Marco Aurélio Nogueira
Marco Aurélio Nogueira: Ferimentos radicais
Sangue, fúria e ódio mal calibrados espirram na vida coletiva, afetam a todos nós, ferem a democracia.
Pouco importa que o criminoso tenha dito que agiu a mando de Deus e demonstrado indícios claros de perturbação mental. A vida é feita de intenções e efeitos não intencionais, de razões e desdobramentos. Todo ato é uma coisa em si, pode não chegar a ser um ato para si, mas sempre pode repercutir. Em política, isso é ainda mais forte.
A facada foi em Bolsonaro, assim como meses atrás o alvo havia sido Marielle e um ônibus do PT. Sangue, fúria e ódio mal calibrados, que espirram na vida coletiva, afetam a todos nós, ferem a democracia.
Nenhuma disputa política tem chances de ganhar com a eliminação física dos adversários. Especialmente em condições democráticas, onde a “guerra” se faz de outro modo. A política precisa se afirmar não como poder, mas como convite ao diálogo, à moderação, à mediação do que é diverso e plural.
Tudo isso é mais que sabido, mas de tempos em tempos os atores perdem a memória. Numa sociedade em cujo DNA a democracia entrou tardiamente e de forma seletiva, mais como sistema do que como valor, são muitos os que não conseguem entender aquilo que é procedimento obrigatório, exigência, custo, “sacrifício”: ninguém está autorizado a se afirmar pela força, contra a vontade da maioria, por baixo de leis e instituições construídas coletivamente.
Não há nem sequer a possibilidade de que se diga, para justificar o fanatismo, o exagero, a agitação pueril, que leis e instituições foram impostas por oligarquias e classes dominantes, pelo Estado do capital ou qualquer outra baboseira do tipo. A esquerda que assim procede – seja a política, seja a intelectual – parou no tempo, contribui pouquíssimo para que a sociedade assimile os tempos complexos da política e da luta política, os desafios da democracia, entre os quais está a capacidade de tolerar e respeitar os que pensam de forma diferente ou estão em outros campos políticos e ideológicos. A extrema-direita que assim pensa – sim, ela também – nos empurra para trás com suas grosserias e agressões, seu fundamentalismo tosco e retrógrado.
Dirão que quem planta chuva colhe tempestade, que quem prega a violência recebe a violência de volta. É uma visão estreita, que justifica o injustificável mediante um exercício de relativização que termina por responsabilizar a vítima. É inaceitável que uma versão desse tipo saia da boca de candidatos, intelectuais ou formadores de opinião, porque eles são protagonistas centrais de um momento da vida social que precisa ser pedagógico, educativo.
A polarização escapou do razoável. Não se reveste mais de razões filosóficas, diferenças programáticas ou ideologias. Tornou-se veneno puro, que já há um tempo vem corroendo e intoxicando amizades, relações familiares, convivências, degradando mentes, gerando perturbações, angústias e ansiedades em pessoas que têm a vida para viver. É uma deformação que deveria ser combatida por todos, no mínimo porque com sua vigência não conseguimos respirar direito.
Insuflar ânimos, agredir adversários e transformá-los em inimigos, ofender divergentes e antagonistas, difamar e espalhar notícias inverídicas para agitar e chantagear, são práticas que desonram a democracia e bloqueiam a vida civilizada. Radicalizações que levam a dinâmicas “nós contra eles”, os bons e os maus, os santos e os golpistas, são o caminho mais curto para a quebra do pacto democrático que nos sustenta, ou deveria. Em algum momento, em alguma curva da estrada, o “nós contra eles” termina por se tornar a versão diabólica do “eles contra nós todos”.
O louco que esfaqueou Bolsonaro é um alucinado. Mas também é uma ameaça ao convívio dos integrantes de uma comunidade. Os que eventualmente vierem a aplaudi-lo, os que pedirem aos brados o seu linchamento, os que banalizarem o ato alegando que a vítima atraiu para si o que prega para os outros, os que acharem que não ocorreu nada de mais, estarão vendo o mundo com lentes distorcidas, sem conseguir valorizar aquilo que nos faz únicos no exercício político de substituir a guerra pelo diálogo. Polis, Urbe, Civitas são conceitos que passam longe deles, porque não sabem o que é democracia.
A derrota de Bolsonaro ou será democrática ou não se consumará. Por isso é que os democratas precisam ser solidários a ele.
Marco Aurélio Nogueira: Tempo de choques e atritos
Urge uma candidatura democrática capaz de promover uma união que abra as portas do futuro
Basta passar os olhos pelos debates e entrevistas eleitorais para constatar: os candidatos são o que são. Nenhum deles exibe poderio político extraordinário, nem particular força de persuasão. Cada um tem seu gueto, seu estilo, suas convicções, seu séquito. Mas nenhum ainda conseguiu sair de si, ultrapassar os muros de proteção, chegar aonde o povo está. Uns acreditam que conseguirão isso com a televisão, outros com as redes. Ninguém sabe quão potentes serão esses meios.
O tempo é de choques e atritos. Não há por que fugir dele à espera de um candidato ideal ou de uma candidatura que reúna os “melhores”. Isso não acontecerá, e talvez seja até bom que não aconteça. Democracia é pluralidade, divergência, confronto de opiniões, manifestação de preferências. É uma oportunidade para a sociedade olhar-se no espelho, mostrar sua cara, conhecer suas falhas, imperfeições e possibilidades. Numa época de partidos e verdades em crise, pregar a ordem unida é caminhar às cegas, sem poder de convencimento.
Os candidatos lutam pela própria afirmação, atropelam-se uns aos outros. É da lógica eleitoral. O sangue que deles escorre pode adubar candidaturas indesejáveis ou beneficiar quem menos se espera. São efeitos colaterais não previstos, riscos, preço da democracia.
A sabedoria está em minimizar os efeitos, evitar que os choques se traduzam em agressão e ruptura. Mentiras escabrosas e campanhas negativas de desconstrução são tóxicas, envenenam a democracia. Não se trata somente de cordialidade, mas de bater sem deixar marcas e sem poupar o adversário principal, facilitando-lhe a vida.
O campo da democracia no Brasil vive hoje um dilema: é possível trabalhar para que se tenha uma mudança que mexa nas estruturas, nos sistemas em geral, nas instituições, nos hábitos políticos, que produza mais vida civilizada? De que modo: mediante ataques frontais e explosões de indignação, ou por negociações longas, transações difíceis, de modo incremental? Alianças à direita ou com a “velha política” impedem a mudança necessária ou precisam ser toleradas? O que fazer com o “Centrão” e com as bancadas setoriais, que burlam os partidos e chantageiam o Executivo?
Mudar tornou-se um imperativo. Virá mais cedo ou mais tarde, já está vindo sem que percebamos bem, cegos que estamos por disputas e polarizações paralisantes. Não devemos exagerar no argumento. O Brasil não é um doente terminal, não vai acabar nem descarrilar depois das eleições, seja quem for o próximo presidente. Não há por que ficar parado perante um inimigo da democracia, nem temer os populistas de plantão. Não haverá salvadores da pátria e todos terão de cooperar entre si, fazer alianças, negociar, assimilar a velha política, pedir ajuda ao mercado e à população. Errarão e acertarão, uns mais, outros menos. Perigos e ameaças virão mais de uns do que de outros. Mas a roda continuará a girar.
A exigência de cooperação tem uma implicação positiva: faz todos terem de reduzir o topete, moderar as fantasias, aprender a respeitar os limites, arregimentar as forças que garantam algum sucesso. Impõe a articulação e a mediação.
Os candidatos, porém, precisam colaborar. Não se podem comportar prometendo mundos e fundos, criando falsas expectativas e esperanças vãs, falando mais para ferir os adversários do que para esclarecer a população. Sua função é apresentar planos, metas, ideias, revelar o fundo do poço e os meios para dele sair, não varrer para baixo do tapete a sujeira acumulada, fingindo que nada têm que ver com ela. Não podem transferir para as oligarquias ou para os “golpistas” responsabilidades que precisam ser contabilizadas coletivamente.
Repetir slogans e chavões, incorporar o espírito de terceiros para iludir o povo, jurar ataques frontais aos bancos, à propriedade privada e à política tradicional podem impressionar os incautos, mas não ajudam a que o País encontre uma rota.
São políticos antipolíticos. Recusam a política realmente existente como se ela fosse o único entrave e pudesse ser eliminada por decreto. Políticos que não falam de alianças e negociações, a não ser para demonizá-las ou justificá-las envergonhadamente. Que não se dedicam a falar do “como”, das concessões inevitáveis, dos sacrifícios que precisarão pedir ao povo. Derramam-se em elogios ao “novo” sem se darem ao trabalho de qualificá-lo. Suas propostas são genéricas, não descem a detalhes essenciais, não convencem. São fogos de artifício, lançados para desviar a atenção, disfarçar um buraco negro que não se deseja enxergar.
Jogam para a plateia. Obedecem a roteiros traçados por assessores e marqueteiros, capricham na performance, com gestos calculados para alcançar o máximo de efeito e atrapalhar os adversários. Também é parte do jogo, não dá para pedir que não ajam assim. São ritos eleitorais.
Mas as circunstâncias estão a clamar por algo mais, roteiros melhores, propostas claras e detalhadas. Não para que se conquistem votos, mas para ajudar a sociedade a se autocompreender, a se mobilizar, a se preparar para sacrifícios e dificuldades. Está certo, é somente uma eleição a mais, o mundo não acabará no dia seguinte, o País tem reservas para queimar. Mas, e para além das generalidades sobre o gigante adormecido? Quem irá desarmar a bomba da polarização?
Candidatos presidenciais estão se oferecendo para gerenciar a roda da História, interferir na nossa vida, direcionar uma sociedade às voltas com seus piores demônios. Não deveriam jamais prometer o que deles não depende ou falar como se não houvesse amanhã.
É hora de pavimentar o caminho. O tempo ruge. O País não acabará, mas será trágico se no final de outubro não houver uma candidatura democrática com força política e sensibilidade para promover uma união que reduza riscos e abra as portas do futuro.
Marco Aurélio Nogueira: Cálculos e apostas
Cálculos eleitorais são apostas, cada uma com sua dignidade, seus limites e suas possibilidades
Realizado o debate entre os presidenciáveis ontem à noite, inevitável que se tente descobrir quem ganhou e perdeu, qual estratégia se mostrou mais eficiente, quem soube calcular melhor a participação no debate.
Cálculo político é algo complicado. Tem muitas traduções. Sobretudo em processos eleitorais.
Você pode calcular que falando isso ou aquilo, uma verdade ou uma mentira tanto faz, ganhará ou perderá votos. Pode calcular que não falando nada, tergiversando e pedindo tempo para pensar, nada perderá e eventualmente ganhará. Pode calcular que quanto mais consistentes forem tuas propostas mais audiência obterá. Pode apostar tudo na demagogia e no populismo como estratégias para chegar ao coração do povo. Pode apelar a Deus ou ao Diabo para se mostrar mais religioso, ou menos.
Pode calcular que batendo na mesa e mostrando fluência e ousadia verbal conquistará o entusiasmo das multidões desejosas de alguém indignado pela esquerda ou pela direita, ou de um cabra arretado, na Presidência. Poderá falar cobras e lagartos, ameaçar os poderosos e os fracos, aliar-se à direita para sustentar um discurso de esquerda que você diz corresponder à tua formação e a teus compromissos, fazer juras de amor a teus adversários para tentar neutralizá-los. Poderá incensar seus padrinhos políticos e certos ícones que, em tese, ajudam a levantar as multidões, pouco se envergonhando de se subalternizar a eles. Nessa trilha, deixará de levar em conta que até mesmo os que se julgam mais bem preparados podem subornar a si próprios sem terem disso a menor consciência.
