Marco Aurélio Nogueira
Marco Aurélio Nogueira: A era digital de risco
Sergio Moro sai menor do episódio recente, mas na esfera política o jogo continua em aberto
O mundo político e a opinião pública estão há duas semanas às voltas com o vazamento de conversas telefônicas envolvendo o ministro Sergio Moro e procuradores da Lava Jato. São conversas constrangedoras e inadequadas quando se levam em conta as expectativas do sistema de justiça em que vivemos. As revelações, além do mais, deixam patente algo que todos sabem, mas nem todos levam suficientemente a sério: hoje não há ser vivo que se possa considerar imune a invasões de privacidade. A era digital, com seus recursos e instrumentos, fez com que os dados se tornassem moeda preciosa e facilmente manipulável.
Em entrevista publicada recentemente, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso observou que “hoje, o exercício da função pública é cada vez mais uma profissão de risco. A cada ano a privacidade vai se tornando mais vulnerável”. Para ele, “o que foi feito para facilitar e proteger reverte-se à condição de pesadelo”.
O cenário é sombrio quando se trata de segurança informacional. A revolução digital facilitou muita coisa, ampliou acessos e transparência, mas permitiu também que a vulnerabilidade se expandisse. Na velocidade de um clique, qualquer um pode perder dados valiosos e ter sua identidade virtual sequestrada.
Segundo dados governamentais, em 2018 ocorreram 20,5 mil notificações de incidentes computacionais em órgãos do governo, dos quais 9,9 mil foram confirmados. Desde 2014 o número não fica abaixo de 9 mil. No levantamento feito, 26% do total dos casos são de adulteração de sites públicos por hackers. Em segundo lugar estão os vazamentos de dados, com 20%.
A situação estrutural em que estamos remete ao que o sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015) chamou de “sociedade de risco”, expressão de uma fase histórica de transições aceleradas e reconfigurações. Em sua formulação, a “sociedade de risco” se tornaria progressivamente o casulo em que habitariam todos os humanos. Um casulo instável, marcado pela incerteza, por ameaças recorrentes e pela dificuldade de planejamento, no qual a vida transcorreria impulsionada pela inovação tecnológica, sem fornecer muitos espaços para a intervenção política. O risco não cairia do céu como uma fatalidade: viria por decisões humanas, “incertezas fabricadas”, rotinas, descuidos.
Quando Beck publicou Sociedade de risco (1986), a vida ainda não estava saturada de tecnologia de comunicação e informação, os celulares mal haviam sido projetados, os computadores e a internet engatinhavam, a própria globalização não havia se aprofundado tanto. Mas Beck antevia que o risco se converteria em companheiro de viagem da humanidade. Ganhos conseguidos como progresso iriam se mostrar carregados de perigo. Chernobyl aconteceria pouco depois da publicação do livro. A paisagem ficaria tingida por tragédias ambientais, crises econômicas sucessivas, tsunamis inesperados, aquecimento global.
A intensificação das relações de troca, de comunicação e de circulação de pessoas para além das fronteiras nacionais fez com que as sociedades nacionais, com seus respectivos governos, passassem a viver sob pressão. Muitos espaços e atores “transnacionais” condicionam as operações estatais. Os Estados não são mais os únicos sujeitos a determinar as leis e o Direito Internacional. Perderam soberania e, com isso, não conseguem mais prover segurança ou proteção para seus cidadãos, nem para seus próprios órgãos e servidores públicos. A vulnerabilidade digital é parte desse quadro.
O caso Moro associa-se à vulnerabilidade, mas não tem que ver somente com isso. O vazamento sugere que o então juiz não teria mantido a devida equidistância entre as partes, um tema controvertido, sobre o qual não há consenso. É evidente que ele não saiu bem na foto e foi forçado a descer do pedestal em que estava, ao mesmo tempo que ficou mais dependente do apoio de Bolsonaro.
A Lava Jato também sai desgastada do episódio e poderá enfrentar dificuldades, caso se tenha uma sucessão arrasadora de novas revelações. Ocorre, porém, que a operação conta com grande apoio popular, que valoriza o que ela trouxe de avanço no combate à grande corrupção. Isso ajuda a blindá-la.
As conversas ora reveladas mostram que a Lava Jato adotou procedimentos estranhos às práticas forenses estabelecidas. Nada que não se soubesse, pois a operação sempre se vangloriou de estar assentada numa colaboração explícita entre juiz, Ministério Público Federal e Polícia Federal. Foi assim que conseguiu seus trunfos principais e conquistou o apoio de que desfruta.
O ministro da Justiça sai menor do episódio, que poderá manchar sua imagem e sua biografia. Na esfera política, porém, o jogo continua em aberto, até para o próprio Moro.
A polarização voltou a se intensificar, com as torcidas se organizando em claques para apoiar Lula ou a Lava Jato. É uma situação que leva água para o moinho do bolsonarismo, que faz da hostilidade maniqueísta seu procedimento principal. Não beneficia quem a ele se opõe, não desintoxica o ambiente.
Houve, porém, alguns ganhos. Ao menos um dos personagens desceu do pedestal. Demos de cara, também, com o lado sombrio da era digital. A gravidade das mensagens trocadas entre integrantes da Lava Jato tem seu reverso no vazamento de dados conseguidos graças a procedimentos criminosos. A privacidade evaporou, relativizando o que possa ter havido de delito nas articulações entre Moro, procuradores e policiais federais. Aprendemos a importância de ficar atentos.
Agora, podemos avaliar se as opções da Lava Jato foram acertadas. “Promotores de justiça” (como são os procuradores) e juízes estão ou não do mesmo lado, o lado da Justiça, podendo por isso interagir com liberdade? Ou tudo dependeria do crime cometido e do status do criminoso? São questões complexas, por cuja adequada resolução passa parte importante do futuro da democracia entre nós.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Moro mergulhou de cabeça nas armadilhas da política
O juiz Sérgio Moro fez um cálculo equivocado quando aceitou ser ministro de Jair Bolsonaro. Em vez de ganhar força para impulsionar a luta contra a corrupção e abrilhantar sua biografia, assinou um pacto com o diabo: mergulhou de cabeça nas armadilhas da política, sem ter o devido preparo para isso. Logo ficou evidente sua dificuldade para lidar com políticos, partidos e pressões.
