Maria Cristina Fernandes
Maria Cristina Fernandes: A única frente ampla é a do poder
Enquanto a esquerda se divide, Bolsonaro aprende a compor
Numa disputa em 5.569 municípios, sempre será possível comprovar uma tese e seu contrário, principalmente na eleição mais apartada da história. Uma parte dos eleitores está trancada na autossuficiência de seu ensino e trabalho remoto, plano de saúde e entregas em casa. Outra, mais numerosa, se depara com o despreparo das escolas públicas para o ensino à distância, de um transporte público desaparelhado para um serviço sem riscos, de postos de saúde desorientados pela ausência de uma política nacional de prevenção à pandemia e de um Estado que pretendeu anestesiar tudo isso com um auxílio financeiro.
É difícil imaginar que tamanhas fissuras num colégio eleitoral de 147.918.498 pessoas mantenham quaisquer teses em pé, mas aí estão muitas a pontificar. A primeira delas é a de que o mote da anti-política, que moveu as eleições de 2018, perdeu força. Três indícios respaldam esta tese: o presidente Jair Bolsonaro abraçou a velha política e respira sem ajuda de aparelhos; estrelas da renovação, como os governadores Wilson Witzel (RJ), Carlos Moisés (SC) e Wilson Lima (AM), caíram em desgraça; e, finalmente, a gravidade da pandemia levou o eleitor a revalorizar a experiência de políticos testados.
A liderança dos prefeitos Alexandre Kalil (PSD), em Belo Horizonte, Rafael Greca (DEM), em Curitiba, Marquinhos Trad (PSD), em Campo Grande, dos ex-prefeitos Eduardo Paes (MDB), no Rio, e Edmilson Rodrigues (Psol), em Belém, e do ex-governador Amazonino Mendes (Podemos), em Manaus, serve aos arautos da tese. Por outro lado, se houvesse tanto conformismo assim com a política tradicional, o candidato do Psol em São Paulo, Guilherme Boulos, não estaria tão à frente de seus adversários de esquerda, todos eles com mais estrada na política. Também fica difícil explicar, com a tese da revalorização de políticos testados, a liderança da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela D’Ávila, que hoje tem a soma das intenções de voto de um ex-prefeito, José Fortunati (PTB) e de seu ex-vice, Sebastião Melo (MDB).
É bem verdade que pesquisa não é voto, mas trata-se da disputa mais curta da história. É, também, uma campanha com poucos ou nenhum debate em que os candidatos que largam na frente estarão menos expostos ao contraditório. Sempre podem cair, mas correm mais o risco de tropeçar nas próprias pernas, como, por exemplo, o deputado federal Celso Russomanno (Republicanos), líder da disputa em São Paulo com apoio do presidente Jair Bolsonaro, ao dizer que a sujeira dos moradores de rua de São Paulo os imuniza contra o coronavírus.
A outra tese é a de que a eleição municipal prediz o desempenho dos partidos nas eleições proporcionais dois anos depois. A tese não resiste ao resultado das ultimas eleições. Entre 2012 e 2016, o MDB manteve, com uma variação negativa de 1%, seu número de prefeituras. Nas eleições gerais (2018) que aconteceram no meio do mandato desses prefeitos, porém, o partido perdeu metade de suas cadeiras na Câmara dos Deputados.
O PSDB chegou a crescer em número de prefeituras entre 2012 e 2016 (15%), mas não foi capaz de evitar que, na eleição de 2018, perdesse quase metade de suas cadeiras na Câmara dos Deputados. Com o DEM foi diferente. O partido manteve relativamente estável o número de prefeituras (-4%) entre as duas últimas eleições municipais, mas conseguiu aumentar em 38% o número de cadeiras na Câmara nas últimas eleições. Já o PT teve o maior tombo em número de prefeitos (perdeu 60%), mas foi capaz de conter as perdas de sua bancada, com uma redução de 20% na atual composição.
Ainda que o resultado de uma eleição não explique a outra, este ano os partidos não têm alternativa senão buscar nesta a sobrevivência para a próxima. Por isso, batem recordes em número de candidatos. Com a proibição de coligações e a entrada em vigor da cláusula de desempenho nas eleições de 2022, os partidos precisam ganhar musculatura com bases municipais capazes de gerar cabos eleitorais que os livrem da guilhotina.
Esta mudança desfavoreceu qualquer tentativa dos partidos para começar, a partir das eleições municipais, a ensaiar uma frente ampla para as eleições gerais capaz de enfrentar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. No conjunto dos 96 maiores colégios eleitorais do país, cidades que podem ter segundo turno, o PT disputará sem coligação em 36 delas, como mostrou o Valor (23/9). As mudanças na lei explicam uma parte. O cálculo político das lideranças explica a outra.
O do PDT, por exemplo, passa por sedimentar uma aliança capaz de aglutinar o centro e levar, de arrastão, a esquerda, em torno de Ciro Gomes. Foi assim que se frustrou, num domingo de agosto, a derradeira tentativa de se formar uma frente em torno do deputado Marcelo Freixo (Psol), no Rio, cuja disputa é a mais emblemática para o presidente da República e sua família.
O PT topava retirar a candidatura deputada federal Benedita da Silva, mas o PDT se recusou a discutir em que termos negociaria a candidatura da deputada estadual Martha Rocha. No dia seguinte ao encontro combinado, Ciro estava em Salvador firmando aliança com o prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM). Sinalizou o mesmo rumo já tomado pelo partido em Fortaleza, onde rompeu a aliança com o PT, responsável pela aliança que elegeu os atuais prefeito e governador. Ciro reaproximou-se, depois de décadas em raias separadas, do senador Tasso Jereissati (PSDB). O candidato de ambos, o deputado estadual Sarto Moreira (PDT), está em terceiro.
Na disputa de novembro, o eleitor quer, sobretudo, alguém que cuide do espaço e dos serviços públicos. Leva em consideração o que dispõe hoje e as chances de melhorar. Isso não impede que se constate a ausência de ensaios para as movimentações de 2022. Em toda eleição lideranças testam compromissos, capacidade de se cumprir acordos e a definição de metas em conjunto para a conquista do poder.
Por enquanto, é a busca de sua manutenção que sai na frente. O presidente sem partido tem se movimentado em Brasília, em suas alianças com o Congresso e o Judiciário, com muito mais foco para formar uma frente ampla para 2022, do que a miríade de partidos que um dia compuseram a esquerda.
Maria Cristina Fernandes: Quem janta por último em Brasília
Frente a um Congresso que avança sobre o teto de gastos para definir o poder na Casa, Bolsonaro articula Tereza Cristina para comandar a Câmara
A questão não é mais se o Brasil ainda precisará de um regime de exceção fiscal para 2021. Já está claro que sim. Trata-se, agora, de definir quem dará as cartas nesse regime que estenderá parte das regras fiscais da pandemia para o próximo ano. Ou seja, quem define como, quando e para qual finalidade o teto de gastos deve ser rompido.
Foi este o guisado da noite de segunda-feira que reuniu o ministro da Economia e o presidente da Câmara dos Deputados, além de dois outros ministros de Estado, Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), quatro senadores, Eduardo Braga (MDB-AM), Fernando Bezerra (MDB-PE), Kátia Abreu (MDB-TO) e Renan Calheiros (MDB-AL), um deputado federal, Baleia Rossi (MDB-SP), além de três ministros do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro, Vital do Rêgo e Bruno Dantas, o anfitrião.
Uma alternativa é a aprovação de um dispositivo, previsto, desde 2019, na Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo, em tramitação no Senado, que cria o “Conselho Fiscal da República”. Esta instância, formatada para os presidentes dos três Poderes e do TCU, além de três governadores e três prefeitos, pode vir a ser aclimatada aos tempos que correm.
A participação de Paulo Guedes neste Conselho, por exemplo, lhe imporia uma vantagem sobre o ministro do Desenvolvimento Regional, com quem mantém incontida refrega. No jantar, chegou mesmo a testar a hipótese da cadeira de Rogério Marinho vir a ser ocupada pelo deputado federal e ex-ministro das Minas e Energia, Fernando Bezerra Filho (DEM-PE).
Ficou registrado o esforço de Guedes em conquistar a adesão de um dos senadores presentes, pai do cortejado e sabidamente próximo de Marinho, para sua causa. Atiçou ainda o ânimo daqueles que veem nas obras do ministro do Desenvolvimento Regional uma muleta para o poder crescente do PP, partido do senador Ciro Nogueira (PI) e Artur Lira (AL), este último candidatíssimo à cadeira de Rodrigo Maia.
Se para Guedes, a disputa com Marinho ofusca o horizonte, para os presentes o que importa mesmo é a divisão de tarefas na fixação da claraboia dos gastos. Um dos senadores chegou a dizer ao ministro que o aval do presidente da República não basta para Guedes impor suas ideias ao Congresso. Deveria, sim, testar sua viabilidade primeiro com as lideranças partidárias para, aí sim, todos juntos, levar as iniciativas a Jair Bolsonaro, a quem cabe encampá-las. Se fosse possível traduzir num traçado a preleção do senador, o desenho seria o de Guedes sentado no colo das lideranças para a escolinha da política como ela é.
Além do conselho, ideia de difícil operacionalização, o próximo embate para a definição do novo regime fiscal é o da Comissão de Orçamento do Congresso. O presidente e o relator são escolhidos por votação de seus integrantes - 36 deputados e 26 senadores.
É esta disputa que definirá, em grande parte, a sucessão na Câmara dos Deputados, que opõe Lira e Maia. O candidato do primeiro - e do presidente do PL, Valdemar Costa Neto - é a deputada Flávia Arruda (PL-DF). O do segundo - e do presidente do DEM, Antonio Carlos Magalhães Neto - é o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).
