Marco Aurélio Nogueira

Marco Aurélio Nogueira: Os podres da República e a sorte de Moro

*Marco Aurélio Nogueira
Bastou a prisão de Eduardo Cunha para que as nuvens ficassem mais carregadas e os dilemas da República se agigantassem.

Já se sabia de tudo, mas a prisão trouxe à tona uma trajetória que chama atenção pela longevidade, pela desfaçatez e pelo tamanho das ilicitudes. Cunha tem peso próprio, não é um qualquer quando se trata de exploração das brechas existentes na legalidade e na cultura político-administrativa do Estado brasileiro. É um profissional. As acusações contra ele abrangem um leque impressionante de fraudes, negócios escusos, abusos e irregularidades. Vêm lá de trás, mais ou menos do final dos anos 1980. Como foi possível sobreviver durante tanto tempo e seguir uma carreira ascendente que poderia tê-lo levado à Presidência da República? O sistema assistiu impassível à performance, que teria continuado se não houvesse a Lava Jato.

No mínimo por isso, o juiz Sergio Moro merece aplausos. Ele está a desnudar os podres de nossa vida estatal, valendo-se de uma obstinação que o tem ajudado a resistir a intempéries mil, ainda que o levando em certos momentos ao limite da temperança e da moderação.

As vozes mais sensatas e certeiras da República afirmam que a pressão sobre Moro aumentará terrivelmente. A prisão de Cunha fará um tsunami desabar sobre o juiz, impulsionado tanto pelos ventos que sopram do lado dos que não desejam o prosseguimento da Lava Jato, quanto pelos vagalhões produzidos por aqueles que não gostam do estilo de Moro e o veem como autoritário. No governo Temer, no Congresso e na oposição, quem tem o rabo preso está suando frio. A lógica das coisas aponta na direção deles. Decaído o chefe, é de esperar que o restante dos dominós caia também, ou seja ao menos ameaçado. Sobretudo se Cunha der com a língua nos dentes, contar o que sabe, com quem tramou, por que o fez, quanto ganhou e quanto distribuiu. Nitroglicerina pura, que será por ele usada com inteligência estratégica e instinto de sobrevivência, atributos que não lhe faltam.

No day after da prisão, não faltou quem fizesse a ilação apressada: Cunha derrubará Temer ou lhe roubará as bases de apoio a ponto de levar seu governo à asfixia. Setores da direita e sebastianistas de esquerda deram-se as mãos, desavergonhadamente, para atacar as detenções preventivas decretadas por Moro. Alegaram que elas ferem o Estado de Direito, que a prisão de Cunha não passaria de pretexto para prender Lula, que a Lava Jato teria criado a imagem da “corrupção sistêmica” só para justificar o arbítrio da república de Curitiba e “criminalizar o PT”. Cunha seria mais uma vítima desse procedimento judicial que fere a justiça, abusa da autoridade e desrespeita direitos.

Moro respondeu quase de imediato. Em palestra feita em Curitiba para desembargadores e juízes do Paraná, reiterou que a “aplicação vigorosa da lei” é o único meio de conter casos de “corrupção sistêmica”. As detenções cautelares seriam indispensáveis, até para deixar estabelecido que “processos não podem ser um faz de conta”. E explicou: “Jamais e em qualquer momento se defendeu qualquer solução extravagante da lei na decretação das prisões preventivas”. Seria preciso manter viva a “fé das pessoas para que a democracia funcione”, ou seja, impedir que se perca a “fé maior, de que a lei vale para todos”.

Evidenciou-se assim que o juiz sabe que a pressão sobre ele continuará a crescer. A coisa toda, no fundo, pode ser vista de forma mais simples.

Quando gente de direita e de esquerda se une para atacar um juiz, é porque há algo de muito errado no xadrez político. A causa, no mínimo, torna-se suspeita de antemão, especialmente quando estruturada para proteger pessoas que estão a ser investigadas há tempo, com provas que se superpõem e se acumulam.

Um juiz tende a ter atrás de si todo o sistema da Justiça: outros juízes, promotores, procuradores, tribunais, leis, jurisprudências, ritos consagrados, policiais federais. Moro não é, evidentemente, uma unanimidade entre seus pares e há muito conflito entre os órgãos e os aparatos de investigação e penalização. Mas, de algum modo, atacar hoje um juiz como ele pode significar um ataque ao conjunto do sistema.