Pode calcular que mostrando serenidade, realismo e talento administrativo irá comendo pela borda e chegará lá, convicto de que alianças e diálogo geram boa governança. Poderá fazer com que vibrem as cordas da razão técnica, da experiência, da união política e da democracia, dizendo que conseguirá domar os demônios que te acompanham, sem considerar que o inferno político é vasto e nem sempre é domável. Sua praia será a sensatez e a serenidade, recursos com que pensa ser possível re-unir o que a vida política desuniu. Seguirá a estrada da moderação e da exibição de propostas exequíveis, difíceis de serem questionadas. No meio do caminho, poderá correr o risco de ficar tão encantado com as próprias convicções que se esquecerá de assimilar os reclamos das multidões e com elas interagir.
Pode imaginar que posando de mártir e vítima dos poderosos conquistará o coração dos subalternos e será a eminência parda do processo, pouco importando se isso prejudicará os que acreditam em você e te seguem com convicção religiosa. Você poderá criar um séquito de fanáticos, pernas sem cabeça, paixão sem racionalidade, um movimento místico regressista, que cega e aliena, mesmo que repita à exaustão sua perspectiva emancipacionista e prometa, caso vença, que fará o povo ser feliz de novo, abrindo as portas do paraíso como nunca antes se tentou fazer nesse país. Na sua cabeça a ideia pode ser outras, mas sua atitude acaba por manter os cidadãos em condição de infantilidade, pedindo proteção, afago, carinho, como se um pai faz com um filho. Poderá encontrar um sucedâneo que guarde teu lugar e fale em teu nome, sem levar em conta que muitas vezes essas operações causam constrangimentos e bloqueiam importantes tentativas de renovação. Não perceberá que, se a operação der certo, a chance de você cair no esquecimento será altíssima.
Pode calcular que pregando um modo diferente de fazer as coisas e se cercando de gente íntegra e que pensa como você cavará um lugar na dianteira, crente de que mais cedo ou mais tarde a verdade triunfará. Você dirá que somente com independência e renovação será possível unir o País, repudiando alianças e coligações ampliadas por serem perigosas e refratárias ao progresso indispensável. Terá enormes dificuldades para governar e derrotar as estruturas que empurram o país para trás, mas permanecerá na estrada como uma espécie de consciência crítica da nação, sem sacrificar seus ideais no altar das grosserias políticas e das jogatinas do marketing.
E pode calcular que confessando suas limitações e mostrando sua verdadeira face bruta, truculenta, abrirá um canal de comunicação com as massas, intoxicando o imaginário popular com a promessa de que a ordem, a disciplina e a autoridade trarão o futuro que todos esperam e Nosso Senhor abençoa. Poderá formar uma brigada com gente que segue teu estilo e admira tua veia autoritária, controversa e indiferente a maiores rigores, mas, ao chegar ao porto e tentar descarregar, perceberá que o barco esteve sempre vazio, pois você não se preocupou em carregá-lo com bens e mantimentos de qualidade. Os marujos que te acompanharam na travessia ficarão assim a ver navios.
Cálculos políticos ou eleitorais são apostas, cada uma tem sua dignidade, seus limites e suas possibilidades. Duro mesmo é ver que muitas vezes tais apostas não são vocalizadas por personagens à altura dos tempos, ou ao menos próximos deles.
Marco Aurélio Nogueira: A reflexão política de Luiz Werneck Vianna
Autores como Luiz Werneck Vianna dispensam apresentações. Suas intervenções são sempre esclarecedoras, especialmente quando se debruçam sobre os fatos da conjuntura. Valendo-se de uma ciência social rigorosa e de uma visão abrangente da vida brasileira, ele trata os fatos sempre a partir da compreensão crítica dos processos e ritmos da estrutura, da história. Por esse caminho, edificou uma completa teoria de nossa formação como Estado nacional e como comunidade política.
Em Diálogos Gramscianos sobre o Brasil Atual, que acaba de ser lançado pela Verbena Editora e pela FAP, podemos encontrar o sociólogo em plena forma. É um livro composto por entrevistas, que se estendem por um longo período (2007-2018) e vão além de meras análises de conjuntura. Nelas, o esforço recorrente é para captar a política em pleno voo e decifrar o enigma brasileiro.
Encontramos, nesses diálogos com seus entrevistadores, a marca da visão que Werneck elaborou sobre o Brasil, na qual ressoa forte o conceito gramsciano de revolução passiva: o desenvolvimento capitalista brasileiro seguiu caminhos não-lineares, nos quais a modernização teve sua marcha ralentada e condicionada por resistências e movimentos de conservação empreendidos pelas elites dominantes. Houve mudança, e ela foi expressiva, mas também muita conservação. Os fatos foram se impondo quase que com autonomia em relação aos sujeitos. Mas os atores não desapareceram, nem ficaram submetidos o tempo. Nos momentos de maior avanço, conseguiram de algum modo “dirigir” aquilo (e aqueles) que bloqueavam o progresso (a democratização, o desenvolvimento, a ascensão social). O processo se fez mediante reformas e avanços moleculares.
Para Werneck, o Brasil é um país sufocado pela centralidade do Estado, que modelou a modernização de modo a prolongar a subalternização das classes populares e a dificultar a marcha do próprio moderno. Tratou-se de uma “estatalização” que não foi organizada tão-somente pelas elites dominantes, mas também pelos atores que buscaram se apresentar como expressão da esquerda. A tutela do povo combinou-se ou com o autoritarismo dos tempos da ditadura, ou com políticas de clientela e assistencialismo em tempos de democracia.
Werneck procura acompanhar os desdobramentos mais recentes desse processo, olhando em detalhe a atuação do PT no governo, antes de tudo marcada pelo abandono da ideia de organizar e autonomizar as classes populares e pela concentração de esforços no prolongamento do poder conquistado, para o que entregou-se parte importante do governo a forças políticas tradicionais. Os movimentos sociais foram assim submetidos ao Estado, tornando-se dele dependentes, inclusive em termos de recursos. Fechou-se assim um círculo a mais no processo de “estatalização”.
Ao analisar a “era Dilma” (2011-2015), Werneck ressalta a fracassada tentativa de patrocinar um desenvolvimentismo sem foco emancipatório e destinado basicamente a servir de plataforma para a reprodução de um bloco de forças no poder. A consequência disso não foi apenas o impulsionamento de uma grave crise econômica e fiscal, como também a perda da base parlamentar, que levou ao impeachment, e uma crise política de vastas proporções, com a qual ainda temos de lidar. Decorreram daí o empobrecimento e o desprestígio da política democrática, num quadro em que a aceleração de uma modernização “hipermoderna” desorganizou a sociedade e disseminou uma gigantesca hostilidade à política por parte da opinião pública e dos eleitores.
Natural, portanto, que o sociólogo fosse buscar apoio em Antonio Gramsci, autor de que ele é um dos maiores intérpretes entre nós. O marxismo gramsciano lhe serve para tematizar a questão da hegemonia, da orientação intelectual e moral, espinho sempre espetado na garganta de nossas esquerdas, e para pensar em chave teórica sofisticada os dilemas da modernização nacional. Gramsci não é tratado aqui como um pensador fechado em si ou autossuficiente — muito menos como um depósito de conceitos a serem “aplicados” — mas como um intelectual que reflete sobre as dores do desenvolvimento capitalista e, a partir disso, construiu uma teoria política de valor universal. Um intelectual cujo vigor se mostra na medida mesma em que é articulado com outras referências teóricas.
Werneck Vianna explora a sinuosidade do processo político-social brasileiro, vendo nele não somente as marcas da reprodução do “atraso”, da vida tradicional, mas também os sinais eloquentes de um mundo novo que exibe suas agendas, seu desconforto e seus estilos de atuação. Ou seja, convida-nos a refletir sobre aquilo que amarra o país e anuncia seu futuro.
Encontramos no livro, por exemplo, uma reflexão rica e sugestiva sobre o combate à corrupção, tratado, no caso, sobretudo a partir da ação do Ministério Público e do Judiciário, da Lava Jato e operações semelhantes. Werneck é crítico contundente da corrupção, sabe os males que ela causa à sociedade e à política. Mas não aceita a centralidade adquirida pelo tema, que deslocou para a margem todas as demais questões. Além disso, vê com reservas o estilo de atuação dos juízes e procuradores, fortemente marcada por aquilo que se chama de “ativismo judicial”. Por seus “excessos”, a atuação disseminou uma condenação moralista da política, que impregnou diversos setores da opinião pública. Como Werneck escreveu várias vezes ao longo dos anos, procuradores e juízes agem como se fossem os únicos reformadores republicanos: “tenentes de toga”, que, diferentemente dos antigos tenentes dos anos 1920-1930, não têm uma plataforma programática abrangente. Pode haver algum exagero retórico na apreciação, mas é inegável que Werneck chama atenção para uma dimensão particularmente relevante do combate à corrupção.
Lendo as entrevistas, ficamos mais atentos para o nosso problema atual, que em boa medida deriva do fato de que os sinais do novo não conseguiram ser compreendidos e processados pelo mundo político, estatal, governamental. Enquanto a sociedade envereda pela trilha da “hipermodernidade”, a política se refugia nos bastidores do Poder Executivo. Abriu-se assim uma fenda entre sociedade e Estado, que passou a servir de abrigo para a reprodução tanto do fisiologismo político quanto de um imperfeito presidencialismo de coalizão.
Como escreveu o cientista político Rubem Barboza Filho na contracapa do livro, “nesta coletânea o leitor irá se deparar com a reflexão, em ato, de um de nossos maiores intelectuais. Longe da impotência reflexiva que esteriliza as nossas conhecidas divisões, Luiz Werneck Vianna reafirma, com uma verve que associa a visão de longo prazo e a face das conjunturas, duas de suas paixões: o Brasil e a democracia. Paixões que alimentam a lucidez profética de quem não aceita para o país outro futuro senão uma vida democrática cada vez mais densa e produtiva”.
É uma descrição perfeita do que se encontra no livro. Dele sai um convite precioso para que pensemos politicamente na política e nos esforcemos para ir além de suas limitações correntes e abraçarmos suas possibilidades.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: A metamorfose e a unidade difícil
É da ideia unitária que algum oxigênio poderá ser extraído e injetado na vida política do País
A unidade dos democratas avança com dificuldades.
As principais articulações em curso são eleitorais, haja vista as que envolvem o chamado “centrão”, cortejado por todos e agora associado a Geraldo Alckmin. Coligações são concebidas com os olhos no tempo de propaganda e na “repartição do poder”. São pragmáticas, tentando ser realistas. Diz-se que na mesa estão não somente cargos, mas também uma preocupação com a “governabilidade” do futuro presidente. O quanto será assim não se sabe.
O fundamental não é tratado com seriedade.
Refiro-me à necessidade de instituir um campo democrático que leve em conta as eleições mas vá além delas, comprometendo-se a qualificar a vida política, a ser um vetor programático de reorganização e governo da sociedade.
A renovação política é indispensável. O País não aguenta mais conviver com um sistema político - com seus partidos, sua cultura e suas práticas - que não acompanhou as mudanças que afetaram a estrutura da economia, a sociedade, o modo de vida. As mudanças trouxeram problemas novos sem que os antigos tenham sido resolvidos, formando, assim, um compósito desafiador.
