Marco Aurélio Nogueira

Marco Aurélio Nogueira: Um dos pivôs da 'guerra cultural', Gramsci tem livros publicados no Brasil

Desde que foi lançado há três anos o ‘Dicionário Gramsciano’ a obra do italiano já foi revisitada até em quadrinhos

Ao menos desde 2017, quando foi publicada a edição brasileira do Dicionário Gramsciano, vive-se um momento de grande interesse pelo pensamento do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937).
Parte disso é um efeito colateral da “guerra cultural” martelada pela extrema-direita, que invariavelmente trata Gramsci como um de seus inimigos principais. O fundamental, porém, deve-se ao trabalho dos inúmeros grupos de estudiosos que se formaram ao longo dos anos em diversas áreas acadêmicas.

Gramsci, a rigor, nunca saiu de cena no Brasil, país em que sua difusão está entre as maiores do mundo. Nos anos 1960, a Civilização Brasileira foi pioneira ao editar os primeiros escritos gramscianos entre nós. Mais tarde, a partir de 1999, a mesma editora publicou os Cadernos do Cárcere, uma caprichada tradução que demarcou um novo campo para os estudos marxistas e tornou conhecida a grandiosidade da reflexão teórica de Gramsci.

Nas duas décadas que se seguiram à publicação dos Cadernos no Brasil, o interesse por Gramsci só fez crescer. Textos esparsos, coletâneas e pesquisas mais estruturadas – bem como uma edição de Gramsci em Quadrinhos (Veneta, 2019) -- começaram a circular em sequência, formando um volume que chama atenção, até por coincidir com um período não propriamente favorável ao marxismo ou às esquerdas. É uma prova de vitalidade e relevância, que se expressa com clareza nos verbetes do Dicionário.

2020 mantém esse padrão. A editora Boitempo inaugurou sua coleção Escritos Gramscianos com uma reunião de artigos escritos por Gramsci em 1917, Odeio os Indiferentes. Embora não integrem o núcleo fundamental de sua reflexão, os textos daquele ano emblemático – a Revolução Russa batia às portas – mostram um jovem intelectual convencido de que todos tinham de se engajar em causas grandiosas, justas e igualitárias. Apaixonado pela ideia de revolução, Gramsci mergulha na militância socialista. Sua bandeira é a luta pela dignidade dos trabalhadores, o desprezo por aqueles que “não tomam partido” e vivem como “homens nascidos apenas para consumir alimentos”, aprisionados a seus mundinhos provincianos. É um Gramsci preocupado com propaganda e militância. Um entusiasta da Revolução Russa, compreendida por ele como destinada a libertar as massas de sua condição subalterna e inaugurar uma nova era universal.

Processa-se ali uma inflexão, que levará Gramsci ao Partido Comunista e à luta antifascista, em nome da qual será preso e condenado pelo regime de Mussolini. A passionalidade de 1917 seria, com o tempo, temperada pela luta política, a convivência com a Internacional Comunista e os anos no cárcere (1926-1937), durante os quais analisará a derrota do movimento revolucionário e elaborará uma sofisticada teoria da política e do Estado, na qual lugar de destaque será dado aos intelectuais e à educação, o que não era comum entre os marxistas.

A compreensão dessa trajetória requer que se leve em conta as circunstâncias históricas, os “contextos”. O volume Gramsci no seu tempo chegou à segunda edição propondo-se a ser um esforço para inserir Gramsci na história vivida, em seus dramas pessoais e em seu relacionamento com o movimento comunista da época. Trata-se de uma coletânea que complementa os seminais trabalhos de Giuseppe Vacca, Vida e Pensamento de Antonio Gramsci. 1926-1937, e de Leonardo Rapone, O Jovem Gramsci: Cinco Anos que Parecem Séculos, 1914-1919, ambos lançados anos atrás pela Contraponto/FAP. Na mesma direção vai Antonio Gramsci, o Homem Filósofo, de Gianni Fresu, fruto de uma alentada pesquisa sobre a evolução política e intelectual de Gramsci, suas batalhas pessoais e teóricas travadas sem dogmas ou esquemas pré-concebidos. Fresu enfatiza que o legado gramsciano “desenvolve-se num quadro de profunda continuidade”, o que não significa que Gramsci permaneça sempre idêntico, mas sim que “suas questões e suas conclusões ficam mais complexas, tomam novas direções” e modificam seus pressupostos iniciais. O teórico dos Cadernos não abandona os ideais revolucionários e a visão de mundo da juventude: procede por um movimento de superação, que incorpora o que antes formulara e o projeta em um plano mais sofisticado.