Afinal, tudo parece indicar que a “corrupção sistêmica” está aí e atingiu níveis graves, que precisam ser contidos não só por uma questão de justiça, mas também por uma questão operacional: o sistema enfartará se não for “purificado” e esvaziado de trambiques e sujeira. Se é assim, em maior ou menor grau, Moro tem razão quando fala que “a condição necessária para superar a corrupção sistêmica é o funcionamento da Justiça”. Não haveria por que propor alguma espécie de “solução autoritária”, mas é preciso que se tenha vontade para que os processos cheguem a bom termo.

Ações judiciais na esfera política são acompanhadas com interesse pela sociedade, especialmente numa época de informações intensivas e protagonismo das opiniões. O cidadão assiste àquilo como parte de uma “limpeza” que ele gostaria de ver realizada. Muitas vezes joga o bebê fora junto com a água do banho: condena todos os políticos sem se esforçar para perceber que há diferenças entre eles, raciocina com o fígado e bate em todos como se fossem farinha do mesmo saco.

Se uma sociedade rejeita a corrupção sistêmica, o enriquecimento ilícito e os políticos “sujos”, com seus empresários a tiracolo, então não será o ataque a um juiz que vai convencê-la do contrário. Tal ataque, porém, se bem-sucedido, poderá fazer com que ela não se mobilize.

Até prova em contrário, se a sociedade assim quiser e souber se manifestar, Moro seguirá em frente, contra o sistema político que deseja seu silêncio, contra o governo e a oposição, contra o histrionismo da direita e as lágrimas de crocodilo da esquerda.

*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Marco Aurélio Nogueira: A governança democrática das cidades

Em tempos de política em crise, de debate público empobrecido e partidos desorientados, é de saudar a iniciativa do Partido Popular Socialista (PPS) de publicar as resoluções principais de uma Conferência Nacional por ele organizada sobre as cidades brasileiras.

A Conferência – realizada em Vitória (ES) nos dias 19-20 de março de 2016 – representou a culminância de um amplo processo de debates e discussões entre militantes políticos e especialistas que se estendeu por vários meses em diferentes cidades do país. A publicação (acesse aqui) oferece aos cidadãos um rico painel da vida urbana e dos problemas das cidades brasileiras, assim como sugere um roteiro para a organização de uma agenda que os enfrente.

Nele, são apresentadas análises e sugestões sobre Saúde, Educação, Finanças, Mobilidade Urbana, Segurança e Cultura. O texto não é acadêmico. Seu objetivo é fornecer elementos para a gestão técnico-política das cidades brasileiras, sendo direcionado para administradores municipais, vereadores e ativistas, mas também para o cidadão de modo geral, maior interessado na questão. O material, porém, recusa a ideia de ser visto como um “modelo” ou um “manual” a ser aplicado indistintamente. Não se vê como um “pacote” de propostas, mas como material de reflexão. É o que de fato se destaca, ainda que, por ser documento partidário, seja inevitável que se façam recomendações operacionais, que poderão ser traduzidas em termos políticos e eleitorais. Não há porque fazer ressalvas a este aspecto, assumido desde logo pelos organizadores.

Na parte propriamente analítica, o texto procura jogar luz sobre o estado atual das cidades brasileiras, especialmente das maiores, que conhecem um cenário de grandes transformações e mudanças mas permanecem amarradas a um quadro de exclusões e desigualdades expressivas, bolsões de segregação social, crise financeira e graves problemas ambientais.

Tal esforço de compreensão apoia-se no conceito de governança democrática: é preciso governar as cidades com os olhos na realidade (local, nacional, global) e nas possibilidades concretas de atuação, mas é preciso fazer isso compartilhando decisões com a cidadania. Como diz o texto de apresentação, “é preciso que haja organização política de interesses e capacidade de elaboração, mesmo que parcial, mas substantiva, de projetos de reforma e de transformação da realidade”.

Trata-se de um ponto importante, nesta nossa época em que detonar os governos e refutar a política se tornaram mania compulsiva, presente até mesmo na conduta de vários candidatos às prefeituras, que se apresentam como “gestores” e não como “políticos”, propondo-se a governar a partir de uma racionalidade administrativa superior que excluiria os cidadãos e se afirmaria sobre eles.

O documento do PPS critica com firmeza a “concepção verticalizada da ação política e de governo”, que vem de cima para baixo e implica uma orientação de caráter “gerencial”, autoritária, que pouco ajuda a que se fortaleça a vida democrática. Tal crítica é o ponto central do documento, dando sentido às sugestões que são apresentadas para as diferentes áreas da gestão municipal.

