava em condições de instruí-lo sobre o destinatário que melhor representaria a reserva moral da Corte.
O remetente logo descobriria que não tinha a menor chance de dobrá-lo. O decano hoje simboliza um Supremo mais unido do que se viu nas décadas marcadas por mensalão e Lava-Jato, pelo restabelecimento da ordem constitucional. Dias depois, um coronel bolsonarista aposentado ofendeu a ministra Rosa Weber e o ponderado ministro chamou-o de “imundo, sórdido e repugnante”.
Com a posse do presidente, o tom subiria ainda mais. Na reedição da medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que sucedeu a decisão parlamentar mantendo-a na Funai, o ministro não pediu vênia: “É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”.
Na escalada do confronto, passou a se dirigir diretamente ao chefe da nação. Na nota em que reagiu a um vídeo compartilhado por Bolsonaro comparando os ministros da Corte a hienas, identificou “atrevimento presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar”.
Àquela altura, nenhum outro ministro ousara tanto. O outrora desbocado Gilmar Mendes se tornara frequentador da corte bolsonarista na companhia de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Celso de Mello, que nunca foi de frequentar palácios, continuou vigilante em relação à escalada autoritária.
Em março, quando Bolsonaro engajou-se na divulgação de passeata golpista, Mello pulou duas casas: “É uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. O ministro submeteu-se a uma cirurgia e, ao voltar da convalescença, já em plenário virtual, resolveu transpor sua indignação para os autos.
Pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifeste sobre denúncia por crime de responsabilidade de dois advogados, determinou que a União devolvesse ao Maranhão ventiladores adquiridos pelo Estado, abriu inquérito para apurar crime de racismo do ministro da Educação, Abraham Weintraub, contra chineses e, finalmente, o mais importante, deles, deu início à investigação sobre as denúncias de Moro contra o presidente. Tudo isso em uma semana.
Conservador nos ritos e na interpretação da norma constitucional e pouco afeito a abordagens emocionais, Celso de Mello parece determinado a deixar sua marca sobre o futuro do estado de direito nos seis meses que lhe restam de mandato. Um parlamentar viu na ênfase dada por Mello à responsabilidade do presidente da República, a minuta de um pedido de impeachment.
O PGR, alerta a constitucionalista Eloísa Machado (FGV), é o condutor da investigação, podendo, inclusive, procrastiná-la. O titubeante pedido de abertura de inquérito é sinal disso. Na opinião de um experiente procurador, porém, Mello pode se valer de medidas cautelares, como aquela incluída no inquérito para que Aras se pronuncie sobre a apreensão do celular da deputada Carla Zambelli, com o intuito de destravar a investigação.
Um ex-ministro do Supremo, que convive com Celso de Mello há décadas, antevê decisões que não deixarão alternativa ao procurador-geral da República, senão denunciar o presidente. Daí pra frente, é outra história. Até lá, a expectativa é de Celso de Mello, na comissão de frente, seja capaz de manter recuados cabos, soldados e, sobretudo, o capitão.
Maria Cristina Fernandes: A cilada do impeachment
Pedido é a isca jogada por Bolsonaro para se vitimizar e unir militares em sua defesa
O presidente da República participou de uma manifestação que tinha por objetivo subverter a ordem política, infração que o enquadra tanto na Lei de Segurança Nacional quanto na Lei do Impeachment. Ao fazê-lo diante de um quartel, além de incitar militares à desobediência, preceito que também o enquadra nesta lei, infringiu a norma que submete atividades no perímetro de 1.320 metros dos quartéis militares à autorização se seus comandos.
Sozinha, a manifestação de domingo já dá motivos de sobra para juristas redigirem empolados pedidos de impeachment. Somado ao estímulo do presidente a que as pessoas quebrem o isolamento social, colocando em risco o direito coletivo e individual à saúde, tem-se aí abundantes argumentos para o afastamento do presidente do cargo. É um prato cheio de iscas.