Ainda não se compreendeu bem o quanto há de novidade no mundo atual. Como escreveu Ulrich Beck em seu livro póstumo, não se trata de um mundo forjado pelas mudanças típicas da modernidade capitalista, mas de um mundo que nasceu sob o signo da metamorfose: uma alteração na natureza da existência humana, no modo de estar no mundo, de imaginar e fazer política, de viver a vida.
Evidentemente, nem tudo está se metamorfoseando. Muitas mudanças são, na verdade, reprodução da ordem existente. Mas o importante é compreender o que foge da mera reposição, aquilo que transfigura e cria formas, práticas e expectativas. As lógicas se entretecem, ampliando os problemas e os desafios, mas também abrindo outras perspectivas.
Há um turbilhão pela frente. Precisamos resolver os problemas crônicos de nossa formação e administrar a metamorfose que desponta numa sociedade em que parece faltar a instância decisiva, a política. Sem melhor articulação, mais democracia e coesão, educação e inovação, o futuro ficará travado. Precisamos descomprimir a sociedade, reduzir as polarizações artificiais, ir além da reiteração discursiva esquerda versus direita. Não podemos nos entregar aos reptos “identitários”. Se continuarmos insistindo na lógica “nós” contra “eles”, correremos o risco de retroceder.
Se isso é minimamente razoável, como então pensar em avançar sem ajustes e adaptações, sem reformas nas estruturas e nas instituições, do mercado ao Estado? Necessitamos de uma reeducação geral, para aprendermos a lidar com o que é incerto e ainda não decodificamos.
O ritmo da mudança não é uniforme: muda-se mais depressa nas bases do que nas cúpulas, mais rápido na vida social do que na vida política.
Homens e mulheres têm sua vida sendo alterada, mas não sabem disso e não conseguem extrair disso todos os desdobramentos e exigências. A visão do mundo conserva muitos de seus pedaços presos a imagens tradicionais, que se dissolvem lentamente. O modo de produção transforma-se com rapidez, em silêncio, mas sempre com dor e sofrimento, impulsionado pela revolução técnico-científica e pela globalização do capitalismo. Arrasta consigo as relações sociais e o trabalho, e por essa via invade e reorganiza a vida familiar, os valores e as atitudes, o modo de agir, pensar e sentir.
O plano estatal, porém, resiste, entre outras coisas porque nele estão encastelados os interesses mais bem organizados, que se protegem e tentam bloquear as mudanças que lhes roubam o chão. São interesses que se enraízam em tradições provenientes de um passado que se repõe, embora esteja questionado pela vida. Um passado que identifica, fornece uma linguagem, legitima práticas e condutas. O sistema político é parte disso, e sua resistência à mudança pode impressionar, mas é compreensível.
A sociedade que se metamorfoseia esbarra, assim, numa estrutura de interesses que controla o Estado e dificulta o acesso à política pela população mais sintonizada com a contemporaneidade. O novo é forçado a negociar as regras do jogo com o velho, numa pendência que pode se estender por longo tempo.
É por isso que os candidatos que se querem avançados são levados a se aliar aos setores atrasados. O grito de “renovação” ecoa, mas não se traduz politicamente. O Congresso - visto com desconfiança pela população - não mudará sua composição nas próximas eleições. Os candidatos presidenciais, por sua vez, flertam com o passado, com o mundo que se dissolve e fornece votos, uns vociferando autoritarismo contra a democracia e se oferecendo como salvadores da Pátria, outros tentando abrir uma brecha na muralha.
A “velha” política mostra que é uma das faces ativas da política realmente existente. Não sairá de cena de um dia para outro.
Um campo democrático generoso e renovador é uma construção complexa. O fato de privilegiar mais o futuro que o imediato não o torna sedutor para fins eleitorais. A disposição de agir como uma força - uma ideia, uma causa, uma época - que atraia os democratas que estão espalhados, articulando-os e os unificando, colide com as conveniências e as vaidades dos que, em princípio, deveriam ser seus maiores animadores. O campo democrático precisa questionar os partidos e os procedimentos políticos, mas não tem como se dissociar deles.
Além do mais, sua mensagem não chega aos jovens, que são o dínamo da vida, e não chega porque sua música toca num tom para o qual os ouvidos jovens ainda não foram treinados.
A ideia unitária, em suma, precisa de tempo para frutificar, e o mundo metamorfoseado está marcado pela urgência. Ainda assim, é dela que algum oxigênio poderá ser extraído e injetado na vida política nacional. Talvez não vença no curto prazo, mas tem todo o futuro a seu dispor.
Marco Aurélio Nogueira: Falando a sério sobre Alckmin
É sabido que o presidenciável Geraldo Alckmin, do PSDB, tem trunfos importantes para vencer a eleição: um partido, experiência política como gestor, estilo moderado, torcida do mercado e acesso à máquina pública paulista, que há 20 anos vem sendo por ele modelada.
Apesar disso, não decola nas pesquisas e é alvo de todo tipo de críticas e restrições. Sua defesa tem argumentado que a disputa só começará mesmo quando a propaganda for para o rádio e a TV, quando então a candidatura arrancará, já num contexto em haverá uma inevitável depuração dos candidatos menos competitivos. O candidato mostra confiança e determinação, procura comer pelas bordas, quase em silêncio, como bom político interiorano que é. Pode ser que tenha razão. Mas sua campanha flerta ininterruptamente com a crise.
Alckmin é visto como insípido, conservador nos costumes, excessivamente fiscalista e neoliberal em economia, desatento para a questão social. Suas seguidas gestões em São Paulo dividem opiniões: há quem aprecie e quem critique, mas a rigor não há ninguém que se derrame em elogios e amores. O ex-governador é um democrata, mas não é um político que desperte paixões. Há muita injustiça no modo como é visto.
Como candidato, vem tentando dissolver a imagem negativa que fazem dele. Gosta de ser comparado a um maratonista, que avança lentamente, poupando fôlego e energia, para dar um arranque final vitorioso. Confia que parte da massa de eleitores indecisos, que é enorme, migrará para ele às vésperas do pleito. Procura exibir indicadores de sucesso na administração paulista, números quase sempre questionados pela oposição e nem sempre devidamente compreendidos pela população. Vale-se, também, de uma conduta discreta e educada, que o faz ser tratado como um governante prudente, conciliador, flexível, que não carrega rancores nem ressentimentos, trabalha de forma colegiada e com equipes multipartidárias, integradas por diferentes correntes políticas.
Alckmin se apoia nesses dois blocos imagéticos, cada um dos quais contém boa dose de verdade. Seu entorno e mesmo diversos políticos e analistas acreditam que ele é o homem certo para o momento atual, graças à capacidade que teria de agregar pessoas e manter sob controle o timão do barco e a chave do cofre.
Mas Alckmin permanece estacionado nas pesquisas e parece destituído de poder de convencimento. Não conseguiu até o momento gerar entusiasmo entre os eleitores, nem obteve o apoio explícito dos partidos que poderiam tê-lo como opção. Algo que surpreende e merece reflexão.
Tem demonstrado enorme dificuldade para fixar uma posição nacional que o projete para a Presidência em nome de uma articulação democrática que dê sustentação a uma agenda reformadora que combine equilíbrio fiscal, crescimento econômico e igualdade social. Particularmente na dimensão da “questão social” e das “lutas identitárias”, ele não consegue ganhar impulso, como se estivesse travado pelo fiscalismo liberal. O empenho que teve em sanear as finanças públicas em São Paulo é interpretado como expressão de um garrote que sufocou as universidades públicas e as instituições técnicas da administração pública. Com isso, perde pontos preciosos entre a intelectualidade e os núcleos de ativistas.
Pode-se considerar, ainda, que a estratégia política por ele seguida em São Paulo não lhe favoreceu em nenhum momento. Primeiro porque foi o principal responsável pela ascensão de João Doria, que ajudou a eleger prefeito de São Paulo e agora, não só concorre ao governo do estado como faz uma espécie de sombra à candidatura de Alckmin. Obrigado a se equilibrar entre Dória, candidato do PSDB, e Márcio França, vice-governador (PSB) e seu aliado, Alckmin perdeu a exclusividade em São Paulo. Fomentou simultaneamente a reação dos que não gostam de Doria e a resistência do PSB. Foi um erro, a ser compartilhado com o partido e as correntes tucanas. De certo modo, Alckmin ficou emparedado em seu próprio estado, travando a indispensável projeção nacional.
Essa é uma das pedras que o mantém parado no mesmo lugar. Mas não é a única. Outras duas pedras também o atrapalham.
Uma é o desencanto da população com a política, fato que celebra o sacrifício de candidatos “excessivamente políticos”, que são vistos como corruptos e distantes dos problemas reais da vida cotidiana. Processo objetivo derivado da atual fase da globalização capitalista e da crise da democracia representativa, tal desencanto colou-se na pele de Geraldo e de praticamente todos os demais candidatos, dele escapando, a rigor, somente Marina Silva, e mesmo assim não por inteiro. Hoje parece cristalizada a tendência do eleitorado de torcer o nariz para candidatos identificados com o establishment político, em nome de uma vaga ideia de renovação. Fato que ajuda a explicar os indicadores das pesquisas que dão conta de um enorme contingente de eleitores sem candidatos, desinteressados e dispostos a anular o voto.
A segunda pedra é a crise do PSDB. Já faz tempo que o partido deixou de ser uma organização coesa. Suas alas se reproduzem com impressionante facilidade, ressentindo-se da falta de uma direção ativa e legitimada, de um corpo doutrinário atualizado e de um programa unificador. A ideia social-democrática, que serviu de inspiração para o surgimento do PSDB há trinta anos, já não é mais uma inspiração. O partido ainda tem bancadas expressivas, governa estados e cidades importantes, mas carece de vibração cívica e de ligações com a sociedade civil. Mesmo a intelectualidade que sempre emprestou apoio ao PSDB recuou, deixando o partido sem sustentação no plano do debate público. Sua longa temporada na oposição aos governos petistas não o fez mais forte, ao contrário, deixando no eleitorado a sensação de que o partido existe só para disputar o poder e não para oferecer uma perspectiva de Estado e sociedade para a população – problema idêntico ao que os tucanos identificavam no PT.
Em 2014, o PSDB perdeu a Presidência mas teve, paradoxalmente, sua maior oportunidade de reencontrar o eixo. A campanha de Aécio Neves ativou o sentimento antipetista e, no segundo turno, conseguiu articular uma ampla frente democrática de apoio. O candidato, porém, esteve sempre aquém dela, fez uma campanha pífia, sem vigor e identidade . Perdida a eleição, o partido nada fez para se reagrupar e ganhar energia. Pouco depois, as denúncias de corrupção contra Aécio não conseguiram ser processadas, retirando do partido a imagem ética e moral que sempre exibiu. Com o início do governo Temer, mais indefinições, num cenário em que se esperava que o PSDB funcionasse como o fator de estruturação do ministério e da atuação governamental.
Tudo isso empurrou o PSDB para a periferia do sistema. A postulação ética, cara ao partido, se dissolveu e ficou em suspenso. As seguidas denúncias de corrupção em obras no estado de São Paulo completaram o quadro, descarregando um caminhão de problemas na candidatura de Alckmin.
Com todas essas pedras bloqueando a estrada, não é de surpreender que Geraldo Alckmin permaneça estagnado. Faltando três meses para as urnas, muita coisa poderá mudar, mas a sensação é que aquilo que se cristalizou dificilmente será superado.
O candidato tucano tem a seu favor uma conhecida folha de serviços e boa estrutura de campanha (que poderá se traduzir em importante recurso governamental no caso de uma vitória), mas paga um alto preço pelos descaminhos e tropeços do PSDB. Enfrenta problemas de indefinição programática, não deixou claro que caráter terá seu eventual governo e, para complicar, não se reveste de uma fantasia cívica e democrática que mobilize a população.