Do conjunto desses livros emerge um Gramsci atento à sinuosidade da história, não dogmático, livre de armaduras ideológicas ou da “obediência” cega a diretrizes partidárias. Uma figura de intelectual bem diferente daquela que a extrema-direita apresenta e que também colide com o doutrinarismo das esquerdas. Em sua trajetória de diálogo com os dilemas da época em que viveu, Gramsci elaborou um marxismo maduro, forjado na dialética histórica e na busca pelas fontes que fazem a humanidade ser como é.

*É professor titular de Teoria Política da Unesp e autor do livro ‘As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporãneo’ (Contraponto/FAP)


Marco Aurélio Nogueira: Reposicionamento e impasse

O ministério da Economia divulgou em 24 de agosto três programas básicos voltados para a área social: Renda Brasil, Carteira Verde Amarela, Minha Casa Verde Amarela. A convicção é que eles impulsionarão a retomada do crescimento, via monetização da assistência, criação de empregos e financiamento habitacional.

O governo tenta se reposicionar no mercado. Os programas já existem com outras designações e não estão claras as alterações a serem feitas, nem de onde virão os recursos para custear a nova versão. Há o teto de gastos e ainda está para ser equacionada a questão do auxílio emergencial (pago em decorrência da pandemia), que hoje beneficia 64 milhões de pessoas. Não se sabe como se chegará ao Renda Brasil, que terá caráter mais permanente. A equipe econômica fala em extinguir programas sociais e suprimir o abono salarial para obter receita e o presidente diz que não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.

O impasse desgasta, em vez de fortalecer. Aprofundou-se uma rota de colisão que a rigor estava desenhada ainda na campanha de 2018, quando o ultraliberal Paulo Guedes aliou-se a Jair Bolsonaro. A convivência foi mantida enquanto não entrou no radar a disposição eleitoral do presidente, que resolveu antecipar a tentativa de reeleição em 2022. Como observou com precisão o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, o disparo do radar mostrou que “Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral”.

Uma pacificação que deixe o barco singrar mansamente até 2022 parece pouco provável, mesmo que os bombeiros entrem em ação e apaguem as labaredas que ardem no relacionamento do presidente com seu ministro. De novo Paulo Fábio: “Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho”.

Bolsonaro deu um xeque em Paulo Guedes. Suspendeu a criação do Renda Brasil e exigiu que uma nova proposta fosse apresentada a toque de caixa. Chamuscado, o ministro se fingiu de morto e retrucou: “As coisas são assim mesmo: a economia é o cara que faz o papel de mau, e a política é o cara que faz o papel do bom”.

A bagunça fez a tensão crescer no Planalto.

O governo não tem de onde tirar dinheiro, mas quer usar os programas sociais para politizar a relação com a população mais dependente de assistência. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro cobiça o eleitorado do Norte e Nordeste, tido como estratégico. Não pode, por isso, aumentar impostos ao bel-prazer da equipe econômica. Sabe que precisa conter a sangria de votos da classe média, que já é acentuada, ao mesmo tempo em que precisa fidelizar a população mais pobre, o que tem tentado com o auxílio emergencial e os acenos para a repaginação do Bolsa Família. Em ambos os caso, o ultraliberalismo de Guedes é dissonante e não tem serventia.

A trombada do presidente com a equipe econômica deixou mais evidente a ausência de consensos e articulação.

O quadro é agravado pela inconsistência das propostas cozinhadas no Ministério da Economia, que não se apoiam num planejamento estratégico básico e reiteram uma opção fiscalista que colide com a já pesada carga tributária, hoje na casa dos 33% do PIB, além de atritar os planos eleitorais do presidente.

No cenário atual, qualquer proposta do Executivo que chegar à Câmara será modificada e não obedecerá à cartilha governamental. Como disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), “não haverá adesão” a nenhum programa: “Tenho uma preocupação muito grande de que a criação de um projeto de renda básica não signifique nenhuma perda de direito para a população”. Vindas com as digitais de Paulo Guedes, as propostas encontrarão dificuldades.