Se as lideranças do Congresso têm a expectativa de que podem colocar Paulo Guedes no colo mediante um pedido de desculpas de Maia, já não têm a mesma desenvoltura em relação ao presidente. Bolsonaro já adquiriu a capacidade de operar os códigos do poder.
Depois do condomínio de lealdades montado para a escolha do juiz Kassio Nunes Marques para o Supremo e da confirmação de seu braço direito, o ministro Jorge Oliveira, para a Corte (TCU) que aquilata com quantas pedaladas se derruba um presidente da República, Bolsonaro mira agora na disputa pela Câmara.
Entre a visita ao ministro Gilmar Mendes, quando selou sua escolha para o STF, e o caloroso almoço na casa do ministro Dias Toffoli, Bolsonaro recebeu um ministro de tribunal superior e pôs na pauta de uma longa conversa o nome de um tertius, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.
Deputada federal pelo DEM do Mato Grosso do Sul, a ministra, uma das mais bem avaliadas da Esplanada, tem servido de barreira a dois franco-atiradores do governo, os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Encontrar um substituto para a Agricultura, porém, parece ser, ao presidente, uma tarefa menos difícil do que tirar da cartola um novo comando para a Câmara.
Ao pinçar uma correligionária de Rodrigo Maia, Bolsonaro sinalizaria que não quer se indispor com o presidente da Câmara, ainda que se exponha ao risco das imprevisíveis disputas da Casa. Liderança egressa do PSB que se projetou na poderosa bancada ruralista da Câmara, Tereza Cristina ainda teria a capacidade de fazer, no cargo, a transição para a chapa de Bolsonaro em 2022. No PRTB, e fora dele, dá-se por certo que a vaga de vice não voltará a ser ocupada por Hamilton Mourão na eleição de 2022.
A colocação de Tereza Cristina na roda, à revelia da ministra, não é uma demonstração apenas de que o presidente se antecipa ao apetite com o qual o Congresso retomará os trabalhos em fevereiro de 2022. É também sinal de que Bolsonaro pretende assumir, de uma vez por todas, a condição de presidente do sistema, que pretende ser o candidato do centro em 2022. Abraçado pelos tribunais e pelo Congresso, já não precisará tanto assim dos pentecostais, dos reservistas e dos terraplanistas.
Dois termômetros indicam que o comportamento do presidente é pesado e medido. Na aferição da Bites, este movimento de Bolsonaro não trouxe dano à sua base de 38 milhões de seguidores, mas impôs uma perda de 1,2 milhão nas redes sociais do pastor Silas Malafaia. Nas pesquisas qualitativas de Esther Solano (Unifesp), com eleitores bolsonaristas mais pobres, o presidente é visto como uma vítima que precisa buscar alianças para governar.
É um eleitor que avalia ter errado uma vez, com o PT, e resiste a aceitar que possa ter errado de novo. Só vai mudar de ideia se não tiver o que comer. Se conseguir fazer prevalecer o acordão dos tribunais, o instinto de sobrevivência de Bolsonaro estará focado neste eleitor. É ante o apetite do Congresso e o temor do mercado sobre a situação fiscal, que se definirão os rumos do poder - e da fome.
Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro e Trump em busca do inimigo externo
EUA e Brasil têm os maiores cemitérios da covid, não é por acaso que coincidem no discurso
Primeiro e maior fórum mundial desde o início da pandemia, a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas revelou como a covid-19 não apenas moldou a visão de mundo de chefes de Estado como também a maneira como cada um pretende que a reação à doença seja vista, principalmente, em seu próprio país.
As falas, porém, não se limitaram à projeção de um caldo multinacional de quimeras. Confrontados, os discursos de Xi Jinping (China), Vladimir Putin (Rússia), Emmanuel Macron (França), Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro deixam claro que apenas os dois últimos fizeram da pandemia a deixa para a fantasia do inimigo externo. Talvez não seja coincidência que Estados Unidos e Brasil sejam aqueles que, neste grupo, registram tanto o maior número absoluto quanto proporcional de mortos pela doença.
Dos cinco chefes de Estado, Xi Jinping foi quem mais falou da pandemia. Anteviu o que seria o discurso de Trump, que o antecedeu com 20 menções à China, mais do que o dobro de todas as referências à doença, às suas consequências e às providências tomadas.
Ante um Trump que resume o drama mais devastador da humanidade desde a criação da ONU ao “vírus chinês”, Xi citou 13 vezes a covid-19, doença que teve uma única menção no discurso do presidente americano, e nove, o vírus, a despeito da nacionalidade imputada. E propagandeou a “diplomacia da vacina” para substituir a das máscaras e expurgar o espectro da culpa chinesa.
Sem enfrentar as mesmas imputações de Xi, Putin foi pelo mesmo rumo. As menções do presidente russo à doença superaram, com folga, todas as suas demais obsessões sobre segurança cibernética, armas químicas e nucleares e fronteiras. Se deixou explícita uma disputa ali foi aquela com a China pela diplomacia da vacina. Um (Xi) tratou dela como bem público e se comprometeu a dar prioridade de acesso a países em desenvolvimento e o outro (Putin), ofereceu-a de graça aos funcionários das Nações Unidas.
É bem verdade que são dois chefes de Estado que não enfrentam esse problema chamado eleição. Podem se dar ao luxo de exibir altruísmo ao mundo e a seus nacionais num contraponto a um presidente, como Trump, que não baixa as armas nem sob uma pandemia. Tem alguma outra doença em curso, além da covid-19, a assolar a humanidade quando o candidato à reeleição na mais rica democracia do mundo precisa contornar uma doença que já tirou a vida de 200 mil cidadãos para ganhar a disputa.
Uma patologia da mesma família atinge o Brasil. O chefe de Estado, mesmo não estando em campanha eleitoral, precisa fazer igual contorcionismo para falar sobre a doença que levou seu país, com 138 mil mortos, a ultrapassar, em proporção de vítimas, os EUA de sua inspiração.
Não faltam menções apenas à doença no discurso de Trump e Bolsonaro. Inexistem referências à pobreza ou à desigualdade. Talvez não precisassem imitar Macron que, em seu discurso quilométrico (sete vezes maior do que o de Trump e quatro vezes maior que o de Bolsonaro), fez 30 referências à doença, e nove aos seus efeitos sobre pobreza e desigualdade.
Trump, no entanto, limitou-se a dizer que produziu um número recorde de ventiladores, reduziu o índice de fatalidade e está empenhado na busca por uma vacina. No resto do discurso, a doença foi apenas um trampolim para culpar a China e a Organização Mundial de Saúde. Em plena pandemia, achou por bem informar ao distinto público que os EUA gastaram U$ 2,5 trilhões nos últimos quatro anos (mais do que as despesas feitas para o combate à doença e a seus efeitos) em defesa: “Temos as Forças Armadas mais poderosas do mundo”.
Bolsonaro seguiu a mesma trilha. Fez quatro menções aos militares e uma única - equivocada - sobre médicos e enfermeiras que estão no campo de batalha da pandemia (“[O governo] estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença”).
Quem assistiu ao discurso de Bolsonaro não tomou conhecimento sobre iniciativas que poderiam ter contido a doença, como, por exemplo, uma testagem maciça, mas foi informado da presença militar em Roraima que, dias antes, servira de palanque para o secretário de Estado, Mike Pompeo, se dirigir aos eleitores anti-Maduro da Flórida.
Em 2019 os militares tinham ficado ausentes do tresloucado discurso com o qual Bolsonaro se apresentou ao mundo numa guerra santa contra o socialismo de Fidel Castro. Desta vez, o comando de caça aos comunistas ficou de fora - assim como do discurso de Trump - e os militares ocuparam o espaço.
Saem os socialistas e entram aqueles que ameaçam a soberania brasileira na Amazônia. O tema, que tinha ficado ausente do discurso de 2019, teve, desta vez, sete menções - todas contestadas por quem entende de floresta.
O peso que deu ao tema só foi comparável ao de Xi, sendo que o presidente chinês se comprometeu com metas ousadas de redução de gases-estufa enquanto Bolsonaro só mostrou compromisso com a desinformação. Nem polemizar conseguiu. Ao contrário de 2019, quando Macron fez do clima e da Amazônia seu cavalo de batalha, com mais de 20 menções ao tema, desta vez o presidente francês citou os embaraços climáticos de passagem e, com a arapuca já armada no acordo da União Europeia com o Mercosul, passou reto diante da Amazônia.
O discurso soberanista não devolve as onças-pintadas ou os milhares de hectares queimados nem contém a ameaça sobre centros de excelência na produção de dados sobre as florestas brasileiras. Sem defesa para a covid-19, no entanto, foi o que restou a Bolsonaro.
A aposta de Trump de que o “vírus chinês” o eximirá de suas responsabilidades será testada em pouco mais de um mês. A de Bolsonaro ainda tardará, mas esquenta os motores contra as “instituições internacionais” de preservação ambiental. Busca um inimigo externo para a dificuldade de o Brasil atrair capital e gerar emprego. Na tentativa de copiar Trump, mimetiza Nicolás Maduro.
Ainda que tenha maioria parlamentar, dois ministros a mais no Supremo e avance sobre instituições de controle, o presidente pode acabar, como Maduro, só com seus fardados na batalha. A palavra “democracia”, mencionada até por Xi e Putin, não apareceu na fala de Bolsonaro - nem na de Trump.