Foi um erro provocado pelo desejo de inscrever o nome na história. O juiz deve ter achado que, a partir de Brasília e com o apoio do presidente, garantiria um fecho grandioso à carreira (o Supremo Tribunal Federal) e completaria o trabalho da Operação Lava Jato.
Só que no meio do caminho havia algumas pedras. O governo Bolsonaro não aprumou e a classe política, “empoderada” com os vazios deixados pelo Executivo, passou a monitorar os movimentos ministeriais. Contra Moro, em particular, ergueu-se uma barreira formada pelos adversários da Lava Jato, dos interessados em “Lula livre” aos preocupados em livrar a própria pele. Um desejo de “vingança” passou a conspirar contra o ministro da Justiça.
As conversas hackeadas entre Moro e os procuradores da Lava Jato dramatizam a situação e fornecem munição para que os ataques recrudesçam. O ministro da Justiça e Segurança Pública terá agora de ficar dando explicações constrangedoras.
As conversas não parecem ter força para fazer a roda da Lava Jato retroceder ou para desmanchar a montanha de provas, depoimentos e julgamentos que atestam o tamanho da corrupção no País. Mas, soltam fumaça e levantam uma nuvem de suspeita difícil de ser dissipada.
No fundo, o erro originário de Moro explica a turbulência que atinge uma operação que se imaginava blindada contra os efeitos da política. A Lava Jato nunca primou pelo respeito cego às práticas jurídicas consagradas. O ativismo que adotou esteve sempre sub judice. Para justiçar os políticos, seus operadores foram fazendo política contra a política, confiando no aplauso das multidões e, depois, no respaldo do presidente da República, que jamais se consumou.
Acontece que Bolsonaro também é político e não se caracteriza por ser criterioso na relação com amigos e inimigos.
* Professor titular de teoria política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Fumaça, ruído e desertos
Presidente não percebe que sua atuação corrói a República ao esvaziar a atividade política. Ou...?
O que faz um governo eleito governar?
A resposta canônica é conhecida, mas nem sempre é praticada. Consta de três pontas.
Em primeiro lugar, apoio social, expresso na manifestação eleitoral dos cidadãos, mas reproduzido ao longo da gestão. Votos que elegem nem sempre são os votos que sustentam os atos governamentais ou coonestam as atitudes do governante. São colhidos em muitos cestos e orientados por variadas escolhas, até a de impedir a vitória de alguém. Precisam ser organizados enquanto se governa. É a batalha da legitimidade. A tentação de permanecer em campanha após a eleição demonstra o medo do eleito de perder os apoios manifestados nas urnas, muito mais do que a pretensão de conquistar novos. Sem novas adesões, porém, restringem-se suas condições de futuro.
Em segundo lugar, uma boa equipe de governo, um bom Ministério, com adequada estrutura de pessoal, técnica e gerencial, sem o que o governo não terá como formular propostas, levá-las à execução, controlá-las, avaliar o que consegue realizar. Em sociedades complexas, com Estados avantajados e repletos de atribuições, a equipe de governo responde por boa parte do sucesso. Ministros pouco qualificados, estranhos às suas pastas, guindados ao primeiro plano com pretensões eleitorais ou em busca de prestígio são tão perniciosos quanto ministros que se prestam a funcionar como meras extensões do chefe (e de seu partido, se for o caso) ou como lobistas de segmentos da sociedade.
Em terceiro lugar, capacidade de articulação política e disposição para construir consensos parlamentares, algo decisivo em qualquer situação. Num regime presidencial como o brasileiro, por exemplo, por suas características, isso implica manter uma agenda aberta à interação com dezenas de partidos e grupos de parlamentares, dialogar com governadores e corporações, movimentar-se para ouvir demandas, auscultar os humores políticos, conceder entrevistas. É o trabalho principal do chefe, que só em pequena dose pode ser delegado a auxiliares, posto que a parte nobre, mais pesada, dependerá sempre da palavra final e da modelagem do vértice superior.
Essas três pontas sofrem o efeito do que se poderia chamar de “carisma” do chefe do governo. Quanto mais brilho próprio e trajetória heroica tiver um presidente, por exemplo, mais facilidade terá de municiar a articulação política ou converter apoios eleitorais em apoio político. Sua capacidade de comunicação e sua clareza de visão estratégica são fundamentais para dar coesão e rumo à equipe de governo. Presidentes ou chefes sem dotes políticos costumam infernizar a vida dos assessores e contribuem demais para o desgaste da imagem governamental.
Considerando a situação brasileira, pode-se dizer que o governo Bolsonaro conta somente com a primeira dessas pontas. E mesmo aí não de forma perfeita, tanto que “continua em campanha”, sem conseguir ampliar sua base social e conquistar novas adesões. Seus índices de popularidade não estão subindo, mas declinando, e o governo, para tentar sair do isolamento, chega mesmo a impulsionar uma mobilização de rua para manifestar apoio social, o que pode piorar ainda mais a situação.
Sua promessa inicial era compor uma equipe avessa ao intercâmbio parlamentar e integrada por técnicos qualificados. O Ministério formado, porém, não corresponde a isso. Flutua ao sabor de jatos de personalismo, de fanatismo hidrófobo, de subserviência à camisa de força ideológica e nefasta de provocadores estranhos à vida nacional.
Alguns ministros funcionam, mas a maioria vive a bater cabeça e a tartamudear. Os filhos do presidente intrometem-se em tudo, distribuindo cotoveladas em ministros, aliados e parlamentares. A ideologia, processada em dimensão obscurantista e paranoica, intoxica o discurso do Executivo, atritando os demais Poderes e abrindo fendas profundas no que deveria ser a coesão governamental. Como consequência, impossibilita a ampliação dos apoios, a negociação das propostas no Congresso, a criação de um clima “positivo” que abra espaço para a atuação “construtiva” do governo.