Além da conhecida falta de visão social, o ministro da Economia não tem qualidade para atuar como negociador. É um criador de problemas, se não mesmo o próprio problema. Sugere fechar a Farmácia Popular, eliminar deduções do Imposto de Renda, recriar a CPMF e criar novos tributos. Fala muito, mas executa pouco.

O fator Guedes
Paulo Guedes é conhecido na praça. Não foi por acaso que chegou ao governo Bolsonaro. Seu radicalismo neoliberal compôs-se sem dificuldade com o autoritarismo do presidente. O “Posto Ipiranga” deu a Bolsonaro um programa mínimo com que caminhar para além da guerra cultural contra a democracia, os liberais e as esquerdas. Esta contribuição um dia será cobrada, pois não há indícios sólidos de que a política de Guedes fará o País crescer a taxas suficientes para a vida melhorar como um todo. A pandemia é um agravante, mas não explica o fracasso.

O programa de Guedes apoia-se numa visão tosca de mercado e livre concorrência. É hostil aos trabalhadores e a políticas sociais de proteção e distribuição de renda. Caminha de costas para os temas ambientais e não está nem aí para o desmatamento amazônico. É uma forma de autoritarismo econômico, combinado com egoísmo e darwinismo social. Não tem, por isso, dificuldade de conviver com o bolsonarismo.

Tudo isso implica um custo social elevado. Quem pagará a conta das “maldades” antissociais e da inação governamental? Paulo Guedes enviou ao Congresso uma proposta de reforma tributária sugerindo 12% de impostos para os serviços, 6% para os bancos. Igrejas, partidos e fundações — que em tese não exercem atividade econômica – ficariam isentos. Por baixo do pano, para piorar, a ideia é recriar a CPMF, agora com novo nome e voltada taxar “transações eletrônicas”, típicas da vida digital.

Pode-se admitir que as propostas do ministério da Economia carregam no remédio com o propósito de abrir negociação. Depois serão suavizadas. Faz parte do jogo, mas chama atenção a crueldade que está nela embutida. Drenar recursos dos mais pobres e poupar os mais ricos, com a desculpa de transferir recursos para os pobríssimos, via uma rebatizada Bolsa Família, é uma perspectiva perversa e pouco lógica. Os economistas do governo acenam, também, com uma perspectiva de “desoneração da folha”, que já foi vetada pelo presidente meses atrás. Ninguém sabe bem como ficará.

Guedes é desses casos perdidos na política nacional. Não é economista brilhante, fez carreira como operador financeiro e sempre manifestou desprezo pela economia do setor público. Seus olhos brilham quando se apresenta como guardião do mercado. Sua competência, porém, nunca foi verdadeiramente posta à prova. Desde que passou a integrar o governo fala muito em reforma, mas não entregou nada até agora. É um péssimo negociador, mercurial e sem estofo político.

Em busca do eleitor
O governo trata como assentado que a população mais carente está à disposição dos governantes de plantão. Esse tem sido um caminho trilhado por governos anteriores. A “ocupação” político-eleitoral feita pelo PT no Nordeste, por exemplo, não evitou o impeachment de Dilma, nem garantiu sobrevida sólida ao petismo. No caso de Bolsonaro, pode ser ainda mais complicado, levando-se em conta que ele não dispõe de estrutura partidária e se move por meios de redes, que nem sempre são acessíveis à população de menor renda.

O governo deseja disputar o eleitorado nordestino, que pode de fato estar novamente disponível depois da crise do PT. Mas não há certeza de que conseguirá isso, em parte porque o eleitorado pode não ser tão “cativo” quanto se imagina, e em parte porque os estados do Nordeste são, na maioria, governados por partidos que se opõem a Bolsonaro.

As propostas anunciadas pelo ministério da Economia repõem o conflito entre o fiscalismo de Paulo Guedes e o desenvolvimentismo, bandeira ora desfraldada por Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, que saiu do PSDB e migrou de mala e cuia para o governo Bolsonaro. Colidem também com a movimentação eleitoral do presidente. O Estado está mal das pernas, a tentação de cortar gastos é enorme e a tesoura de Guedes é seletiva e particularmente hostil à situação da maioria da população. O bolsonarismo, e em especial o presidente, não tem um programa claro nem uma “teoria” sobre o País que deseja governar. O impasse, portanto, é gritante.