Maria Cristina Fernandes: O discurso de Guedes aos intocáveis do Executivo
Ao dizer que os salários da alta administração são baixos, o ministro da Economia dá discurso a categorias aquinhoadas que aprofundam a desigualdade no serviço público
“Os salários da alta administração são baixos. Vejo aqui o ministro Bruno Dantas, que em qualquer banco pode ganhar US$ 4 milhões por ano. Vai ser difícil convencê-lo a ficar no TCU [Tribunal de Contas da União]. Ele vai receber muitas propostas. Já levaram o [Nelson] Jobim [ex-ministro do STF, hoje diretor do BTG Pactual]. Vão levar todo mundo…. Estou vendo aqui Ana Carla Abrão, que tentei manter mas foi abduzida pelo Santander. Tá ganhando cinco vezes mais do que ganharia aqui, certo?”.
Errado. Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, corrigiu educadamente o ministro da Economia. Paulo Guedes entrou e saiu tão de supetão numa “live” promovida na semana passada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que confundiu Ana Carla com Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro e hoje economista-chefe do Santander.
O ministro da Economia, que não ouviu a preleção de nenhum dos outros participantes da “live”, nem ficou para o debate depois que acabou de falar, chegou mesmo a dizer que o funcionalismo tinha uma distribuição salarial “quase socialista”. Nos últimos meses, o ministro perdeu vários colaboradores, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida, hoje economista-chefe do BTG, e o ex-diretor da Secretaria Especial do Ministério da Economia Caio Megale, hoje economista-chefe da XP. A mágoa parece ter enviesado sua visão sobre o tema.
Mal Guedes desapareceu da tela, Ana Carla, uma das economistas de mais longeva militância pela reforma administrativa no país, tomou a palavra e analisou os males da desigualdade no serviço público que o ministro demostrara ali firme disposição em aumentar.
Ana Carla citou pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros que, baseado em dados de salários públicos e privados entre 2001 e 2015, concluiu que o coeficiente de Gini (índice de concentração de renda) do setor privado havia caído 0,44 para 0,37. No mesmo período, o Gini do setor público permanecera quase estagnado, passando de 0,48 para 0,46.
O descasamento entre a desigualdade do setor privado e a do setor público aconteceu, principalmente, ao longo dos governos petistas, quando houve a recomposição salarial de carreiras, inclusive na elite do funcionalismo, como a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal. Esse divórcio, que começou na administração Lula, foi preservado na gestão Temer e encontrou porto mais do que seguro sob Jair Bolsonaro.
O governo que acaba de enviar uma proposta de reforma administrativa com a qual pretende cortar R$ 300 bilhões da máquina pública em dez anos é o mesmo que mandou para o Congresso a regulamentação do bônus de produtividade da Receita e resistiu a limitar o da AGU e da PGFN ao teto constitucional.
Aprovado pelo Congresso no limbo entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o bônus da Receita foi abraçado pelo ministro Paulo Guedes a despeito de contestações por todos os lados. O bônus já foi contestado pelo Tribunal de Contas da União tanto pela inexistência de previsão orçamentária quanto pela extensão a aposentados, condição em que, por óbvio, o funcionário deixa de ser produtivo para a instituição.
O acórdão do TCU não impediu o governo de enviar para o Congresso uma medida provisória (899) em que embutiu a regulamentação do bônus. A MP foi aprovada pela Câmara e, no Senado, ficou sem o jabuti sob a justificativa de que o bônus poderia levar a um acréscimo de até 80% nos vencimentos de mais de 15 mil funcionários. Salários de R$ 30 mil poderiam vir a ser acrescidos de mais R$ 21 mil, o que estoura o teto constitucional de R$ 39 mil
Enquanto não é regulamentado, os funcionários da Receita continuam a receber “apenas” R$ 3 mil de acréscimo. Desde que começou a ser pago, em 2018, o bônus tem levado a questionamentos sobre a procedência das autuações da Receita, uma vez que, quanto maior o valor cobrado, maior seria a vantagem auferida pelo auditor.
Com o discurso da meritocracia com o qual defende a reforma administrativa, Paulo Guedes pretende aliar o bônus por eficiência da Receita à sua visão de Estado. Sugere convergência ao que é, sobretudo, uma concessão a servidores cujas greves, como a de 2018, paralisou a arrecadação e implantou o caos nas aduanas.
O mesmo se aplica aos honorários de sucumbência que, previstos desde a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2016, acrescentaram, por mês, a mais de 12 mil advogados da União e procuradores da Fazenda, uma média de R$ 6 mil a salários que chegam a R$ 27 mil.
Os honorários reproduzem, para o serviço público, a lógica inerente à advocacia privada, que cobra percentuais sobre causas ganhas. O benefício é de mão única. Não se aplica, com supressão de vencimentos, quando a União perde a causa e é obrigada a pagar à parte que a acionou na Justiça.
No ano passado, uma emenda do Novo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fez com que os honorários advocatícios se somassem aos vencimentos dos funcionários para efeito de aplicação do teto constitucional. O presidente Jair Bolsonaro resistiu, mas o Congresso driblou a indisposição do governo e o dispositivo limitante passou a valer a partir de janeiro. Como a LDO só tem validade de um ano, porém, a limitação acaba em dezembro.
Os penduricalhos dessas categorias foram instituídos numa época de baixo desemprego e forte valorização das carreiras públicas nos governos petistas, quando muitos servidores deixaram seus cargos atraídos por uma vaga no Ministério Público ou no Judiciário. A paralisação dos concursos públicos, o congelamento de salários e, principalmente, a crise no mercado de trabalho fez sumir as circunstâncias que, um dia, serviram de justicativa para os penduricalhos.
A proposta do governo os contorna, bem como deixa de lado os vencimentos de carreiras sobre as quais o Executivo pode legislar mas não o faz, como o Ministério Público - graças, em grande parte, ao crédito que o Procurador-Geral da República tem hoje no Palácio do Planalto - e a magistratura.
O argumento de que o Executivo não pode se debruçar sobre essas carreiras não se sustenta. O governo não teve o mesmo “pudor”, diz o consultor legislativo e professor da FGV, Luiz Alberto dos Santos, quando enviou a reforma da Previdência que alterou direitos previdenciários de servidores e magistrados, embora tenha preservado - e ampliado - as prerrogativas dos militares.
Foi por pressão de procuradores e magistrados que o Congresso congelou a proposta que tramita desde 2016 e regulamenta a submissão de todos os servidores públicos do país, de todos os Poderes e entes da Federação, ao teto constitucional dos vencimentos dos ministros do Supremo.
Já há, no entanto, gestões, no entorno do presidente, para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o projeto que acaba com os penduricalhos gerais da nação. A iniciativa tende a indispor o governo e o Congresso com corporações poderosas. No Judiciário, por exemplo, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Fux, um dos dois únicos ministros da Corte que percorreu toda a carreira da magistratura (a outra é a ministra Rosa Weber), foi um baluarte na defesa do auxílio-moradia.
A magistratura, de acordo com Ana Carla Abrão, já rompeu o limite de gastos estabelecidos pelo Orçamento para o Judiciário e, apesar de ter salários médios que ultrapassam o dos ministros do Supremo, não sinaliza disposição de abrir mão de seus benefícios extra-teto.
Nem mesmo os ministros sem vínculos com a corporação, como Dias Toffoli, são capazes de impor uma agenda de enxugamento. No apagar das luzes de sua gestão no colegiado, Toffoli presidiu a sessão que aprovou um benefício equivalente a um terço dos vencimentos dos juízes para aqueles que forem responsáveis por mais de uma comarca. De acordo com o CNJ, a remuneração média dos magistrados brasileiros é de R$ 50 mil, 28% a mais do que o teto constitucional.
Relatora da comissão por onde tramitou a proposta que poda os benefícios extra-teto, a senadora Katia Abreu (MDB-TO) atribui a criação de penduricalhos à fixação de um salário alto para o ingresso em algumas carreiras públicas. A rápida progressão faria com que os funcionários atinjam o topo da remuneração com muitos anos de serviço pela frente, estimulando a busca por indenizações extraordinárias..
Se a desigualdade no serviço público é ainda maior do que aquela do setor privado, os penduricalhos puxam ainda mais o desequilíbrio na Federação. Nas contas de Katia Abreu, dos 11,4 milhões de servidores públicos do país, 57% (6,5 milhões) estão nos municípios, 32% (3,6 milhões) estão nos Estados e 11% (1,1 milhão) estão na União.
Esses servidores consomem R$ 928 bilhões em recursos, sendo que cada instância da Federação abocanha, grosso modo, um terço desse valor. Nas contas da senadora, os servidores municipais têm salários equivalentes aos da iniciativa privada. Os estaduais ganham de 35% a 40% a mais e aqueles da União têm vencimentos 98% superiores aos daquelas funções exercidas no mercado privado.
Todos, a princípio, concordam com a submissão ao teto constitucional, mas unicamente para consumo externo. Se presidente, equipe econômica e Congresso estivessem, de fato, empenhados em "não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos" já teriam encarado a trama dos privilégios e prerrogativas das carreiras mais aquinhoadas da República.
Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro terceiriza o apuro em que se meteu
Presidente esmera-se no seu melhor papel, o de confundir
O presidente da República esmera-se no seu melhor papel, o de quem, ao mesmo tempo, faz e desfaz. Diz e desdiz. Confunde e embaralha para reinar sobre o apuro fiscal em que se meteu. Sempre foi assim e não deixará de ser enquanto tiver um Congresso subserviente a esta bipolaridade.
Em 48 horas, Jair Bolsonaro tomou uma decisão contra bem aquinhoados (o veto da anistia fiscal às igrejas isentas), recomendando ao Congresso que a derrubasse, gravou vídeo dando cartão vermelho à turma “sem-coração” do Ministério da Economia e dizendo que desistira de um programa de renda básica em favor do Bolsa-Família. Por fim, ressuscitou o Renda Brasil, pediu que o relator o incluísse no Orçamento e elogiou o ministro Paulo Guedes e sua equipe.