Ainda que haja indícios de que falte inteligência política ao governo, não se trata de um governo irracional. Há nele uma dose de cálculo, um estilo de atuação, uma opção por certas armas de combate no lugar de outras. É um governo que faz escolhas, sendo a principal delas a da hostilidade como procedimento, método com o qual cria crises e inimigos para justificar sua falta de ação e, ao mesmo tempo, agregar sua base mais fanatizada. A “velha política” e a oposição de esquerda seriam, para ele, a expressão de um sistema que não permitiria governar.
A hostilidade como procedimento tem mantido o governo em campanha, mas não o faz governar. Cria fumaça e ruído, produz problemas sucessivos e nenhuma solução, destrói sem construir, como se seu programa fosse mais negativo do que positivo. Vai assim demolindo pontes, envenenando áreas, erodindo a sociabilidade, criando desertos por onde passa. Oferece em troca tão somente a promessa redentora do “mito”, a cavalo de um Deus confuso e vingativo.
O resultado é que o componente propriamente bolsonarista do governo continua do mesmo tamanho, se não menor. Permanece heterogêneo e sem coesão, sem estrutura organizacional, dependente de bots e ativistas digitais, falando consigo próprio. Mantém-se, na verdade, como uma seita, que tem seus ritos e símbolos, seus devotos, sua máquina de descobrir traidores e inimigos a cada dia.
No caso brasileiro, o horror e o espanto crescem na opinião pública. O governo desfila sua indigência e nada entrega, a crise econômica se aprofunda, a ético-política se prolonga. O presidente não percebe que sua atuação corrói a República ao esvaziar o principal mecanismo que a dignifica, a atividade política. Ou estaria ele querendo precisamente isso?
Marco Aurélio Nogueira: A união acima de tudo
Descalabros governamentais fazem com que os pedaços que antes se combatiam uns aos outros percebam que o Mal está em outro local
O escritor Antonio Prata acertou a mão, em sua última e deliciosa crônica, quando escreveu que Bolsonaro vai unir o Brasil: “acabou o fla-flu: agora é todo mundo contra o Olaria”.
Se me basear nos meus círculos pessoais e nas redes que frequento, é isso mesmo que está acontecendo. Uma vertente que por enquanto não se completou, mas que avança célere, na proporção em que o presidente e seu governo batem cabeças e produzem fatos escabrosos. Ainda há “resistentes” que respondem ao presidente na mesma moeda: xingou, eu xingo de volta, que não levo desaforo prá casa. O sectarismo, de resto, não é privilégio da direita ou dos mais desqualificados: estende-se por todo o campo político e ideológico. A burrice, a ignorância, também costuma ser equilibradamente distribuída. O mesmo pode ser dito do ressentimento, que é típico do bolsonarismo mas também se manifesta em vários setores petistas ou de esquerda, por exemplo.
Nessa nossa época de postulações identitárias intermináveis, sempre haverá alimento para divergências, vetos, atritos e contestações. O que se deve por à frente: a combatividade feminista, o valor intrínseco da negritude, o orgulho gay ou a questão democrática? Não seria lógico juntar todo mundo em torno de uma causa que é maior e beneficia as mais diversas causas particulares? Não seria sensato trocar o “programa máximo” da revolução por uma convergência liberal-democrática que formate um espaço de luta comum que dê sustentabilidade e apoio popular aos confrontos de ideias? Não é muito mais razoável tentar conquistar com argumentos ponderados os que apoiam o governo do que adotar diante deles a soberba e a ironia? Não é melhor analisar e discutir as propostas do que ficar torpedeando estridentemente tudo o que é proposto pelo governo?
Pode não ser fácil, mas tudo isso é possível e, creio, a cada dia mais necessário.
Bolsonaro distila ódio porque se ressente de ter sido visto, desde sempre, como um político de terceira classe, um maluco-beleza que ninguém levava a sério. Acha-se um predestinado que clama por reconhecimento. Seus seguidores mais fanáticos são ressentidos porque perderam posições na sociedade, veem-se como injustiçados que se sentem perseguidos pela esquerda e jamais tiveram um governo para chamar de seu. Carregam no peito aquela desconfiança hostil a políticos e burocratas, que julgam como se estivessem sempre a prejudicá-los. Desprezam a diversidade, o pluralismo, a cultura e o conhecimento porque não conseguem escapar do círculo de giz em que se meteram, trancam-se nele como que encantados. Nem sabem que são reacionários, pois se veem como uma espécie de “povo escolhido”, os únicos que conhecem a verdade verdadeira.
O fato é que essa turba de gente ressentida chegou ao governo, encarnado na figura de Bolsonaro, que a seu modo promoveu uma ida ao poder de pessoas que viviam na periferia do poder, e não se conformavam com isso. Os que foram eleitos pelo PSL são um bom exemplo: de um dia para o outro foram catapultados para posições de força e influência, sem saber bem como isso aconteceu e o que fazer a partir de agora.
O quadro é lastimável, de uma rudeza e de uma grosseria desconhecidas entre nós. O sinal passou a piscar com insistência, advertindo que o perigo já passou do limite razoável. O pessoal que nos governa simplesmente não sabe como governar, e com isso o País aprofunda sua agonia.
Aos poucos, até mesmo alguns de seus eleitores começam a abandoná-lo, assustados com o despreparo flagrante.
O efeito colateral inevitável, bem apontado pelo Prata, é que os pedaços que antes se combatiam uns aos outros passaram a perceber que o Mal está em outro local, que há adversários mais importantes a serem combatidos, que rixas doutrinárias para ver quem é mais de esquerda ou tem a versão mais correta do socialismo precisam ser descartadas, que não faz sentido ficar amarrado no mantra “Lula livre” ou debatendo se o ex-presidente é ou não um perseguido, que dá perfeitamente para voltar a marcar encontros com aqueles amigos de sempre que de repente começaram a pensar de outra forma. Se, antes, temiam-se confraternizações plurais que poderiam terminar em pancadaria, agora buscam-se adversários de ontem para trocar ideias e traçar estratégias de ação.