Precisamente por isso, Bolsonaro tenta se equilibrar em duas canoas, dando sinais contraditórios e sem saber qual estrada seguirá até 2022. Não é propriamente uma demonstração de força. E ele sabe disso.

E a oposição?
Em um ambiente de crise externa e de tensão interna ao governo, seria o caso de dar como certo que as oposições crescerão em protagonismo. Não é, porém, o que se tem.

O jogo não está sob controle delas. Os interesses reunidos no bloco que sustenta Bolsonaro seguem pautando a política. O extremismo ideológico do presidente parece a cada dia mais incomodado com o ultraliberalismo de Guedes, mas algum arranjo poderá acalmar a situação. Pesquisas de opinião, favoráveis ao governo, fornecem oxigênio adicional para o continuísmo. A paralisia domina as forças do centro e da esquerda, com exceção do DEM, graças ao ativismo institucional de Rodrigo Maia. O PT reitera sua permanente disposição de fazer carreira-solo e os demais partidos somente praticam o jogo miúdo. Há pouco esforço de agregação e articulação que comece a pavimentar a pista para 2022.

Não é difícil compreender que, mantidas a disputa e a dispersão no terreno do centro e da esquerda, sem a interpelação da sociedade civil e sem a incorporação dos dissidentes bolsonaristas, 2022 será uma repetição, corrigida aqui e ali, do que houve em 2018.

O diagnóstico de Paulo Fábio Dantas Neto vai ao ponto: “DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço. Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil – sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último”.

Esse é o nervo da questão política atual. E é para ele que precisam convergir as atenções e energias dos democratas.

*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP.


Marco Aurélio Nogueira: Pandemia – o antes, o durante e o depois

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade

Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.

São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar comum.

Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.

O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como reagir.

A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus, especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.

Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.

A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo é ingênua. A competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A Sputnik, russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de uma “guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021, não há como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será feita sua aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a ideia for imunizar a população terrena. Além disso, o mundo superconectado, frenético e desigual em que vivemos é propício a novas ondas pandêmicas.

O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e sacrifícios. Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas, governos de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade, que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma vida com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais tempo em casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.

Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus vagões e ônibus que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar, com suas interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade. O que tem mais importância e valor? Como voltar a olhar para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da vida aberta, sem freios? Como controlar nossos desejos e pulsões, recompô-los e deixá-los fluir de outro modo? Teremos de experimentar de maneira distinta o prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?

São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam o enigma freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de “mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de nos haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da psicanálise, conhecimento e informação.

A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de sensações e possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações éticas e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição, difícil como qualquer outra.

A educação é o recurso de que dispomos para construir atitudes cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam um mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da escola, mas de educação com E maiúsculo.

Resta saber se venceremos a batalha.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Os democratas norte-americanos e seus demônios

Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.

As alas à esquerda costumam ser mais combativas, como é de esperar. Vocalizam grupos enraizados no mundo cultural e acadêmico. São expressivas nos movimentos por direitos e reconhecimento. Fazem política de um modo particular, no qual a ideologia e o simbolismo têm papel de destaque. Renegam o pragmatismo e gostam de promover o desgaste das candidaturas partidárias, sobretudo as presidenciais. Alegam que a pressão interna é decisiva para que o Partido Democrata não esmoreça e combata o sistema.

Em 2016, fuzilaram Hillary Clinton e contribuíram, indiretamente, para afastar eleitores progressistas ou predispostos a apoiar a candidata do partido. Os demônios partidários terminaram por tirar parte dos votos de Hillary.

Estão ensaiando fazer o mesmo hoje, mediante a interposição de vetos (discretos ou ostensivos) a Joe Biden e à escolha da senadora Kamala Harris como sua companheira de chapa. As ressalvas se apoiam em críticas à “elite democrática”, que só olharia para os próprios interesses, não ouviria as vozes mais jovens nem daria a devida ênfase às questões identitárias e às reformas sociais. Em certos setores, dá-se maior importância ao passado de Kamala Harris – que foi procuradora do estado da Califórnia – que a seu significado político na disputa eleitoral de 2020. Chega-se mesmo a dizer que a senadora é uma “policial” travestida de democrata e indiferente aos eleitores negros mais jovens.