Em qual desses Bolsonaros se deve acreditar? Em nenhum e em todos eles. Como não sabe como fazer caber o Brasil dentro do PIB e não aceita arcar com as consequências das alternativas que lhe são apresentadas, o presidente se compraz em terceirizar uma responsabilidade que é sua.
Ao acender o fogareiro para o ministro da Economia, não significa que queira fritá-lo. Ao apagá-lo não pretende salvá-lo. O vaivém é inócuo. Para a agenda que move suas obsessões, Paulo Guedes hoje tem um papel decorativo. É, porém, mais útil do que nunca a um presidente que precisa se mostrar em guerra contra seu próprio governo.
E não apenas contra Guedes. Por um lado, Bolsonaro precisa dosar as ambições dos parlamentares aderentes para mantê-los como sócios de sua recondução em 2022. Por outro lado, tenta preservar o apoio daqueles que apostam na agenda do ministro, não somente para conter a pressão sobre a dívida pública, mas também para evitar que ponham um pé em outra canoa precipitadamente. Por tudo isso, Paulo Guedes pode continuar a fingir ser quem é.
É claro que o presidente não se move apenas pela intuição. Do monitoramento das redes sociais, conclui-se, por exemplo, que o deputado que acorda e vai dormir falando de auxílio emergencial, André Janones (Avante-MG), teve 55 milhões de interações em suas redes sociais nos últimos 30 dias (levantamento da Bites), mais do que o próprio Bolsonaro (36 milhões). Por isso, o presidente avança e recua no tema para não perder o bonde.
Ao jogar a viabilização de um programa de renda mínima para o colo do Congresso, Bolsonaro parece confiar na agenda fiscalista do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que inibe uma alternativa fura-teto. Parece acreditar que se não for viabilizada uma saída orçamentária para o programa, o problema poderá ser debitado na conta do Congresso. Ou não.
Assim como os louros do auxílio emergencial alavancam a popularidade presidencial, sua redução, com posterior interrupção, também podem vir a ser debitados na sua conta. Por isso, a estratégia do presidente ainda está longe de lhe abrir as portas do paraíso, apesar de acenar àqueles que vão ficar sem auxílio emergencial ou renda básica, com o inferno.
A criação de novos impostos, como insiste o ministro Paulo Guedes, esbarra no Congresso. Por isso, já há quem se mobilize, no entorno do gabinete presidencial, em buscar alternativas para encorpar o Bolsa-Família. Depois do vídeo, um colaborador começou a fazer as contas do quanto o governo poderia abrir de espaço fiscal se passasse um pente fino no custeio (contratos de aluguel e mão-de-obra terceirizada, diárias, combustível, passagens aéreas, alimentação, uniforme e manutenção).
Um corte de 30% nos contratos de custeio, desde que extensivo a todos os Poderes, proporcionaria uma economia próxima a dois dígitos com a qual se viabilizaria um Bolsa Família mais robusto. Não lhe faltam, porém, obstáculos. Desde a oposição de grandes usuários deste custeio, como as Forças Armadas, até intermediários desses contratos que hoje estão no time de líderes do governo no Congresso Nacional.
O relator do Orçamento, que recebeu a incumbência de arrumar um lugar para um programa de renda básica, é o mesmo da proposta de emenda constitucional que estabelece um gatilho quando os gastos atingirem 85% da receita. Uma alternativa ao corte linear seria a tesoura nos penduricalhos, extensiva a todos os Poderes.
Estivesse disposto a encará-la, porém, Bolsonaro a teria incluído na proposta de reforma administrativa. O medo de paralisação de corporações que movem a máquina do Estado, como a Receita Federal, e contas que o presidente e sua família têm a ajustar com a justiça o afugentam da pauta.
Mais fácil é fazer economia em cima de serviços cujo dano é tão extenso quanto inofensivo. Tome-se, por exemplo, a paralisia da perícia para a concessão de benefícios do INSS por conta do coronavírus. A regulamentação existente da telemedicina é suficiente para que a perícia seja realizada.
O álibi da pandemia, no entanto, faz com que o governo represe silenciosamente a concessão de benefícios. O passivo já atingiu dois milhões de pessoas este ano, entre aposentados, doentes e acidentados, os mesmos que, Bolsonaro, no vídeo, disse que “jamais” prejudicaria, na ilusão de que a bomba fiscal possa ser retardada.
A resistência a medidas do gênero “choque de gestão” empurra, cada vez mais, Bolsonaro para o papel em que ele parece se sentir mais confortável na disputa de 2022, o de “capitão dos pobres”. Capitaneia uma máquina pública carcomida e desigual, mas aposta que nenhum dos adversários que virão pelo meio, é capaz de encabeçar uma proposta viável, eleitoral e politicamente, de reforma do Estado que venha a desafiá-lo. Parece acreditar que seja mais fácil se acomodar no lugar que ainda pertence ao PT, como provedor do mais amplo e permanente programa de renda do país.
Ainda não se sabe com que dinheiro pretende fazer isso. Por enquanto, com o Pantanal em chamas, uma imagem internacional esfarinhada, um arroz pelos olhos da cara e milhões de brasileiros com a vida à deriva em 2021, resta ao presidente confundir - sem remediar.
Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro joga para substituir o PT e isolar ministro da Economia
Não se trata mais de mitigar o benefício que ele criou por conta da pandemia, mas de manter o programa petista, de preferência com um aumento no valor ou um alargamento da base de beneficiários
Ao rifar o Renda Brasil, dizer que vai manter o Bolsa Família e descartar o congelamento de aposentadorias ou salário mínimo, o presidente da República, numa jogada, deslocou dois de seus obstáculos. Goste-se ou não, marcou em cima do lance. O primeiro é o desgaste advindo da redução do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300 até janeiro e de quanto mais ainda não se sabe a partir de janeiro. Ao manter o Bolsa Família, Jair Bolsonaro dribla essa redução.
Não se trata mais de mitigar o benefício que ele criou por causa da pandemia, mas de manter o programa petista, de preferência com um aumento no valor ou um alargamento de sua base de beneficiários. Hoje o valor médio pago ao Bolsa Família é de R$ 190, um programa melhor e mais bem desenhado que o Renda Brasil. Mantê-lo, portanto, é uma decisão acertada. Ao tomá-la, o presidente converge com recomendações insuspeitas como a da Frente Brasileira pela Renda Básica. Mas ao manter o programa Bolsonaro vai além.
Sinaliza que seu objetivo não é mais competir com o PT, mas substituir o partido numa disputa que ele parece acreditar que vai se acirrar mais com adversários centristas. A segunda jogada decorre da primeira. Para ser capaz de substituir o PT como a opção preferencial dos mais pobres, a Bolsonaro não resta outra saída senão desautorizar as gestões do Ministério da Economia em suas gestões para manter o teto furando o piso.
Era isso que estava escrito nas manchetes de jornal lidas pelo presidente no vídeo divulgado em suas redes sociais na manhã desta terça-feira: congelamento de aposentadorias e do salário mínimo, além da redução do Benefício de Prestação Continuada.
O presidente repetiu aquilo que já havia dito quando a mesma equipe econômica sugeriu o fim do abono salarial. Não pretende tirar dos pobres para dar para os miseráveis. Ninguém sabe ainda como o presidente vai fazer caber tudo isso no Orçamento sem furar o teto de gastos, especialmente se quiser superar o PT com um Bolsa Família mais encorpado.
O que ficou claro com o vídeo do presidente foi sua estratégia clara de sair da encruzilhada em que se encontra plantando nela o ministro Paulo Guedes e o maior partido de oposição do país. Pretende sair dela se livrando das convicções do ministro e abraçando bandeiras do partido contra o qual ascendeu à Presidência. Guedes e o PT certamente tomarão rumos distintos, mas, no momento, estão paralisados pelo enxadrista que hoje ocupa o Palácio do Planalto.
Maria Cristina Fernandes: O tatame minado de Fux
Operação expõe teia de relações entre escritórios e tribunais
O Ministério Público Federal estendeu um grande tatame para a posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal. A operação de ontem é a maior a envolver as relações entre escritórios de advocacia e gabinetes de tribunais superiores em Brasília. A denúncia desfia tráfico de influência e exploração de prestígio, ferramentas com as quais, há décadas, se desmonta o combate à corrupção.
Derivada da delação do ex-presidente da Fecomercio, a denúncia, que envolve 26 advogados, expõe como essa teia operou a favor da manutenção do cartório do Sistema S por meio de triangulações montadas pelo ex-governador Sérgio Cabral.
Faixa vermelha e preta de jiu-jitsu, Luiz Fux já foi feito de refém num assalto a seu apartamento de Copacabana em 2003, quando ainda estava no STJ. A partir de hoje, é esta teia de interesses que tentará fazer do ministro, prisioneiro.
A presença do advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na mesma operação que também alvejou o ex-advogado do presidente Jair Bolsonaro sugere que a esquerda montou na cavalgada anti-Lava-Jato sem olhar os dentes. O bom discurso de Lula no dia da pátria não rima com uma retaguarda jurídica que mora no mesmo prédio dos maiores doleiros de São Paulo.
Entre a defesa de Lula e Bolsonaro estende-se uma lista de advogados, entre os quais, filhos de ministros e ex-ministros que ascenderam ao STJ e ao TCU com o apoio de lideranças que, desde o governo José Sarney, personificam, em revezamento, o Centrão.