O PT já fisgou a primeira ao aprovar o mote #forabolsonaro. Ao fazê-lo, o partido reverte decisão tomada dias atrás e torna-se a primeira grande legenda a cair na armadilha que o presidente montou para se apresentar como vítima de uma conspiração. Foi seguido pelo PDT, que briga pela hegemonia dos escombros da oposição.
O comando de caça aos esquerdistas continua vivo no bolsonarismo, ainda que roto e amarelado. No poder, o presidente da República ganhou novas bandeiras. Quer reviver o espírito antipolítica que move tanto as Forças Armadas quanto a classe média urbana desde o tenentismo e foi, em grande parte, responsável por sua eleição.
Para isso, gostaria de fisgar a Câmara dos Deputados e, se der, até o Supremo Tribunal Federal. Um inimigo comum com os militares é um cobiçado objeto de desejo do bolsonarismo e mesmo entre os militares mais abespinhados com o ato de domingo, encontra-se convergência com o discurso de que não o deixam governar. Ter evidências de que Rodrigo Maia estaria envolvido numa articulação para derrubá-lo é tudo que o presidente precisa para unificar, em sua defesa, militares da reserva e da ativa, em grande parte divididos em relação aos limites de sua provocação.
A ferida do domingo ainda está aberta. O acerto feito entre o comandante do Exército, Edson Pujol, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva era o de que o primeiro cuidaria das tropas e o segundo, da política. A geração que hoje ocupa cargos de comando nas Forças Armadas ainda se ressente por pagar o preço de um golpe do qual não participou. Por isso, a Pujol caberia manter as tropas longe da política e a Azevedo, tomar conta para que o capitão, além de militarizar o Palácio do Planalto, não se arvorasse a politizar os quartéis.
Faz tempo que esse acerto foi destroçado, se é que, algum dia, chegou a ter validade. No dia seguinte ao ato de domingo, quando o comandante do Exército não foi capaz de mandar sua tropa enxotar quem fazia do perímetro militar um palanque antes da chegada do comandante supremo, Bolsonaro encenou, mais uma vez, o papel de capitão tutelado. E debochado. Ao proclamar que ele era a Constituição, porém, gozou, mais uma vez, de seus bedéis.
Foi assim que o ministro da Defesa foi levado a emitir a nota na qual diz que as Forças Armadas só têm um aliado, a Constituição e, no momento, um inimigo, o coronavírus. Parece pouco, mas seus redatores viram ali o limite até onde um subordinado pode ir.
Os militares parecem se manter silentes frente a um governante que namora à luz do dia com o golpismo porque a alternativa os expõe ainda mais. O que seria um governo Hamilton Mourão senão a farda, sem disfarces, no poder? Por isso, desencadearam a operação panos-quentes. Buscaram interlocutores para mediar a relação com o Congresso. O apelo foi o de que era preciso pacificar para o capitão não radicalizar. Seria preciso aceitar um presidente que estupra mas não mata a Constituição.
De pelo menos um interlocutor ouviram que de nada adiantaria se vestir de bombeiro se o presidente- incendiário permanecia incontido. Bolsonaro voltou o gabinete do ódio contra o projeto aprovado na Câmara de ajuda a Estados e municípios. Considera-o pauta bomba, tanto pelo rombo nas finanças públicas quanto pelo benefício a seus adversários.
Mas isso não justifica que saia proclamando apoio a um ato pela prisão do presidente da Câmara. O segundo mandato de Dilma Rousseff não teria chegado a abril de 2016 se ela tivesse ido à rua protestar contra a patifaria de Eduardo Cunha, das pautas bomba e de todas as emendas impositivas aprovadas durante a agonia de seu mandato. Bolsonaro prova do mesmo veneno que vitaminou sua ascensão. E sinaliza que vai dar continuidade ao banquete.
