Marco Aurélio Nogueira

Marco Aurélio Nogueira: Polarizações paralisantes

A que está dada entre o bolsonarismo e o lulismo só beneficia o atraso político

Política é luta, disputa, busca de poder. Não pode ser vivida e praticada como se a harmonia e o entendimento apagassem contradições e diferenças. O elogio do conflito como fator de propulsão política é comum ao pluralismo liberal e à teoria da luta de classes.

O dissenso – o direito a ele, a liberdade de expressão, pensamento e crítica – faz parte da democracia, que não pode viver sem ele e sem os embates por ele propiciados. Nem toda polarização produz guerra de extermínio. Nas democracias os polos se respeitam, convivem, fiscalizam-se, podem até cooperar.

A ideia de consenso deve ser posta em termos claros, determinados. Apresentada em abstrato é uma ilusão perigosa, que pode levar à banalização do conflito e à “reconciliação” entre atores que precisam manter-se como diferentes para que a luta política adquira pleno significado e possa até mesmo dissolver os antagonismos maniqueístas. Consenso de modo algum significa a suspensão do conflito ou a dissolução das diferenças.

Observadores da cena política nacional dizem que a atual polarização entre bolsonarismo e lulismo não pode ser eliminada por um consenso centrista, que não teria força social para prevalecer. Alguns veem o consenso não como algo a ser construído, mas como mera tradução da realidade. Acreditam que, se nenhum bloco de forças é suficientemente forte, a proposição de um amplo entendimento seria diversionismo fadado ao fracasso.

Para complicar, entendem a polarização de modo restrito: só a percebem como virtude, numa reprodução empobrecida da visão liberal-pluralista que concebe o conflito como impulsionador da democracia. Preocupam-se em atacar uma hipotética “terceira via”, que entendem em chave funcionalista, como “meio-termo”. Pensam que ser radical é proclamar as razões de um polo contra outro, com o que rejeitam qualquer esforço de mediação.

A política é sempre polarizada, mas nem toda polarização fornece oxigênio à política. É necessário ir além das abstrações teóricas, admitir e reconhecer especificidades para, então, compreender o limite e o equívoco das polarizações binárias, não dialéticas: nós contra eles.

Polarizações paralisantes podem ser inevitáveis, mas não são virtuosas. Envenenam a luta política e alienam a população, na medida em que sugerem que toda decisão sempre reflete o interesse de um polo em combater o polo oposto. Nelas não há um movimento de superação, o encontro de um terceiro termo que negue os termos polares e os incorpore num novo arranjo.

É o caso da atual contraposição entre bolsonaristas e lulistas, que impede a sociedade de conhecer propostas renovadoras. Tudo é exibido na cena pública como um filme já visto. Vive-se o conflito polarizado com doses extra de intolerância e agressividade, de onde sai uma névoa de desentendimentos (mais aparentes que reais) que incrementam o atrito e a fragmentação.

Romper polarizações desse tipo requer tenacidade, liderança personalizada, símbolos fortes, ideias. Nenhum sucesso virá da repetição ad nauseam do mantra do “centro”. Mas é improvável que haja avanço substantivo na vida nacional sem uma inflexão para o centro de um dos polos dominantes. Se tal não ocorrer, uma eventual disputa eleitoral será vencida pelo polo que detiver mais recursos de poder, usá-los com frieza e alcançar uma boa narrativa de campanha. Não é preciso muita inteligência para descobrir qual polo seria esse.

O bolsonarismo não tem capacidade de infletir para o centro, nem sequer para o centro liberal-conservador, em que pese ter hoje a seu lado uma figura como Paulo Guedes, que está no governo por questões outras. Seu autoritarismo retrógrado e suas grosserias abjetas o tornam repulsivo ao moderantismo liberal, do mesmo modo que o “libertarismo” cosmopolita dos liberais causa engulhos nos bolsonaristas.

Uma unidade democrática pelo centro e com o centro só será vitoriosa se for progressista. Ou seja, se estiver aberta para a esquerda, se for sensível aos problemas sociais do País e fizer da democracia política uma cláusula pétrea. Seu sucesso depende da capacidade que tiver de articular as correntes moderadas numa operação democrática com vocação para se aprofundar. Nas circunstâncias de hoje, significa pensar em unidade democrática: um teto sob o qual os diferentes se reúnam.

A hipótese de um “centro progressista” que exclua ao mesmo tempo os eleitores do bolsonarismo e do lulismo não tem espaço suficiente para progredir, o que explica suas recorrentes dificuldades de afirmação.

Muita coisa passa pelos cálculos de Lula e do PT, que hoje oscilam entre uma frente ampla e um frente de esquerda. Nas personalidades e forças que orbitam o partido, a ideia de “frente ampla” não é tão ampla assim e prevê alta dose de protagonismo petista, o que a restringe. Se o foco for o confronto generalizado – rage against the machine –, com ataques às instituições e apelos a um revolucionarismo retórico, se essa esquerda agir em nome da autoafirmação e de uma visão programática sectária, ela se autoexcluirá e o “centro progressista” terá de buscar novas fontes de energia, por ora inexistentes.

O problema são os vetos cruzados.

A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre lulistas e bolsonaristas, conservadores e reacionários, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política perfeita. Estrutura-se como choque de “narrativas” que se excluem reciprocamente, misturadas com postulações identitárias e batalhas corporativistas. A polarização paralisante reflete a dificuldade que democratas liberais, de centro e de esquerda têm de apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder. Cada um, até agora, permanece mergulhado em seus meandros e fantasias.

A polarização entre lulismo e bolsonarismo está dada, mas não interessa à democracia. Só beneficia o atraso político. Não deveria ser alimentada.


Foto: Beto Barata\PR

Marco Aurélio Nogueira: A República imperfeita

Um novo Manifesto Republicano é uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República

Nascida em meio às crises que abalaram os equilíbrios políticos, militares, religiosos, sociais e ideológicos do Segundo Império, a República sacudiu o torpor que tomava conta da sociedade brasileira em decorrência da morosidade e do caráter seletivo da Monarquia, travada que estava pelos compromissos com o mundo rural e o conservadorismo.

O Manifesto Republicano divulgado em 3 de dezembro de 1870 abriu a fenda inicial, com um conjunto de promessas e compromissos voltados para a crítica da Monarquia e o início de uma nova fase ético-política no Brasil, na qual prevalecessem os valores da liberdade, da democracia e da descentralização. Seu foco era a denúncia dos estragos causados ao País pela “irresponsabilidade” do Imperador, que atrofiava as províncias, impedia a democracia e produzia grave “prostração moral” da Nação.

O Manifesto passava ao largo da questão social: da escravidão. Concentrava-se na questão do regime político, deixando assim de se preocupar com seus fundamentos materiais. Seu texto era vibrante, mas tinha um único alvo: “a influência perniciosa do poder pessoal”, o “absolutismo prático sob as vestes do liberalismo aparente”.

Escreveram os signatários: “A centralização, tal qual existe, representa o despotismo, dá força ao poder pessoal que avassala, estraga e corrompe os caracteres, perverte e anarquiza os espíritos, comprime a liberdade, constrange o cidadão, subordina o direito de todos ao arbítrio de um só poder, nulifica de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso local, suga a riqueza peculiar das províncias, constituindo-as satélites obrigados do grande astro da Corte — centro absorvente e compressor que tudo corrompe e tudo concentra em si — na ordem moral e política, como na ordem econômica e administrativa.”

Na verdade, o Manifesto subordinava a luta pela abolição ao tema da liberdade em geral, abstrata. Não era uma impropriedade, mas a insistência no regime dificultou a difusão popular da ideia republicana.

Foi preciso que a efervescência chegasse às senzalas e mobilizasse os elementos urbanos abolicionistas durante a década de 1880 para que a Monarquia perdesse capacidade de se reproduzir. O golpe de 15 de novembro de 1889 estabeleceu em cima o que estava sendo imposto por baixo. O regime político mudou, depois de que também se alterou, pouco mais de um ano antes, o regime de trabalho.

A mudança se fez com suavidade, com algum barulho mas quase nenhuma violência. Viu-a bem o Conselheiro Aires do grande Machado de Assis: “Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

O republicanismo, ontem e hoje
A instalação da República representou um avanço, mas o que se seguiu ao 15 de Novembro não garantiu a abertura de um caminho consistente de democratização, liberdade, descentralização e organização eficiente do Estado. Nem sequer a ampliação dos direitos políticos foi instituída de modo pleno. O voto popular permaneceu represado, as eleições continuaram a ser manipuladas e o País não se livrou das múltiplas manifestações de autoritarismo e exclusão. A desigualdade social não foi atacada com veemência e a própria igualdade cívica – os direitos iguais para todos – não saiu categoricamente do lugar.

No caso da educação pública, em particular, a imperfeição foi completa: instituiu-se um sistema educacional, mas ele não chegou ao conjunto da sociedade e nem ganhou estabilidade. Adquiriu legitimidade nas décadas de 1940 e 1950, mas aos poucos foi sendo corroído e confrontado pelo avanço do sistema particular de ensino. Chegamos ao século XXI em situação lamentável: ao lado da desigualdade social profunda, o fracasso da educação pública representa o mais retumbante descumprimento das promessas republicanas.

O Manifesto Republicano foi um marco, mas paradoxalmente perdeu-se nos meandros do regime republicano que então se constituiu. O que deveria ter sido sua realização maior permaneceu um dever ser. O programa e os princípios que o inspiraram eram nobres, mas não dialogavam de fato com os fundamentos e os personagens da sociedade imperial. Pairavam sobre ela. Mesmo a marcha da modernização, a industrialização e a urbanização, não sacudiu por inteiro os andrajos da sociedade tradicional enraizada no Segundo Império.

Mas houve progresso, a materialidade social mudou, criou-se uma nova sociedade e um novo Estado foi-se afirmando com base num pacto social que evitou a guerra civil e o choque violento das classes. Compromissos e conciliações deram o tom do processo, suavizando as transições e o arbítrio do sistema, dos governos e regimes que se sucederam no tempo. O Brasil não se tornou um caso perdido, muito menos um zumbi entre as democracias contemporâneas.

Um novo Manifesto Republicano seria uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República. Em termos de valores a serem fixados, a liberdade precisa ser mais uma vez reiterada, “abrir as asas sobre nós”, em todos os planos. A igualdade deve ocupar lugar de destaque, em termos substantivos. A democracia requer defesa e valorização. Uma pedagogia democrática consistente precisa ser posta em circulação, para promover civicamente a população e prepará-la para a complexidade inerente à era em que estamos.