Não se trata, portanto, para o PPS, de simplesmente governar, apresentar planos e “propostas de governo”. É preciso fazer vibrar a atuação política (cívica) dos cidadãos, organizados em maior ou menos medida. Um governo democrático deve se propor sempre a organizar a cidadania, “empoderá-la”. Dadas as circunstâncias atuais, precisa se dispor a ser um governo-em-rede, aberto ao diálogo, à interação entre os atores, à participação da sociedade. Governo mais horizontal que vertical, apoiado mais na colaboração que na decisão unilateral. Um governo-dínamo, seria possível dizer: organizador da capacidade de ação da sociedade tendo em vista a cidade como construção coletiva.

É uma perspectiva nada fácil de ser assimilada ou traduzida em termos práticos, mas boa para ser incorporada como plataforma de reflexão e de atuação. O PPS, como seria de esperar, vê nela a materialização de seu esforço para qualificar o reformismo que o tipifica e para consolidar seu lugar no campo da esquerda democrática, dando vazão a uma política de caráter progressista e democrático.

Faz isso de maneira laica, sem apelos ideológicos rebarbativos ou promessas finalísticas de uma nova sociedade que nasceria de uma ruptura radical. A preocupação explícita é enfrentar em termos políticos realistas algumas questões concretas da vida urbana, de forma a publicizá-las e a convertê-las em parâmetro para a atuação cívica e as lutas que tiverem lugar nas cidades. (O Estado de S. Paulo – 28/09/2016)


Fonte: pps.org.br


Marco Aurélio Nogueira: A cultura, a pressão e o governo Temer

O anúncio de que o governo Temer recriará o MinC provocou surpresa, aplausos e reações entre defensores e adversários da ideia. Além de ter mostrado o modo de ser e proceder do governo interino, abriu nova oportunidade para que se volte a discutir, depois de muitos anos de silêncio, o papel da cultura nas ações governamentais e na sociedade.

O recuo deixou claro que o governo Temer não assumiu com um plano de voo bem definido e vigoroso. Está batendo cabeça nos primeiros dias e tenderá a continuar assim, porque suas bases de sustentação o empurram nessa direção.

O governo mostrou, porém, capacidade de reação, o que conta muito depois do ano e meio em que o país assistiu à passividade governamental explícita. Foi uma reação tópica, localizada, forçada pela pressão de muita gente, não só da área cultural em sentido estrito. Muitos políticos ajudaram a formar uma opinião que alterou o entendimento que o governo fazia de que a medida não encontraria resistência. O erro de avaliação ficou evidente e acabou impulsionando um movimento de revisão de rota que foi praticamente imposto pela pressão social. Em suma, a ação política nos espaços físicos e nas redes mostrou ser um bom instrumento de atuação, até por ter dado um alerta ao governo e o ter forçado a fazer política com os olhos para além do Congresso.

Conservadores de carteirinha e antipetistas açodados acharam que o governo foi “frouxo” por ter voltado atrás, como disse o deputado Alberto Fraga (DEM-DF). Para eles, recriar o MinC é ceder à chantagem de uma “classe” infestada de comunistas e oportunistas, que não está disposta a fazer sacrifícios e ajudar a reduzir os gastos públicos. Tal atitude, reacionária e mesquinha, não tem noção do significado e da importância da cultura e está longe do espírito democrático. O nome certo a ser dado à atitude do governo não é “frouxidão”, mas flexibilidade, capacidade de voltar atrás ao perceber o erro de uma decisão.

Pressão é sempre fundamental. Sem ela não se teria conseguido nem sequer dar visibilidade ao tema. Mas uma pressão, para se completar, precisa se desdobrar em programas de ação que se estendam no tempo. Não se trata de um “evento”, de algo feito para acender um fogo que se apaga com o fechar das cortinas de um “espetáculo”. Os que ganharam com a volta do MinC, e que se empenharam por ela, terão agora de aproveitar a oportunidade.

Será ruim se houver um movimento de refluxo, provocado ou por cansaço, ou por desinteresse ou em nome da ideia de que o importante é continuar lutando até a “derrubada de Temer”, como disseram alguns ativistas nas ultimas semanas. Todos ganharão se a mobilização pelo MinC não tiver sido contra Temer, mas sim em favor da cultura — o início de um esforço para que se ande para frente e se possa dar curso a um debate denso e consistente, que até agora não aconteceu nem foi promovido pelos que defenderam a manutenção do órgão.