Para isolar o presidente da Câmara, oferece aperitivos ao Centrão. Vai distribuir os de sempre, Funasa, FNDE, Codevasf, sabendo que vão pedir de entrada as agências reguladoras e, de prato principal, a presidência da Câmara. Como tanto o Executivo quanto parte do Centrão querem se ver livre de Maia, tudo parece convergir para o bem da nação. Só que não.
As lideranças que negociam com Bolsonaro são as mesmas que, em 2016, almoçavam com Dilma e, no mesmo dia, jantavam com Michel Temer. Vão sair correndo do porão antes de o barco começar adernar.
Furos não vão faltar. Paulo Guedes perdeu a aula que ensinava a gastar. Vai ficar ainda mais perdido num governo não vai conseguir se desvencilhar dos auxílios que começou a pagar. Se no Sudeste, os R$ 600 não refrescam o motorista do Uber, no Nordeste já bombou a venda de ovos. O pessoal que tomou conta do governo sabe abrir para-quedas melhor do que fechar contas.
Some-se a isso os dois inquéritos que tramitam no Supremo, fake news e ato antidemocrático, nas mãos do mesmo relator, Alexandre de Moraes. Como poderá compartilhar provas entre um e outro processo, a busca pelo nome e sobrenome do personagem por trás de ambos estará facilitada.
Por isso, o pedido de impeachment é contraproducente. E arrisca a antagonizar a oposição com a maioria que, se não aprova Bolsonaro, tampouco quer tirar o foco do principal, que é a pandemia. As cordas estão aí. O capitão que não consegue colocar uma máscara de proteção ainda está por se mostrar capaz de tirar o novelo que ele mesmo enrola no pescoço. Num país que está na UTI, quem se apresentar para puxá-lo vai passar por carrasco.
Maria Cristina Fernandes: Desgastado, presidente intimida governadores
Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população, menção ao estado de sítio teve efeito inverso
O presidente Jair Bolsonaro trocou o ministro da Saúde sem arredar um milímetro de suas convicções sobre o combate à pandemia do coronavírus. E ainda valeu-se do discurso de apresentação do novo ministro para subir o tom contra os governadores e o Congresso. Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população sobre a condução de um governo desfalcado do principal gerente do combate à pandemia, a menção ao estado de sítio, ainda que para dizer que o instrumento não seria usado, teve efeito inverso.
Ao citar o “clima de terror que se instalou na sociedade”, Bolsonaro tentou relacioná-lo ao desemprego provocado pelas medidas restritivas dos governos estaduais e não ao medo da morte pela doença. Subiu o tom contra os governadores, com quem trava uma disputa no Congresso no projeto de compensação pelas perdas na arrecadação: “Se governadores e prefeitos exageraram, não coloquem essa conta nas costas do povo brasileiro”. São Paulo e Rio, de João Doria e Wilson Witzel, são os Estados que mais perderam receita.
Acusou-os de cercear direitos individuais, quando “quem tem direito a estado de defesa ou estado de sítio é o presidente da República”. Não defendeu o uso de nenhum dos dois instrumentos, mas sua menção no discurso não é fortuita. Tanto reitera sua autoridade num momento em que foi derrotado na Câmara pelo projeto de ajuda aos Estados e no Supremo pela tentativa de afrouxar o isolamento social, quanto tenta colocar governadores e prefeitos no mesmo balaio de seu voluntarismo.
Ao demitir o ministro mais popular de seu governo em meio à elevação da curva de óbitos da covid-19, Bolsonaro fez aposta arriscada. Os panelaços, durante o discurso, anteciparam prejuízos que já busca socializar. Se ele perde com a demissão de Henrique Mandetta, governadores e prefeitos, alheios ao fato de que “junto com o vírus veio uma máquina de moer empregos”, não podem sair ganhando: “O remédio não pode ser mais danoso que a doença”.