Numa época como a nossa, de “excessos”, redes e informações, será imprescindível enfatizar a educação pública, a liberdade de pensamento, a autonomia dos cidadãos, a liberdade de imprensa, o combate à corrupção. Deve-se, também, modular com clareza a questão da propriedade privada e fazer com que a liberdade do mercado se componha com distribuição de renda. Temos de voltar a discutir a questão da regulação pública da economia. O mercado hoje é tudo e não há como seguir em frente em termos republicanos e democráticos sem que a dinâmica mercantil abrace a justiça e a inclusão social.

 


Marco Aurélio Nogueira: Partidos, movimentos, democracia - riscos e desafios do século XXI

Nascidos como esteios das grandes democracias representativas de massa surgidas gradualmente na Europa a partir das últimas décadas do século XIX e com maior ímpeto após a Segunda Guerra Mundial, os partidos políticos ingressaram no século XXI em franco processo de crise. Ainda permanecem como personagens centrais do jogo político e parlamentar, mas perderam protagonismo como agentes de mobilização, educação política e formatação da cidadania. Por caminhos múltiplos, puseram em xeque suas próprias autoimagens culturais e o modo mesmo como são vistos e assimilados pela opinião pública. Deixaram, em suma, de atuar como fatores de hegemonia — de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas –, processo que se transferiu sempre mais para o mercado (o marketing, a publicidade), a indústria cultural e os diferentes ambientes virtuais.

O mundo político foi assim literalmente invadido por políticos personalistas, regra geral demagógicos e populistas, bem como pela efervescência caótica das redes sociais e do ativismo associativo. A derrocada dos partidos, especialmente em sua formatação tradicional, com máquinas administrativas pesadas e ritos verticalizados, passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições como método para a escolha dos governantes.
Nos países ocidentais, a abstenção eleitoral chega a ultrapassar um quarto do eleitorado, ao mesmo tempo em que crescem os protestos de todo tipo e as críticas aos sistemas políticos, aos partidos e a seus líderes. As vozes dos cidadãos, porém, não chegam aos vértices do Estado, o que despoja a democracia de parte ponderável de sua capacidade de limitar o poder.

Eleitores se afastam das urnas, partidos perdem inscritos e militantes, decai a confiança nas instituições. A movimentação associativa parece ignorar a política institucionalizada e esta, por sua vez, tende a se oligarquizar, a aprofundar seus nexos com o sistema econômico-financeiro e a virar as costas para os cidadãos, que passam a se sentir “sem representação”. A sensação é de que há muita “política” e pouquíssima política ao mesmo tempo. Estaríamos frente ao esgotamento da “democracia representativa fundada sobre uma relação de osmose entre os cidadãos e seus representantes”? Tal crise somente poderia ser superada se a estrada dos cidadãos voltasse a se encontrar com os caminhos da política.

O populismo ressurge
Movimentos populistas apareceram recentemente em quase todas as democracias, impulsionando o que costuma ser visto como uma inflexão mundial da extrema direita, renacionalizante e conservadora. Mas é um fato que “políticos de todas as colorações apelam para os interesses do povo, e todo partido de oposição faz campanhas contra o establishment”, o que complica a distinção entre o populismo e a política democrática corriqueira. Para Nadia Urbinati, “o populismo deve ser considerado uma nova forma de governo representativo”, baseado em uma relação direta entre o líder e as pessoas que ele define como “boas” ou “corretas” e com as quais ele se relaciona sem a necessidade de intermediários — em particular, sem partidos políticos e meios de comunicação independentes. Ainda que tais governos populistas se distingam de regimes ditatoriais ou fascistas, sua dependência da vontade do líder, sua baixa tolerância, sua repulsa às oposições e às rotinas constitucionais da democracia fazem com que estejam sempre a um passo do autoritarismo.

Democracias iliberais
Marca registrada dessa situação é o surgimento, em diversas sociedades, de formas variadas do que tem sido chamado de “democracia iliberal”: sistemas em que se dá a eleição regular dos dirigentes políticos mas onde pouco respeito há pelos direitos humanos, pelo pluralismo e pela tolerância, com a formação de um circuito que tende a garantir a reposição dos detentores do poder. Os casos de Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdoğan (Turquia) e Vladimir Putin (Rússia) são considerados emblemáticos. Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil) seguem a tendência, na qual os instrumentos legais da democracia são empregados de modo autoritário e mediante uma coreografia demagógica que, prolongada no tempo e articulada mundialmente, sugere a cristalização do risco daquilo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamaram de “morte das democracias”.

O voto serviria para legitimar governos que corroem a democracia. “O retrocesso democrático hoje começa nas urnas”, escrevem Levitsky e Ziblatt. Ampliam-se os espaços para a emergência de outsiders que, aproveitando-se com maior ou menor inteligência dos espaços democráticos existentes e contando com a conivência de forças sistêmicas, do Legislativo ao Judiciário, promovem práticas que rebaixam a democracia e, como decorrência, minam a capacidade de oposição dos partidos políticos e movimentos. Não somente descaracterizam as regras democráticas e roubam legitimidade das oposições, como agem para limitar as liberdades civis e fazem vistas grossas ao emprego da violência, quando não a estimulam abertamente.

Há ritos, rotinas e instituições democráticas, mas não há um processo organizado de produção de democracia e de disseminação da consciência de cidadania. Clãs familiares, organizações fanatizadas, patriotismo artificial agressivo, violência verbal e ameaças à imprensa e ao jornalismo, tuítes bizarros e falas destemperadas liberam toxinas antidemocráticas que vão dissolvendo o que existe de sentimento de pertencimento a um povo comum, a um demo, um “nós” democrático.

Para complicar, os governos assim constituídos apresentam-se como se carregassem nas mãos todas as promessas de renovação política e regeneração moral. Fomentam confusão e mal-estar, contribuindo para desorganizar e paralisar os partidos que a eles poderiam se opor. A “desunião democrática” serve, assim, de alimento para a chegada ao poder dos novos autoritários e para sua reprodução.

No caso brasileiro, pôs-se em circulação uma retórica reacionária de fundo evangélico e concentrada nos costumes. Valores conservadores que defendem a família, a pátria, a autoridade paterna, a masculinidade e a religião são proclamados ao mesmo tempo em que se faz o elogio do ultraliberalismo na economia, formando um compósito paradoxal.

Em sociedades divididas e fragmentadas, carentes de pontes e mediações políticas, como são muitas das atuais, o reacionarismo consegue se reproduzir. As “democracias iliberais” alimentam-se da insegurança e das incertezas que cercam os cidadãos que, reunidos em grupos pequenos e autorreferidos, tornam-se presas fáceis de líderes que se apresentam como “fortes” e dispostos a tudo para ajudar os mais “fracos”.

Passa-se a falar em “pós-democracia”: “ainda que as eleições continuem a transcorrer e a condicionar os governos, o debate eleitoral é um espetáculo firmemente controlado, conduzido por grupos rivais de profissionais especializados nas técnicas de persuasão e concentrado em um número restrito de questões selecionadas por esses grupos. A massa dos cidadãos desempenha um papel passivo, aquiescente, até mesmo apático, limitando-se a reagir aos sinais que recebe. À parte o espetáculo da luta eleitoral, a política é decidida em privado pela interação entre os governos eleitos e as elites que representam quase exclusivamente interesses econômicos”.

Especialmente na esfera superior do sistema político, o clima é de mudança de paradigma e perda de qualidade da democracia: entre as muitas dimensões caóticas das modificações políticas contemporâneas, “o primeiro aspecto que se deve destacar é o processo de regressão oligárquica da democracia”, ou seja, o “deslocamento para cima dos mais relevantes centros de tomada de decisões, com o que as decisões políticas escapam das sedes mais amplas e se refugiam em lugares menos acessíveis, reservados a restritos grupos oligárquicos”, traduzindo-se assim em “um verdadeiro processo de des-democratização”.

Nesse ambiente, os governos e a classe política se soltam de suas comunidades e as deixam sem muitas saídas, ao mesmo tempo que pioram seu desempenho. Nos vazios que se abrem, projetam-se uma cidadania ativa, mas excessivamente posicionada contra o sistema político, mídias tradicionais e novas mídias, muitas tribos e nichos identitários, um mercado que funciona com moto próprio e indivíduos “empoderados”. Economia, política e sistema de comunicação estão conectados, mas há pouca articulação democrática: falta solidariedade (coesão e unidade) entre as classes e dentro de cada classe. Tudo isso encapsula e comprime a democracia política.

O social fica mais complexo
A guinada iliberal da democracia, embora se dê em um terreno imediatamente político e ideológico, tem determinações sociais profundas. Nas sociedades hipermodernas dos dias atuais, as experiências cotidianas sofrem o efeito cruzado da financeirização e da mundialização. A revolução tecnológica faz com que a vida se acelere, se diferencie, se fragmente e se individualize. A “estabilidade” é problematizada em termos individuais, nos relacionamentos, na vida profissional e nas organizações, sejam elas empresas, escolas, movimentos ou partidos políticos, que precisam empenhar sempre mais recursos (financeiros, humanos, técnicos, emocionais) para funcionarem de modo razoável. As sociedades passam a ser eminentemente comunicativas, com a informação adquirindo valor crescente como recurso essencial de atuação, especialmente precioso quando se tem em vista a intensificação de um firme “desejo social de participação”.

Reitera-se, desse modo, o processo registrado por Norbert Elias: o “equilíbrio entre a identidade-eu e a identidade-nós” é abalado, radicalizando uma dinâmica que vinha, a rigor, desde o final da Idade Média. “Mais e mais frequentes se tornaram os casos de pessoas cuja identidade-nós se enfraqueceu a ponto de elas se afigurarem a si mesmas como eus desprovidos do nós”, com a consequência de que a “identidade-nós das pessoas, embora decerto permanecendo presente, passou a ser obscurecida, em sua consciência, pela identidade-eu”. Trata-se de um processo que explica a gradual perda de coesão social provocada pela complexificação globalizada da vida e que, ao mesmo tempo, ajuda na compreensão da reação renacionalizante que se manifesta com regularidade ao longo da história, com particular destaque nos dias atuais, que poderiam ser percebidos como atravessados por uma espécie de “vingança” da “identidade-nós”.

Nessas sociedades, a mundialização da economia exerce um efeito desagregador sobre os diversos aspectos da vida organizada. Há mais do que transformação e mudança acelerada, a ponto de Ulrich Beck falar em “metamorfose”, uma transformação da natureza humana: estão todos — sociedades, grupos, classes, indivíduos, organizações — projetados no mundo, que se cosmopoliza e passa a exercer forte “atração gravitacional” sobre os Estados nacionais e suas instituições. Ocorreria então uma “metamorfose abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas e acontece de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”.