Nessa marcha, corre o risco de chegar à fase decisiva das eleições sem conseguir sair do lugar.
Marco Aurélio Nogueira: Dilemas e dificuldades de Alckmin
Presidenciável tucano ainda não resolveu a questão das alianças e não se reveste de uma fantasia cívica e democrática que empolgue
É sabido que o presidenciável Geraldo Alckmin, do PSDB, tem trunfos importantes para vencer a eleição: um partido, experiência política como gestor, estilo moderado, torcida do mercado e acesso à máquina pública paulista, que há 20 anos vem sendo por ele modelada.
Apesar disso, é alvo de todo tipo de críticas e restrições. Em sua defesa, tem argumentado que a disputa só começará mesmo quando a propaganda for para o rádio e a TV, quando então a candidatura arrancará, já num contexto em que haverá uma inevitável depuração dos candidatos menos competitivos. O candidato mostra confiança e determinação, procura comer pelas bordas, quase em silêncio, como bom político interiorano que é. Pode ser que esteja certo. Mas sua campanha flerta ininterruptamente com a crise.
Alckmin é visto como insípido, conservador nos costumes, excessivamente fiscalista e neoliberal em economia, desatento para a questão social. Suas seguidas gestões em São Paulo dividem opiniões: há quem aprecie e quem critique, mas a rigor não há ninguém que se derrame em amores e elogios. O ex-governador é um democrata, mas não é um político que desperte paixões. Há muita injustiça no modo como é visto.
Como candidato, vem tentando dissolver a imagem negativa que fazem dele. Gosta de ser comparado a um maratonista, que avança lentamente, poupando fôlego e energia, para dar um arranque final vitorioso. Confia que parte da massa de eleitores indecisos, que é enorme, migrará para ele às vésperas do pleito. Procura exibir indicadores de sucesso na administração paulista, números quase sempre questionados pela oposição e nem sempre devidamente compreendidos pela população. Vale-se, também, de uma conduta discreta e educada, que o faz ser tratado como um governante prudente, conciliador, flexível, que não carrega rancores nem ressentimentos, trabalha de forma colegiada e com equipes multipartidárias, integradas por diferentes correntes políticas.
Alckmin se apoia nesses dois blocos imagéticos, cada um dos quais contém boa dose de verdade. Seu entorno e mesmo diversos políticos e analistas acreditam que ele é o homem certo para o momento atual, graças à capacidade que teria de agregar pessoas e manter sob controle o timão do barco e a chave do cofre.
Mas Alckmin permanece estacionado nas pesquisas e parece destituído de poder de convencimento. Não conseguiu até o momento gerar entusiasmo entre os eleitores, nem obteve o apoio explícito dos partidos que poderiam tê-lo como opção. Algo que surpreende e merece reflexão.
Tem demonstrado enorme dificuldade para fixar uma posição nacional que o projete para a Presidência em nome de uma articulação democrática que dê sustentação a uma agenda reformadora que combine equilíbrio fiscal, crescimento econômico e igualdade social. Particularmente na dimensão da “questão social” e das “lutas identitárias”, ele não consegue ganhar impulso, como se estivesse travado pelo fiscalismo liberal. O empenho que teve em sanear as finanças públicas em São Paulo é interpretado como expressão de um garrote que sufocou as universidades públicas e as instituições técnicas da administração pública. Com isso, perde pontos preciosos entre a intelectualidade e os núcleos de ativistas.
Pode-se considerar, ainda, que a estratégia política por ele seguida em São Paulo não lhe favoreceu em nenhum momento. Primeiro porque foi o principal responsável pela ascensão de João Doria, que ajudou a eleger prefeito de São Paulo e agora, não só concorre ao governo do estado como faz uma espécie de sombra à candidatura de Alckmin. Forçado a se equilibrar entre Dória, candidato do PSDB, e Márcio França, vice-governador (PSB) e seu aliado, Alckmin perdeu a exclusividade em São Paulo. Fomentou simultaneamente a reação dos que não gostam de Doria e a resistência do PSB. Foi um erro, a ser compartilhado com o partido e as correntes tucanas. De certo modo, Alckmin ficou emparedado em seu próprio estado, travando a indispensável projeção nacional.
Essa é uma das pedras que o mantém parado no mesmo lugar. Mas não é a única. Outras duas mais também o atrapalham.
Uma é o desencanto da população com a política, fato que celebra o sacrifício de candidatos “excessivamente políticos”, que são vistos como corruptos e distantes dos problemas reais da vida cotidiana. Processo objetivo derivado da atual fase da globalização capitalista e da crise da democracia representativa, tal desencanto colou-se na pele de Geraldo e de praticamente todos os demais candidatos, dele escapando, a rigor, somente Marina Silva, e mesmo assim não por inteiro. Hoje parece cristalizada a tendência do eleitorado de torcer o nariz para candidatos identificados com o establishment político, em nome de uma vaga ideia de renovação. Fato que ajuda a explicar os indicadores das pesquisas que dão conta de um enorme contingente de eleitores sem candidatos, desinteressados e dispostos a anular o voto.
A segunda pedra é a crise do PSDB. Já faz tempo que o partido deixou de ser uma organização coesa. Suas alas se reproduzem com impressionante facilidade, ressentindo-se da falta de uma direção ativa e legitimada, de um corpo doutrinário atualizado e de um programa unificador. A ideia social-democrática, que serviu de inspiração para o surgimento do PSDB há trinta anos, já não é mais uma inspiração. O partido ainda tem bancadas expressivas, governa estados e cidades importantes, mas carece de vibração cívica e de ligações com a sociedade civil. Mesmo a intelectualidade que emprestou apoio ao PSDB recuou, deixando o partido sem sustentação no plano do debate público. Sua longa temporada na oposição aos governos petistas não o fez mais forte, ao contrário, deixando no eleitorado a sensação de que o partido existe só para disputar o poder e não para oferecer uma perspectiva de Estado e sociedade para a população – problema idêntico ao que os tucanos identificavam no PT.
Em 2014, o PSDB perdeu a Presidência mas teve, paradoxalmente, sua maior oportunidade de reencontrar o eixo. A campanha de Aécio Neves ativou o sentimento antipetista e, no segundo turno, conseguiu articular uma ampla frente democrática de apoio. O candidato, porém, esteve sempre aquém dela, fez uma campanha pífia, sem vigor e identidade . Perdida a eleição, o partido nada fez para se reagrupar e ganhar energia. Pouco depois, as denúncias de corrupção contra Aécio não conseguiram ser processadas, retirando do partido a imagem ética e moral que sempre exibiu. Com o início do governo Temer, mais indefinições, num cenário em que se esperava que o PSDB funcionasse como o fator de estruturação do ministério e da atuação governamental.
Tudo isso empurrou o PSDB para a periferia do sistema. A postulação ética, cara ao partido, se dissolveu e ficou em suspenso. As seguidas denúncias de corrupção em obras no estado de São Paulo completaram o quadro, descarregando um caminhão de problemas na candidatura de Alckmin.
Com todas essas pedras bloqueando a estrada, não é de surpreender que permaneça estagnado. Faltando três meses para as urnas, muita coisa poderá mudar, mas a sensação é que aquilo que se cristalizou dificilmente será superado.
O candidato tucano tem a seu favor uma conhecida folha de serviços e boa estrutura de campanha (que poderá se traduzir em importante recurso governamental no caso de uma vitória), mas paga um alto preço pelos descaminhos e tropeços do PSDB. Enfrenta problemas de indefinição programática, não deixou claro que caráter terá seu eventual governo, ainda não resolveu a questão das alianças e, para complicar, não se reveste de uma fantasia cívica e democrática que mobilize a população.
Nessa marcha, corre o risco de chegar à fase decisiva das eleições sem conseguir sair do lugar.
Marco Aurélio Nogueira: Fermento mobilizador
A Roda Democrática se empenhou firmemente na organização do Ato por um Polo Democrático e Reformista que se realizou em São Paulo no começo da noite do dia 28 de junho, no Teatro Eva Herz. Em boa medida, foi graças à dedicação de Tibério Canuto, seu coordenador, que o Ato ganhou vida e se traduziu em um extraordinário sucesso.
Fazer a defesa prática de uma articulação entre as correntes democráticas, partidárias e não partidárias, não é algo simples nos dias correntes, marcados por desentendimentos e atritos complicados, que afastam mais do que aproximam os democratas. Mas é, ao mesmo tempo, algo indispensável para que possamos pensar em uma dinâmica que promova o rearranjo político que a sociedade espera. O tamanho dos desafios nacionais é tão grande que não há como atuar com responsabilidade cívica sem valorizar e construir uma articulação desse tipo.
Não se trata somente de chegar a um candidato de consenso – objetivo que por si só exige alta taxa de desprendimento e bastante visão política estratégica. Mas sim de celebrar um compromisso com a sustentabilidade política, ética e programática de um empreendimento democrático que ponha em marcha uma força cultural e pedagógica de maior fôlego, que eduque e organize os cidadãos com um programa de trabalho que inclua, em lugar de destaque, algumas demandas inegociáveis: defesa e aprofundamento da democracia, republicanismo, combate à corrupção, igualdade perante a lei, diminuição da violência, educação inclusiva e de qualidade, combate à desigualdade e a todas as formas de racismo e discriminação.
Um Polo Democrático precisa ser pensado em termos programáticos e de longo prazo. O cálculo eleitoral não é o melhor conselheiro no momento atual. Muito menos as sondagens de intenção de voto. Os democratas reformadores precisam construir seu candidato, não simplesmente aderir aos que se mostrarem mais “competitivos”.
A ideia da unidade democrática é um valor. Foi com ela que, anos atrás, derrotamos o regime ditatorial e escrevemos a Constituição. Hoje, não há mais ditadura, o país mudou, novas correntes políticas apareceram, o mundo se globalizou, os desafios aumentaram demais. Se os democratas não se articularem, tudo será muito mais difícil. Para a esquerda, sobretudo. Para os liberais progressistas também. Nenhuma corrente política conseguirá avanços se agir isoladamente e de costas para a sociedade, que pede muito mais do que lutas entre partidos, escaramuças parlamentares e disputas por poder.
Em 2018, a questão unitária está reposta com dramaticidade. Os candidatos estão tateando, a fragmentação rouba força de cada um deles. Muita gente teme que o processo eleitoral tenha um desfecho ruim, com a prevalência de candidatos extremistas ou com dificuldades de agir com a serenidade que o momento pede.
Resistências à unidade haverá sempre, vindas seja dos candidatos que já se lançaram, seja de parcelas do próprio eleitorado, que ora torcem o nariz para os políticos, ora cobram radicalidade renovadora dos governos, ora alegam que os esforços unitários só serviriam para desculpar os “golpistas”, ora provocam em tom de deboche. O clima vigente no país faz com que tudo seja muito difícil. Há desalento cívico e desinteresse, uma animosidade contra a política. E há também os ataques petistas contra tudo o que não ponha Lula no meio. Nada disso ajuda.
A melhor resposta a tais resistências é a insistência, o esforço para quebrar a inércia e assumir a causa democrática por inteiro. Não há, na história e muito menos na história brasileira, mudanças que se tenham feito sem acúmulo de forças e sem empenho político. O mundo de hoje, globalizado, líquido e dilacerado por tantos dramas, não tem como mudar de patamar de um dia para outro, por efeito de alguma ruptura explosiva. A saída passa pela agregação de esforços e pela elaboração de estratégias renovadoras que levem em conta a complexidade das sociedades atuais, que se proponham a praticar outras práticas, a aproximar os que não pensam de modo totalmente igual mas compartilham os mesmos sonhos, a reformular a linguagem com que se faz política.