O novo ministro, ao seu lado, demonstrou que não montará em cavalo de batalha por suas convicções. A julgar pelo artigo que escreveu, no início de abril sobre a covid-19, Nelson Teich pouco mudaria na gestão do ministério. “Felizmente, apesar de todos os problemas, a condução até o momento foi perfeita”, escreveu. No texto, defendeu a opção pelo distanciamento social: “É uma estratégia que permite ganhar tempo para entender melhor a doença e implementar medidas que permitam a retomada econômica do país.” No discurso em que se apresentou ao país limitou-se a dizer que não haverá mudanças bruscas: “Saúde e economia não são excludentes.”
A comparação de Bolsonaro entre os direitos individuais pretendidas pelos governadores e os danos que um estado de sítio poderia provocar deve ter surtido efeito sobre Teich. O novo ministro enfatizou a necessidade de aprimorar a coleta de dados e informações sobre a doença, mas não retomou a proposta do artigo (“estratégias de rastreamento e monitorização, algo que poderia ser rapidamente feito com o auxílio das operadoras de telefonia celular”). Ao contrário de seu antecessor, que sempre alertou contra a impossibilidade de se fazer isso num país de 200 milhões de habitantes, Teich quer testes em massa. O novo ministro promete agir sob bases “técnicas e científicas”. Hermético, não se fará entender facilmente pela população, o que, pelo histórico de comunicador de Mandetta, deve ter contado, para o presidente, a favor de sua nomeação.
Dono de uma empresa de gestão tecnológica de saúde, o novo ministro surpreenderá se aparecer com o jaleco do SUS. O Sistema Único de Saúde teve uma breve menção em seu discurso de ontem, quando Teich disse que o programa de testes o envolveria, bem como a saúde suplementar e as empresas. Não deixa de ser uma evolução. No artigo do início de abril, entre 1.991 palavras, não se encontra nenhuma menção ao sistema público que tem segurado o tranco da pandemia no país.
Maria Cristina Fernandes: Quem segura a explosão das favelas
Campanha bolsonarista contra quarentena ecoa em comunidades pobres até que a covid-19 atinja as avós, pilar de coesão social de famílias que têm, em suas filhas, o principal arrimo
Quando Júlio Ludemir começou a tossir, percebeu que, na verdade, se tornara parte de uma sinfonia. Assim como em outras favelas do país, na Babilônia, zona sul carioca, não é preciso encontrar o vizinho para descobrir que ele tosse. Produtor cultural de iniciativas como a Festa Literária das Periferias, Ludemir mora na Babilônia há sete anos. Já viu a favela mudar de cara muitas vezes.
Cenário de “Orfeu Negro” (1958) a “Tropa de Elite” (2008), a Babilônia já foi do PT de Benedita da Silva, do Comando Vermelho, da UPP, do Terceiro Comando, de Marcelo Crivella, dos turistas estrangeiros que se hospedam em seus “hostels”, da chuva que arrasou seus barracos, da falta d’água que perdura em tempos de pandemia e, finalmente, de Jair Bolsonaro, que arrebanhou a franca maioria de seus eleitores em 2018 e hoje é poupado pelas panelas de seus moradores. Ludemir só não viu ainda a favela se transformar pelo coronavírus.
Os mototáxis continuam pra cima e pra baixo deixando o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora numa saia justa. A restrição privaria a comunidade de importante fonte de renda e de comunicação. Por outro lado, seu tráfego, sem capacete para o passageiro, incorreria em infração de trânsito. Por ora, permanecem em operação, com álcool gel no assento e no lado de fora do capacete, como fonte de contágio.
Assim como o mototaxista, o barraqueiro de praia, a manicure e o flanelinha de carro para alugar não têm outra fonte de renda que não seja aquela trazida por sua exposição diária na rua. Por isso, continuam a sair do barraco, ainda que a vida no asfalto, de onde muitos tiram seu sustento, esteja parada.