Especialmente os que foram favoráveis à extinção do MinC demonstraram profundo desconhecimento do significado da cultura e das políticas culturais públicas, sobretudo em um país como o Brasil, cortado por desigualdades sociais e desequilíbrios regionais. A cultura une, organiza e identifica, e é difícil imaginar expansão da democracia e da igualdade social sem uma área cultural ativa. Países com boas políticas culturais tendem a ter melhor estrutura social, sabem mais a respeito de si próprios, têm identidades mais bem definidas e costumam ter maior capacidade de ocupar espaços no mundo, convertendo-os até mesmo em oportunidades de negócios e formação de divisas.

Em vez de levar em conta estes fatos elementares, os adversários mais conservadores do MinC sacaram do bolso argumentos banais, grosseiros e superficiais, movidos pela empolgação acrítica, pelo revanchismo e pela ignorância.

Teria sido possível até admitir a fusão do MinC com a Educação, mas desde que isso fosse respaldado por uma discussão consistente a respeito do que se poderia alcançar em termos educacionais e sobretudo culturais. Ou seja, se a ideia tivesse sido apresentada para debate junto com uma proposta de política cultural, algo que há tempo não está posto na mesa. Em vez disso, o foco foi direcionado para a questão orçamentária e administrativa, que seguramente é o pior jeito de discutir cultura. Jogou-se luz para o que se poderia obter de “economia”, sem considerar, por exemplo, que os gastos com a estrutura do MinC são irrisórios, são compartilhados com a iniciativa privada e, na verdade, nem deveriam ser vistos como gastos propriamente ditos e sim como investimento.

Falou-se, com cinismo, desfaçatez e facilidade, que ações culturais são custosas e dão pouco retorno, que Cultura é menos importante que Desenvolvimento, Saúde e Educação, que há gente passando fome e cultura não enche a barriga de ninguém. Para completar, atacou-se o MinC como se ele fosse um “aparelho” comunista, como se Cultura fosse coisa de esquerda, que só interessaria meia dúzia de apaniguados e de apoiadores do PT.

Uma baixaria completa, que com certeza, ao ser vocalizada, alertou o governo e ajudou Temer a perceber o tamanho do erro cometido.

O conservadorismo está à espreita, no Congresso e em parte das ruas. Não chegou a tomar de assalto o governo, que, até agora, nada fez de concreto que possa ser avaliado como representando concessões à agenda conservadora, sobretudo nos estratégicos temas éticos, morais e culturais, e mesmo nas políticas sociais. Mas é prudente manter os olhos bem abertos.

Se a mesma pressão que se manifestou no caso do MinC for ampliada e alcançar outras áreas poderá se formar uma rede de proteção aos setores democráticos e progressistas do governo, auxiliando-o a medir forças com o conservadorismo.

É bom não esquecer que, ao menos no Congresso, os conservadores, junto com o baixo clero, foram devidamente “empoderados” pela política de alianças do PT, que acreditou que seria possível monitorar os setores atrasados e “enquadrá-los” na “governabilidade” de que se necessitava. A expressiva força que este setor tem hoje foi alimentada ao longo dos anos. Não há como reduzi-la de um só golpe. Mas há como moderá-la politicamente, coisa que Temer poderá ou não fazer, conforme for a pressão democrática e segundo o padrão de negociação que adotará.


Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e coordenador do núcleo de Estudos e Análises Internacionais (Neai) da Unesp.


Marco Aurélio Nogueira: Impeachment é um risco, mas pode trazer ganhos para o debate democrático

Ao menos uma frase merece ser destacada da entrevista concedida ontem à noite pelo presidente nacional do PT, Rui Falcão. Ao se referir aos efeitos que se pode imaginar como derivando da aceitação da abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma, ele disse: “Abrimos um novo caminho para estabelecer uma nova governabilidade no país.”

Foi uma frase precisa, acertada. A partir de agora, Dilma, o PT e o País podem respirar aliviados, livres da chantagem a que foram submetidos pelo deputado Eduardo Cunha. Agora é guerra aberta, de posição, não mais somente de guerrilha e movimento. Chegou o momento de mostrar quem tem razão e quem pode mais. Que vença o melhor, o mais forte, o que está ao lado da justiça e da democracia. Que o governo volte a governar.

Com a abertura do processo de impeachment, acabou o braço de ferro entre Dilma e Cunha, que entre outras coisas paralisava o sistema e constrangia a militância petista.

Ganha com isso o PT, que poderá buscar sua unidade em torno da defesa do mandato presidencial. Ganham também as oposições, que serão obrigadas a demonstrar que sua narrativa de estelionato eleitoral e corrupção tem um fundo de verdade tão forte e evidente a ponto de sensibilizar a população e a maioria absoluta da Câmara dos Deputados.