No Brasil, o drama parece ter sempre um grau a mais. As crises que assolam o país – a econômica, a fiscal, a política, a social, a ética – assustam de fato e erguem uma interrogação ao futuro. Os democratas sinceros têm bons motivos para se preocuparem. Não só porque haja ameaças extremadas despontando na disputa eleitoral, das quais a da extrema-direita tem potência suficiente para arrasar o país que temos hoje. Mas sobretudo porque o horizonte mais ou menos imediato, de médio prazo, não prevê nenhum céu de brigadeiro: os desafios irão se manifestar de forma ainda mais virulenta. O país está com sua ordem política exaurida, como frisou Fernando Henrique Cardoso. Faltam lideranças, os partidos não se entendem, as instituições em vigor não conseguem mais responder à sociedade nem corresponder às suas expectativas.
Isso deveria ser suficiente para desarmar os espíritos, os nichos corporativos ou ideológicos, as correntes mais conservadoras ou mais “revolucionárias”, os liberais e os socialistas. Deveria ser suficiente para empolgar o eleitorado e fazê-lo atuar como um efetivo fator de pressão democrática e reformadora. Mas pensar assim é ignorar os próprios termos da crise, é fingir que ela não existe. Pois é precisamente por estarmos mergulhados até o pescoço nessa crise multifacetada, que se retroalimenta o tempo todo, que a constituição de um Polo Democrático reformador não está inscrito nas estrelas e só poderá se materializar de forma tentativa, passo a passo.
Desse ponto de vista, o ato realizado ontem, dia 28 de junho, em São Paulo, representou um fermento mobilizador. A reportagem feita pelo “Programa Diferente” fornece uma excelente visão do que aconteceu.
O sucesso foi extraordinário não só porque o Ato conseguiu reunir, em um mesmo ambiente , importantes representantes do campo democrático. Estiveram lá, imbuídos de uma mesma disposição, representantes da Rede Sustentabilidade, na pessoa de João Paulo Capobianco, do MDB, do PSDB, do PPS, do Podemos, do PSD, do PV; intelectuais como Sérgio Fausto, José Álvaro Moisés, Lourdes Sola, Alberto Aggio, Caetano Araújo, Victor Gentilli e José Armênio de Brito Cruz; e políticos da estatura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, dos deputados Roberto Freire (SP) e Marcus Pestana (MG), do governador Paulo Hartung (ES), do prefeito Bruno Covas (SP), da senadora Rose de Freitas (ES), dos sindicalistas Ricardo Patah e Enilson “Alemão” Simões de Moura, de Eduardo Jorge, Rubens Cesar Fernandes (RJ), Alda Marco Antonio, Alberto Goldman e Floriano Pesaro, para citar alguns.
O Ato atraiu uma multidão de cidadãos e ativistas desejosos de novas opções e dispostos a travar o bom combate. Mostrou, acima de tudo, que existe uma clareira que, se bem aproveitada, poderá propiciar o surgimento de um bloco de forças políticas e intelectuais em condições de dar sustentação a um movimento que recupere o país e aprofunde a democratização que vem sendo construída desde os anos 1980. (Roda Democrática – 29/06/2018)
* Marco Aurélio Nogueira, cientista político, professor titular e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Das urnas ao governo democrático
Marina poderá tornar viável versão do ‘polo democrático’ mais aberta a temas sociais
Duas frases recentes revelam bem o que promete a batalha eleitoral em curso. Indicam com clareza alguns dos dilemas e das possibilidades dos candidatos que postulam inserção no polo democrático.
Disse Marina Silva, candidata da Rede: “Eleição não é UFC. Não vou falar mentiras do Ciro, do Alckmin ou do Bolsonaro”.
Já Marconi Perillo, coordenador da campanha de Geraldo Alckmin (PSDB), mirou em outra direção: “Nossa meta tem de ser uma concertação com o centrão, o centro democrático”.
Em cada uma das frases se insinua a mesma preocupação de buscar alianças e aproximações. Marina quer fazer isso sem agressões, em alto nível, ao passo que Perillo sugere algo mais próximo do chão da política, onde se enraíza o bloco fisiológico, hoje associado ao Centrão, essa agregação dos parlamentares que integram o chamado baixo clero do Congresso Nacional.
A abordagem e a comparação devem ser cuidadosas. Frases são frases, muitas ditas de modo improvisado, sob pressão de microfones ávidos por uma boa manchete. Pode ser que Perillo não tenha querido se referir ao bloco fisiológico, e sim ao vasto território da democracia. E Marina, por certo, saberá bater em seus adversários, mesmo que usando luvas de pelica.
Seja como for, as frases mostram parte dos caminhos que serão tentados pelas candidaturas da Rede e do PSDB. E que também estão no radar dos demais candidatos. Sabem todos que sem alianças não há como vencer eleições, nem, sobretudo, como passar das urnas ao governo democrático, ainda que de maneira “conservadora”.
Buscar o centro tornou-se uma obsessão política nacional. A perspectiva dominante entre os que se dedicam a isso é claramente eleitoral: tratam de aparar arestas para conseguir mais tempo de TV, mais palanques e, por extensão, mais chances de votos. Pouco valor se dá à articulação de ideias e propostas, o que deixa a operação sem uma substância precisa.
Tem sido esse o dilema maior dos que elaboraram e endossaram o manifesto Por um polo democrático e reformista. A proposta não avança porque foi enredada pela dinâmica eleitoral e porque não conseguiu, até agora, incorporar a dinâmica governamental, quer dizer, tem olhado mais para as urnas do que para a governança democrática e as políticas de governo que a ela deverão ser associadas. Para complicar, não obteve ressonância nem sequer entre os operadores do próprio centro político, que se fingiram de mortos e permaneceram a cuidar de suas próprias pretensões particulares.
A divisão e o cálculo predatório dos que desejam disputar o centro fazem com que a fragmentação se amplie para dentro de cada grupo ou partido. A “luta interna” se intensifica, com promessas de aliança, torcida ou apoio a um ou outro candidato, tendo em vista a obtenção de maiores vantagens eleitorais, algum ajuste de contas regional ou vagas preferências ideológicas.
O centro é uma obsessão, mas é uma referência abstrata que, na sua formulação mais avançada, não bate no coração dos políticos. Há muitas ideias do que seja um “polo democrático e reformista”, de quem deve integrá-lo e de quais são seus compromissos além das urnas. Muitos querem tão somente criar uma opção para evitar os “extremos”, que identificam com as candidaturas de Bolsonaro, de Ciro e do PT. Outros se batem para colar a democracia ao ideário liberal. A maioria dos presidenciáveis está atirando para todos os lados, tentando capturar ideológicos e fisiológicos. Pensam em votos. São poucos os que consideram ser a unidade democrática uma plataforma para o futuro, a qual deverá incorporar energias e propostas de diferentes correntes e partidos.
O antipetismo e o antibolsonarismo não são suficientes para dar dignidade ao que quer que seja. É preciso valorizar o plano propositivo, programático, coisa que muitos operadores centristas não conseguem fazer, prisioneiros que são de cálculos de curto prazo e de uma boa carga de ressentimentos.
Marina Silva tem tentado enfrentar o dilema à sua maneira. Optou, há tempo, pela tática da discrição e do “silêncio ativo”, alimentado por palavras pontuais, críticas certeiras e muitas conversas de bastidores. Não abre mão desse estilo, que parece constitutivo de sua própria personalidade. Boa parte de sua força e de sua fraqueza vem daí: ela pouco se expõe e trava sua visibilidade, mas, ao mesmo tempo, resguarda-se para tratar do fundamental, ou seja, da dimensão programática. A marca da renovação pulsa forte na campanha. Tem funcionado, graças ao recall e à biografia épica da candidata.
Sua campanha, porém, não pode dispensar alianças e coalizões. Ela age de modo seletivo. Não quer “qualquer acordo”, desses que reponham a polarização e as práticas tradicionais. Tem focalizado os grupos de perfil cívico e mais recentemente o PPS. Mas precisa considerar que o baú de aliados é pequeno e está sendo disputado por todos, centímetro a centímetro. Se perder tempo, ficará isolada. É sintomático que tenha vindo do senador Randolfe Rodrigues, da Rede, o esclarecimento de que o ideal para Marina é que seu companheiro de chapa seja “ou alguém do meio empresarial ou alguém com o perfil político do Roberto Freire, que talvez seja a pessoa do mundo político que reúna as melhores condições para ser vice de Marina”.
Com esse movimento, Marina poderá tornar viável outra versão do “polo democrático”, mais aberta aos temas sociais, à educação, ao meio ambiente, ao combate à corrupção e à renovação da política.
Se der esse passo, terá como requalificar os propósitos do manifesto lançado no início do mês em Brasília, que, aliás, será relançado no próximo dia 28, em São Paulo. Nesta segunda oportunidade, poderá frutificar de fato uma iniciativa generosa que se deixou aprisionar pelos interesses eleitorais e que precisa deles se libertar para produzir todos os efeitos renovadores e unitários a que se propõe.
Marco Aurélio Nogueira: Vinte anos e um futuro a construir
Quando, em maio de 1998, chegou às bancas o primeiro número da revista Época, o Brasil vivia um momento de otimismo. Pesquisa do Latinobarômetro dava conta de que o país ingressara no futuro, a confiança ressurgira e as famílias começavam a acreditar que seus filhos conheceriam dias melhores à frente. Os computadores estavam entrando no cotidiano dos brasileiros, o DVD prometia se expandir, hábitos novos chegavam à classe média e movimentavam o setor de serviços.
Havia alguma preocupação com o futuro do emprego. A ocupação na indústria caía e a torcida era para que os serviços funcionassem como fator de compensação. A taxa de desemprego de 8,18% (hoje é de 13%) incomodava, e a oferta de vagas vinha acompanhada da exigência de maior escolarização e especialização, o que prometia impulsionar o sistema educacional do país. A expectativa era que a economia manteria o pique e freasse a tendência a uma expansão caótica do mercado informal e da precarização do trabalho. Já então se ouviam vozes defendendo a reforma da legislação trabalhista, de modo a aumentar o poder de negociação entre sindicatos e empresas.
A sensação era de que a sociedade havia atravessado o trecho mais difícil da redemocratização, da luta contra a inflação e da modernização administrativa. Os próximos passos seriam de avanço, com melhor distribuição de renda e maior inclusão social.
Armadilhas da transição
Sociedades são entidades que se movem com dificuldade, tensão e sofrimento. Mas sempre se movem. Mesmo quando a paralisia parece prevalecer e tudo se mostra congelado, os germes da mudança trabalham em silêncio, corroendo a situação prevalecente. Começam então a ser percebidos os primeiros indícios de que algo irá se romper. Mas somente após um longo, lento e árduo processo de desconstrução é que emerge uma nova situação.
Nem tudo, porém, se desfaz. Ecos e pedaços do que existia antes permanecem na memória coletiva e nas estruturas sociais. O passado, a rigor, nunca passa. Verdade conhecida por historiadores e sociólogos, o fato assume proporções trágicas no Brasil, que carrega em seu DNA a dificuldade de romper com os arranjos sociopolíticos que, acumulados pelo tempo, terminam por condicionar o progresso social. Entre nós, ressoam fortes as célebres palavras de Karl Marx no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
A passagem de uma ordem mais “tradicional”, agrária, para uma ordem mais “moderna”, industrial, por exemplo, sempre implica muita turbulência, deslocamento de forças e alterações no modo como se estratificam os grupos e se pensa a vida. A superação de uma ditadura enraizada e sua substituição por uma democracia estável, que são difíceis e conflituosas por definição, não podem ser viabilizadas sem uma boa dose de persistência, sem elites qualificadas e um padrão mínimo de unidade nacional, coisas que nem sempre estão ao alcance das mãos.