Julio Ludemir é o primeiro a assumir a irresponsabilidade de não ter feito o confinamento. Além da idade (60 anos), a doença já se espraiava na cidade. No primeiro dia dos sintomas, precisou usar o banheiro de uma birosca e, sem perceber que faltava água, acabou por quebrar a torneira. A dificuldade de manter a higiene necessária à prevenção não impede que as pessoas continuem nos bares, as crianças, nos becos, e muitos, no culto pentecostal à noite.
Ludemir já vê vizinhos se queixarem de pastores que, sem interromper os cultos, fazem deles vítimas de discriminação por parte de outros moradores. O chefe da Igreja Universal, Edir Macedo, chegou a gravar um vídeo em que diz que o debate sobre a doença “é mais uma tática de satanás, que trabalha com o medo, o pavor e a dúvida.”
O produtor cultural diz, no entanto, que a vida na favela só vai mudar quando as avós começarem a ser contaminadas. Se a mulher que trabalha por conta própria é o arrimo de famílias à margem do tráfico e do crime, é a avó que, encarregada dos netos e da gestão familiar, se transforma no pilar da vida nas comunidades. A sobrevivência delas vai moldar, em grande parte, a reação das favelas ao avanço da covid-19.
É a avó do andar de baixo a maior preocupação de Bárbara Nascimento, professora de escola pública de 42 anos. Moradora do Vidigal, favela que se espraia entre o Leblon e a Barra da Tijuca, na zona sul do Rio, Bárbara foi uma das primeiras moradoras a se envolver com a campanha de conscientização pela quarentena. A sua se transformou em casa de ferreiro com espeto de pau.
A despeito da militância de Bárbara, o marido, Marcelo, que trabalha como autônomo no conserto de eletrodomésticos, não parou. Continuou a trabalhar até o sábado, 14 de março, quando o Brasil já tinha centenas de casos mas nenhuma morte confirmada. Na segunda, começou a tossir.
Respondeu a questionários virtuais e constatou que estava com a doença. Apesar de hipertenso, Marcelo, aos 45 anos, preferiu não procurar um serviço de saúde. Como os dois cômodos da casa ficam em andares separados, Bárbara ficou no de cima, que tem acesso à laje onde o filho do casal, de oito anos, pode brincar, e Marcelo, no de baixo. Alternam-se para usar a cozinha.
No primeiro pavimento moram três mulheres. A avó que cuida da neta para a filha, que vive de bico, poder trabalhar. Tem cesta básica entregue pela associação dos moradores, mas está exposta porque a filha continua na rua. Na laje ao lado, várias famílias ainda se reúnem para fazer churrasco.
Se a Babilônia voltou às ordens da UPP, o Vidigal continua sob o Comando Vermelho. E lá, a boca de fumo não parou nem decretou toque de recolher. Blogs como o “Portal Favelas” convocam para a quarentena. É uma das tantas iniciativas comunitárias que receberam rasgado elogio do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para quem não tem acesso à internet, porém, a única fonte de alerta é o carro de som do supermercado da região, que passa apenas nas vias principais e uma sirene da associação de moradores. Nem um nem o outro são ouvidos por quem mora na parte mais elevada do morro.
Lideranças da favela têm encomendado faixas e pedido para o carro rodar mais vezes, mas é tudo pago e o cobertor, curto. A solidariedade, cimento de coesão social na favela, tem limites.
“Ninguém tá fazendo nada por amor”, queixa-se Bárbara. Nos fóruns de que participa, a professora recomenda que as pessoas deixem de pagar contas de água, luz, telefone ou dívidas. E guardem o dinheiro para comer e comprar remédio. A começar por sua mãe, que mora em Guaratiba, na zona oeste, aos 67 anos, hipertensa e diabética, gasta metade de sua renda em remédios.
A dificuldade de amplificar a recomendação de quarentena na comunidade se reflete em crianças - e suas avós - que permanecem nas vielas e becos, cuja largura não ultrapassa dois metros, e homens que lotam os bares. Dos motoristas de ônibus, auxiliares de enfermagem, trabalhadores das companhias de eletricidade, água e limpeza que lá moram, Bárbara ouve que se eles saem de casa para trabalhar, podem também fazê-lo para se divertir.