Em uma “sociedade de risco mundial”, na qual se empilham “incertezas fabricadas”, descontroles e descuidos, a maior parte dos problemas não encontra resposta institucional, criando a sensação de caos e insegurança. As instituições fracassam porque, concebidas que foram no interior de uma lógica nacional, não estão equipadas para a realidade cosmopolita. Ingressa-se em uma “zona crepuscular entre o falecimento da era nacional e a emergência de uma era cosmopolita”, zona essa em que o indivíduo se torna o ponto de referência, mas “afunda em uma inimaginável quantidade de dados”. A comunicação digital intensificada “força os indivíduos a confiar em si mesmos porque solapa a matriz de identidades coletivas dadas e a usar os recursos que os espaços cosmopolitas de ação possuem”. A experiência cotidiana fica cortada por uma espécie de “reflexividade organizada”, na qual tudo se torna reflexo e reflexão.

A vida fica saturada de tecnologia de comunicação e informação. Ganhos conseguidos com o progresso mostram-se sempre mais carregados de perigo. A paisagem mundial fica tingida por crises econômicas sucessivas e tragédias ambientais, tsunamis inesperados, incêndios arrasadores, em um quadro de irresponsabilidade de governos e instituições. A atual questão climática e do aquecimento global insere-se precisamente nesse contexto: tratada ora de forma apocalíptica, ora com desdém, ela expressa, ao mesmo tempo, a incompetência dos governos — muitos dos quais, por não saberem como enfrentar o problema, alegam que ele não existe –, e a ausência de um consenso internacional sobre como gerenciar a gravidade da situação ambiental.

A expansão e a consolidação da globalização se fazem acompanhar de uma generalizada multiplicação dos sujeitos sociais, mas não trazem consigo um particular reforço da institucionalidade, o que faz com que a vida social fique mais solta em relação ao Estado e ao aparato institucional. A crise de poder do Estado-nação implica uma crise de confiança dos cidadãos em relação a seus governos e sistemas políticos, corroendo parte das condições de legitimidade.

Constrangidos pelo capital financeiro, pelas agências internacionais, por redes e fluxos globais, os Estados obrigam-se a despender esforços ininterruptos para manter viva sua operacionalidade “para fora” e sua capacidade de resposta “para dentro”, ficando com mais dificuldade para atender às demandas de seus cidadãos. Como observou Yuval Harari, “estamos encalhados em políticas nacionais” ao passo que tudo o mais se globaliza: a dissonância produz um descolamento entre Estado e sociedade, gerando um vácuo difícil de ser preenchido.

É o que permite a Alain Touraine falar em “situação pós-social”: sistemas e atores não mais se integram, jazem separados do mesmo modo que a economia e a sociedade, e somente conseguem ser politicamente unificados em patamares universais (os direitos humanos, o ambientalismo, a regulação da economia globalizada, por exemplo). Os partidos políticos progressistas, formados e treinados em outra estrutura social, sofrem para se adaptar ao mundo “pós-social”. O ambiente geral é de rupturas, dissociação e ruídos.

Dinâmicas sociais desse tipo produzem múltiplos efeitos sobre as ações coletivas. As lutas passam a ser mais segmentadas e individualizadas, orientadas por identidades e direitos. Com a ampliação do “desejo de participação”, as agendas se fragmentam e se torna mais difícil unificá-las, especialmente porque cresce a intolerância com organizações “pesadas”, lentas, burocráticas e centralizadas, como são os partidos políticos. As lutas tendem a ser performáticas e “expressivas”, espetacularizadas, concentradas na busca por identidade, autonomia e reconhecimento.

Os embates sociais tornam-se claramente “disputas de significados”, de “narrativas” e de modelos culturais. Para os movimentos que surgem a partir dessa dinâmica, o que importa não é mais o poder do Estado ou do sistema político e de seus agentes, mas o poder do cidadão e de suas organizações, a dignidade do indivíduo e dos pequenos atores sociais. O “empoderamento” torna-se a meta. Não se trata de mudar a ordem capitalista ou reformá-la, como na esquerda tradicional, mas sim de garantir espaços sempre maiores de autonomia individual, solidariedade cívica, cooperação, tanto quanto possível gerando atritos que modulem a força e as restrições do sistema institucional e do sistema econômico.

Movimentos e partidos
Se, por um lado, demagogos e populistas são vistos como fatores negativos, que rebaixam a qualidade da democracia e fazem com que prevaleça uma atuação política desprovida de grandeza cívica, as redes e o ativismo associativo costumam ser tratados como fatores que expressariam os novos termos da vida social e carregariam consigo algumas promessas de revitalização democrática.

Ainda que nem sempre o ativismo cidadão seja uma ferramenta efetiva de democratização, é um fato que sua expansão ao longo das últimas décadas reflete uma busca por participação que não estaria a ser fornecida pela vida política institucionalizada e pelos partidos políticos, que atuariam sempre mais fechados em si mesmos. A contestação feita pelos novos movimentos em rede, nacionais e transnacionais, seria assim tanto uma “virtude cívica”, que fomenta a participação dos cidadãos, como um desafio para a democracia, graças aos efeitos disruptivos que tendem a ter sobre governos e sistemas políticos.

Como, porém, os partidos controlam os canais institucionais da política e são particularmente decisivos nos processos eleitorais, criou-se a percepção na opinião pública de que eles seriam os verdadeiros donos da representação, personagens do fenômeno da “partidocracia” e daquilo que, no Brasil, designou-se como “velha política”. Em uma época na qual a política não é devidamente valorizada no âmbito estatal e na opinião pública, os partidos são rejeitados por serem vistos como excessivamente poderosos no controle do processo decisório, o que afastaria os cidadãos das decisões políticas e bloquearia a participação cívica, com o efeito colateral de entregar a política aos interesses unilaterais dos políticos e à corrupção.

O incômodo causado pelos partidos, porém, nem sempre foi uma regra, ainda que tenha se manifestado de forma recorrente em diversas sociedades. Os partidos políticos de massa, em particular, conheceram períodos de prestígio, identificação e interação ético-política com os cidadãos, durante os quais atuaram de maneira efetiva tanto na governança das sociedades como na formatação de políticas públicas e na ampliação de direitos e garantias. Os “trinta anos dourados” do Estado de bem-estar, na Europa, por exemplo, foram vividos com um claro protagonismo partidário, sobretudo da social-democracia, do trabalhismo, da democracia cristã e do comunismo democrático. Muitos processos de transição democrática, como no Brasil de 1982 até a primeira década do século XX, foram vividos com a presença de partidos políticos com capacidade de liderança e articulação, casos do MDB, do PT e do PSDB, que obtiveram expressivo reconhecimento social.

Como observou Norberto Bobbio, dentre outros, “a polêmica antipartidos é tão antiga quanto os próprios partidos”. Como são associações de pessoas que “fazem acordo para estimular certas decisões políticas mais do que outras e determinar a política nacional”, é inevitável que os partidos sejam vistos como grupos privados de poder, mesmo que revestidos de funções públicas. Além do mais, a tipologia dos partidos é elástica e acomoda desde associações personalistas, instrumentalizadas pelos chefes, nas quais nada se discute ou se formula, até organizações especializadas no controle de recursos de poder e que operam como verdadeiros clusters dentro do Estado, com as devidas variações (partidos-Estado, partidos ideológicos, partidos-rede, partidos de massa). Tal fato faz com que se amplie com facilidade a imagem negativa dos partidos, ao mesmo tempo que dificulta sobremaneira o estabelecimento de fronteiras ou distinções entre o que é um partido e o que é um movimento cívico ou um movimento de ideias.

Acrescente-se a isso que os partidos foram fortemente afetados pelas “consequências da modernidade” tardia, que aprofundaram a reflexividade social, ou seja, geraram um universo de ação estruturado mediante práticas sociais que são constantemente “examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre as próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. O “conhecimento reflexivamente aplicado” e a revisão daquilo que está dado são radicalizados e reverberam em todos os aspectos da vida, fazendo com que cada pessoa seja impelida a refletir sobre suas próprias condições existenciais, ao mesmo tempo em que a dinâmica estrutural repercute sobre si mesma, gerando um permanente movimento de transformação.

Ao se combinar com a reorganização global da produção econômica capitalista, a modernização reflexiva sacrificou o mundo do trabalho, fragmentou as sociedades e pôs em curso uma revolução tecnológica-digital que imprimiu inédita velocidade à comunicação, reconfigurando os relacionamentos sociais, a cultura, as formas de organização. Movimentos de todo tipo surgiram na sociedade civil, impulsionados por lutas identitárias ou pela contestação ao sistema, desafiando as organizações partidárias. Tais circunstâncias modificaram o peso relativo dos partidos vis-à-vis as sociedades civis, os Estados e os mercados.

Os partidos passam a aprofundar sua crise, seja porque têm dificuldades para ajustar seus procedimentos aos novos ritmos da vida, seja porque suas bases de referência (classes sociais, grupos, regiões) se fragmentaram e adquiriram outras formas de agregação, seja enfim porque a própria democracia passou a sofrer abalos em sua tradução institucional. No afã de compensar a crise, os partidos ingressam em metamorfose permanente, perdendo as características que lhes davam sustentação e coerência.

Está nesse ponto o dilema que tem levado seja ao desaparecimento de grandes partidos da tradição comunista, como o italiano, seja aos problemas da social-democracia e do trabalhismo nos países em que conheceram sua maior fortuna (França, Alemanha, Inglaterra). A rigor, as organizações partidárias vivem hoje a processar conflitos internos e a estabelecer relacionamentos com movimentos que as acossam e com elas competem. O quadro é de busca de reposicionamento, de recuperação de um protagonismo que se perdeu no tempo.

Configura-se assim um quadro no qual a proliferação de movimentos empurra a política para uma dinâmica sempre mais centrífuga, sem que os partidos consigam compensar isso com a afirmação de uma dinâmica oposta, de tipo centrípeta. Em decorrência, prolongam-se processos que ampliam a fragmentação, não beneficiam a democracia e minam a “consciência da coletividade”.

A crise dos partidos de massa (especialmente dos perfilados mais à esquerda) coincide, por um lado, com o esgotamento das duas tradições que moldaram o mundo moderno, o liberalismo e o socialismo, e, por outro, com a disseminação social da democracia e dos direitos humanos. O desdobramento disso é que a luta política fica desprovida de agentes capazes de levar a democracia para o plano institucional, que é onde se pode de fato garantir direitos e ampliar a cidadania. Crescem assim os dilemas do campo progressista, ou seja, das correntes políticas e intelectuais sustentadas pela interpenetração vigorosa da liberdade com a igualdade social. Como viver numa “era de perplexidade”, pergunta-se Yuval Harari, na qual o gênero humano enfrenta revoluções sem precedentes, ao mesmo tempo em que “todas as narrativas antigas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para substituí-las”?