O Brasil entrou no século XXI convencido de que o pior havia ficado para trás.
Aos poucos, porém, foi ficando claro que as coisas não eram tão simples. Primeiro porque as estruturas arcaicas mostravam resiliência, ainda que estivessem sistematicamente pressionadas por uma modernidade que vinha embalada pelos ventos da globalização e da revolução tecnológica. O país resistia a abraçar o século XXI e insistia em continuar exibindo déficits assustadores em saúde, educação e infraestrutura.
Além do mais, o que havia de expectativa de renovação seria bloqueado pela lenta mas firme corrosão do sistema político, travado pelas peripécias do “presidencialismo de coalizão”. A política foi-se mostrando refratária à adoção de novas práticas, com a reposição de atitudes pouco republicanas e muito oligárquicas.
Foi assim, mas poderia não ter sido. Por volta de 1994, quando da eleição de Fernando Henrique Cardoso, ensaiou-se a adoção de um inédito caminho socialdemocrático, sustentado pelas dinâmicas que provinham de dois partidos paulistas, o PSDB e o PT, que não chegaram a dar-se as mãos de modo claro, mas revelaram a existência de muitos pontos de convergência. Mais tarde, quando do início do governo Lula, em 2003, o ensaio voltou a se manifestar, graças à transição governamental que fez com que a faixa presidencial passasse de um partido a outro sem acidentes e em grande estilo. O presidente sociólogo e o presidente metalúrgico pareciam estar ali, naquele momento emblemático, selando um pacto que impulsionaria o país.
Um abismo se anuncia
As coisas desandaram, no entanto, logo depois. O mensalão fez com que o PT se jogasse nos braços do PMDB e da centro-direita e voltasse a hostilizar o PSDB que, por sua vez, ativou todas as baterias contra os petistas. Repetiu-se o mesmo enredo que havia complicado a vida de Fernando Henrique: uma incorporação dos segmentos mais fisiológicos da política nacional.
De lá para frente, a temperatura política só fez subir. De uma eleição a outra, tucanos e petistas se comportaram como exércitos focados na destruição do inimigo. Foi assim em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014. Nessa última, o esforço de destruição recíproca varreu a dignidade de todo o campo político, graças a uma campanha de baixíssimo nível.
Subiu à superfície um subsolo tóxico, liberando gases que envenenaram o debate político e passaram a desafiar a democracia, jogando-a em uma zona de risco. Espasmos de uma direita autoritária passaram a se fazer sentir na cena pública. Dissolveu-se a possibilidade de retomada e fortalecimento do ensaio socialdemocrático. Avanços tópicos continuaram a ser registrados e houve mesmo uma nova onda de euforia no final da década de 2000, quando o consumo popular se expandiu e ajudou a turbinar a economia.
Lula deixaria o governo em 2010 com altíssimas taxas de popularidade. Mas as bases daquele ciclo não se mostraram fortes o suficiente. A crise logo irrompeu, acompanhando a alteração de humor da economia internacional.
Em 2013, a sociedade se desencontrou do Estado e dos governos, proclamou sua independência diante de partidos e políticos. As redes e as ferramentas de comunicação, então já devidamente massificadas, fizeram com que as multidões extravasassem a irritação e tomassem as ruas das grandes cidades, vocalizando a frustração por não verem atingidas as promessas de progresso anteriormente anunciadas.
A política instituída, como que tomada de surpresa, não soube reagir. Dilma Rousseff, governante de plantão, foi literalmente engolida pela combinação de crise e manifestação popular. Desenhou-se ali, nas reações às ruas de 2013, o mapa do que viria a seguir. Dilma se reelegeria em 2014, graças a uma campanha milionária, agressiva e plena de difamação. Seu segundo governo, porém, mal conseguiu dar os primeiros passos. Ficou suspenso no ar, sendo minado pelo desarvoramento da presidente e pela ansiedade das forças políticas.
Para complicar, em 2014 iniciou-se a Operação Lava Jato. A corrupção entrou de vez na agenda, sensibilizando a opinião pública e atormentando os políticos, que aos poucos perderam as condições de desmentir as seguidas denúncias do Ministério Público e da Polícia Federal, dando conta não só de uma prática recorrente como de um verdadeiro sistema de desfalques, lavagem de dinheiro, financiamentos ilegais e enriquecimento ilícito. Os partidos que governavam – o PT, o PMDB, o PP – foram atingidos em cheio.
Previsão autorrealizável
O impeachment em 2016 foi uma previsão que se autorrealizou, um processo repleto de improvisação e de tentativas de atalhar a crise pela recomposição da classe política, pelo amortecimento da Lava Jato e por uma maior aproximação entre o Executivo e o Legislativo.
Nada deu muito certo. O governo de Michel Temer conseguiu segurar o agravamento da crise econômica e aprovar algumas medidas para melhorar a administração das contas públicas. O ambiente econômico ficou mais arejado, com maior previsibilidade e equilíbrio. Meses depois de seu início, porém, o governo já não conseguia governar o país nem muito menos cair nas graças da população. Foi sendo devorado em parte por sua própria composição, desprovida de envergadura técnica, em parte pelas denúncias de corrupção e em parte pelo fisiologismo da classe política, que se atirou sobre o governo com a fúria de uma matilha esfomeada.
Tudo isso com um quadro partidário fragmentado, integrado por três dezenas de partidos, muitos dos quais sem programa ou perfil ideológico. Um sistema caro e pouco eficiente, distante da sociedade e que se impõe como uma espada sobre os governos, chantageando-os de mil maneiras e roubando-lhes governança e aptidão reformadora.
A desconfiança, o ceticismo, a decepção voltaram a crescer. A corrupção tornou-se desafiadora. A insegurança e a violência passaram a assustar sempre mais. O desentendimento entre os políticos chegou às raias do absurdo, traduzindo-se, por um lado, na multiplicação de postulações presidenciais e, por outro, na desagregação quase completa dos dois principais partidos “programáticos” do país, o PT e o PSDB. Cada um a seu modo, ambos mergulharam na fase mais sombria e melancólica de sua trajetória. A condenação e a prisão de Lula, líder máximo do petismo, fizeram par com as dificuldades operacionais e o apagamento propositivo dos tucanos, eles também às voltas com seguidas denúncias de corrupção.
As dificuldades do Executivo e do Legislativo ajudariam a impulsionar um processo de “judicialização” do processo de tomada de decisões. As instâncias do Judiciário, a começar do STF, passam a ocupar os espaços deixados abertos pela classe política, fato que faz com que a incerteza deságue nas eleições de 2018. A candidatura de Lula, tida até então como “imbatível”, fica a um passo de ser impugnada, erguendo uma interrogação sobre a expectativa que se tinha de um confronto eleitoral entre a direita de Bolsonaro e a esquerda petista. O “centro democrático”, por sua vez, que em tese seria o maior beneficiário, tarda a se compor, colhido em pleno voo pela fragmentação e pela multiplicidade de postulantes.
Decodificar o futuro
Mas, como não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe, é preciso tentar decodificar as tendências em curso. O país não parece destinado a retroceder, nem a se desagregar irremediavelmente. Compartilha parte importante de suas dificuldades com as demais sociedades do mundo globalizado e tecnológico: diferenciação social, individualização, hostilidade contra a política e os políticos, emergência de movimentos fundamentalistas e postulações autoritárias, expansão da criminalidade e da insegurança. Tem contra si a desigualdade e os déficits assustadores em termos de educação, saúde, habitação, infraestrutura. A seu favor, jogam a riqueza do território, o tamanho do mercado interno, a diversidade cultural e a índole do povo, como se costuma dizer.
Ainda há alguma gordura para ser queimada, mas o país corre o risco real de enveredar por uma trilha que o deixará fora dos circuitos principais do mundo, desperdiçando oportunidades para avançar e atingir patamares decentes de vida para todos. O tempo, que sempre jogou a favor, agora conspira contra, interpondo uma interrogação dramática para os futurólogos: conseguirá esse país-continente corrigir seus desníveis e suas injustiças, suas lacunas e insuficiências, para então se inserir na terceira e na quarta ondas de crescimento impulsionadas pela globalização?
Inteligência artificial, robótica, economias integradas e cooperativas, mercados dinâmicos operando em rede, financeirização, crises constantes, ativismo governamental mas menor poderio dos Estados nacionais, sistemas políticos em crise, uma cidadania ativa impregnada de ressentimento e “desejo de reconhecimento”, de luta por direitos e pautas identitárias – tudo isso explode na vida cotidiana. São coisas que vieram para ficar: ponto sem retorno. As diferentes sociedades nacionais veem-se diante de um cenário que as obriga a adaptações sucessivas, à incorporação de novas tecnologias produtivas e à integração econômica, de modo a se incorporarem às “cadeias globais de valor”.
Em teoria, o cenário parece claro. No chão histórico concreto, porém, tudo está sobredeterminado por decisões e arranjos políticos, sempre complexos e difíceis. O mundo descarrega sobre os países um complexo conjunto de desafios. A atual estrutura mundial é interdependente, limita as possibilidades de escolha e dificulta a consideração plena das próprias carências de cada país.
No Brasil, em particular, por seu tamanho e por suas dificuldades, será preciso cada vez mais olhar para fora e para dentro ao mesmo tempo. Um mínimo de unidade nacional terá de ser alcançado para que se viabilizem decisões corajosas e escolhas estratégicas, com seus sacrifícios. Não há milagres a esperar, nem atalhos a percorrer.
Somente a política carrega as chaves do futuro. Não, porém, qualquer política, mas uma que saiba se organizar, moderar suas pretensões e ser assimilada pela sociedade. Somente uma política democrática reúne condições de articular a complexidade, construir as mediações necessárias e transferir confiança aos cidadãos, ajudando-os a defender seus direitos e alcançar seus objetivos.
*Artigo publicado na revista Época, nº 1039, 28/05/2018, p. 26-32.
Marco Aurélio Nogueira: A Copa e o jogo da vida
Não será fácil revolucionar o futebol que se joga no Brasil. A Copa pode ajudar
No Brasil, como sabemos, a Copa do Mundo de Futebol coincide com anos eleitorais. Uma das consequências disso é a reiteração de uma “certeza” que sempre frequentou as mesas de conversa: as eleições instrumentalizam o futebol. Governantes e oposições, candidatos da direita e da esquerda usam o jogo para sensibilizar os cidadãos e pescar votos. O amarelo da camisa vira um verde-e-amarelo patriótico para uns, sendo ao mesmo tempo desprezado por outros, que criticam a Copa por seu potencial “alienante”.
Tem sido assim desde que o futebol se massificou no Brasil.
O presidente Michel Temer não se poupou de explorar o fato, imaginando extrair dividendos políticos. Espalhou pelas redes sua mensagem: “A Copa do Mundo começou. É hora de acreditar na força da camisa verde e amarela, no talento de nossos jogadores. Somos mais de 200 milhões de corações pulsando, batendo forte por nosso País. Estamos todos torcendo por nossa seleção. É hora de acreditar na força da camisa verde e amarela. A partir de agora desaparecem todas as diferenças. Rumo ao hexa”.