Mesmo no Vidigal, favela que, ao contrário da Babilônia, não votou em Bolsonaro, a pregação do presidente pelo fim da quarentena ecoa. Lá, o panelaço, mais forte do que em muitos bairros de classe média, convive com entregadores como aquele que leva remédio para o marido de Bárbara. Seu comentário - “Todo mundo um dia vai morrer mesmo, então é melhor trabalhar” - foi um copia e cola da fala de Bolsonaro no domingo, 29, em que, pela enésima vez, passeou pela rua contrariando as autoridades sanitárias.
Em Sapopemba, bairro do extremo Leste de São Paulo, zona mais populosa da cidade, o discurso bolsonarista também ecoou. Nas favelas da região, monopolizadas pelo PCC, houve toque de recolher e suspensão dos bailes funk nos dois primeiros fins de semana da quarentena, mas a pressão presidencial contra a quarentena já surtiu efeito para levar mais movimento para a rua e incutir conflito na comunidade.
Em Carapicuíba, cidade-dormitório no oeste da Região Metropolitana de São Paulo, os conjuntos habitacionais construídos pelo programa Minha Casa Minha Vida estão sendo geridos com toque de recolher e regras como a de que apenas um integrante por família sai de casa para abastecê-la no supermercado. A maior parte dos conjuntos habitacionais para a população de baixa renda da cidade é gerida por empresas dominadas por ex-policiais militares.
Psicóloga de 48 anos, nascida e criada em Sapopemba, onde trabalha num centro de reabilitação do hospital do bairro, um dos maiores da capital, Cláudia Diroli prevê um atendimento congestionado em seu serviço na volta ao trabalho, a começar pelos próprios profissionais de saúde que estão na frente de batalha. Diz que a associação entre privação e medo vai afetar a saúde mental das pessoas e provocar toda sorte de transtornos pós-traumáticos.
À frente de uma campanha de mobilização para doações a entidades de moradores de rua e associações de moradores de Heliópolis, favela da zona sul de São Paulo, a socióloga Luna Zarattini arregimentou 450 voluntários e R$ 80 mil, além de doações de alimentos e produtos de limpeza, na primeira semana de atuação. Viu, no entanto, a demanda crescer muito mais que a oferta.
Apesar disso, ainda não se registra, a não ser na ação dos robôs bolsonaristas, um risco iminente de saques desenfreados nas comunidades mais pobres do país. À frente de uma equipe que analisa a origem e a propagação de mensagens em redes sociais, Manoel Fernandes foi despertado pela postagem de saques em duas cidades, Curupira, município de 24 mil habitantes, no interior de Pernambuco, e São Vicente, no litoral paulista. A notícia vinha acompanhada de fotos e vídeos de saques ocorridos num supermercado na Guatemala.
Não estivesse o país em meio a uma pandemia sob o comando de Jair Bolsonaro, a notícia teria se perdido. Não foi o que aconteceu. Em um único dia, a equipe de Fernandes identificou 6.667 tuítes sobre saques. A propagação desta notícia falsa foi associada ao caos a ser provocado pela quarentena da covid-19, com desabastecimento e violência.
As Forças Armadas chegaram a ser colocadas de prontidão para a eventualidade de caos generalizado no país provocado pelo crime organizado. O sinal de alerta foi dado pela rebelião, com fuga, em cinco presídios paulistas antes de o confinamento se espraiar pelo país. A associação entre o PCC e as fugas acabou não se comprovando. Tampouco a associação entre crime organizado e saques nas comunidades carentes. É na saúde das avós que o termômetro social hoje parece estar sintonizado. No início da semana, a Rocinha, na zona sul do Rio, registrou a primeira morte de um morador de favela. Maria Luiza do Nascimento, de 70 anos, morava com filha e neta na parte alta da comunidade.