Não é propriamente uma pacificação ou a decretação de um armistício definitivo. Política é paixão e sempre haverá nela terreno fértil para divergências. Toda unidade inclui uma luta entre contrários ou que pensam de outra forma. Do mesmo modo, porém, política é busca permanente de aliados, mais que de inimigos, e nela há como que um vórtice aproximando as pessoas umas das outras.
Quem age politicamente em nome da caça a inimigos (que podem ser muitos e variados), como faz o bolsonariano típico, termina sempre por derivar para a paranoia da conspiração. Afoga-se em sua própria saliva e acaba por promover um deserto por onde quer que caminhe. Quando chega a governar, deixa como legado uma obra miserável, torta, descompensada.
A crescente percepção de que algo assim está em marcha no Brasil é o imã que está promovendo reencontros e reaproximações. Se conseguirmos aproveitar a tendência e melhorarmos a articulação política em termos nacionais, reunindo classes, setores sociais e nichos identitários diversos em nome da democracia, da liberdade, da tolerância, da ciência, da educação e de tudo o que nos faz filhos da civilização, estaremos dando um passo de gigante que por certo atenuará os estragos maléficos que estão hoje saltando aos olhos.
Marco Aurélio Nogueira:A ignorância como critério de gestão
Reduzir investimentos em cursos superiores de Humanas é o novo despropósito do governo
Bolsonaro na área da Educação. A ideia é focar em cursos que preparem os alunos para o mercado de trabalho. Além de caolho, o pressuposto é preconceituoso e ignora a relevância das Humanidades na vida atual.
O presidente usou sua conta no Twitter para dizer que haverá um corte de investimentos nas faculdades brasileiras de ciências humanas. Repetiu o discurso do novo ministro da Educação, que anda afirmando que “a função do governo é respeitar o dinheiro do pagador de imposto” e, por isso, o ensino deve se voltar para a disseminação de “habilidades” que ajudem os jovens a entrar no mercado de trabalho.
Para o governo, “poder ler, escrever e fazer conta” é o mais fundamental. Exclui-se, desde logo, o saber pensar, o saber conviver, o saber apreciar o belo. O pragmatismo é rasteiro, na doce ilusão de que a educação garantirá a aquisição de ofícios que “gerem renda para a pessoa e bem-estar para a família delas”, melhorando a sociedade.
A postura governamental ignora alguns fatos elementares. Antes de tudo, parece pressupor que os gastos das Humanidades ultrapassam os gastos com as demais áreas científicas e acadêmicas, quando todos sabem que a verdade está do lado oposto: dos cerca de R$1 bilhão investidos em pesquisa no Brasil, somente 160 milhões vão para as Ciências Humanas. O governo economizará pouquíssimo caso deixe de injetar dinheiro nas faculdades de Humanas.
O argumento orçamentário, portanto, não procede, deixando evidente que a intenção do governo é de outra natureza: ele acredita que as Humanas são um reduto das esquerdas, uma espécie de “foco subversivo” permanente. Despreza o pluralismo que vigora nessas áreas e ignora por completo a dimensão cívica, técnica e cultural das Ciências Humanas, que são vitais seja para o aprimoramento da língua e a formação reflexiva, seja para a investigação dos graves problemas sociais do País, como a desigualdade, a pobreza, a violência.
É difícil acreditar que alguém, ao final da segunda década do século XXI, não valorize a contribuição que a sociologia, a ciência política e a antropologia têm dado para a compreensão das sociedades e a abordagem dos múltiplos temas socioculturais. Sem elas, nenhum diagnóstico pode ser concluído, nenhuma política pública consegue ser formatada, executada e avaliada. A própria diversidade brasileira fica à margem, sem consideração adequada.
Numa época de complexidade crescente, demonstra ignorância e alienação quem procura rebaixar as ciências que podem se valer de perspectivas transdisciplinares para atingir a totalização crítica da experiência humana e a valorização da vida.
Alguém poderia dizer que o governo deseja imprimir marca tecnocrática à sua política educacional. Antes fosse, ao menos o caminho seria desastroso mas conhecido. O governo, porém, quer deslizar mais para baixo, abandonando qualquer tipo de filosofia educacional. Mistura problemas pedagógicos com organização acadêmica, privilegia a caça à esquerda em vez de apresentar planos e propostas para melhorar o ensino superior, faz crítica ideológica sem qualquer avaliação de desempenho.
Ainda que concentrada nas Humanidades, a perspectiva governamental mostra-se hostil ao conjunto da vida universitária. Coube ao ministro da Educação a façanha de ameaçar as universidades que permitirem a ocorrência de “balbúrdias” em seu interior, expressão genérica que pode se referir a tudo ou a qualquer coisa.
Ao atropelar a autonomia das universidades e comprimi-las com cortes e pressão, o governo exibe sua face arbitrária e destemperada. Demonstra ignorância e vontade de agredir tudo o que pode fazer pensar. Parece muito mais interessado em produzir fumaça e provocar do que em administrar o sistema universitário brasileiro e proteger as atividades de pesquisa e produção de conhecimento.
As Humanidades não podem ser suprimidas por decreto, indispensáveis que são à compreensão da vida social e à organização de um ensino superior de qualidade. O governo não sabe o que fazer nem com a Educação Básica, nem com o ensino universitário. Falta-lhe tudo o que é indispensável para a gestão de sistemas estratégicos: senso de proporção, inteligência crítica, equilíbrio, temperança, respeito à diversidade. Prefere coagir, sem se dar conta de que, ao assim proceder, está a destruir tudo o que já se construiu no País em termos educacionais. Não colocará nada no lugar, a não ser provocações. Sua maior contribuição será semear pânico e confusão.
A brutalidade governamental esbarrará na lógica dos fatos e na resistência de professores e estudantes. De agressão em agressão, preparará o caos, sem se dar conta de que nem sequer ele mesmo poderá disso se beneficiar.