Politizar pode ser entendido como preocupação em fazer com que a política prevaleça: que se dê prioridade ao interesse público, que a discussão substantiva prevaleça sobre a troca de ofensas, que a busca do que é importante para um país supere os projetos de poder dos candidatos e de seus partidos. Não é partidarizar. Ao final de uma disputa devidamente politizada, é de se esperar que subsista uma ideia de Estado e de sociedade, se possível formada com o concurso de uma variedade de opiniões e interesses.
O modo como se pensa a política interfere no modo como se faz política. E vice-versa. Por mais que sofra a influência das circunstâncias históricas globais – cada época tem a sua política –, a discussão política está fortemente determinada pela cultura de cada sociedade. Ocupa, aliás, um lugar central nessa cultura, tendendo a preencher muitos espaços e florescer onde menos se espera. Está presente fortemente no futebol, seja como ação voltada para a conquista de poder, seja como fator de construção de uma coletividade.
As manifestações dos torcedores brasileiros durante a Copa refletem certamente o modo como pensam e agem politicamente. Muitos acham que os governos e os políticos são responsáveis pelo que há de errado no empreendimento futebolístico do país. Criticam a CBF, essa entidade merecedora da suspeita geral. Outros pensam que o futebol pode resgatar a dignidade nacional e contribuir para colocar as coisas no lugar. Há os que repudiam a apropriação comercial do evento e há os que desprezam o lado “mercenário” dos jogadores. Isso para não lembrar os que choram de emoção quando a “amarelinha” entra em campo e os que julgam não existir identificação da seleção com o país porque a população mal conhece os jogadores, que jogam em times do exterior.
O jogo serve para produzir esperança e para protestar. Para extravasar alegria ou disseminar ódios e ressentimentos.
Quando dos 7 a 1 que a seleção levou da Alemanha, em 2014, queimaram-se bandeiras, caçaram-se os responsáveis, fizeram-se acusações, falou-se que a seleção tinha “obrigação de vencer” mesmo que estivesse despreparada e praticasse um futebol abaixo da média. Tentaram explicar o que se considerou “inexplicável”, como se na vida houvesse a intervenção constante de forças misteriosas. Falou-se em “pane” e “apagão”. No primeiro instante, ninguém viu que a Alemanha venceu porque deu um banho tático, técnico, físico e emocional na seleção brasileira. Não se analisou o jogo “politicamente”, quer dizer, como uma disputa entre contendores que respeitam regras e buscam fazer com que o substantivo prevaleça sobre o adjetivo. Pior ainda foram as vaias grosseiras contra Dilma, que literalmente misturaram as bolas e mostraram o tanto que há de estupidez e cegueira nas pessoas.
Futebol é um jogo coletivo, que precisa prevalecer sobre as individualidades e que reflete o que deve haver de projeto e mentalidade, de plano e espontaneidade, de preparo e improviso, de fortuna e virtù, de disciplina e organização, em um esporte popular. Os brasileiros são bons futebolistas, mas sua cultura futebolística não é tão boa: o brasileiro (o torcedor, o jogador, o técnico) acha que futebol é um esporte que depende do estalo de genialidade de um ou outro Garrincha, de um novo “rei do futebol”. Não valoriza esquemas táticos, disciplina, preparo técnico, estudo e espírito coletivo, debochando das escolas que primam por isso, como é o caso da Espanha, da Alemanha, da Argentina. Nossos atletas são predominantemente simplórios em qualquer quesito que se queira. Toscos. Alguns poucos se distinguem, mas no conjunto não passam de boleiros. Por isso, a seleção é montada com jogadores que jogam no exterior. Futebol dá mais certo quando praticado por times que reúnem talentos individuais, disposição tática, transpiração e entrega coletiva. Raramente temos isso no Brasil.
Não dá para aprisionar o futebol em quadros sociológicos rígidos, como se fosse possível ver nele o espelho da sociedade. Nem muito menos faz sentido misturar futebol com política partidária, com governos ou lideranças. Há ligações entre o modo de viver, a cultura e o modo de jogar, mas o futebol não é a encarnação do que há de bom e de ruim numa sociedade, assim como não é a “pátria de chuteiras”. Triste seria uma nação que só encontrasse as razões de sua felicidade ou de seu orgulho em um único esporte. A cultura, o caráter das pessoas, a natureza, a música, a culinária, a criatividade popular, tudo isso pode funcionar como fonte de identidade nacional e reconhecimento. Uma seleção não nos representa, se é que se pode dizer assim: representa somente a si própria, ou seja, aos técnicos, aos dirigentes e aos jogadores que a integram, ainda que possamos torcer por ela e gostar de vê-la vencedora.
Não há complexo de vira-latas quando se fala mal do futebol jogado no Brasil. A seleção pode ajudar a fazer com que o quadro se altere, mas não porque trará um novo caneco para casa e sim porque poderá expressar um esforço coletivo que reinvente o futebol por aqui. A começar da defenestração dos cartolas, da reforma radical da CBF, de uma mudança no modo como o esporte é gerenciado e organizado. Nunca estivemos tão ruins. Os jogos do Campeonato Brasileiro são de baixíssima qualidade, há excesso de faltas, poucos gols, os campeonatos são pessimamente organizados, as torcidas se afastam dos estádios, o profissionalismo dos atletas ainda é precário, os cartolas são patéticos e corruptos. O sistema é organizado de modo sofrível, contra a população e a serviço exclusivo do mercado da bola. Um espetáculo de horror.
Não dá prá continuarmos deitados nas glórias do passado, sem humildade e inteligência para reconhecer erros e falhas, limites táticos e técnicos.
Independentemente do que acontecer com a seleção na Rússia, está mais do que hora de fazermos uma revolução. Organizacional, de mentalidade, com um componente forte de “desmercantilização” e uma injeção de profissionalismo bem compreendido. Recomeçar de baixo, ensinando aos garotos que futebol exige dedicação, domínio de fundamentos, não é um lance de malabarismo e genialidade a ser treinado repetidamente para atrair o olhar cobiçoso de algum empresário. Nossos jogadores só aprendem respeitar táticas e a chutar bem quando saem do país.
Não será fácil, com a estrutura que está aí. Mas podemos começar abrindo mão da arrogância futebolística, desse lance de que estamos predestinados a exibir ao mundo a qualidade inimitável do nosso futebol. Isso acabou, se é que algum dia existiu de fato. É preciso olhar no olho da realidade e aceitar o futebol como ele é.
O futebol tem muito de vida e política: desejo de vencer e sobrepujar, derrotas doídas, simulações e dissimulações, dribles, faltas, glória, fracasso, castigos e punições, fatores imponderáveis. O jogo é um misto de força física e inteligência. O centauro maquiavélico entra em campo. E como o Príncipe, precisa saber ser lobo para confrontar os lobos do outro lado e ser raposa para desarmar as armadilhas que encontrará pelo caminho. O jogo jogado tem maior poder de decisão. Mas não são desprezíveis as artimanhas antes e durante o jogo.
Quanto mais soubermos separar resultados esportivos e expectativas políticas, melhor para a cidadania. E melhor para a política e para o futebol, que poderão ser assim adequadamente compreendidos.
Aproveitemos o espetáculo que é a Copa para apreciar o verdadeiro futebol e aprender alguma coisa com ele.
UOL: Novo presidente será "síndico de uma massa falida", diz cientista político
O brasileiro não foi treinado para o debate democrático, o novo presidente do país será "síndico de uma massa falida" e a corrupção será um tema indigesto para os presidenciáveis. Estas são opiniões do professor Marco Aurélio Nogueira, doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e livre-docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), a respeito de como ele vê a corrida eleitoral a quatro meses do primeiro turno.
Por Gabriela Fujita, do UOL, em São Paulo
Nogueira acaba de endossar um manifesto que defende a união de partidos de centro para evitar o "pior": que o pré-candidato Jair Bolsonaro (PSL) consiga chegar ao segundo turno. No começo de junho, siglas como PSDB, MDB, PPS, PV, PSD e PTB lançaram o documento, que recebeu o apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O grupo de lideranças avalia o pleito de 2018 como o "mais indecifrável de todo o período da redemocratização" e defende, por exemplo, "tolerância zero com o crime organizado" e a manutenção do programa Bolsa Família.
O professor Nogueira não é filiado a nenhum partido, mas diz que o cidadão comum deve se juntar às discussões que, na sua avaliação, acontecem apartadas: por um lado, no ambiente político, e por outro, no Facebook e na mesa de bar. E não importa de qual partido seja, o próximo presidente do Brasil vai encarar "uma baita encrenca" a partir de 2019. Confira na entrevista a seguir.
UOL - O novo presidente do Brasil vai assumir que país em 2019?
Marco Aurélio Nogueira - Uma baita encrenca... Vai ser uma espécie de síndico de uma massa falida. Essa é uma expressão dramática. Acho que o Brasil não está destinado a acabar ou a cair no precipício, nós ainda temos um pouco de gordura para queimar.
O Brasil é um país muito grande, tem recursos naturais expressivos, tanto o petróleo quanto no plano da capacidade de produção de alimentos. A diversidade cultural brasileira é um recurso interessante, porque ninguém pensa do mesmo jeito no Brasil, isso é uma vantagem. A gente tem um mercado consumidor muito grande, que, se bem abordado e administrado, serve de base para um crescimento econômico expressivo. Temos algumas reservas com as quais contar para não decretar a morte do país, mas tudo isso vai passar para 2019. Não tem como reduzir o desentendimento, reduzir a complexidade, eliminar a desigualdade, o problema da educação, da saúde, de agora até janeiro do ano que vem.
O Bolsonaro, se for eleito, é candidatíssimo a um novo impeachment. Não por qualquer pedalada fiscal, mas por qualquer outro motivo. O desentendimento que ele vai gerar poderá produzir um impeachment.
O próximo presidente vai ter que arrumar as várias partes do país que estão desarrumadas. O sistema político, o sistema eleitoral, ele está precisando, no mínimo, de uma nova demão de tinta. Temos partidos demais, a fragmentação parlamentar é muito grande, o que provoca uma dificuldade de funcionamento do presidencialismo, o tal presidencialismo de coalizão. Também vai ter que mexer aí. No que diz respeito às reformas que tenham impacto direto na sociedade, todas elas são reformas que produzirão dor e exigirão sacrifício. Se mexer na Previdência, é dor e sacrifício. Não há jeito de modificar o sistema previdenciário sem desagradar uma parte ou a totalidade da população.
E se o eleito não topar enfrentar isso tudo?
Se não topar enfrentar isso, vai ter que inventar alguma outra coisa para manter o caixa do Estado suficientemente municiado para poder fazer gastos. Vamos supor que o presidente chegue à conclusão de que não vai mexer na Previdência porque não quer desagradar a população. E se for verdade que a Previdência tem um déficit brutal? Estou falando "e se for verdade" porque o tamanho do déficit é um tema controvertido. E é mais controvertido ainda em que velocidade se ajusta a Previdência. Não vai se ajustar de hoje para amanhã, é uma coisa de 20 anos. Tem que ser aos poucos, tem que ter etapas, não pode sacrificar todo mundo.
E você tem aquelas áreas clássicas de incorporação financeira no Estado. Com a privatização, você pode vender algumas empresas, mas já não temos tantas empresas assim que podem ser vendidas para encher o cofre de dinheiro. A Petrobras, quem quer que seja o eleito, dificilmente vai privatizá-la. Você pode privatizar a Eletrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Federal. Acho difícil que se mexa nisso, porque as resistências vão ser muito grandes. São ações impopulares, no sentido da população, e tem resistências porque cada uma dessas estatais tem sindicatos de trabalhadores ativos, fortes, que vão bloquear as coisas. Além do mais, algumas delas privatizadas não vão trazer tanto dinheiro assim.
