Marcos Sawaya Jank

Marcos Sawaya Jank: O mundo global e a covid-19

A globalização será fortemente impactada pelos dois tsunamis da pandemia

A charge mais dura e realista da crise que vivemos são as duas ondas que nos vão atingir em cheio. A primeira é uma onda de menor tamanho, que recebe todas as atenções neste momento: a pandemia do coronavírus. A segunda, ainda desconhecida e muito mais avassaladora, é a recessão mundial que vem atrás da covid-19. Dois tsunamis sucessivos, porém de diferentes natureza e impacto.

O dilema é que quanto melhor forem a contenção e o isolamento das pessoas, maior será a vitória contra a primeira onda e mais desastroso será o impacto da segunda. Como diz o ditado, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Neste caso, se corrermos para fora de casa o bicho da covid pega todo mundo, se ficarmos confinados em casa o bicho da recessão nos come mais à frente.

A tragédia é que, enquanto a covid-19 ataca os mais velhos, a recessão atingirá principalmente os mais pobres, o mercado informal e as pequenas empresas, que têm pouco acesso a crédito e capital de giro, afetando milhões de empregos.

A crise atual origina-se na área sanitária, que determinou o isolamento social, e avança na área econômica, com a paralisação da oferta de bens e serviços. Esta crise exige, portanto, políticas públicas que consigam administrar o difícil trade-off entre riscos sanitários e riscos socioeconômicos, com suas respectivas medidas e seus ajustes.

No cenário otimista teremos um impacto momentâneo, com a doença causando poucas mortes e uma recessão moderada e administrável, compensada pelo inevitável surto de crescimento quando a vida se normalizar.

No cenário pessimista, a pandemia demora muito para ser solucionada e a recessão resultante deixa pesadas sequelas em termos de desemprego, quebra de empresas, desorganização de cadeias produtivas, desespero e mesmo violência.

As fronteiras do mundo haviam desaparecido com a facilidade de se conectar, viajar, conversar e trabalhar online. Pessoas se integraram por meio de aviões, internet, redes sociais e empresas e produtos que se tornaram globais. Mas esta crise está revelando aspectos até aqui inimagináveis, como a incapacidade dos países de prever e lidar com crises sanitárias. Com tanta riqueza acumulada, a humanidade da era digital foi abalroada pela falta de testes, máscaras, respiradores.

Isso sem contar a hoje visível fragilidade das cadeias de suprimento e a inoperância de organizações multilaterais como ONU e G-20 para atuarem de forma coordenada e contundente num momento em que elas são mais necessárias.

O fato é que a crise do coronavírus traz o Estado-nação e as fronteiras nacionais de volta à cena e vai aumentar as pressões por controles de fronteira, favorecimento de produtores e produtos locais e maior protecionismo.

O mundo global pode sangrar se o nacionalismo pós-coronavírus levar à deterioração das relações EUA-China, ao colapso da arquitetura integrada da União Europeia e à redução do comércio e dos investimentos globais. Isolamento e quarentenas, xenofobia, movimentos antiglobalistas e antimigração podem produzir uma aversão a produtos importados, atingindo em cheio a crescente presença e a competitividade do agronegócio brasileiro.

Um dos elos mais sensíveis no ambiente altamente tumultuado desta pandemia é o abastecimento de alimentos e bebidas. Pelo menos aqui, no Brasil, não vai faltar comida, já que produzimos muito mais do que consumimos. Mas dois problemas podem impactar o esforço de produção: a distribuição de produtos e a recessão global.

No médio e no longo prazos, temos de entender melhor qual será o impacto de uma recessão global nas nossas exportações de commodities. Conceitualmente, o agronegócio deveria ser um dos setores menos afetados, pois as pessoas não vão deixar de comer e o mundo depende do Brasil para sua segurança alimentar em diversas commodities. Mas uma recessão longa e penosa pode criar alta volatilidade e derrubar preços e margens, se for igual à Grande Depressão de 1929.

No curto prazo, as medidas de contenção têm criado travas importantes no fluxo físico das cadeias de suprimento de produtos agropecuários e alimentos, que são longas e complexas, principalmente na área de produtos perecíveis, como frutas, verduras, carnes e lácteos, e de atividades que dependem de mão de obra intensiva e aglomerada. Isso sem contar o impacto das restrições impostas sobre importantes canais de distribuição, como bares, restaurantes, hotéis e serviços de alimentação. Tenho ouvido relatos de arbitrariedades absurdas, falta de serviços de apoio, atrasos e quebra de contratos nas cadeias do agro.

Em toda a minha vida, nunca vi um momento tão crítico como este, que exige estratégia sólida e coordenação firme de autoridades em diferentes níveis do governo e imenso esforço coletivo e cooperativo de empresas e pessoas. Os países que melhor lidaram até aqui com a mitigação da doença e da recessão foram os que implementaram estratégias firmes e focadas para lidar com problemas concretos (isolamento de doentes, por exemplo), junto com campanhas de ampla informação e conscientização da sociedade.

PROFESSOR DE AGRONEGÓCIO GLOBAL DO INSPER E TITULAR DA CÁTEDRA LUIZ DE QUEIROZ DA ESALQ-USP.