O momento político é favorável aos denunciados. O ataque a advogados, num momento em que a democracia está nas cordas, sempre poderá ser traduzido como parte do arbítrio. Dois desfechos já são dados como prováveis. O primeiro é uma liminar do ministro Gilmar Mendes. O outro é um embate entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, com aquela que era a única, no lavajatismo, que escapara das ofensivas contra Curitiba e em São Paulo.
Escolhido para relatar a primeira das ações da Lava-Jato do Rio, Gilmar Mendes hoje é o destino natural de todas aquelas que se originam daquela perna da operação. Some-se aí a relatoria da ação do foro do senador Flávio Bolsonaro e é possível aquilatar o poder do ministro face ao presidente da República e sua família.
Com a ação de ontem, a este poder acresça-se aquele sobre a teia de relações denunciadas pelo MP. São interesses que extrapolam o mandato de Bolsonaro. Entra presidente, sai presidente, eles estão sempre lá. Não por acaso, o último ministro a se confrontar com eles, Joaquim Barbosa, que só recebia advogados de uma parte na presença daqueles da outra parte, teve duros embates com Gilmar Mendes.
Fragilizado, ao tomar posse, por investigações que o envolviam e que acabariam por ser o motivo original do inquérito das “fake news”, Toffoli buscou abrigo sob a toga de Gilmar. O resultado é que o ministro deixa a presidência do tribunal menor do que entrou.
Cometeu dois erros capitais, o de ter suspendido o acesso da Lava-Jato aos dados do Coaf e de ter franqueado a Aras os dados da Lava-Jato do Paraná. Em ambos os casos, foi derrotado pelos colegas.
Enquanto Toffoli cumpria a pauta à risca e se congraçava cada vez mais com o presidente da República, a ponto de ter apagado da memória todas as afrontas perpetradas por Jair Bolsonaro contra a democracia, Gilmar se aproximava da esquerda, na condição de paladino do Estado de direito e crítico da militarização do governo.
Uma das medalhas de reconhecimento foi a participação, a convite do Movimento dos Sem-Terra, de uma plenária virtual com camponeses.
O dueto dificilmente se repetirá com Fux. Primeiro lugar no concurso para a magistratura, presidente da comissão de juristas que, junto com o Congresso, reformou o Código de Processo Civil, Fux não se intimida no debate técnico em plenário.
Se Gilmar Mendes tem a Lava-Jato do Rio na mão, Fux é relator de um dos mais importantes processos do Mato Grosso, do ex-governador Silval Barbosa. Dificilmente, porém, o embate se encaminhará para os vínculos de um e do outro com seu Estado natal.
Os votos pró-Lava-Jato de Fux deixam claro que não há composição possível com o trio formado por Gilmar, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Restaria, então, à trinca de ministros, neutralizá-lo. A reforma administrativa corrobora com essa estratégia. Depois de Executivo e Legislativo encamparem a ideia, restaria ao Judiciário enfrentar o tema que causa desconforto para um ministro, como Fux, ferrenho defensor do auxílio-moradia de juízes.
Em contrapartida, o ministro terá o poder de pauta. A partir de sua posse, é possível que Edson Fachin, relator da Lava-Jato do Paraná, sinta-se estimulado a levar mais as votações para o plenário, uma vez que o ministro tem perdido todas na Segunda Turma desde a convalescença do ministro Celso de Mello. Restaria ao trio as decisões monocráticas e os pedidos de vistas, recurso contra o qual Fux não terá como se insurgir visto que foi um dos ministros que dele mais se valeu ao longo dos dois últimos anos.
Desconhece-se a estratégia de Fux para enfrentar a onda anti-Lava-Jato, mas é previsível que, quaisquer que sejam seus recursos, a pauta ficará amplamente desfavorecida com a troca de Celso de Mello, em novembro, e de Marco Aurélio Mello, em julho.
A ordem de votos, se hoje ainda favorece a Lava-Jato, jogará contra com Fux na presidência. Como os novos entrantes votam antes, quando a vez chegava aos “garantistas”, o placar, frequentemente, já estava 1 (Alexandre de Moraes) a 5 (Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia).
Aquele que entrar, muito provavelmente, abrirá o placar contra a Lava-Jato porque esta é a vontade do presidente que patrocinará sua indicação. O jogo deve ficar equilibrado até que, efetivamente, esteja garantido a partir de julho. A operação de ontem dá redobradas chances para Aras conseguir uma das cadeiras, estrangulando a força-tarefa do Rio.
Quem quer que entre no tribunal o fará sob bombardeio, condição que, a exemplo de Toffoli, o deixará à mercê do abrigo de Gilmar Mendes. A partir de julho de 2021, o ministro será o decano do tribunal, condição simbólica de prestígio que lhe dará redobrada força.
A não ser que esconda um golpe secreto neste tatame tão minado, Fux poderá se dar por vitorioso com um empate.
Maria Cristina Fernandes: Cerco judicial aumenta peso do auxílio na reeleição
Quanto maior o cerco, mais JB precisará ser “pai dos paupérrimos”
Quanto mais se fecha o cerco judicial, mais dependente o presidente da República fica de uma perenização do auxílio emergencial. Por isso, estrebucha com o caso Fabrício Queiroz num dia e dá bronca pública no seu ministro da Economia no outro.
Espera que o eleitor lá na frente possa concluir que, apesar de enrolado, merece ser reeleito porque evitou que pobres virassem paupérrimos. Para isso, precisa antes manter seu pescoço acima da linha d’água.
Toda a estratégia da defesa no caso das rachadinhas sinaliza no sentido da procrastinação tendo como meta, outubro de 2022. Mostra disso é a novela do foro, que tirou o caso da primeira instância e jogou-o para o Tribunal de Justiça do Rio, que considerou vencido prazo de recurso hoje pendente no Supremo Tribunal Federal.
Tenta-se, com isso, evitar que o senador Flávio Bolsonaro seja denunciado. Se o for, resta impedir que a denúncia seja recebida e, se não der, a saída será inviabilizar um julgamento antes da reeleição.
Os problemas do presidente, porém, seriam mais facilmente resolvidos se começassem e acabassem com Fabrício Queiroz. Bastava uma decisão judicial para evitar uma delação, como aquela que devolveu o ex-assessor dos Bolsonaro para a prisão domiciliar, ou mesmo um infortúnio como aquele que vitimou outros integrantes da família miliciana, como Adriano da Nóbrega.
Um magistrado com assento privilegiado na arena em que se desenrola o espetáculo diz que, ao contrário de outros escândalos, aquele que, esta semana, foi capaz de restabelecer o palavreado congênito de Jair Bolsonaro não depende de delatores.
No mensalão e no petrolão, muitas das provas documentais apareceram a partir de delações. Nas rachadinhas dos Bolsonaro não precisou que ninguém falasse. Bastou que o Supremo, dias antes da posse do presidente, autorizasse o compartilhamento dos dados do Coaf com o Ministério Público.
Esse compartilhamento mostrou que a tentativa de circunscrever o problema ao antigo gabinete do seu filho na Assembleia Legislativa não funcionou. São cristalinas as evidências de que o esquema das rachadinhas, montado pelo irrequieto capitão desde sua estreia na política, foi espraiado pelos gabinetes de filhos atraídos para a carreira por um pai desejoso em ampliar seu negócio.
Tome-se, por exemplo, os depósitos na conta da primeira-dama, revelados pela “Crusoé”, mas também aqueles recebidos pelo antigo advogado da família, Frederick Wassef, reportados em “O Globo”. Como se trata de uma amizade cultivada por quatro décadas entre o presidente da República e um ex-policial militar dado a “rolos”, como ele mesmo se definiu, a documentação do vínculo não deve parar por aí.
Some-se à abundância de dados compartilhados, o livro-caixa da loja de chocolates do filho do presidente. Só a certeza de impunidade pode levar alguém a montar uma lavanderia de dinheiro a partir de uma loja franqueada, onde é mais difícil fazer uma contabilidade dupla.
E, finalmente, a revelação de que Wassef recebeu da JBS e teve aval e endosso pessoal do presidente da República para tratar dos interesses da empresa no Ministério Público mostra que a aliança de Bolsonaro com o Centrão vai muito além de votos, cargos e obras. Busca também a blindagem dos interesses da empresa que, até hoje, é o guarda-chuva de muitos dos integrantes daquele bloco.
Quem conhece o processo garante que sobram provas. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal dê um cavalo de pau na tese que mitigou o foro privilegiado, não haverá como destruí-las. A única chance seria buscar uma anulação, como aconteceu na operação Castelo de Areia.
Aquela anulação, porém, passou pela arregimentação de fundos para azeitar os canais que a tornaram possível. Agora já não se levantam mais milhões num estalar de dedos. Além disso, as provas, entregues via Coaf e legitimadas pelo Supremo, já percorreram um caminho sem volta.
O inquérito não tem como deixar de seguir seu curso, mas pode fazer muitas curvas. É nelas que estão pendurados todos os personagens, na Procuradoria-Geral da República, na Esplanada dos Ministérios e no próprio Supremo que tentam se fazer credores de um presidente da República encurralado, mas com duas cadeiras na Corte a preencher.
As vagas do ministro Celso de Mello, a ser aberta em novembro, e a de Marco Aurélio Mello, em julho de 2021, revestem-se de um peso ainda maior tendo em vista a mudança na presidência do STF.
O ministro Luiz Fux, que vai assumir a cadeira em setembro, não se mostra moldável aos interesses de plantão como o fez o atual presidente. Tem-se alinhado aos ministros Edson Fachin e Celso de Mello nas últimas decisões que alongaram o fôlego da Lava-Jato e puseram um freio no procurador-geral da República.
Além disso, Fux é egresso da magistratura carioca. Conhece mais do que qualquer outro colega e mantém influência sobre todos os labirintos por onde passa o processo que enreda Queiroz, Flávio e Jair Bolsonaro.