Marco Aurélio Nogueira: Guinada não é líquida e certa
A demissão de Vélez Rodríguez não pegou ninguém de surpresa. Dada como certa, abriu uma janela de oportunidade para o governo Bolsonaro. Antes de tudo, porque limpou um território minado. O governo se desgastava ao permanecer sancionando o despreparo de Vélez e deixando-se contaminar pelas disputas entre “olavetes” e militares – e agora pode começar a pensar a Educação como dimensão estratégica, dando a ela um mínimo de atenção.
A guinada, porém, não é líquida e certa. O novo ministro, Abraham Weintraub, um bolsonarista de primeira hora, também é jejuno em gestão educacional, ensino médio e educação básica. Não se trata de um técnico da área, um intelectual ou um articulador político, qualidades sempre preciosas no complicado mundo da Educação. Além disso, gosta de se apresentar como adversário do “marxismo cultural”, o que poderá levá-lo a alimentar a guerra ideológica de Olavo de Carvalho, de quem se diz um admirador e um “adaptador”.
A decisão presidencial puxa um freio de arrumação no MEC, mas não se sabe se esfriará a influência de Olavo. Se o novo ministro, à diferença de seu antecessor, apresentar um plano para gerir a Educação no País, ajudará a dar ao governo um eixo que até agora não foi encontrado. Se permanecer agarrado ao doutrinarismo, a janela de oportunidade não passará de uma fresta, que logo se fechará.
*É cientista político do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Prende e solta Temer é ajuste de contas do MP com o sistema político
Se a prisão de Michel Temer e Moreira Franco pegou de surpresa o mundo político, embora fosse dada como certa, a decisão do desembargador Antonio Ivan Athié de soltá-los era esperada, mas não deverá causar maior rebuliço no já caótico quadro político nacional.
Ela pode acalmar um pouco os políticos, antes de tudo o MDB, e, com isso, contribuir para baixar a temperatura política, em elevação desde que cresceu a tensão entre Legislativo e Executivo e aumentaram as críticas à inoperância de Bolsonaro. Se tiver sucesso, ajudará a introduzir mais racionalidade no exame das medidas propostas pelo governo, a começar da reforma da Previdência.
Um segundo efeito se associa à disputa entre setores do Judiciário e a Lava Jato. A prisão de Temer foi uma declaração de que a operação continua viva, após derrota sofrida com a decisão no STF de remeter crimes de caixa 2 à Justiça Eleitoral. Prender Temer sem o devido processo legal foi passo ousado, mas torto, do juiz Bretas, dado para indicar onde estão os focos de resistência à operação.
A decisão de Athié se apoiou no respeito às garantias constitucionais, mas foi proferida por alguém com trajetória problemática. E deixou um flanco desguarnecido ao dizer que não é contra a Lava Jato. Elogiou a operação, mas a criticou por se basear em “caolhas interpretações”.
O prende e solta de Temer se insere no processo de ajuste de contas do MP com o sistema político. O momento atual é tóxico, tende a contaminar tudo. Não ajuda para que a luta contra a corrupção avance com inteligência estratégica e republicanismo, cedendo demais a erros de cálculo, personalismos e radicalizações, o que só contribui para prolongar o caos reinante.
Marco Aurélio Nogueira: As pedras no caminho
Até Guedes e Moro se dão ao luxo de contribuir para o besteirol que se esparrama pelo País
A repetição insistente choca e surpreende. Dia sim, outro também, um fato novo comprova a tendência. Uma declaração, um tuíte presidencial, a entrevista de um filho, a fala de algum ministro. Até os mais técnicos, como Guedes e Moro, se dão ao luxo de contribuir para o besteirol que se esparrama pelo País. Não conseguem falar com autonomia, gastam energia em bajulações desnecessárias, que decepcionam e confundem.
Precisamos, por isso, insistir, repisar pedras já desgastadas por passos recorrentes. Temos de fazer esse movimento para ver se compreendemos como é que, num curto espaço de tempo, conseguimos cair tão baixo, a ponto de não sabermos mais o que unifica o País, quem governa e o que virá pela frente.
Tudo mudou demais no Brasil de 2018 para cá, em se tratando de política e governo. A crônica tem sido abundante a esse respeito. O País enveredou por uma trilha da qual não sabe como sair e que a cada dia fica mais obscura. Há novos hábitos sendo cozinhados num caldeirão que é revolvido por uma trupe de pessoas pouco qualificadas, sem generosidade, fanatizadas por uma narrativa que não se imaginava poder sair do submundo intelectual em que vicejava. Vem daí a atitude de pasmo e surpresa que se abateu sobre o campo político laico e progressista, dos liberais democráticos às esquerdas fundamentalistas, passando pela esquerda democrática. Estão todos paralisados, com um grito preso na garganta, sem saber que rumo tomar, como se opor ou resistir à onda direitista e fascistoide que ameaça prolongar-se, misturada com um neoliberalismo impreciso na economia e todo tipo de improvisações.
Tal onda segue a cavalo de um anticomunismo apoplético que se articula com uma declarada, mas não esclarecida “moralização dos costumes”. Estabelece-se uma relação de causalidade entre duas dimensões que nada têm entre si: o “comunismo” seria o causador da decadência moral da sociedade; seu materialismo, seu desejo de poder, seus métodos de trabalho e seu caráter insidioso estariam na base da desagregação da ordem social e da corrupção das famílias, todas elas recatadas e tementes a Deus. Seria o caso, então, de desconstruir os fundamentos do mal para, quem sabe, mais à frente, construir algo novo. É assim que o novo grupo dirigente justifica sua inoperância governativa, sua falta de propostas e suas trapalhadas.
A moralização pretendida quer repor uma ordem que teria sido perdida, recuperar limites que teriam sido ultrapassados, enquadrar a diversidade social num quadro unitário que ressoa a autoritarismo, fazer da educação e da cultura uma extensão passiva das palavras bíblicas, num criacionismo extemporâneo e avesso ao mundo moderno e às próprias tradições nacionais. Quer fechar o País à influência de um “globalismo” não compreendido, visto como ambiente para a reprodução das esquerdas e a desnacionalização do País. Quer criar um povo submisso, que se movimente pouco, não ouse nem atravesse os Rubicões da vida, não se dê ao direito de usufruir as margens de liberdade ampliadas pela modernidade, não conteste hierarquias e autoridades, especialmente as emanadas dos super-heróis da nova era.