Ainda faltam três longos meses para as urnas e pode ser que o furor esquerdista arrefeça. Vozes importantes, como Bernie Sanders, não estão a insuflar os ventos da discórdia, o que é um sinal unitário significativo, que reconhece a dimensão estratégica da atual disputa eleitoral. Uma vitória sobre Donald Trump é vista como uma espécie de tábua da salvação para os democratas, um impulso para que o partido volte a ser pujante e recupere sua marca política e social.

A escolha de Kamala Harris como vice-presidente foi inteligente. Negra, feminista, militante de direitos civis e com larga experiência administrativa, a senadora é uma moderada na arena partidária. A ideia é que ela atraia votos de setores que se abstiveram em eleições anteriores, dialogue com o movimento negro e por direitos civis sem, ao mesmo tempo, assustar os eleitores republicanos.

Trump sentiu o golpe e tem se dedicado a bater insistentemente em Kamala.

Ao opor vetos ideológicos à chapa de Joe Biden, os esquerdistas mais inflamados reforçam aquela “abdicação pelo imaginário americano” que o professor Mark Lilla (em O progressista de ontem e o do amanhã, publicado em 2017 pela Companhia das Letras) entende ser a principal fragilidade dos liberals, ou seja, dos democratas. Dizem pouco para o americano comum, as grandes multidões, ajudando a empurrar os democratas para “as cavernas que construíram para si próprios na encosta do que um dia foi uma grande montanha”, nas palavras de Lilla.

O professor é um crítico firme das inflexões identitárias que adquiriram expressivo peso no movimento social e nas áreas intelectuais próximas do Partido Democrata. Na sua visão, tais inflexões enfraquecem a solidariedade social e incentivam o populismo, com o enfraquecimento da dimensão institucional da cidadania. De quebra, põem em circulação uma “pseudopolítica de autoestima e autodefinição estreita e excludente”, que celebra um posicionamento refratário a avanços políticos consistentes, trocando-o por uma “evangelização” de baixa produtividade política. A diferença, para Lilla, é que “evangelizar é dizer verdades ao poder e fazer política é conquistar o poder para defender a verdade”.

O que vale para os Estados Unidos vale também para outras sociedades. A insistência em demarcar identidades partidárias ou ideológicas tem sido, em todas as partes, o laço que asfixia as forças democráticas e impede sua articulação. A eventual derrota de Trump em novembro próximo terá impacto significativo e poderá representar uma nova temporada de florescência democrática, com efeitos que se espalharão pelo mundo.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Crise e transformação da democracia

Um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim

A mudança constante é companheira de viagem da democracia. Quanto mais complexas ficam as sociedades, mais se acentua a dinâmica democrática e aumentam suas tensões internas.

Isso dificulta a compreensão da “crise da democracia”, hoje proclamada mundo afora. Aquilo que sempre se transforma não estaria em crise permanente, reorganizando-se sem cessar? Se novos atores entram em cena e as instituições precisam se adaptar aos novos ambientes socioculturais, por que a democracia permaneceria “estável”?

Aquilo que se transforma não o faz necessariamente em sentido positivo. Crises não são produtos automáticos: podem derivar, por exemplo, de um golpe ditatorial, que silencia o que estava em mudança e altera o fluxo da vida. Os novos tempos podem ser sombrios, desorganizar mais que organizar, fazendo as “novidades” acentuarem o que não funciona a contento, implicando que as instituições e as práticas políticas não produzam bons resultados.

A democracia está hoje desafiada. Há uma crise no plano sistêmico, institucional, provocada pela disjunção entre a vida e os sistemas, pela “desconstrução” dos partidos e das lideranças políticas. As organizações políticas tradicionais e o modo usual de fazer política colidem com o modo como as pessoas vivem. O “sistema” não entrega o que dele se espera. As injustiças, a desigualdade, o racismo, o sexismo, que se evidenciam sem parar, fazem a cidadania entrar em atrito aberto com o que está instituído. Sempre foi assim, mas nos últimos anos, ao lado do aumento da insegurança e do medo paranoico, houve uma ampliação da insatisfação e da disposição de contestar.