Se a velha ordem industrial e pós-industrial se mostra esgotada, também é verdade que ainda não se estabeleceu um novo padrão de vida coletiva, que se ressente da ausência de agentes unificadores e de um projeto de sociedade que reunifique o que está separado e prefigure o futuro, fornecendo uma imagem de como a vida comum pode ser na época de complexidade social e de preponderância da tecnologia e da inteligência artificial.

A proliferação de movimentos cívicos está diretamente determinada por esse quadro de metamorfose do mundo. Ela expressa a modificação dos humores sociais, o aumento da fragmentação e da complexidade societal, em um contexto no qual a política deixa de fornecer respostas satisfatórias, convincentes. Desejosos de participação e refreados pelas idiossincrasias dos sistemas políticos, muitos cidadãos buscam novos espaços de agregação e atuação. Os movimentos tornam-se, assim, uma espécie de desaguadouro do ativismo que floresce na hipermodernidade, expressando uma vontade coletiva de limitar as oligarquias partidárias, reformar a política e inventar novas formas de atuar politicamente. No horizonte de todos esses movimentos, anuncia-se a perspectiva de não repetir a organização tradicional dos partidos políticos.

Invariavelmente, os novos movimentos trouxeram, na agenda, a contestação da política institucional e das práticas nela ancoradas, algo que se expandiu na mesma medida em que avançaram a crise do Estado de bem-estar e a ultrapassagem da sociedade industrial. Como demonstram os fatos das duas primeiras décadas do século XXI, um clima de mal-estar, indignação e revolta se colou à vida cotidiana. “Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. Mas sim a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural”. Redes multitemáticas se formam tendo na base um interesse comum: “controlar a capacidade de definir as regras e normas da sociedade mediante um sistema político que responde basicamente a seus interesses e valores”.

Dadas as circunstâncias de crise da política, os movimentos sociais podem de fato ajudar a tirar o poder e o sistema político da zona de conforto em que vivem. Podem pressioná-los de fora para dentro, forçá-los a se atualizar e a se democratizar. Podem introduzir, no sistema, novas regras, novos critérios de inclusão, novos direitos e novos processos de tomada de decisões. Podem fazer com que a “política-vida” se cole na “política-poder”. Fica, porém, em aberto, o problema de saber em que medida os movimentos podem atingir esses fins sem uma articulação com o sistema político, ou seja, com partidos, instituições sistêmicas e governos.

Os movimentos sociais da hipermodernidade não podem ser tratados como expressão típica da esquerda ou do progressismo democrático. Refletem muito mais a complexidade social, as falhas do sistema político e as próprias características adquiridas pela democracia representativa no correr das modificações estruturais. No Brasil atual, por exemplo, os movimentos sociais surgidos nos últimos anos têm um perfil mais propriamente “conservador”, privilegiando o questionamento de instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, a pressão em favor do combate à corrupção — visto como um pleito de caráter mais moral que político –, a reivindicação de melhores políticas públicas.

Se considerarmos particularmente o Brasil, não será difícil constatar a presença de traços que definem essa paisagem de metamorfose e transfiguração. A própria redemocratização, iniciada nos distantes anos 1980, parece sem força para se desdobrar. Faltam-lhe, entre outras coisas, atores e projeto. Os partidos brasileiros não conseguem dar conta de uma realidade que escapa à sua compreensão e que os empurra para a condição de meros reprodutores do sistema. Dividem-se e subdividem-se ao sabor da dinâmica política, o que os enfraquece e amplia a fragmentação do sistema partidário. Deixam escapar pelas mãos algumas oportunidades importantes para melhorar seu funcionamento, amenizar os estragos sobre a democracia e encontrar pontos de cooperação e unidade que transfiram substância a seus programas de ação e às grandes linhas doutrinárias que os referenciam: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo.

Movimentos e crise da política no Brasil
A situação partidária no Brasil é marcada por um paradoxo: ainda que pouco eficientes no diálogo com a sociedade e a opinião pública, os principais partidos funcionam e conseguem transferir alguma estabilidade ao sistema político. Vivem em um ambiente de disputas incessantes por espaços e recursos de poder, algo amplificado pela forte fragmentação do Congresso e pelo funcionamento de “bancadas suprapartidárias” que em boa medida retiram força e coesão dos próprios partidos. São também acossados, ao menos desde 2013, pelos movimentos que se dedicam à seleção e formação de lideranças cívicas, que terminam por opor aos partidos uma dinâmica externa a eles, fonte de não poucos problemas.

Apesar disso, as principais agremiações — PT, PSDB, PMDB, PL, DEM, PSD, PSB, PDT (não necessariamente nesta ordem) — conseguem manter uma surpreendente unidade de atuação parlamentar, graças aos influxos da política subnacional (o peso dos governadores e das bancadas estaduais) e a uma relação de barganha com o Poder Executivo. Suas estratégias “corporativistas” de defesa dos próprios interesses fazem com que o sistema partidário se reproduza, mas sempre em tensão com a opinião pública.

Um sistema partidário estável não é sinônimo de eficiência na gestão pública, na governança, no controle do Poder Executivo ou na revitalização da democracia. Pode mesmo ser o contrário disso. Os partidos brasileiros funcionam, mas carecem de capacidade de apresentar projetos de sociedade. Entregam-se sem pudor ao jogo eleitoral e à manipulação dos recursos de poder de que podem dispor. Não selecionam adequadamente seus representantes, preocupam-se pouco com sua formação e seu preparo técnico-político e cultural.

Um sistema desse tipo funciona com brechas evidentes, por onde entram as críticas da opinião pública, as táticas de captura dos partidos pelos grandes interesses organizados e a busca incessante, pela sociedade civil, de caminhos alternativos de pressão e representação.

No Brasil, o alarme soou em 2013, quando massas de manifestantes desceram às praças sem organização e sem lideranças, posicionando-se como fatores de pressão sobre o sistema político e de recusa à intermediação partidária. Ficou evidente a distância entre o sistema político e a polissêmica voz das ruas.

Os protestos surpreenderam, mas as razões de sua efervescência estavam inscritas na realidade do capitalismo globalizado, na história nacional e na conjuntura política em sentido mais estrito. Falou alto a reestruturação da vida brasileira, que se fazia sem ultrapassar a desigualdade e a má oferta de serviços públicos, as injustiças, a má qualidade da política democrática, a corrupção e os desmandos governamentais.

Dos protestos de 2013 vieram movimentos que se mantiveram ativos nas ruas e desaguaram no impeachment de Dilma Rousseff e, depois, na eleição de Jair Bolsonaro. Se, antes, a contestação social era feita por iniciativas de esquerda, gradualmente houve um deslocamento: da exigência de mais igualdade, distribuição e reforma social, passou-se a uma pauta de questionamento dos políticos, da corrupção, dos poderes instituídos, algo que terminou por ser assimilado pela direita e pelo campo mais conservador. O verde-e-amarelo tomou conta das ruas, a expressar um “patriotismo” extemporâneo e uma repulsa ao “petismo” que dominara a política nacional até a queda da ex-presidente.

Em 2013, o protesto contra as deficiências na prestação de serviços públicos trincou a imagem de “paz social” que havia no ar. A revolta não organizou uma agenda clara, mas fez com que ressoasse por longos dias um grito de indignação e angústia coletiva. Ignorou parlamentares, sindicatos e partidos políticos. Ainda que de modo espontâneo e improvisado, deixou evidente que se dirigia contra o governo representativo tal qual estruturado no Brasil: contra todos os governos, o sistema político, seus atores, seus procedimentos e sua cultura. O protesto escancarou uma crise da política que vinha de longe, que trocara sua manifestação explícita por uma latência recorrente que aos poucos foi corroendo a representação política e pondo em xeque a legitimidade dos governos. O que se questionou, portanto, foi o arranjo político protagonizado por pessoas, grupos e classes, interesses econômicos e organizações que, por vias ora dissimuladas, ora explícitas, têm-se associado para governar o país.

A crise germinou e se aprofundou com o correr do tempo. Foi impulsionada pelos governos, que continuaram a exibir falhas graves e mau desempenho, tanto em termos de gestão e de políticas públicas, como em termos de comunicação e diálogo com a população. A corrupção cresceu ininterruptamente. Os partidos políticos seguiram em frente como associações parasitárias, sem vida e sem ideias. Não contribuíram para transferir maior politicidade à sociedade civil, que cresceu em dimensão e ativismo sem conseguir contornar a fragmentação. O sistema foi permitindo que se agigantasse o contraste entre a miséria de boa parte da população e os gastos desnecessários, o desperdício e o uso suntuoso de recursos públicos pela elite política e administrativa (Executivo, Legislativo e Judiciário). Foi se distanciando da sociedade e a incentivando a se tornar “contra a política”.

Para complicar, a perversão sistêmica ganhou uma sobredeterminação. Tornou-se mais grave durante o período em que o vértice do Estado passou a ser integrado por quadros e políticos do Partido dos Trabalhadores, que sempre se apresentou e cresceu como expressão do progressismo e da justiça social. Sob seus governos, porém, reproduziram-se as bases do clientelismo, do patrimonialismo e da corrupção, o que gerou ainda mais frustração e indignação, que aumentaram na medida em que foi ficando claro que persistiam os privilégios das grandes empresas, a impunidade dos mais ricos, os gastos exorbitantes e sem critérios claros, o enriquecimento dos dirigentes políticos.

Em junho de 2013, a hipermodernidade proclamou sua presença na política. Dali em diante, as ruas brasileiras ficaram mais ativas, mas o estupor se fixou no campo democrático. Uma incessante disputa por visibilidade e “narrativas” tomou conta da vida política e foi corroendo, pouco a pouco, todos os protagonistas do sistema político e da política tradicional, abrindo espaços generosos para outsiders e novas agendas, de tipo conservador. A derrota dos partidos de centro, centro-esquerda e esquerda nas eleições de 2018 revelou uma democracia carente de eixo, exposta ao autoritarismo regressista e demagógico de Jair Bolsonaro, que se alimentou da desilusão social, do antipetismo e da denúncia da “velha política” para vencer de modo insofismável nas urnas.

A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018, explica-se em boa medida por esse quadro. Naquele ano, com o sistema político abrindo falência, a economia em recessão e a sociedade mostrando apetite anti-establishment, as correntes democráticas (liberais, social-democratas, de esquerda) privilegiaram as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita. Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Prepararam o terreno para a eleição de um candidato improvável e despreparado, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.