Tudo isso é absurdamente sem sentido, faz soar os tambores da irrazão.
Não é acidental que a bajulação se tenha convertido em estilo de atuação. Há “libertadores” que precisam ser incensados, Trump acima de todos, líderes que conduzirão a humanidade de volta ao leito da nação e varrerão os “subversivos”, os ímpios, da face da Terra. A recente viagem presidencial a Washington mostrou quão longe pode chegar tamanha disposição à subserviência.
Não sabemos a força que essa operação terá diante dos modos de agir, pensar e sentir impulsionados pelas dinâmicas da modernidade radicalizada, que reiteram o indivíduo cioso de sua privacidade e de sua responsabilidade cívica, que põem em marcha uma individualização que tensiona os nexos entre as pessoas e os grupos, que explodem as velhas modalidades de ordem e disciplina. A mesma modernidade que tensiona a democracia e produz intenso desejo de identidade também multiplica direitos de todo tipo e abre clareiras democráticas, desafiando os poderes constituídos, os hábitos políticos estruturados, as figuras tradicionais do associativismo (partidos, sindicatos), projetando as populações num vórtice incessante e fora de controle. Vivemos um tempo de complexidades categóricas, hostis às formas simples de pensamento e ação.
Não se deve dar de barato que a pretendida regressão nos costumes será vitoriosa. Sua maior dificuldade é precisamente o que lhe dá força inicial: sua grosseria, seu linguajar chulo, sua ruptura com a ciência e a democracia, seu desprezo pelas liberdades, sua mediocridade técnica. São esses elementos que fazem a pregação fanatizada obter audiência e mobilizar uma legião de seguidores. Mas como será quando ela tiver de entregar o que promete e que colide com os termos da vida atual, entra em choque com eles e é por eles deslegitimada? Como será quando seus articuladores políticos e governamentais tiverem de explicar à população o mau governo que praticam, com sua crueldade e suas mãos sujas de imposturas intelectuais e baixarias vis?
Não se poderá sustentar ad infinitum que as desgraças do mundo se devem ao “comunismo”, às “esquerdas” e ao “globalismo”, ou à traição dos que se aproximaram do novo panteão para depois abandoná-lo, arrependidos. A caça aos traidores não sobrevive quando os caçadores têm o rabo preso e não são capazes de oferecer algo mais do que ofensas e estigmatizações.
De resto, pelas pedras do caminho sabemos bem para onde nos leva o anticomunismo vociferado como se fosse o dernier cri da civilização. Manifestado como ideologia, ele só consegue criar na sociedade divisões sucessivas entre bons e maus, os nossos e os deles, levando pelos ares qualquer possibilidade de uma reconstrução efetiva.
Marco Aurélio Nogueira: Quando o despreparo dá o tom
Carta do ministro da Educação é uma exorbitância autoritária e um claro desvio de função
Se alguma bobagem adicional precisasse ser cometida para que ficássemos preocupados com o futuro da nação, o ministro da Educação Vélez Rodriguez se encarregou de pô-la na mesa.
Não se tratou de uma bobagem qualquer. Antes de tudo, por ter sido forjada numa área estratégica, que alcança diretamente o conjunto da população, os jovens e crianças que, dentro de alguns anos, serão a base intelectual, moral e operacional da sociedade. Se o responsável pela Educação se dá ao luxo de propor uma absurda intervenção ideológica e político-partidária nas escolas do País, então é porque estamos carentes de limites e critérios.
É difícil imaginar o que passou pela cabeça de Sua Excelência ao pedir aos dirigentes escolares e professores que lessem aos alunos um besteirol como esse: “Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração”. Não satisfeito, acrescentou: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”, um mero slogan de campanha.
O ministro pediu, ainda, que após a leitura, alunos, professores e funcionários deveriam, compenetrados e com os olhos marejados de fervor patriótico, entrar em ordem unida para cantar o Hino Nacional. Alguns filmariam o rito e enviariam as imagens para controle dos órgãos governamentais.
Seria cômico e ridículo se não fosse trágico. É ridículo porque não pode ser levado à prática nas milhares de escolas do País, onde a missiva por certo gerou estupor e ironia. Não haveria nem sequer fiscais e controladores para exigir o cumprimento da ordem. É cômico porque expõe o ministro à execração pública e mostra seu despreparo.
E é trágico porque se trata de uma exorbitância autoritária, de um escandaloso desvio de função, de uma demonstração clara de que no ministério da Educação não se tem uma pessoa preocupada com a educação, com a qualidade do ensino e a criação de condições para o desenvolvimento educacional, mas um agitador barato, interessado em fomentar desentendimento, congestionar o cotidiano escolar e bajular o presidente da República. Ou seja, precisamente tudo aquilo que não deveria integrar uma agenda ministerial.
Reações não faltaram, e foram expressivas. Mas nenhuma voz governamental procurou desautorizar a bravata. O ministro veio a público, no dia seguinte, dizer que errou ao pedir que filmem os alunos cantando o Hino. “Cantar o Hino Nacional não é constrangimento, não, é amor à pátria”, disse. E acrescentou: “O slogan de campanha foi um erro, já tirei, reconheci, foi um engano, tirei imediatamente. E quanto à filmagem, só será divulgada com autorização da família”.
É muito pouco. Ele mereceria bem mais que uma reprimenda presidencial: deveria ser afastado a bem do serviço público. Pois, se teve a ousadia de praticar um ato assim insano e desqualificado, é fácil imaginar o que mais poderá ser capaz de fazer.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Combustão interna
Impulsionado pelos filhos do presidente, governo parece disposto a atirar nos próprios pés
Crises fazem parte da vida dos governos. No âmago deles se acomodam, invariavelmente, interesses diversificados, grupos de pressão, ideias conflitantes e indivíduos picados pela mosca do poder, que embriaga a todos. Harmonias são compostas à custa de esforço e determinação, na dependência da presença de líderes qualificados para unir e agregar. Quando se desfazem, põem-se em campo os apaziguadores, apaga-se o incêndio sem a certeza de que um novo não irromperá mais à frente.