As incertezas sobre os rumos do Supremo sob o novo presidente reforçam a disposição dos situacionistas na disputa pelas mesas do Congresso. É disso que trata a trama, revestida de “aliança contra o arbítrio”, pela permanência de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia no poder com a participação de ministros da Corte.
É dessa dupla que Bolsonaro, em grande parte, também depende para montar a engenharia que torne possível abrigar, no orçamento, um programa de renda mínima que hoje é mais importante para sua popularidade do que para a de qualquer parlamentar.
O problema é que nem a entrada do presidente na disputa pode garantir o sucesso da empreitada. O teto de gastos, como se sabe, já foi. É 2022 que está em jogo. Todos temem o que Bolsonaro pode vir a fazer num segundo mandato, mas muitos também duvidam da blindagem que os presidentes das mesas, reconduzidos a partir de um casuísmo, seriam capazes de oferecer à democracia.
Maria Cristina Fernandes: Auxílios contaminam disputa municipal
Prefeitos e vereadores aprovam versões semelhantes à ajuda federal e podem fazer desta eleição a mais favorável aos detentores de mandato desde a redemocratização
O bônus que o auxílio emergencial trouxe para a popularidade do presidente da República inspirou prefeitos e vereadores que disputarão as eleições de novembro a criar programas parecidos ou incrementar aqueles já existentes nos municípios. A implantação do benefício é apenas mais um de conjunto de fatores que pode fazer desta eleição a disputa mais favorável, desde a redemocratização, para aqueles que já detêm mandato no Executivo ou Legislativo.
Entre os municípios que adotaram a medida contam-se tanto aqueles que criaram o benefício por lei aprovada nas Câmaras de Vereadores com duração prevista para a pandemia, como Altamira (PA), Niterói (RJ), Serra (ES) e São Cristóvão (SE), quanto outros que aumentaram a base de beneficiários de programas já existentes, como Campinas (SP). Contam-se também aqueles com benefícios destinados a categorias profissionais específicas, como em São Paulo (SP) e Campina Grande (PB).
A criação do benefício, porém, está longe de ser pacífica nos municípios. Em Serra, por exemplo, município da Região Metropolitana de Vitória, cuja população de mais de meio milhão de habitantes supera a da capital capixaba, colocou prefeitura e Câmara em lados opostos.
Os vereadores aprovaram o benefício municipal de R$ 500 por três meses para trabalhadores informais com renda de até três salários mínimos, com previsão para atingir 42 mil famílias. O prefeito Audifax Barcelos (Rede), que ruma para concluir seu segundo mandato, barrou e os vereadores derrubaram o veto.
A prefeitura alegou que a Câmara não pode criar despesas - esta onerará os cofres municipais em R$ 63 milhões - e os vereadores rebateram com o argumento de que a emenda constitucional que estabeleceu o estado de calamidade pública no país abriga sua vigência.
O benefício causa conflitos até mesmo em municípios em que prefeitos e vereadores disputam a atenção dos eleitores, como Altamira. Domingos Juvenil (MDB) é candidato à reeleição na cidade que fica a 816 quilômetros de Belém, tem 115 mil habitantes e apenas nove leitos de UTI. Enviou para a Câmara projeto que contava, para sua viabilidade, com recursos das emendas impositivas dos vereadores para somar R$ 2 milhões. Previa-se a destinação de R$ 900, em três parcelas, para o pagamento a cinco mil pessoas.
Definiram-se como elegíveis para o recebimento feirantes, carroceiros, catadores, ambulantes, taxistas e mototaxistas, motoristas de aplicativos e pequenos produtores rurais. No decreto que regulamentou a distribuição do benefício, porém, a prefeitura determinou que apenas aqueles que não tivessem sido agraciados com o auxílio emergencial federal poderiam receber o benefício municipal
A regulamentação gerou revolta entre moradores e troca de acusações entre vereadores e prefeito. Como o benefício foi regulamentado apenas em meados de julho, a grande parte dos elegíveis tinha a expectativa de que o programa pudesse esticar o período em que receberiam ajuda, iniciado em abril com a primeira parcela do programa federal. Reportagem da TV Vale do Xingu, afiliada do SBT, deu conta de que se não for possível acumular, apenas 20 mototaxistas receberão o auxílio municipal.
Dois municípios que aprovaram o benefício para catadores de materiais recicláveis, São Paulo e Campina Grande adotaram critérios distintos. No mesmo valor de R$ 600 e pela mesma duração de três meses, o benefício poderá ser acumulado com o auxílio federal na capital paulista, mas não na cidade paraibana.
Em grande parte dos municípios, os projetos foram aprovados em julho, com validade até o período que antecede as eleições. Em Niterói, porém, tramitação e aprovação do benefício foram concomitantes às do auxílio federal, com a conclusão de ambos no fim de março.
Além do benefício de R$ 500 para famílias de baixa renda ao longo de três meses, ao custo de R$ 54 milhões, a Prefeitura de Niterói também enviou para a Câmara um crédito especial para pequenas empresas e cooperativas, de até R$ 250 mil, além de profissionais liberais, de até R$ 25 mil.
O programa, com custo de R$ 35 milhões para os cofres municipais, cobrirá os juros dos empréstimos realizados durante a pandemia. O terceiro projeto enviado e aprovado pela Câmara Municipal foi o financiamento do salário de funcionários para empresas que se comprometeram a não demitir. Os programas concorrem com o do governo federal no escopo e na vigência. O prefeito, Rodrigo Neves (PDT), está no segundo mandato.
As entidades que agregam gestores municipais, como a Frente Nacional de Prefeitos, não têm levantamentos sobre o número de cidades que adotaram programas do gênero. Seu presidente, Jonas Donizette (PSB), prefeito de Campinas, diz que grande parte dos municípios adotou alguma ação de complementariedade de renda, ainda que a maior parte o tenha feito de maneira mais focalizada que o governo federal.
Em Campinas, por exemplo, cidade do pioneiro Bolsa Escola, programa anterior ao Bolsa Família, a prefeitura ampliou a base de beneficiários de um auxílio alimentação (R$ 94) de seis mil para 26 mil pessoas e facultou seu uso também para a compra de produtos de higiene.
São Cristóvão, na Região Metropolitana de Aracaju, também optou por um programa focalizado. O projeto aprovado pela Câmara Municipal em maio contemplou servidores que tiveram seus contratos suspensos na pandemia, como professores, motoristas e merendeiros. A prefeitura se comprometeu a pagar 30% do salário base desses profissionais por três meses e recontratá-los com a volta das atividades.
A adoção de programas de transferência de renda por prefeituras alinhadas aos partidos da base do presidente Jair Bolsonaro foi facilitada pelo favorecimento nos repasses. Como mostrou “O Globo” (17/8), a média de verba por habitante liberada para prefeitos de centro ou direita até julho foi 56% maior do que aquela enviada a municípios comandados por legendas de oposição.
O pagamento desses benefícios, ainda que muito distintos em valor e amplitude, complementará uma gama de outros incentivos para a vantagem do detentor de mandato. Fica mais difícil distinguir a distribuição de cesta básica para famílias afetadas para a pandemia daquela destinada à arregimentação do voto. A pandemia dificulta, por exemplo, a campanha de quem pretende se fazer conhecido porque inibe reuniões e o corpo a corpo tradicional das eleições municipais. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Lara Mesquita diz que a imprevisibilidade da pandemia sobre o resultado das eleições é comparável àquela que sobreveio à facada sofrida pelo presidente Jair Bolsonaro na disputa presidencial.
À força redobrada do situacionismo, num período em que a máquina pública ganhou peso no giro da economia, somem-se as dificuldades da campanha virtual para aqueles que disputam pela primeira vez. Por mais que a internet barateie a divulgação das campanhas, muitos segmentos de mais baixa renda ainda têm limitação de acesso.
São pessoas que não conseguem baixar o aplicativo da Caixa Econômica Federal para fazer o cadastro do auxílio emergencial ou para que os filhos acompanhem aulas A distância, o que dirá para seguir campanhas eleitorais, diz Lara. Além disso, as novas normas eleitorais também restringiram o alcance tanto do WhatsApp quanto do Facebook nas campanhas.
Essas dificuldades podem vir a colocar em xeque a previsão, feita por muitos analistas, de que a campanha de 2020 seria recordista em número de candidatos. A previsão se baseia nas mudanças já aprovadas para a eleição de 2022, o fim das coligações nas eleições proporcionais e a cláusula de desempenho. Ambas as mudanças pairam como uma guilhotina não apenas sobre a existência de pequenos partidos mas também sobre os planos de expansão das legendas médias.
Ex-deputado federal, articulador, nos anos 1980 da Frente Liberal que elegeu Tancredo Neves e criou o PFL, além de fundador do PSD, Saulo Queiroz conhece como poucos as armadilhas do mercado eleitoral. E diz que os partidos terão que fortalecer seus quadros municipais porque atingir o coeficiente eleitoral numa disputa de uma eleição sem coligações, como a de 2022, vai ser muito mais difícil.
A disposição para disputar mesmo com chance nula de eleição é tarefa de militantes locais dos partidos. É a formação dessa militância que está em jogo nessas eleições. Vem daí a expectativa de que aumente o número de candidaturas. A Proposta de Emenda Constitucional que adiou as eleições municipais para novembro, estabeleceu 26 de setembro como data limite do registro de candidatos na Justiça Eleitoral.
Incentivos, portanto, para uma campanha com número recorde de candidatos não faltam. Só que ninguém contava com a pandemia. O espraiamento da doença, especialmente em comunidades mais pobres, fez surgir novas lideranças que atuam na mobilização de moradores para a proteção de suas famílias, na arregimentação de doações e na pressão sobre o poder público.