Bolsonaro mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo de valores religiosos e moralistas e sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

A extrema-direita vitoriosa chegou ao poder disposta a promover a eliminação da esquerda e de suas filosofias, transformando a democracia progressista em inimigo, desprezando postulações identitárias, criminalizando gays e feministas em nome de uma moralidade regressista. Estigmatizou a política, os políticos e seus partidos, menosprezou o ritmo democrático e o sistema de freios e contrapesos da República, sempre apelando à sociedade para atacar o “sistema”. Passou a atuar em nome do combate a aspectos deplorados pela opinião pública — a “velha política”, os políticos, a corrupção — , articulando tais pontos com uma bizarra postura contrária ao “globalismo”, à democracia representativa, ao ambientalismo, ao socialismo.

A hostilidade como procedimento tornou-se metódica, um recurso de mobilização. O governo permanece em campanha sem alcançar muita coordenação e sem entregar resultados concretos. O risco de isolamento social despontou, fazendo com que o governo aumentasse seu estilo belicoso.

A guerra ideológica da extrema direita contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil desorganiza a democracia, aumenta os custos da transação política, enfraquece instituições e órgãos públicos. Em vez de promover a superação da polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ela a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita. Por um lado, impede que se atinja uma sociedade mais coesa e um Estado administrativo mais eficiente. Por outro, faz com que se reforce a crise de confiança nas instituições e na própria democracia, fomentando a concentração das expectativas sociais na autoridade presidencial.

Conclusão: o futuro em aberto
O principal problema do progressismo brasileiro não é a existência de um governo de extrema direita presidido por um demagogo fundamentalista e retrógrado. O problema é que ele governa em um quadro de desarticulação, de desconexão dos partidos democráticos entre si e com a sociedade civil. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo agressivo do presidente precisam ser decodificados. Não são o dado mais importante: são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.

Por trás da violência verbal, há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe, também, se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. O ultraliberalismo econômico serve de instrumento para a afirmação do reacionarismo na política, na cultura, na moral.

O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade.

O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e a ascensão inesperada de seu partido, o PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como por exemplo nas votações da reforma previdenciária.

O sistema resiste e demonstra, em alguns momentos, ser capaz de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.

Falta articulação ao governo, que carece da capacidade de produzir consensos e arregimentar as próprias forças no Congresso, como tem sido evidenciado pela marcha da reforma previdenciária, tida como estratégica pelo governo e necessária pela maior parte dos parlamentares. A reforma avançou mais por empenho da Câmara dos Deputados do que por iniciativa governamental. Foi sendo reformulada no âmbito legislativo sem que as bases do governo atuassem de forma coordenada.

A falta de articulação política é um problema dos partidos, mas é antes de tudo expressão de uma grave falta de liderança. Sem líderes consistentes e com um presidente da República desinteressado do tema, despreparado para imprimir qualidade ao processo decisório, a política transcorre com dificuldade. Seria uma oportunidade para os democratas, não estivessem eles afetados pela mesma carência de lideranças e agregação.

A repercussão desse vazio atinge o conjunto das relações políticas: entre o Executivo e o Legislativo, entre os três poderes, entre a Câmara e o Senado, entre os entes da federação. Os dispositivos de “checks and balances” (pesos e contrapesos) tornam-se pouco eficientes e a dinâmica política, por sua vez, deixa de produzir efeitos virtuosos, travando o avanço de reformas econômicas, o controle das políticas públicas e a proteção de direitos.

Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não há propriamente oposição. A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. A polarização se mantém em parte como produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que vem dominando a política nacional, e em parte graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. Assim disposta, a polarização reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.

Crise de pensamento e ação dos democratas
Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Poderá evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Somando-se a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.

Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas e ideias, a perspectiva de uma coalizão democrática permanece no papel.

Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Em política, influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas, decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas, abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros. Deseducam para a cidadania.

Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, palavras servem para mobilizar, sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem. É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica sobretudo por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.

O progressismo brasileiro precisa abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Ir além da “resistência” e da contestação retórica. Deve converter-se em oposição e disputar a sociedade, sem medo de ousar, correndo riscos que valham a pena.

 


Marco Aurélio Nogueira: Longe da democracia e do Brasil real

O elogio do endurecimento político, da ditadura e do passado autoritário serve para que Eduardo Bolsonaro agrida a Constituição e ataque a esquerda, sem definir do que está falando

Dado o histórico dos expoentes do bolsonarismo, não chegam a surpreender as declarações do deputado Eduardo Bolsonaro divulgadas na manhã desta quinta-feira, dia 31. Mas elas são espantosas e estão causando profundo mal-estar e ruído na política nacional.

Até semanas atrás, o deputado era candidato a representar o Estado brasileiro em Washington. Posava de estadista, de alguém talhado para se movimentar no xadrez internacional, atividade que, para ele e para seu pai, não requer maior preparo ou experiência. De modo recorrente, ele exibe despreparo e falta de temperança, distanciando-se ostensivamente da figura de estadista, que ele traduz de forma invertida: em vez de falar pelo Estado, porta-se como alto-falante de um nicho ideológico fanatizado e cego para a complexidade do mundo.

Ao dizer que tem informações de que as manifestações no Chile estão vinculadas ao “Foro de São Paulo” e podem ter sido financiadas por dinheiro desviado do BNDES, o deputado se intromete indevidamente nos negócios chilenos, além de acender uma fogueira dentro do Brasil. Esbofeteia parte expressiva dos cidadãos brasileiros.

“Estarrecedoras”, “repugnantes” e “irresponsáveis” foram os adjetivos mais suaves empregados pelas inúmeras pessoas (militares, parlamentares, juristas, sociedade civil) que repudiaram as declarações do deputado. O pai presidente disse que o filho estava “sonhando” e lamentou que tenha falado o que falou. Pouquíssimos o defenderam. Muitos pediram sua cassação.

Eduardo nem sequer se preocupou com a Constituição e a verdade dos fatos. Dispara sua verborragia com enorme desfaçatez. Para ele, havendo manifestações de rua como as que estão a sacudir o Chile, o tratamento terá de ser policial, duro, violento. “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, vamos precisar dar uma resposta. E essa resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada via plebiscito, como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”, afirmou.

O deputado talvez não saiba, mas a “resposta italiana” a que se refere ocorreu durante o fascismo, em 1929, quando as eleições foram substituídas por plebiscitos, nos quais o povo dizia sim ou não a uma lista de candidatos escolhida pelo Grande Conselho Fascista.

Quanto ao AI-5, ele com certeza está bem informado, pois as medidas de exceção, o autoritarismo e o desrespeito às garantias constitucionais são objetos de desejo do bolsonarismo. Editado em dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 revogou direitos fundamentais e delegou ao presidente da República o poder de cassar mandatos de parlamentares, intervir nos municípios e Estados. O Ato suspendeu princípios importantes, como o habeas corpus, e restringiu dramaticamente as liberdades. A partir dele, a violência, a censura, o arbítrio e a repressão aumentaram.

A apologia do endurecimento político, o elogio à ditadura e ao passado autoritário, serviu para que o deputado atacasse, com veemência e desprezo, a esquerda: “A gente, em algum momento, tem que encarar de frente isso daí. Vai chegar um momento em que a situação será igual ao final dos anos 1960 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando executavam, sequestravam grandes autoridade como cônsules, embaixadores, execução de policiais, de militares”, disse. “É uma guerra assimétrica, não uma guerra onde você está vendo seu inimigo do outro lado e você tem que aniquilá-lo, como acontece nas guerras militares. É um inimigo interno, de difícil identificação aqui dentro do País. Espero que não chegue a esse ponto, mas a gente tem que estar atento.”

De uma só tacada, Eduardo Bolsonaro provocou, agrediu e exibiu ignorância. Falou de “esquerda”, “radicalização”, “inimigos internos” e “guerra assimétrica” sem se preocupar em definir do que está precisamente falando. E sem se importar em pagar de autoritário, de adversário da Constituição e da democracia.

É a cara de um Brasil mitificado e perverso, que o bolsonarismo insiste em recuperar. Um Brasil que não é dos brasileiros, mas de um segmento assentado no ódio, na violência, na mesquinharia. E que, ciente de seu isolamento, esbraveja e esperneia, jogando no lixo a racionalidade, o equilíbrio, a serenidade.


Bolsonaro está perturbado por seus próprios demônios, afirma Marco Aurélio Nogueira

Em artigo de sua autoria publicado na nova edição da revista Política Democrática online, professor analisa perfil do presidente

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor. A declaração é do professor titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Marco Aurélio Nogueira, em artigo de sua autoria publicado na nova edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania, em Brasília.

» Acesse aqui a 12ª edição da revista Política Democrática online

Para Nogueira, o governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar “A Presidência da República tornou-se um deserto de ideias. A paralisia e a mediocridade devoram suas entranhas”, diz, em um trecho.

Em outro trecho, o professor diz que o primeiro mandatário não está à altura do cargo que ocupa, nem sequer se mostra à vontade nele, assusta-se com a própria sombra e acumula inimigos por onde passa. “Não planta nem colhe nada de positivo, só atua para defender os próprios interesses restritos, seus e dos filhos”, afirma.

Na economia, conforme avalia Nogueira, a gestão de Paulo Guedes avança porque foi assimilada por Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que não só garantiu a progressão da Reforma Previdenciária, mas mantém ambiente favorável ao reformismo econômico que se deseja institucionalizar. “Mesmo assim, a economia patina e a sensação é de que não se sabe bem o que fazer para dar respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Algum desdobramento desse quadro deverá surgir nas eleições do ano que vem, com um possível aumento da frustração do eleitor”, analisa.

Integram o conselho editorial da revista Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho. A direção da revista é de André Amado e a edição, de Paulo Jacinto.

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Marco Aurélio Nogueira: Tempestade perfeita

Bolsonaro planta ventos e fogueiras. Poderá levar o País a um beco sem saída

A crise que ameaça dizimar o PSL expôs as entranhas do governo de Jair Bolsonaro e de seus filhos, que ao abrirem fogo contra o partido no qual estavam abrigados evidenciaram os desencaixes e atritos que a embriaguez provocada pelo sucesso eleitoral teimava em ocultar.

Até as eleições de 2018 o PSL era um pequeno feudo controlado por Luciano Bivar. A vitória nas urnas foi bombástica e o partido tornou-se a segunda maior bancada da Câmara, repleta de deputados eleitos no embalo de Bolsonaro. Permaneceu como um agregado sem visão de mundo clara, sendo levado a trafegar pela direita para acompanhar as circunstâncias. Insinuou-se como base de um governo que carecia de sustentação parlamentar.

O crescimento não é processo indolor. Nos partidos políticos costuma vir acompanhado da ampliação das disputas internas por espaços de poder e influência, que invariavelmente se traduzem em lutas pelo controle da máquina partidária, a começar do diretório nacional e chegando aos cargos de liderança em âmbito estadual e no Legislativo. As alas mais fortes tendem a subordinar as demais.