Mas crises agudas não são comuns nos primeiros dias de um novo governo, quando tudo deveria fluir com naturalidade, mesmo que com dificuldades. A lua de mel com a opinião pública, a expectativa positiva dos que elegeram os governantes e a legitimidade do presidente contribuem para dar ao novo grupo uma chama de entusiasmo e vontade que ajuda a neutralizar as disputas internas.
Crises nos primeiros dias causam desconfiança. Sugerem que um barco foi lançado ao mar sem rumo claro e desprovido de um capitão em condições de manejá-lo. O barco vaga à deriva em alto-mar, rangendo nas tempestades, sem conseguir evitar escolhos e ondas fortes. A tripulação deixa de se entender, os passageiros ficam inseguros e o próprio comandante, anestesiado e confuso, acaba por ajudar o desentendimento a proliferar.
Os atritos e divergências que têm agitado o governo Bolsonaro desde o início não se devem tão somente ao “fogo amigo” ativado pelos filhos do presidente. O protagonismo do clã complica demais a ação governamental, mas precisa ser avaliado em conjunto com a confusão intrínseca ao bloco de forças que elegeu Bolsonaro e que não parece reunir condições de sustentá-lo e de auxiliá-lo a se encontrar consigo mesmo.
As eleições de 2018 transcorreram num contexto inusitado. Diferentemente do que se passara nos tempos da redemocratização e se prolongou durante os governos de FHC, Lula e Dilma ao menos até 2013, a política deixou de ser ativada por partidos políticos ou movimentos organizados. PMDB, PT e PSDB foram tragados por novas dinâmicas, marcadas por inflexões “anárquicas” e muito espontaneísmo, tudo devidamente turbinado pelas redes. O quadro de fragmentação e polarização política contribuiu tanto para esfacelar o campo democrático quanto para impossibilitar que a sociedade discutisse com cuidado os principais problemas do País e as propostas dos candidatos, que acabaram assim por se perder.
Bolsonaro venceu graças a um desejo de mudança que ficou sem opção com a desagregação dos grandes partidos e com a incapacidade das forças democráticas de oferecer propostas e candidaturas sedutoras aos eleitores.
O governo formou-se sem um programa claro e reunindo pedaços de um caótico movimento mudancista que vinha da sociedade e repercutia na política. Assentou-se sobre um arranjo submetido à pressão de quatro focos de poder, cada um buscando agendar o presidente: os filhos, os economistas de Paulo Guedes, os generais e a equipe de Sergio Moro. A disputa entre eles despontou já no período de transição e foi-se amplificando na medida em que Bolsonaro se sentiu obrigado a cumprir suas polêmicas “promessas de campanha” e chamou para auxiliá-lo um agregado de figuras menores, encarregadas de fazer fumaça e reverberar a retórica ideológica, grosseira e moralizante que ajudou a eleger o presidente.
Em vez de cuidar da governança, o núcleo mais engajado do governo optou por permanecer em campanha, comprando brigas e fazendo inimigos. O governo foi assim se inchando de ideologia e de disputas, ficou pesado e sem agilidade. Complicou-se, ainda, com a proliferação de ataques à imprensa, manobras familiares, futricas e bate-bocas virtuais, que contaram com a participação do próprio presidente. Abriram-se vazios inadequados. A própria base parlamentar governista, que se imaginava seria formada pelo PSL, mostrou fragilidade e passou a criar embaraços, dado que cresceu sua expectativa de ocupar cargos e obter vantagens.
Formou-se desse modo uma tendência a que o grupo mais bem organizado - o dos generais - adquirisse maior protagonismo e tentasse chamar a si a missão de “enquadrar” o governo, ocupando espaços e buscando incrementar a coordenação governamental. A demissão de Gustavo Bebianno fez se acenderem as luzes de alerta, pelas razões que a motivaram, pelo modo como foi feita e pelas consequências que deverá ter. Os militares são bons em coordenação, mas não têm intimidade com a política, que é o fator que mais pesa no momento.
Crises assim precisam ser compreendidas como situações repletas de implicações e desdobramentos, que no limite podem ser paralisantes e catastróficos. Revelam estilos de atuação, modos de resolver pendências internas e absorver pressões. No caso em questão, a crise revelou um governo atarantado, sem um projeto comum ou um programa claro de atuação, sobrecarregado de adrenalina e emoção. Tenta compensar sua inoperância política com o pretexto de que está a organizar uma governança sui generis. Não está propriamente enfraquecido, pois sua retórica inflamada e suas promessas conservadoras ainda mantêm ativas as bases sociais que o elegeram. Mas são flagrantes sua má qualidade gerencial e sua dificuldade de ganhar estabilidade.
Impulsionado pelo protagonismo raivoso e paranoico dos filhos do presidente, o governo parece disposto a atirar nos próprios pés, como se isso fosse prova de ousadia e destemor. Sem base parlamentar confiável e limitado, no plano social, a apoios negativos (contra a “esquerda” e o “marxismo”), flerta com o desentendimento permanente e com uma combustão interna que poderá inviabilizá-lo ou levá-lo a um endurecimento extemporâneo, que não o ajudará.
Ninguém sairá ganhando se esse quadro se estender no tempo ou virar rotina. Acima de tudo e de todos, perderão o País, a população e a sociedade.
Marco Aurélio Nogueira: Almas e demônios
Rasgam-se importantes mapas de navegação que poderiam dar ao governo alguma direção
Entenda-se a metáfora com espírito aberto e generosidade: governos costumam ter alma. Os melhores caracterizam-se por ter uma consistente, que lhes dá força, coesão e audácia nos campos político e administrativo. Os piores, ao contrário, vivem sem eixo.
Como não são integrados por anjos, mas por homens, mulheres e partidos, com suas paixões, suas idiossincrasias e seus apetites, governos sempre tendem a se dividir em pedaços, pequenas almas que competem entre si pelas luzes da ribalta, pelos aplausos do público, pelos mimos do chefe. Somente uma alma que se destaque e se imponha – uma anima magister – consegue domar os demônios que brotam do cotidiano governamental. Tem sido assim em todos os governos, dentro e fora do Brasil.