Marcos Sawaya Jank e Renata Amaral: Acordo EUA-China – impacto e inconsistências legais

Frágil, incompleto, ele pode implodir a qualquer momento e causar estrago global

O mundo está instável e perigoso. Epidemias, migrações descontroladas, conflitos étnicos e religiosos, protestos de rua, terrorismo e nacionalismos exacerbados são fatos diários neste período turbulento que vivemos.

Nos últimos seis meses vimos a China ser abatida por uma epidemia de peste suína africana, que dizimou a produção doméstica da proteína preferida da culinária chinesa. Na sequência, a guerra comercial com os Estados Unidos parece estar se transformando num grande acordo que pode impactar o acesso dos demais competidores. A epidemia de coronavírus, nas últimas semanas, pode afetar o crescimento e o comércio chineses.

Durante mais de 70 anos os EUA lideraram um louvável esforço para criar regras multilaterais de comércio no sistema Gatt-OMC. A China aderiu ao sistema em 2001, beneficiando-se fortemente da corrente de abertura comercial e globalização que foi criada. É nesse contexto que temos de analisar o impacto da primeira fase do acordo econômico e comercial entre EUA e China, assinado em 15 de janeiro.

O endosso das duas maiores economias do planeta a um acordo explícito de facilitação de comércio em favor dos EUA (na linha “America first”) pode representar um golpe profundo na Organização Mundial do Comércio (OMC), além de causar mudanças importantes na geopolítica do comércio global.

Acordos comerciais típicos normalmente tratam de liberalização do comércio entre dois ou mais países. Diferentemente, este acordo comercial é uma versão extrema de uma nova e perigosa forma de “comércio administrado”, com a China concordando em comprar um adicional US$ 200 bilhões em bens e serviços dos EUA “com base nas condições do mercado”. Isso quase dobraria as exportações dos EUA para a China em 2021, em relação ao ano-base de 2017.

Duas questões fundamentais emergem desse contexto: 1) pode a China forçar suas empresas domésticas a comprarem esse imenso volume dos EUA, em detrimento de outros parceiros comerciais? 2) Essa nova prática de “comércio administrado” é consistente com as regras multilaterais da OMC?

O capítulo do acordo sobre agricultura impõe à China uma série de obrigações para conceder melhores condições de acesso a mercado para as importações dos EUA de grãos, lácteos, aves, carne bovina e suína, carne processada e arroz, entre outros. Chama a atenção a criação de uma espécie de fast track regulatório para os EUA em questões sanitárias, administração de cotas de importação e trocas de informação para o comércio de produtos de biotecnologia agrícola entre os países (variedades transgênicas de soja, por exemplo).

As obrigações da China variam entre a remoção de certas restrições de importação, o relaxamento de alguns requisitos substantivos e procedimentais na inspeção sanitária, a concordância com padrões de produtos e requisitos de rotulagem e o acesso facilitado a importações originárias de plantas fabris norte-americanas qualificadas.

A menos que a China estenda esses compromissos a outros membros da OMC, a implementação desse acordo com os EUA soa fortemente discriminatória. A chamada cláusula da “nação mais favorecida” estabelece que os membros da Organização devem estender os mesmos benefícios e conceder tratamento não discriminatório a todos os demais membros (artigo I.1. do Acordo Geral de Tarifas e Comércio – Gatt 1994).

No mesmo tom, o artigo 2.3 do acordo SPS da OMC estabelece que medidas sanitárias não podem ser fonte de discriminações arbitrárias e injustificadas entre os membros. O que vale para um vale para todos, salvo no caso da existência de acordos preferenciais de comércio, o que não é o caso entre EUA e China.

Outro capítulo que chama a atenção nesse acordo é o que trata de “expansão de comércio” por meio de compromissos não recíprocos de importação. Na agricultura, as importações da China oriundas dos EUA teriam de saltar de US$ 16 bilhões no ano passado para US$ 36,5 bilhões este ano e US$ 44,5 bilhões em 2021.

Administrar quantitativamente o comércio é um erro crasso, que vai desviar comércio, em vez de aumentá-lo. O mecanismo para isso permanece secreto, mas se aplicado de forma discriminatória a outros países – por meio de cotas, por exemplo – estaria potencialmente violando os artigos XI e XIII do Gatt.

O acordo entre Pequim e Washington marca o nascimento de uma nova era nas relações comerciais internacionais, mas faz um desserviço ao sistema multilateral de comércio, já abalado pelo bloqueio dos EUA à nomeação de juízes para o Órgão de Apelação da OMC – que por isso deixou de funcionar em dezembro último.

Em que pese a trégua temporária entre as duas potências, em vez de aprimorar regras comerciais globais e horizontais, caminhamos a passos largos na direção do comércio bipolar e administrado, que certamente ajudará a reeleger Donald Trump no final deste ano. Mas o pior é que, sem segurança jurídica, incompleto e com pouca previsibilidade, o acordo EUA-China é frágil, inconsistente e pode implodir a qualquer momento, causando grande estrago no cenário global.

RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR DE AGRONEGÓCIO GLOBAL DO INSPER, TITULAR DA CÁTEDRA LUIZ DE QUEIROZ DA ESALQ-USP, E DOUTORA EM DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL, PROFESSORA AJUNTA DA AMERICAN UNIVERSITY, EM WASHINGTON DC