Bastou que o clã Bolsonaro apresentasse suas pretensões imperiais, e o fizesse com a delicadeza e a sutileza que o caracterizam, para que o PSL começasse a soltar fumaça por todas as ventas. A sujeira veio para fora de uma só vez.

O atrito repercutiu no heterogêneo território da extrema direita, uma força que crescia desde o governo Dilma Rousseff e foi repentinamente projetada para o primeiro plano da política nacional. De emergente que era, o movimento ganhou musculatura e autoconfiança, ingredientes com os quais passou a se sentir “dono do País”.

Acontece que a extrema direita no Brasil nem de longe se aproxima de suas congêneres europeus e norte-americanos. Faltam-lhe, antes de tudo, uma doutrina, um pensamento, um grupo de intelectuais minimamente qualificados, órgãos de divulgação e formação de quadros. A própria base material em que opera lhe é adversa: não há imigrantes, estrangeiros “perigosos”, ameaças iminentes à “Pátria imaculada”, o supremacismo não casa com a sociedade brasileira, o racismo não provoca orgulho em ninguém. Sua casa são as redes sociais, onde ela deita e rola, os templos evangélicos e os bolsões fanatizados de lealdade ideológica. Seu negócio é a guerra cultural e a retórica agressiva.

A extrema direita brasileira concentrou-se em questões morais – família, religião, valores, tradições, comportamentos, sexualidade – e em apelos apopléticos contra a esquerda, a social-democracia, o demônio, a corrupção, a “velha política”, o ambientalismo, a globalização, temperando tudo com uma mistura esquisita de “autoridade estatal” e ultraliberalismo econômico. Encontrou nesses pontos sua força e seu limite. O mix de temas mostrou-se indigesto demais, dificultando a coesão do movimento, que evoluiu sem rumo à espera do que Bolsonaro faria enquanto “mito”.

A cada mau passo do governo, o movimento estremece. A conduta beligerante do clã Bolsonaro excitou a extrema direita tanto quanto a confundiu. O mal-estar cresceu à medida que a família presidencial apresentou suas pretensões de acúmulo de poder e autoproteção, abandonou a luta contra a corrupção e incorporou as mesmas práticas antes atribuídas à “velha política”, num quadro em que o governo pouco realiza em termos políticos, econômicos e administrativos.

Uma tempestade perfeita começou assim a se formar. O governo governa mal e pouco. Agora, já não dispõe de um partido leal. A falta de coesão da extrema direita é um complicador. O clã Bolsonaro não se mostra com liderança à altura para utilizar de forma adequada os recursos de poder de que dispõe. Quer tudo e mais um pouco. Obriga-se a entrar na “velha política”, mas não sabe nela se mexer: é um elefante na cristaleira. Permanece sem um pensamento, uma proposta. Tem os olhos grandes, mas só enxerga o próprio umbigo.

Flerta com o haraquiri ao comprar briga com o partido que o sustentava na Câmara e deveria ter sido tratado como reserva de valor, seja para o governo conseguir governar, seja para que o clã se saia bem nas eleições municipais de 2020 – base para que possa cogitar de sua reprodução em 2022. Bolsonaro cava uma trincheira para proteger seu crescente isolamento, fato que faz seu governo flertar com a crise institucional. Planta ventos e fogueiras. Poderá levar o País a um beco sem saída.

O PSL apostou em escalar a crise. Ameaçou seguir a ideia do deputado paulista Júnior Bozzella, que declarou que a “missão” do partido seria “salvar o Brasil dos filhos do presidente”. Os bolsonaristas, porém, suaram a camisa e avançaram. Por ora, há um grito parado no ar. Armistícios protocolares, no entanto, não serão suficientes para que se tenha paz duradoura. Inexistindo densidade política ou ideológica na disputa, a guerra se arrastará como uma boa briga de vizinhos para saber quem espalhou a pior fofoca.

Controlar o PSL faz parte de uma manobra maior. Sem ter ideias consistentes, sem conseguir competir com o Congresso na condução de uma agenda reformadora, o clã Bolsonaro precisa exibir suas posses. Dominar um partido despedaçado é sonhar com um simulacro de poder absoluto. Pode servir para intimidar adversários e coagir aliados, mas não será suficiente para dar um eixo à extrema direita ou melhorar o desempenho do governo. É um poder de fancaria. Tanto que a caravana continua a girar, conduzida pelo Congresso, que é de fato o poder que tenta governar o País.

Depois de uma tempestade perfeita, não há certeza de bonança. Sem adequada correção dos estragos, a crise espalhará seus venenos pelo sistema, que já anda bastante abalado. Tempestades desse tipo, porém, podem trazer alguma depuração, como janelas de oportunidade que permitam às pessoas enxergar o mundo com mais generosidade e cuidado.

É para onde devem estar a olhar os democratas.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Revista Política Democrática || Marco Aurélio Nogueira: Oposição depende do centro democrático expandido

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor.  Governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar

Não é só como metáfora da modernidade que a imagem do “carro de Jagrená” é eloquente. Disseminada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, trata-se de uma máquina mítica dos hindus que evolui arrastando consigo tudo o que encontra pela frente, sem que ninguém consiga controlá-la.

A metáfora serve bem para que se ilustrem situações como a brasileira, que escapa de avaliações simples e mostra um País flertando com o precipício, com a política em baixa, sem contar com um governo que atenue a carreira alucinada em que foi jogado.

A Presidência da República tornou-se um deserto de ideias. A paralisia e a mediocridade devoram suas entranhas. O primeiro mandatário não está à altura do cargo que ocupa, nem sequer se mostra à vontade nele, assusta-se com a própria sombra e acumula inimigos por onde passa. Não planta nem colhe nada de positivo, só atua para defender os próprios interesses restritos, seus e dos filhos. O governo não sabe que País é esse que o elegeu para governar. Não sabe e não se preocupa em querer saber.

O presidente segue pilotando seu Jagrená, indiferente aos estragos que provoca. Faz isso porque não é confrontado por uma oposição que vá além da agitação retórica e do jogo de cena. Como não há iniciativa e unidade na oposição, o governo só é perturbado por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor. Movimenta-se sem demonstrar coesão ou a posse de um programa concatenado de ação.

Na economia, por exemplo, a gestão de Paulo Guedes avança porque foi assimilada por Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que não só garantiu a progressão da Reforma Previdenciária, mas mantém ambiente favorável ao reformismo econômico que se deseja institucionalizar. Mesmo assim, a economia patina e, a sensação é de que não se sabe bem o que fazer para dar respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Algum desdobramento desse quadro deverá surgir nas eleições do ano que vem, com um possível aumento da frustração do eleitor.

A mistura exótica de ultraliberalismo na economia e ultraconservadorismo nos costumes não está servindo para que se dê um salto para a frente. O governo demoniza a globalização e a revolução tecnológica, mas não sabe decodificá-las, o que faz com que não consiga enfrentar os problemas reais do País, as desigualdades, o desemprego, a desindustrialização, a miséria, a pobreza. Falta imaginação, falta criatividade, falta um mapa de navegação. Há mais disputas internas que articulação. Muito mais ideologia que racionalidade.

A confusão governamental mostra-se às escâncaras na luta entre as facções incrustradas no Incra, como falou o general José Carlos Jesus após ser demitido pelo secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia. A crise amazônica, sufocada entre a “porra da árvore” desprezada por Bolsonaro e a acusação governamental de que tudo não passa de uma disputa pelo minério que haveria em terras indígenas, exibe a céu aberto a inexistência de um plano que coordene a ação do governo na região. Por ali, militares não se entendem com o pessoal do ruralista Nabhan, que também não se entende com a turma do Ministério da Agricultura, cada qual amarrado a seu tronco.

As brigas dentro do PSL, até então tido como esteio parlamentar do governo, mostram uma combinação tóxica de miséria doutrinária com desejo de poder e controle do dinheiro.

Na Educação, o ministro Weintraub consegue a proeza de falar uma barbaridade sempre pior que a anterior. A área se arrasta, sem que haja qualquer indício de que uma luz por fim aparecerá.

Na Cultura, a censura corre solta, movida a guerra ideológica, a ingerências autoritárias, ataques e perseguições, chantagens e sufocamento orçamentário. Vetos a filmes entendidos como “pornográficos” convivem com a defesa de películas que fazem apologia a torturadores, igrejas e “valores cristãos”, no mais completo desrespeito à cultura, à arte, à liberdade de criação.

À margem de tudo, atacada por todos os lados e sendo devorada pela fogueira do governo, a Lava Jato agarra-se à opinião pública, que ainda lhe é favorável, sem poder contar com maiores apoios institucionais, o que a faz girar em falso. Confusões e trambiques como os do senador Flavio Bolsonaro e do ministro Marcelo Álvaro Antonio permanecem na crônica político-policial, sob o olhar plácido de Sergio Moro, outrora um impávido combatente anticorrupção. Pode ser que a Operação sofra algum ajuste e até volte a se fortalecer, mas seu momento atual é de declínio.

A palavra de ordem geral é de desconstrução: terra arrasada. Deseja-se um capitalismo livre de antolhos políticos, de regulação, de moderação, autocentrado e concentrado. Sem governo.

O presidente atira nos próprios pés, atrapalha-se na execução de coisas básicas, não consegue manter um ritmo proativo de gestão, nem administrar a gula de suas bases parlamentares. Sua natureza é o confronto. Está convencido da força de sua retórica e do estado de ânimo das parcelas da população que se retraem à política democrática e se deixam seduzir pelo ilusionismo do “mito”.

A “velha política” continua no comando, por mais que seja atacada por todos os lados. Entendida pejorativamente como sinônimo de práticas tidas como espúrias – entre as quais são enfiados, com mão de gato, o diálogo, o convencimento, a negociação –, a ela é contraposto o confronto como valor permanente, a intransigência, a veemência verbal, a localização de “inimigos”. O ambiente fica contaminado por “polarizações” recorrentes.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema político resiste, chegando mesmo, em alguns momentos, a impulsionar o processo de tomada de decisões e compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte, se contrapõe ao governo e mostra independência; em parte, se consome em seu próprio fogo corporativista.

Algo precisa surgir de suas bordas, onde se aloja o centro democrático expandido: liberais, a esquerda social-democrática, ambientalistas, verdes, cristãos progressistas, humanistas. Não só para nortear a política, permitindo-lhe retomar suas virtudes cívicas e sua capacidade de articulação, mas também para que se possa criar uma oposição consistente, que enfrente o governo, dialogue pedagogicamente com a sociedade, module o “carro de Jagrená” e prepare o caminho para as disputas eleitorais que haverá pela frente.