O Estado e, sobretudo, a sociedade sofrem quando são governados por governos desprovidos de alma: sem um programa, um núcleo coordenador, um partido ou uma liderança inconteste, qualificada para fazer que prevaleça uma direção. Por não saberem que rumo tomar, governos sem alma agem por impulso, por espasmos, ao sabor dos interesses parciais que nele preponderam e nem sempre coabitam. Deixam assim de poder cumprir a missão que deles se exige. No limite, vivem em turbulência, aos solavancos, espalhando crises por todos os lados. Natural que, nessa situação, tudo o que acontece de problemático em seu interior reverbere no exterior, desgastando-lhes ainda mais a imagem.
Passados 26 dias de sua posse, o governo Bolsonaro não mostrou ter uma alma. Falta-lhe quase tudo: programa, projeto de País, discurso, comunicação, temperança, conhecimento do terreno, prudência, capacidade de articulação, quadros técnicos e políticos competentes. Exceção feita às áreas da Economia, da Justiça e de Infraestrutura, o restante é um amontoado de figuras menores, com mentalidade provinciana, que falam pelos cotovelos, mas dizem pouco, como se tivessem, repentinamente, caído do céu para realizar uma tarefa que desconhecem e para a qual não foram treinadas. A improvisação dá o tom.
Os ataques ao “globalismo” feitos em nome de uma “Pátria soberana” que abaixa a cabeça para os poderosos do mundo são acompanhados de um esforço contumaz para desmontar os pilares institucionais, éticos e políticos da política externa brasileira. Desprezam as perspectivas que trabalham pela construção de um sistema internacional mais cooperativo e sustentável, livre de muros e barreiras ideológicas. O presidente disse em Davos que praticará uma política econômica de abertura e acima de ideologias, ao passo que seu ministro do Exterior se derrama em pregações ideológicas e fala em fechar o País aos “globalistas”. É uma dentre várias dissonâncias.
Entoar a cantilena autoritária da “caça aos marxistas” nas escolas só serve para ocultar a falta de um plano de ação que se dedique a recuperar o sistema escolar. A política educacional desponta com um vezo moralista e conservador que ignora as graves deficiências que minam a educação brasileira. Há, também, falas ministeriais despropositadas, sem pés nem cabeça, feitas como se estivessem referidas a outro tempo histórico e a um País datado.
Estão a ser rasgados importantes mapas de navegação, que poderiam dar ao governo alguma direção. Desprezam-se tradições consolidadas, práticas administrativas bem-sucedidas e atitudes políticas que contribuíram de forma decisiva para erguer o Brasil moderno que conhecemos e, no momento inaugural de um novo governo, serviriam de base operacional e fator de equilíbrio. Submete-se assim a máquina governamental a um estresse perigoso, fazendo-a funcionar com uma bomba-relógio amarrada ao corpo, a marcar o estouro da próxima crise.
A população torce para que o novo governo acerte. É a maior interessada em que isso se concretize e sabe que é preciso dar tempo ao tempo, não atropelar as coisas, não pedir o impossível. Mas o governo não se ajuda. Como será quando o jogo começar para valer, daqui a poucos dias, com o novo Congresso devidamente empossado e funcionando a todo vapor? A articulação política e o desempenho técnico que não existiram no primeiro mês serão ainda mais indispensáveis e o governo precisará encontrar, em seu interior, uma dinâmica que o auxilie a modelar sua alma e a domar seus demônios.
Não é por acaso que setores do governo, incentivados, ao que parece, pelos generais e pelo vice-presidente Mourão, começam a se mexer para blindar o presidente das estripulias de seus filhos e dos efeitos do caso Flávio Bolsonaro e para reforçar a agenda positiva na Economia e na Justiça, as únicas áreas que demonstram ter, até agora, capacidades executivas. Procuram assim emprestar uma alma ao governo, no mínimo para lhe fornecer um mínimo de capital político para lidar com o Congresso e a opinião pública.
A extrema direita que sustenta o governo parece por ora imune aos conflitos e tensões que espocam no seu interior. Demonstra tanta autoconfiança que se dá ao luxo de descuidar do fundamental. Continua em campanha, quando precisa governar. O excesso de confiança, nesse caso, produz arrogância e exagero nas relações com o poder, rei de todos os demônios.
O governo ainda tem tempo, pode aproveitar a lua de mel dos primeiros meses. Mas o bloco que o sustenta parece ter uma solidez mais aparente que real. Beneficia-se, em boa medida, da inoperância oposicionista, ainda sofrendo as dores da derrota do centro-esquerda em outubro, que desbaratou e desorientou seus grupos e partidos. É um quadro que não se prolongará no tempo. No momento em que a vida política recuperar o fôlego e os democratas liberais e progressistas voltarem a se movimentar com desenvoltura, será, então, a hora de ver quanto o governo avançou ao encontro de si próprio, modelando uma alma que o guie e oriente, ou se permanecerá atormentado pelos demônios de que não consegue se livrar.
Marco Aurélio Nogueira: O bode expiatório
O que está por trás dos ataques dos bolsonaristas ao chamado “marxismo cultural” e como isso pode empobrecer a democracia e prolongar a crise do sistema político
Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala.
Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.
A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.
A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.
Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate. Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.
O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.
Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.
A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.
Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.
Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Tudo isso não se deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje. Tanto quanto o pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares, fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos, diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a dialética chama de unidade na diversidade.
O fato é que não houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.
Em seus escritos, muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites. Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso. O debate sério sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo, sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que aprisionou os comunistas durante décadas.
Paradoxalmente, a cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o debate pode fluir de forma democrática.
É o que faz o antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle, reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos, suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula. Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma ideologia.
O ataque ao “marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus, transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita conservadora chegou tão longe.
Não se trata de um ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de “macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.
Afinal, o combate ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.
O desdobramento disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre menos técnicos.
Na hipótese de essa parábola se completar, perderemos todos.