Por mais que o coronavírus tenha feito surgir uma nova geração de militantes locais empenhados na defesa de suas comunidades, o desestímulo pode ser ainda maior - a começar do reforço inédito, para aqueles que são candidatos à reeleição, dos pacotes de transferência de renda.
É uma sinuca tanto para os vereadores, que aprovaram a maioria desses pacotes, mas que não recebem crédito por eles, como também para aqueles que querem entrar no jogo e não são identificados como aptos a batalhar pela manutenção, cada vez mais em risco, dos benefícios.
Maria Cristina Fernandes: A capitulação bandeirante
Previsão de déficit empurra Dória para reforma administrativa desgastante na Assembleia Legislativa
O governador de São Paulo liderou a resistência federativa à escalada obscurantista do presidente da República na pandemia. Jair Bolsonaro saía à rua beijando crianças, João Dória nunca aparecia sem máscara. Um dizia que o Brasil não podia parar, o outro pregava o confinamento. Contra a cloroquina federal, ergueu-se a ciência bandeirante.
Cinco meses depois do início da batalha contra o coronavírus, a capital paulista conseguiu derrubar para a metade o número de óbitos registrados no pico da doença. Ainda é cedo, porém, para se cantar vitória contra a covid-19. Não bastassem os ônibus e os bares lotados, o projeto de lei 529, enviado pelo governador em regime de urgência, caiu na Assembleia Legislativa como uma capitulação.
Enquanto o presidente foge de uma reforma administrativa e negocia com o Congresso uma claraboia sobre o teto de gastos para abrigar um programa que dê continuidade ao auxilio emergencial, os governadores estão acuados. Sem o bônus de popularidade com o qual o auxílio brindou Bolsonaro, preparam-se para enfrentar 2021 sem os repasses extras aprovados pelo Congresso e tendo que retomar o pagamento de suas dívidas, suspenso até dezembro.
Em São Paulo, a resposta foi um projeto que revira a administração pública de ponta-cabeça. Privatiza o zoológico e nove parques, extingue a empresa responsável pela coordenação do transporte de cinco regiões metropolitanas (EMTU), autarquias que cuidam da preservação ambiental (Instituto Florestal), da política agrária (Itesp), de criminalística (Imesc) e da administração de aeroportos (Daesp). Acaba ainda com a empresa de habitação (CDHU), com uma rendição explícita, na exposição de motivos, ao avanço do Minha Casa Minha Vida.
Depois de tanto se falar em reconversão industrial para aumentar a segurança nacional na produção de medicamentos e equipamentos hospitalares, o projeto extingue, numa canetada, a maior fabricante pública de remédios do país (Furp), a fundação de pesquisa de câncer (Oncocentro) e a autarquia das endemias (Sucen).
No mesmo dia que o projeto de Dória chegou à Assembleia, o prefeito e candidato à reeleição Bruno Covas decretou o enxugamento da Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa), um dos eixos do enfrentamento das epidemias na cidade. A portaria levou a uma carta aberta de seis ex-coordenadores do órgão, três dos quais, do PSDB.
O maior golpe no discurso pró-ciência com o qual os tucanos paulistas enfrentaram o presidente da República, no entanto, veio num dos capítulos do projeto de Doria que remete para o tesouro estadual o superávit das universidades e das fundações do Estado, entre elas, a de amparo à pesquisa (Fapesp), de onde saiu boa parte dos estudos sobre a pandemia.
No capítulo menos polêmico, mas nem por isso mais fácil de ser aprovado, o projeto reduz e unifica as isenções do ICMS em 18%, unifica a cobrança do IPVA em 4% (acabando o benefício para veículos de combustível limpo), aumenta o valor das contribuições para a rede de atendimento médico-hospitalar dos servidores (Iamspe), altera a cobrança da dívida ativa e sua securitização, e estabelece uma arbitragem para o valor de imóveis e doações sobre os quais incide o imposto de transmissão.
A amplitude do projeto desnorteou a Assembleia Legislativa. A reação predominante foi a de que o governo, ao reunir tantas iniciativas num único projeto, teve como objetivo “baratear” sua tramitação. Como o pedido de urgência abrevia os prazos, os deputados não teriam tempo para se aprofundar no debate e, pressionados, acabariam aprovando o projeto com poucas modificações.
A deputada Marina Helou (Rede), resume a queixa generalizada de que o prazo de emendas terminou sem que os parlamentares tivessem conhecimento dos dados e projeções que o lastreiam. Por mais sensíveis que estejam à situação financeira do Estado, resistem a votar no escuro.
Temem que, para enfrentar uma situação temporária, o governo faça mudanças estruturais que afetarão definitivamente a formulação de políticas públicas. Se, por um lado, as autarquias fomentam o corporativismo, por outro, são um anteparo às diatribes dos gestores de plantão.
Como secretário do Meio Ambiente em São Paulo, por exemplo, Ricardo Salles só não conseguiu fazer do cargo a antessala do desmonte que hoje promove na Esplanada por conta das autarquias da pasta. Foi este um dos argumentos que levou o governo paulista a mitigar o enxugamento da área.
Idealizador do projeto, o secretário Mauro Ricardo Costa, não descarta novos ajustes, mas desafia opositores a apresentar alternativas para o déficit de R$ 10,4 bilhões do orçamento do próximo ano. Atribui as pedras hoje jogadas contra o governo ao fato de São Paulo ter saído na frente com medidas de enxugamento que todos os Estados e municípios, diz, terão que tomar - “Estão todos quebrados, mas ainda não se atentaram”.
Titular de secretarias de fazenda e planejamento em quatro unidades da federação (São Paulo, Minas, Bahia e Paraná), a convite de gestores premidos por ajustes inadiáveis, Mauro Ricardo não teme protestos, nem mesmo depois de ter assistido ao centro cívico em Curitiba se transformar numa praça de guerra em 2015.
Resiste, por exemplo, a aceitar o argumento de que o financiamento das pesquisas científicas será afetado pela devolução do superávit das fundações ao tesouro. Diz que as fundações não podem pretender ficar com sobra de caixa acumulada para pesquisas de longo prazo quando a saúde, a educação e a segurança pública do Estado ameaçam colapsar. Prevê um desemprego resiliente a empurrar as famílias para escolas e hospitais públicos, além de pressionar indicadores de violência.
Espanta, por isso, que toda essa penúria só não afete os repasses para o Judiciário. O governo paulista conseguiu aprovar na Assembleia a destinação de um terço das taxas judiciárias (R$ 380 milhões) para o Tribunal de Justiça. A Câmara dos Deputados aprovou ontem crédito de R$ 200 milhões para a construção de novas sedes da Justiça Federal e do Ministério Público Federal nos Estados. É a locomotiva, em meio aos escombros, puxando a Federação a todo vapor.
Maria Cristina Fernandes: Um técnico prestigiado
Guedes age para elevar o preço de sua demissão
Às 8h45 desta quarta-feira o presidente Jair Bolsonaro fez um textão no Facebook. Reiterou compromisso com privatizações, justificou as dificuldades em viabilizá-las, reafirmou o “norte” da responsabilidade fiscal e do teto de gastos e disse ver com naturalidade a saída de colaboradores.
Agiu como o presidente do clube que sai a público, 15 minutos antes do início do jogo, para dizer que o técnico está prestigiado. A torcida captou. Dólar e juro abriram em queda, mas sem debandada. Estava claro, porém, que se protelara uma situação insustentável. O desfecho tarda porque, além de o técnico resistir a sair, não há substituto à mão.
Na véspera, Paulo Guedes, depois de se reunir com Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, Casa que abriga 52 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, espicaçou. Disse que os “conselheiros” do presidente, ao lhe sugerirem “pular a cerca e furar o teto”, facilitariam a abreviação de seu mandato.
O ministro da Economia, que acabara de receber os pedidos de demissão dos secretários Salim Mattar (Desestatização e Privatização) e Paulo Uebel (Desburocratização, Gestão e Governo Digital), parecia estar fazendo uma ameaça velada ao presidente. Se o objetivo da gastança é a reeleição, o mandato pode acabar antes da chance de ser renovado. Foi o que disse.
Agiu como se acreditasse que o presidente só tivesse o mercado, do qual fala como fiador, a sustentá-lo. Parte do pressuposto de que Bolsonaro já perdeu a classe média e está a caminho de também ficar desprovido do apoio dos mais pobres com o fim do auxílio emergencial de R$ 600. O ministro valeu-se da saída de Mattar e Uebel para tentar enquadrar o presidente. Mostrou-se um “trader” que além de ganhar a parada tem que se exibir como vitorioso.
E, de fato, a oposição do presidente da Câmara à prorrogação da calamidade pública e o alerta do TCU em relação às pedaladas dos créditos extraordinários levaram o governo a recuar da intenção de alocar R$ 35 bilhões nas mãos dos ministros “obreiros”, Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).
Sem a calamidade, voltarão a valer a responsabilidade fiscal e a regra de ouro, normas que seriam descumpridas pela alocação que acabou reduzida para R$ 4 bilhões. O desfecho foi vitória de Guedes que, insatisfeito, quis também espicaçar com a ameaça de impeachment.
O comportamento do ministro da Economia o isolou no governo. No início da semana o presidente foi testemunha de uma pesada troca de acusações entre Guedes e Marinho. Sem a calamidade pública, o governo terá que encontrar espaço para criar o Renda Brasil e permitir que as estatais voltem a investir dentro do orçamento. Missão que embaralha até o mais agressivo dos “traders”.