Se o terreno ficar congestionado de candidatos presidenciais disputando espaço entre si, será difícil sair do túnel em que meteram o País. Alguns, por exemplo, como o governador paulista João Dória, querem monopolizar a centro-direita e isolar Bolsonaro na extrema. Para vencer, porém, Dória terá de atrair parte substancial dos votos da centro-esquerda e dos liberais, que não rezam por sua cartilha. Outros batem no peito para proclamar sua superioridade perante os demais, há quem trabalhe em silêncio para cavar a própria trincheira e quem levante poeira para chamar atenção. Há donos demais, lideranças de menos. E a bandeira do antipetismo já não funciona como catalizador.

Fiel ao egocentrismo que os caracteriza, cada pedaço do universo político deseja ter um candidato para chamar de seu. Pode ser que a ideia seja ganhar força e negociar depois. Se tal não acontecer, porém, e o PT insistir em manter a carreira-solo com ou sem Lula, as urnas de 2022 nem precisarão ser abertas para que se saiba o que conterão.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista).


Marco Aurélio Nogueira: Atos e venenos

A polarização se mantém graças à insistência do governo em hostilizar o PT...

Durante os nove meses do governo Bolsonaro a opinião pública, a mídia e a sociedade civil entraram em contato com um estilo particular de governação, repleto de grosserias, idas e vindas no plano decisório, muito desencontro administrativo, pouca qualidade técnica nas proposições governamentais e um espírito beligerante nas relações internacionais. O discurso presidencial na ONU, terça-feira, foi um exemplo eloquente disso.

As patacoadas e barbaridades ditas por ele, dentro e fora do País, precisam ser postas no devido lugar. Não são o dado mais importante, nem servem para ocultar o que escorre por baixo do pano. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo deixa que eu chuto do presidente são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.

Por trás há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe também se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. Direitismo combinado com ultraliberalismo econômico.

O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade

O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e pela ascensão inesperada do PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como, por exemplo, nas votações da reforma previdenciária.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema tem resistido, chegando mesmo em alguns momentos a demonstrar certa capacidade de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera muitas marcas negativas, opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios, como se pode ver nas discussões sobre o fundo eleitoral. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.

Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não propriamente oposição. A polarização política tornou-se inoperante: a sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. Produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que tem dominado a política nacional, a polarização mantém-se graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. É uma inoperância que reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.

A falta de oposição expressa grave crise de pensamento e ação dos democratas. Em se reproduzindo, tem um único resultado possível: o prolongamento do bolsonarismo. A paralisia cobrará um preço mais adiante.

Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Vai evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Os portões do paraíso não serão abertos por ele. Somando a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.
Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas, a ideia de uma “frente democrática” não sai do papel.

Em política, as palavras contam. Precisam ser decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros.

Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, servem para mobilizar. Sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem.

Palavras influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas.

É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica, sobretudo, por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.

 


Marco Aurélio Nogueira || Defender a cultura, sempre

O que seria do brasileiro sem a música, em suas múltiplas manifestações?

Quando brumas caem sobre a cena pública e a polarização político-ideológica persiste, animada por grosserias, agressões e arroubos retóricos vindos de cima, é hora de valorizar a cultura e resistir aos que tentam criminalizá-la.

Na cultura repousa o que identifica uma nação e faz uma população se reconhecer como parte de uma coletividade. De norte a sul, de leste a oeste, nas grandes cidades e nas mais recônditas localidades do Brasil profundo, é a posse de uma mesma língua, de hábitos enraizados, de símbolos, de maneiras de pensar, sentir e fazer que dá ao brasileiro a percepção de que, na vida, há algo além da sua pessoa e do lugar geográfico. Por brotar da experiência, a cultura não pode ser capturada pelo Estado, muito menos pelos governos de plantão. Continua a pulsar, sempre.

A língua é essencial, mas não opera sozinha. A cultura artística cumpre função semelhante e às vezes até mais importante. Ela ajuda a plasmar nossas marcas civilizatórias, com suas virtudes, seus sucessos e seus fracassos.

A literatura é uma preciosa forja de vida comum e identificação, desde suas expressões mais “simples” (como o cordel, por exemplo) até as produções mais “sofisticadas”. Machado, Lima Barreto, Graciliano e Jorge Amado, para citar alguns bem conhecidos, não somente deram representação estética às experiências existenciais dos brasileiros, como os ajudaram a adquirir consciência de si.

O que seria do brasileiro sem a música, em suas múltiplas manifestações singulares, regionais, étnicas, de época, de classe social? Como nos reconheceríamos sem o cinema, o teatro, a televisão, as artes plásticas, estas últimas estruturadas por escolas que vão do naïf e do primitivo aos topos do concretismo e da arte abstrata? Como estaríamos sem artistas ativos, envolvidos nos temas de sua época, nos embates públicos, que colam sua prática à dinâmica sociopolítica, contribuindo para que se formem redes de identidades?

Como intelectuais, os artistas não são um agregado à parte, independente, embora tenham suas particularidades. Estão inscritos nos conflitos e contradições da sociedade, têm raízes nos grandes grupos sociais e lidam com os mesmos interesses que demarcam a sociedade. Isso leva a que tomem partido. Numa época de redes, indústria cultural de massas e mídia intensiva, os artistas se destacam ainda mais, muitos viram estrelas de primeira grandeza, são solicitados e se engajam em múltiplas causas.

Mas “ir aonde o povo está” não significa instrumentalizar as manifestações artísticas, despojá-las de significado geral ou rebaixá-las ao cumprimento de ordens de quem quer que seja. Também não dispensa o artista de traduzir adequadamente o mundo e a dinâmica política em que se respira. Não pode ser algo movido por impulsos ou identificações simples. Se a época é de fluxos incessantes, a arte não pode correr o risco de se tornar igualmente fluida e efêmera. Deve permanecer buscando dar sentido à vida, captar o duradouro, mapear tradições: fazer-se cultura.

Um livro recentemente publicado pela Editora Terceiro Nome mostra bem como se pode dar esse encontro da arte com a vida. Trata-se de uma homenagem feita pela historiadora Rosa Artigas à mãe, a desenhista, gravurista e pintora Virgínia Artigas (1915-1990). Organizado com capricho, o livro nos apresenta uma figura singular, dona de rara sensibilidade e de uma energia cívica contagiante. Virgínia produziu muito, mas não chegou a ter uma visibilidade à altura do seu talento, em parte porque esteve sempre casada com Vilanova Artigas, o genial arquiteto comunista, e com ele amargou perseguições, prisões e exílio, em parte porque sempre fez questão de cuidar da casa, proteger a própria família, sem desistir de se engajar em causas cívicas. Fazer arte, para ela, não significava habitar uma torre de marfim. Implicava, literalmente, sujar as mãos: comprometer-se.

Não é por acaso que a produção de Virgínia Artigas está repleta de ilustrações, desenhos e cartazes feitos para os jornais do Partido Comunista, para greves operárias e manifestações do movimento feminista ou pela anistia. A temática social e os retratos predominam em sua pintura. A artista trabalhou tanto nessa agenda congestionada e exigente que sua criação pessoal acabou ficando fora do circuito das galerias e do mercado de arte.

Em Virgínia Artigas: Histórias de Arte e Política, a historiadora traça uma trajetória de vida à moda intimista, “por dentro”, a partir de suas próprias reminiscências. São histórias muito bem escritas – sensíveis, bem-humoradas, ora amargas, repletas de personagens heroicos e pessoas comuns – que mostram a artista de corpo inteiro, dividida entre os cuidados domésticos, a pintura e a militância política, lutando para preservar uma produção artística à margem do trabalho que fazia para partidos e movimentos políticos. Vivia cercada de jovens, que a procuravam atrás de conselhos e orientações. Seus desenhos, muitos dos quais estampados no livro, mostram a beleza e a força de sua arte.

Conhecer essa artista singular, que atravessou o século 20 angustiada pelos problemas da época, funciona como um sopro de oxigênio num momento em que parece faltar ar. Revela-nos o poder da política e da empatia afetiva na atividade artística. É um grito de alerta contra o obscurantismo que domina o governo central e deseja enquadrar os intelectuais por tudo o que fazem em defesa da cultura.

Se viva estivesse hoje, Virgínia estaria pedindo ao movimento democrático que trabalhe para que se definam as tarefas da inteligência e se elaborem políticas para a cultura, de modo a valorizá-la de modo pleno e blindá-la contra os ataques e as seduções do poder. Muito provavelmente concordaria com a ideia de que nos piores momentos, quando tudo parece bloqueado, também germinam grandes saídas, que trazem a cultura consigo, sempre.

*Professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Riscos desnecessários

Acima de tudo e de todos, deve-se evitar que o País degringole e fique sem opções

Falando sem parti pris, o problema político dos brasileiros não é termos um governo de direita ou extrema direita, nem ser Jair Bolsonaro um fundamentalista retrógrado. O problema é que o presidente não conhece o País, não respeita princípios democráticos básicos e não deseja governar. Estamos correndo riscos desnecessários.

Desde sua posse o País depende muito mais do empenho da Câmara dos Deputados que do Poder Executivo. Falam mal dos parlamentares, mas sem eles teríamos tido um semestre trágico, estaríamos mergulhados numa sequência de bravatas, provocações e ofensas promovidas por Bolsonaro e seu entorno, que parecem dispostos a tratar todos como inimigos.

Combater a esquerda e o PT é legítimo e aceitável, mas é uma patifaria quando feito na base de mentiras e agressões. A direita e a esquerda fazem parte da vida, o revezamento delas no governo dos países é normal, saudável e produtivo. Liberais, conservadores e socialistas são famílias políticas essenciais, filhos legítimos da modernidade e de suas transformações no correr do tempo. Querer eliminar um deles com argumentos de autoridade é ir contra a lógica das coisas e os parâmetros democráticos de civilidade.

Debochar de brasileiros do Nordeste, agredir ativistas, professores, artistas, intelectuais e jornalistas, ameaçar a cultura e a educação com a imposição de “filtros” que não passam de censura, tratar a ciência com desprezo, beneficiar o próprio filho – tudo isso, verbalizado com escárnio, faz a Presidência da República evaporar como instância de organização do País e se transforme numa trincheira de combate.

Agindo assim, o presidente prejudica o País e a população, além de criar dificuldades para si próprio. Sua guerra ideológica contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil exaspera os parlamentares, aumentando os custos da transação política na aprovação de medidas e propostas governamentais. Enfraquece as instituições e os órgãos públicos, varrendo-os para a margem. Suas ações não são “folclóricas”, inocentes, mas ferem princípios básicos e fazem o País andar para trás, na educação, na cultura, na política internacional, nos direitos, na saúde, no meio ambiente, na economia. Impactam negativamente a sociedade, fomentando divisões que não ajudam o País a enveredar por uma trilha de progresso, justiça e bem-estar.