É um ganho para o debate democrático. Saberemos todos aproveitá-lo? Teremos condições de requalificar o modo como vem sendo debatidos os grande temas nacionais? Conseguiremos escapar da polarização estúpida que faz a nação sangrar?

Importa não menosprezar a distribuição dos votos na Câmara. As oposições não têm a maioria. Terão de se desdobrar e gastar saliva e tutano, já que não têm canetas para distribuir prêmios e incentivos. Precisarão ser persuasivas e convencer deputados, senadores e formadores de opinião que o impeachment faz sentido, não é uma peça sem embasamento jurídico. Não será fácil. Terão de converter uma vontade e um desejo em argumento jurídico-político, mostrando que possuem mais do que uma acusação genérica de desgoverno e provando que Dilma cometeu atos que a comprometem em termos de irresponsabilidade e corrupção.

Se forem competentes, íntegros e souberem pautar o debate, os oposicionistas poderão nocautear Dilma. Se não forem, terão de enfiar a viola no saco e mudar a partitura.
Os governistas, de seu lado, precisarão provar que está em marcha um “golpe branco”, uma ameaça à democracia, uma manobra das oposições para tumultuar o ambiente e conseguir uma revanche que alivia a dor da derrota de 2014. Terão de explicar que o “processo espúrio” desencadeado pelo desejo de vingança e retaliação de Eduardo Cunha pode sim ter “lastro jurídico”, endossado que está por figuras como Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr. Não será suficiente espernear contra a “mídia golpista”. Nem converter Eduardo Cunha no algoz amoral e pérfido da presidente. Há muito mais coisas a serem consideradas. Uma delas: o impeachment tem base legal? Bater em Cunha agora é gastar vela com o defunto errado.

É verdade que Dilma não cometeu crimes, nem tem um prontuário que a criminalize. Mas será preciso blindá-la com outros argumentos, para o quê um pouco de autocrítica ajudaria bastante. Ou será que o governo não errou, não fez escolhas erradas, e tudo não passa de artimanhas da oposição ressentida? A perda de prestígio de Dilma caminha junto com os fracassos de seu governo e não serve em nada para bloquear o impedimento, muito ao contrário. Há um clima de esgotamento no ar: do modelo de desenvolvimento, de um padrão de coalizão, de um sistema político, do próprio PT, que se entregou demais ao governo e agora precisa se esforçar para defendê-lo sem se deixar por ele comprometer. Se não ilícitos que a maculem hoje, não há porque descartar que eles apareçam amanhã. Impossível tratar uma questão política com recursos de fundo jurídico ou moral. A política é dinâmica e tende a se diferenciar daquilo que é certo ou errado.

A Câmara é hoje uma terra de ninguém: um universo em disputa, no qual oposição e situação são somente parte. Há um “centrão” flutuando por ali, derivado da problematização da base aliada. Ele é tido como mais fiel a Eduardo Cunha do que ao governo. Será alvo de intensa disputa e tenderá a funcionar como fator decisivo, o que pode fazer seu “preço” subir às alturas.

A crise econômica, o prosseguimento da Lava-Jato, com seus desdobramentos imprevisíveis, a crise dos partidos, a falência do sistema político e o barulho das ruas são intervenientes complicadores e difíceis de serem controlados. Como cada um deles se manifestará é algo em aberto. Se a crise passar a ser mais sentida pela população e se houver combustível suficiente nas oposições, por exemplo, uma mobilização social poderá acontecer, com força para alterar a qualidade e o ritmo do processo. O destino de Eduardo Cunha também poderá alterar a correlação de forças e a dinâmica política. Se for cassado, fará com que suas impressões digitais comprometam ainda mais a credibilidade à autorização do impeachment. Por outro lado, o “centrão” ficará sem ter quem o coordene.
O impeachment por enquanto é uma hipótese remota. Poderá ou não encorpar. No curto prazo, produzirá estragos num governo que já vai muito mal e turbulência no País. No médio e no longo, tudo vai depender do que fizerem os protagonistas, dos acertos e erros que cometerem.

Na hipótese de o impedimento progredir, o mundo não acabará. É frágil a ideia de que o processo redundará necessariamente na entrega do governo para a direita, pois há um bom espaço de manobra para que se forje uma solução negociada que preserve e valorize as regras do jogo democrático, os direitos e as conquistas sociais dos últimos anos. Uma “pauta conservadora” não está automaticamente vinculada ao impeachment, até porque os atores que construirão o que virá depois ainda não estão claros nem definidos. Ao contrário, estão em plena gestação.

Fonte: Assessoria do PPS