Ao negar apoio à extensão da calamidade, Maia parece atuar pelo reequilíbrio de forças no governo pró-Guedes. Só que não. Sem o "orçamento de guerra", Bolsonaro terá dificuldade de manter seus novos aliados do Centrão. A cena do final do dia, quando voltou a reiterar compromisso fiscal ao lado de ministros e parlamentares, vai ficar como um retrato na parede.
A pretexto de cumprir sua cartilha liberal, Maia embaralhou a articulação política de Bolsonaro e dificultou seu jogo na eleição para a mesa da Câmara. Fez de Guedes o ministro vitorioso de um governo em chamas.
Num uniforme de bombeiro que não lhe cai bem, Guedes foi incapaz de evitar que o fogo cruzado ultrapassasse as fronteiras do Palácio. Nas entrevistas que deu ao longo do dia, Mattar não apenas disse que as estatais eram foco de corrupção, como expôs a ferida da Casa da Moeda.
Poucos fracassos no programa de privatizações são tão representativos. A venda da Casa da Moeda foi incluída numa medida que o Congresso deixou caducar para a grande satisfação do presidente do PTB, Roberto Jefferson, hoje um dos mais ferrenhos aliados de Bolsonaro e rei da Casa da Moeda desde o Mensalão, que o condenou na justiça, até hoje.
Além de perder sucessivos colaboradores - desde o início do governo, além de Mattar e Uebel, saíram Marcos Cintra (Receita Federal) Mansueto de Almeida (Secretaria do Tesouro), Caio Megale (Diretoria de Programas da Secretaria Especial da Fazenda), Marcos Troyjo (Secretaria de Assuntos Internacionais) e Rubem Novaes (Banco do Brasil) - Guedes não ampliou as alianças na Esplanada.
O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, por exemplo, mais preocupado em fomentar a guerra entre Bolsonaro e a imprensa, não tem tido participação nas conversas para fazer caber o Renda Brasil no Orçamento de 2021.
Guedes tampouco conta com os ministros militares do Palácio, hoje aliançados com Marinho e Freitas, em torno de propostas onde se enxergam não apenas uma via para a reeleição como também a manutenção das estatais e dos projetos do Ministério da Defesa.
Neste bloco não se encontra o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno Ribeiro, cujas diferenças com seus colegas ficaram claras na reportagem de Mônica Gugliano na “Piauí”. Entusiasta de primeira hora da campanha bolsonarista, o general se fiava na dupla Sergio Moro/Paulo Guedes para fazer crer que se tratava de um governo liberal de combate à corrupção.
Hoje o ministro vê seus colegas generais aliançados com os personagens que inspiraram sua composição “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão” e não se anima a cerrar fileiras na guerra contra Guedes. Trata-se, porém, menos de entusiasmo com o Pró-Brasil do que de uma adesão de peso à causa do ministro da Economia.
Numa tentativa de romper esse isolamento, Guedes buscou ontem, junto ao Tribunal de Contas da União, soluções para conseguir abrigar tanto o Renda Brasil quanto os investimentos das estatais sob o teto de gastos.
Tenta recompor a unidade do governo. A esta altura, porém, ecoa Filipão ao final do primeiro tempo do jogo contra a Alemanha na Copa de 2014. Para o segundo tempo, o Congresso se mobiliza pelas reformas tributária e administrativa. Ambas, a pretexto de convergir com o ministro Paulo Guedes, aumentam a cizânia no setor privado e entre servidores e militares. Trazem, no entanto, a oportunidade de o Congresso posar como reformista frente a um governo que não se entende. Foi-se o tempo, porém, que o 7x1 era a lembrança mais amarga. A derrota, com muito mais dígitos, hoje se conta em vidas.
Maria Cristina Fernandes: O Centrão virou um Congressão
Criação da renda básica permitiu a Maia ampliar o Centrão à esquerda e criar um Congressão
A miséria atingiu o menor patamar das últimas quatro décadas no momento em que a economia tem o maior derretimento da história. A necessidade de amparo a milhões de desassistidos pela pandemia é tão imperativa quanto insustentável é mantê-lo sem atividade econômica. O racha do Centrão é a disputa pela arbitragem da porta de saída desta distopia.
A saída, por enquanto, dá num beco. A proposta do governo é de um imposto sobre transações eletrônicas, uma espécie de CPMF com uma base ampliada pela digitalização da economia durante a pandemia. O Congresso não quer saber de aumentar imposto, embora seja crescente o interesse em encontrar uma maneira para perpetuar o auxílio emergencial, a verdadeira poção mágica que o presidente Jair Bolsonaro tanto procurou na cloroquina.
Vice-líder do governo, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) encomendou uma pesquisa numa cidade de 20 mil habitantes do agreste pernambucano, região petista por excelência e governada por uma aliança entre PSB e PT. Antes do auxílio, Luiz Inácio Lula da Silva registrava lá 75% de aprovação e Bolsonaro, 82% de rejeição. Hoje a aprovação do ex-presidente caiu para 44% e a rejeição do atual, para 42%.
O que vale, diz o deputado, é o último favor. Na ausência de empregos, é neste elixir que o Congresso está agarrado não apenas para atravessar as eleições municipais, mas para o segundo biênio bolsonarista. Ainda que esta renda básica com a qual se renomeará este Bolsa Família encorpado dê sobrevida a Bolsonaro, não há hoje viabilidade para que qualquer partido se oponha à sua implementação.
É pela “pedalada assistencialista” que a relação entre Executivo e Congresso pode ser repactuada. Ainda não há uma equação que abrigue a poção mágica do bolsonarismo nos limites fiscais, mas há alguma boa vontade no Congresso para encontrá-la, até porque este governo, ao contrário daquele da outra presidente pedaleira, converge na agenda de manter o Ministério Público e a Polícia Federal sob rédea curta, além do ex-ministro Sérgio Moro fora do jogo eleitoral.
Ao liderar o desembarque do DEM e do MDB do Centrão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), aposta na reforma tributária em tramitação na Casa como uma oficina desta porta de saída. O presidente desta comissão e autor da proposta de emenda constitucional de reforma tributária que mais avançou na Casa, deputado Baleia Rossi (MDB-SP), é um dos cotados da extensa nominata de candidatos à sua sucessão.
O fim do recesso do judiciário inviabilizou a última chance de qualquer liminar que abrigasse mudança nas regras do jogo na sucessão das mesas do Congresso para permitir a recondução dos atuais presidentes. Em plenário cheio, ainda mais numa Corte em transição de comando, a acolhida de um casuísmo do gênero parece inviável.
Seria o caminho mais curto para transformar o Congresso Nacional numa Assembleia Legislativa do Amapá ou do Rio de Janeiro. Desmoralizaria quaisquer esforços de o STF se opor a desatinos presidenciais, em quarentena por ora, mas suscetíveis a uma reinfestação a qualquer momento.
Somem-se aí os erros cometidos pelo deputado Arthur Lira (PP-AL) que, subitamente transformado em interlocutor preferencial de Bolsonaro no Congresso, cresceu os olhos e antecipou sua pré-candidatura à cadeira de Maia antes de aparar as arestas que cercam seu nome.
A condição de réu no Supremo em ação penal por corrupção impõe um selo de desqualificação a um parlamentar que pretende ocupar a segunda vaga na linha sucessória da Presidência da República. Ainda mais porque o deputado não goza das mesmas prerrogativas que permitiram ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) articular, no Supremo, uma saída que, ao mesmo tempo o manteve na presidência do Senado, em 2016, e o excluiu da sucessão na República.
A desconfiança em relação às chances de Lira emplacar o cargo levaram o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto a lançar pontes com o DEM, por meio do ex-líder Elmar Nascimento (BA), um dos mais discretos pré-candidatos. Fez ainda com que o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), outro postulante, tomasse distância. O único imperativo que, de fato, importa, para os partidos é não ficar de fora da mesa diretora. São esses cargos que lhes dão condições de operar. Para isso, se compõem com quem for preciso.
O racha foi a saída para manter o Centrão unido. Sem DEM e MDB, o bloco não existe. São esses partidos que lhe permitem ter acesso às antessalas do PIB nacional. Sob Rodrigo Maia, porém, o bloco vai além. Virou um Congressão. Isso ficou patente não apenas no acachapante quórum de renovação do Fundeb como também na distribuição de tarefas-chave na Casa.
Ao mesmo tempo em que entregou a uma deputada do PP do Piauí, Margarete Coelho, a missão de coordenar um texto para modernizar o SUS, Maia deu asas ao protagonismo do deputado João Campos (PE), filho do ex-governador Eduardo Campos, e maior aposta do PSB no seu Estado, na discussão do projeto de renda básica.
Assim como o Centrão abrigou-se no Bolsa Família do lulismo, a esquerda vai buscar um lugar à sombra na renda básica do bolsonarismo. Seu avanço no Nordeste não poderia ser melhor exemplificado do que pela recepção que Bolsonaro terá hoje no sertão da Bahia, maior Estado governado pelo PT no país. O presidente retomará suas viagens pós-convalescença com a inauguração de uma adutora em Campo Alegre de Lourdes, município governado por Enilson Macedo, do PCdoB, partido do governador Flávio Dino, pré-candidato da esquerda em 2022 mais enturmado com o centro.
O desafio de Maia é agregar o apoio que tem em toda a esquerda, inclusive no PT, ao nome que vier a escolher. Se em sua primeira disputa pelo cargo, em 2017, o presidente da Câmara só garantiu o apoio do seu próprio partido, na véspera, e do PSDB, no dia da eleição, não dá para esperar que, desta vez, a coisa se resolva com brevidade.
A única aposta que dá pra fazer é que o presidente da República terá que repartir sua poção mágica com mais gente. Se vai dar pra todo mundo e vai render até 2022 é outra história.