Um presidente que se comporta como se fosse chefe de uma facção, não mede as palavras, confunde o público com o particular, move-se pela emoção imediata e por cálculos improvisados é uma tragédia anunciada. Poderá sobreviver ao mandato, e até prolongá-lo, mas de seu período governamental não sairá um País melhor, uma sociedade mais coesa ou um Estado administrativo mais eficiente.

Em vez de nos ajudar a superar a polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ele a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita.

Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 de forma inquestionável, cristalina. Mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo que fez de valores religiosos e moralistas, sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

Sua vitória, porém, também foi conseguida porque a esquerda petista se mediocrizou e a esquerda democrática não conseguiu abraçar o campo liberal-democrático e, junto com ele, virou farinha, que engrossou o pirão da extrema direita. Foi uma vitória do senso de oportunidade combinado com incompetência política. Sem isso o resultado teria sido diferente.

A vitória eleitoral, no entanto, não deu a Bolsonaro o direito de se comportar como o tirano platônico que se deixa dominar pelos desejos mais baixos e por seus demônios internos, postos em movimento pela paixão que aguça a imoderação. Numa República democrática o presidente deve ser um agente da moderação, um construtor de consensos, um promotor do diálogo coletivo. Tem suas preferências, seu credo e seu mapa de navegação, mas não está autorizado a agir por impulso, conforme uma rotina passional que só produz caos e confusão.

A conduta errática e acrimoniosa de Bolsonaro ainda não levou a sociedade à convulsão. Em parte porque só se passaram seis meses, em parte porque a população tem conseguido manter alguma coesão, em parte porque o Congresso tem governado o País, construindo consensos e tomando decisões estratégicas.

Faltam entrar em cena os partidos, os movimentos cívicos e os cidadãos ativos perfilados no campo democrático progressista. Até agora, eles parecem trabalhar nos bastidores, em silêncio, dando até mesmo a impressão de estarem a hibernar A oposição que orbita o PT não consegue produzir propostas e entendimentos, limita-se a mimetizar com sinal trocado a conduta presidencial, valendo-se de uma retórica igualmente passional, que divide e inflama a população. Em vez de se lançar com coragem no mar aberto da renovação procedimental e discursiva, aferra-se a mitos e atitudes defensivas, refratárias ao moderno que se renova em direções inesperadas, surpreendentes e desafiadoras.

Temos de girar a chave e abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Pode ser que se tenha de ajudar o governo a governar, a cometer menos erros e a causar menores prejuízos. Não há por que ter preconceito contra isso. Acima de tudo e de todos deve estar a preocupação de evitar que o País degringole e fique sem opções. Resistir é preciso, mas sem medo de olhar para a frente e ousar, correndo riscos que valham a pena.

 


Marco Aurélio Nogueira: A educação como valor permanente

Professor Jorge Nagle morreu amargurado com a situação educacional brasileira

Consta que Bertolt Brecht, numa de suas magistrais tiradas, escreveu: “Não basta ter sido bom quando se deixa o mundo, é preciso deixar um mundo melhor”.

Não são muitas as pessoas que mereceriam o elogio implícito na frase. Fazer o mundo melhor é difícil, requer talento, determinação e resiliência, passa pela habilidade de reunir colaboradores e pela sabedoria de modular o tempo, para que as mudanças amadureçam e seus frutos sejam conhecidos e valorizados.

O professor Jorge Nagle, que faleceu no último dia 21 de junho, aos 90 anos de idade, foi uma dessas pessoas. Deixou marcas fortes por onde passou, graças ao estilo agregador e à coragem de enfrentar circunstâncias adversas.

Nagle foi um apaixonado estudioso da educação. Com a publicação de sua tese de livre-docência (1966), Educação e sociedade na Primeira República, tornou-se uma referência na história da educação paulista.

A escola pública foi seu foco permanente, na versão republicana que tanta dificuldade teve (e tem) de se fixar no Brasil. Sua utopia era a existência de uma escola para todos, livre de imposições ideológicas ou religiosas e de influências políticas espúrias: uma escola que interagisse com a sociedade e contasse com um sistema administrativo eficiente, mas que em nenhum momento minimizasse a dimensão técnico-pedagógica, intelectual.

Graduado em Pedagogia pela USP em 1955, Nagle foi docente e diretor da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) do câmpus de Araraquara da Unesp. Foi de lá que partiu sua longa carreira. Tornou-se professor titular e atuou na linha de frente das discussões sobre a escola e a educação, o que o fez receber do governo federal, em 1993, a medalha da Ordem Nacional do Mérito Educativo, condecoração criada para premiar personalidades com serviços excepcionais prestados à educação brasileira.

Nagle foi um líder. Em agosto de 1984 chegou à Reitoria da Unesp. O momento era difícil. A reabertura democrática avançava, mas a universidade ainda vivia sob o comando de interventores nomeados pelo governo estadual. O clima interno era de conflito. O governador Franco Montoro queria mudar a situação e pressionou o Conselho Universitário da Unesp para que o ajudasse a fazer isso. Dos professores titulares que integravam o órgão, nem todos dispunham do respaldo acadêmico indispensável e da vocação administrativa exigida pelo cargo. Nagle se diferenciava e foi indicado pelo governador para, na condição de reitor pro tempore, acalmar a universidade e preparar o conselho para a escolha de um dirigente sintonizado com os novos tempos. Meses depois, por indicação do conselho, o governador o nomeou.

A Reitoria de Nagle fez a Unesp deixar de ser uma reunião de faculdades isoladas. A atuação do reitor magnetizou professores e servidores, redefinindo procedimentos, incentivando a criatividade e a iniciativa acadêmica, aproximando áreas e câmpus. Nagle cercou-se de professores para auxiliá-lo e em sua gestão surgiram o Jornal da Unesp, a Editora Unesp, a Fundação para o Desenvolvimento da Unesp, o câmpus de Bauru, o Instituto de Física Teórica. Foram anos de um dinamismo que revolucionou a universidade.

Em 1988, Nagle foi secretário de Ciência e Tecnologia, cargo que lhe possibilitou participar em posição privilegiada do processo de obtenção da autonomia administrativa e financeira pelas universidades estaduais paulistas, decretada em fevereiro de 1989.

Com seu estilo sereno e reservado, fez-se presente no circuito da educação, da ciência e da tecnologia. Presidiu o Conselho Estadual de Educação, integrou o Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Conselho Federal de Educação. No final da década de 90 ligou-se à Universidade de Mogi das Cruzes, na qual coordenou o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ensino e presidiu o Comitê de Ética em Pesquisa. Também integrou o Conselho Superior da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Em todos esses ambientes, bateu-se pelo que chamava de “credo pedagógico”, uma aposta no valor permanente da educação. Como observou a professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP, Nagle foi acima de tudo “um artífice do espaço público na educação”.

Nagle morreu amargurado com a situação educacional brasileira. Hoje, quando os setores governantes menosprezam a educação pública, intelectuais como ele farão falta. Estamos carentes de lideranças que revigorem o sistema escolar e projetem a educação para o plano estratégico. Faltam-nos políticas educacionais que enfrentem os desafios da era digital em que nos encontramos.

Jorge Nagle fez parte de uma geração marcada pela preocupação em construir instituições sólidas, pelo rigor e pela envergadura ética e moral. Foi com essa bagagem que atuou para que a Unesp se tornasse realidade. Para ele, uma universidade honra seu nome quando funciona como uma “comunidade de destino” e compartilha saberes e experiências, não quando exibe posições em rankings e índices de produtividade.

Percursos institucionais não são feitos só de glórias e vitórias. Também conhecem derrotas e tropeços, momentos de refluxo nos quais se constata certa fadiga de material e uma perda momentânea de foco. Não foram fáceis os anos de arranque da Unesp, assim como não são fáceis os dias atuais para o ensino superior brasileiro. Professores como Jorge Nagle enfrentavam esses momentos com determinação e liderança intelectual, buscando reunir o que cada instituição tinha de melhor, com base em valores democráticos.

Talvez não consigamos mais segui-los nesse particular. Nossa vida institucional se individualizou e se fragmentou demais, dificultando ações coletivas e agregações superiores. Mas podemos muito bem tê-los como referência, buscar neles a inspiração e a energia para prosseguir em condições razoáveis de temperatura e pressão.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp


Hostilidade como procedimento é método de governo, afirma Marco Aurélio Nogueira em artigo na Política Democrática online

Para professor da Unesp, em 2018, correntes democráticas e de esquerda privilegiaram mais as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita

Cleomar Almeida

Uma República democrática não pode vicejar em meio a impropérios oficiais e oficiosos que superpõem o perfunctório ao importante, o contingencial ao fundamental, as miudezas aos grandes planos estratégicos, o bate-boca nas redes às batalhas cívicas pelas reformas indispensáveis. É o que diz o professor titular de Teoria Política da UNESP (Universidade Estadual Paulista), Marco Aurélio Nogueira, em artigo publicado na oitava edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania.

» Acesse aqui a oitava edição da revista Política Democrática online

Nogueira foi diretor do Ippri (Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais) da Unesp (2011-2015), em São Paulo. Atualmente, coordena o Neai (Núcleo de Estudos e Análises Internacionais), vinculado ao Instituto. Ele é também colunista do Estadão.

“Uma República democrática com uma democracia sacudida por frêmitos e arroubos autoritários, pelo desgoverno, pela má qualidade da representação parlamentar e pelo funcionamento errático do Poder Judiciário só pode sobreviver aos solavancos, sem conseguir ganhar estabilidade”, afirma, para acrescentar: “Em um quadro com tais características, nenhum governo consegue governar”.

A hostilidade como procedimento é um método de governo, de acordo com o autor. “Cria crises e inimigos para a eles atribuir as dificuldades do governo e, ao mesmo tempo, para agregar sua base mais fanatizada. `Estou tentando, cumpro o prometido, mas o sistema não me deixa governar´, repete o presidente em seu mantra”, observa o professor da Unesp.

A culpa seria sempre da “velha política”, como ironiza o autor. De acordo com ele, em 2018, no Brasil, com o sistema político abrindo falência e a sociedade mostrando claro apetite anti-establishment e a situação econômica em franca piora, as correntes democráticas e de esquerda privilegiaram mais as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita.

“Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Algumas seguiram a carreira solo para buscar autoafirmação, outras, para tentar conter o desgaste, outras ainda para perseguir uma revanche redentora”, analisa Nogueira. Cada uma a seu modo, avalia, prepararam o terreno para a eleição de Jair Bolsonaro, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.

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