Em uma eleição tão fragmentada como a de 2018, o comportamento do eleitor pode se tornar perigoso?
Vai ser muito difícil haver alguma mudança expressiva que altere a predisposição do eleitorado. Teria que acontecer alguma coisa [diferente], e eu não estou conseguindo ver isso acontecer. Um investimento político forte no plano da opinião pública para esclarecer a população, um dos motivos que me levaram a endossar o manifesto [de união dos partidos de centro]. Teria que haver um investimento forte em pedagogia cívica. O eleitorado pode derivar também para o voto nulo e o voto em branco. Se você tiver de um quarto para um terço [do total] de abstenções e votos nulos, é algo complicadíssimo.
Pode ser que, quando a campanha de fato começar, na TV, algo desse sentimento cívico possa ser feito. Que os candidatos mais equilibrados, em vez de ficarem falando mal dos outros, que eles falem com a população, façam uma conclamação a que se valorize a democracia eleitoral. Porque o ambiente está ruim, é um ambiente de mal-estar. As pessoas estão incomodadas, desinteressadas, um querendo pular no pescoço do outro, pouca tolerância e pouca paciência, e com um despreparo para o debate democrático muito grande. O brasileiro não foi treinado para o debate democrático, nós começamos há 30 anos.
Como os temas "Operação Lava Jato" e "corrupção" vão aparecer na campanha eleitoral?
A Lava Jato foi um complicador [nos últimos anos] porque, de certo modo, ela acuou os políticos e fez os políticos ficarem com muita raiva dela, todos eles. Em função disso, vai ser julgada pelos candidatos nestas eleições e também pela população. Dependendo de como forem os debates, ela poderá sair mais forte ou mais fraca, supondo que ela ainda continue, e acho que ela ainda tem gás para isso. Os juízes facilitaram muito a identificação do político com o corrupto, como se tivessem lavado a criança e jogado a criança fora com a água suja. Acabaram criando uma animosidade entre a população e os políticos. E aí não está certo, porque não tem como tocar um país sem os políticos. É interessante a gente discutir isso. Será que é verdade que todos os políticos não valem nada?
E a "corrupção"?
Eu espero que ela entre em uma posição central, mas não acredito que entre. A rigor, a única candidata que teria disposição para fazer isso é a Marina Silva (Rede). Pode ser que ela ponha esse tema, mas os outros vão sentar em cima. Por vários motivos, sendo o principal deles que todos os outros têm o rabo preso. Talvez o Ciro Gomes (PDT) não tenha, não sei. Talvez você tenha esses dois candidatos insistindo no tema da corrupção, mas os outros abafando. Vai ser um tema indigesto para a maior parte deles. Mesmo a esquerda pura, com Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D'Ávila (PCdoB), não vai ter tanta vontade de apresentar o assunto, porque eles consideram que a colocação da corrupção no centro da agenda tira do foco a questão da desigualdade social, que é a principal para eles.
Os anti-Bolsonaro são agora os novos anti-Lula?
Não acho que a dinâmica anti-Bolsonaro substitui a dinâmica anti-Lula. O que pode estar acontecendo na cabeça de muita gente é uma transferência da frustração ou da raiva contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o Bolsonaro. Os eleitores, na falta de outras opções que apareçam como mais autênticas, vão para o Bolsonaro. "Esse aí é contra a esquerda", por exemplo. "O Bolsonaro diz que é ficha limpa", outro exemplo. Tem um certo tipo de sedução que as pessoas podem estar sentindo por uma figura que é o negativo do lulismo.
E em relação aos candidatos? Aqueles que antes batiam em Lula e no PT mudaram de foco após sua prisão?
Se Lula fosse candidato, Ciro Gomes não bateria nele, por exemplo, mas ele tem que bater no Bolsonaro. Assim como a Marina não faria uma campanha para desconstruir o Lula, mas ela tem agora que fazer uma campanha para desconstruir o Bolsonaro.
Não é só que o Bolsonaro ocupou o lugar do Lula, ele materializou um polo que não era muito expressivo na vida brasileira. Tirando a época da ditadura, de 1985 para cá, o Brasil nunca teve um candidato que viesse dessa forma pela direita
Marco Aurélio Nogueira, cientista político
Você tinha liberais, neoliberais, conservadores, mas eram todos "moços de família", vamos dizer assim. O Bolsonaro é um "cara do boteco", não é educado, chega chutando a mesa. E ele está chegando aos 20% [das intenções de voto], a luz vermelha de perigo está piscando. Todo mundo tem que bater nele para ver se consegue desconstruí-lo e roubar os eleitores prováveis que ele está conseguindo agregar.
(De acordo com a mais recente pesquisa Datafolha, em um cenário de disputa presidencial sem Lula, Bolsonaro mantém a liderança, com 19% da preferência de votos, sendo que 34% dos entrevistados afirmam ainda não ter candidato. Preso há dois meses, o ex-presidente petista obteve 30% das intenções de voto.)
Por que o senhor assinou o manifesto que defende a união de partidos de centro?
Porque eu acho que hoje, no Brasil, nós chegamos muito próximo daquilo que poderia se chamar de um abismo. O país está muito complicado, não é que antes estivesse melhor, mas ele piorou muito. E não é só porque faltam bons candidatos. Eu acho que o país está perto do abismo porque os problemas que nós enfrentamos em tudo, na economia, na saúde, na educação, na habitação, na Previdência, na infraestrutura do país, na cultura geral, todos os problemas aumentaram de gravidade.
De 2013 para cá, temos um ciclo de cinco anos que expressa uma espécie de ruptura da sociedade com a política. Não estou dizendo que o agora é uma consequência de 2013, mas tem um ciclo aí, uma sucessão de fatos que foram se acumulando e produzindo uma sociedade que não se sente representada pela política e que está pondo para fora a sua desconfiança, a sua animosidade com os políticos, com os partidos, com os governos. Esse ciclo tem algumas marcações: as manifestações de 2013, a Lava Jato, as eleições de 2014, o impeachment de Dilma Rousseff (PT), o governo Temer (MDB) e a prisão de Lula. Todas essas coisas ajudaram a que o questionamento da política crescesse. Esses fatos foram ajudando a compor um cenário de muita polarização, algo inevitável na política, mas não ao nível a que a gente chegou.
Se você pegar o atual número de candidatos, como é que a população vai se posicionar com uma oferta de tantos concorrentes? Como é que ela vai descobrir o que o Geraldo Alckmin (PSDB) tem de diferente do Henrique Meirelles (MDB) ou do Rodrigo Maia (DEM) ou do Ciro Gomes etc.? Provavelmente ela vai acabar definindo sua posição de uma maneira passional: "ah, esse cara é mais bonito", ou "esse cara é da igreja", ou "esse cara é machão...".
E por que fazer uma junção de siglas de centro?
A gravidade e a complicação da agenda não permitem que a gente ache que um candidato, por melhor que seja, vai conseguir atacar os problemas. Até porque presidente da República precisa de Congresso. Se você pegar os candidatos que estão despontando com mais fôlego, que são, até agora, Bolsonaro, Ciro Gomes e Marina, eles têm partidos muito fracos na formação do Congresso. Eles podem ser eleitos sem levar com eles uma base estruturada. Diferentemente do que o PT fez com a Dilma ou com o Lula, diferentemente do que o Fernando Henrique [Cardoso] tinha lá atrás, quando foi governante.
Nesses três últimos casos, mesmo com partidos estruturados, eles tiveram que negociar e formar maiorias circunstanciais, o que complicou o próprio governo deles: o Fernando Henrique se complicou com o problema da reeleição, o Lula teve o problema do mensalão e entregou tudo ao PMDB para conseguir formar uma maioria, e a Dilma foi mais radical ainda. Foi a extensão da base que ela formou no Congresso que acabou cortando o pescoço dela, com Michel Temer.
O Brasil tem mesmo um centro democrático?
Todo lugar tem. O que você não tem [no Brasil] é um centro democrático bem composto. Você tem o "centrão", que é uma versão fisiológica da ideia de centro, juntando os pedaços e gente daqui e ali, que funciona mais pela barganha do que pela ideologia, não tem programa político. O programa é "eu me virar" ou "me sair bem". Você tem filiações ideológicas na vida política de qualquer país: socialistas, comunistas, liberais, conservadores. Tem gente que se diz "liberal na economia e conservador nos costumes". O que se pode agora no Brasil, em nome de uma redução de riscos, é aproximar essas ideologias de um denominador comum, de um ponto de equilíbrio. Por exemplo: eu sou liberal e você é socialista, mas nós concordamos que é preciso estabilizar as contas públicas, reformar a Previdência, melhorar a educação.
Seria uma forma de antecipar ou evitar aquela costumeira negociação entre partidos por apoio no final da campanha presidencial?
Seria isso, com certeza. Na verdade, a gente pode ter duas leituras. Uma é: vamos nos unir agora, vamos aumentar a convergência agora para evitar que os extremos ou os mais afoitos cheguem ao segundo turno.
Quem o senhor considera os "afoitos" na disputa eleitoral? Quem oferece esse "risco"?
O afoito, o inimigo público número 1, para mim, se chama Bolsonaro. Ele não tem preparo. Em cinco mandatos de deputado federal, o que ele fez? Ele não tem conhecimento técnico mínimo para tal. E aí alguém pode dizer que o Lula também não tinha. É verdade, o Lula também não tinha, mas não ficava falando essas loucuras que o Bolsonaro fala, de dar armas para as pessoas e tal. Eu não sou lulista, mas consigo colocar um do lado do outro e ver que um vai dar em confusão e o outro não. O Lula teve uma história no sindicalismo, era um negociador. Se, depois, meteu os pés pelas mãos, é outro departamento. Mas como liderança política ele tinha uma biografia que o qualificava. O Bolsonaro não tem.
A união entre partidos pode diminuir essa possível força de Bolsonaro?
É uma forma de reduzir o "risco Bolsonaro", que é um dos riscos possíveis. O outro risco é o populista, que também é um objeto escorregadio. Você tem populistas de diferentes tipos, e o Bolsonaro é também populista. O populista é um político que superpõe às instituições o carisma dele, a força imagética dele, o talento que ele julga ter, o discurso que ele tem. Ele se vê como mais forte que as instituições e ele é pouco atento às questões do equilíbrio fiscal.
A esquerda brasileira poderia ou deveria seguir o modelo de unir seus partidos?
Se a esquerda tiver preocupação de constituir um polo competitivo em termos eleitorais, ela tem que se unir. Você tem Ciro, Marina, Manuela e Boulos, mas uma parte está mais perto do centro, que é a Marina, uma parte mais no extremo, que é o Boulos, um cara da luta, do enfrentamento, da mão na massa. A Manuela também, mas ela é de um partido de esquerda que é um pouco mais suave do que o PSOL, que faz política de uma outra maneira. O PCdoB vem de uma trajetória histórica que educou os comunistas a negociarem mais, a entrarem com mais facilidade na composição dos governos. O PT está sem candidato hoje, mas a gente teria que colocar um eventual candidato do PT nesse lote da esquerda. Eles todos poderão se abraçar por conveniências, mas tem diferenças ali. Do ponto de vista de um cálculo para aumentar a competitividade da esquerda, o correto seria uma unidade, uma frente de esquerda, acho que seria mais produtivo. Mas há dificuldades ali, as mesmas que você tem para o centro democrático se juntar. O único que não enfrenta esse problema é o Bolsonaro. Ninguém vai se unir ao Bolsonaro, e ele não tem que resolver essa questão da unidade.