Há também uma crise de valores: a ideia de representação perdeu atração e a política institucional se desvalorizou aos olhos dos cidadãos. O desejo de liberdade e participação faz vibrar a cultura democrática, mas não se compõe com o sistema político vigente. Ao contrário, os cidadãos veem nele uma importante causa dos males. Assentados quase sempre nos interesses econômico-sociais mais poderosos, os governos não conseguem agir em benefício dos interesses gerais.

O principal fator que explica essa crise tem que ver com a complexidade da sociedade atual, que problematizou os mecanismos de formação da vontade coletiva e de tomada de decisões. A globalização capitalista, por sua vez, reduziu a autonomia relativa dos Estados-nação e impôs uma pauta única para a gestão da economia, agravando as disfunções sistêmicas. Como a estrutura social se recompôs, embaralharam-se as identidades classistas, transferindo problemas de reconhecimento e estabilidade para os partidos, que sempre controlaram o jogo político. Não só a democracia, mas tudo o que está “organizado” (a família, a escola, a empresa) entrou em crise.

Líderes e movimentos “desgarrados” das tradições democráticas passaram a corroer o sistema político por dentro, pondo em curso uma degradação nominalmente democrática da democracia. Um veneno tóxico começou a ser injetado cotidianamente na cidadania e na opinião pública.

Num ambiente mais complexo e menos democrático, o Estado – como aparelho de intervenção, coordenação e regulação – perdeu eficácia. A atuação dos governos e dos serviços públicos fica com custos mais elevados, sem que com isso se obtenham melhores resultados.

Esse quadro foi dramatizado pela pandemia, que evidenciou a distância existente entre o Estado político-administrativo e a população. Os sistemas nacionais de saúde foram postos à prova e em muitos deles faltou coordenação, um problema de liderança política e visão estratégica.

É esse o caso brasileiro. A presença de um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim. Filho da crise, explora o discurso antissistema, que ressoa socialmente, e se aproveita da desorganização política dos democratas. Desqualificado, sem base parlamentar nem plano de ação, viu-se diante da necessidade de fazer que o sistema funcione. Não está dando certo.

O clima criado pelos “iliberais” não é sem consequências. Favorece a expansão de uma zona contaminada no próprio campo democrático, dificultando sua autoconsciência e sua organização. Paralisados pelas dificuldades, os democratas giram em torno de si próprios, muitas vezes brigando com sua sombra e autoimagem. Dispersam-se, quando deveriam se unir.

Parte do descontentamento e da indignação que move os cidadãos tem que ver com o fato de o sistema existente não prover resultados que atendam às expectativas sociais. As pessoas sentem-se desprotegidas, inseguras, carregadas de expectativas que não são atendidas pela política. A exasperação social bate à porta.

O sistema político, com seus partidos e atores, não tem gás para formular um programa de ação e uma articulação que recomponha a governabilidade e reforme as instituições. A sociedade terá de se movimentar, o que a crise sanitária dificulta.

A democracia está em crise. Mas é o único caminho que temos para explorar.

*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp


RPD || Marco Aurélio Nogueira: “Democracia iliberal” e intolerância

O problema relativo à carta “Sobre a justiça e o debate aberto”, na verdade, aparece quando os progressistas brigam com quem está em seu próprio campo e aceita os mesmos valores de justiça, igualdade e direitos, avalia Marco Aurélio Nogueira, em seu artigo

A carta “Sobre a justiça e o debate aberto” [https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/], divulgada em 7/7/2020, teve compreensível repercussão. Numa época de pessoas, movimentos e governos dedicados a questionar, prática e teoricamente, os princípios básicos da democracia política, a defesa da prevalência do diálogo soou como provocação.

Ao que tudo indica, foi esse mesmo o objetivo da carta assinada por Salman Rushdie, Noam Chomsky, Winton Marsalis, Francis Fukuyama, Gloria Steinem, Fareed Zakaria, Mark Lilla e Margareth Atwood , entre outros 150 acadêmicos, jornalistas e artistas. Eles acharam por bem marcar posição contra a desigualdade racial e a brutalidade policial, apoiar os protestos antirracistas que explodiram nos EUA e, ao mesmo tempo, lamentar o “clima de intolerância que se instalou por todos os lados”. Quiseram criticar o surgimento de um “novo conjunto de atitudes morais e compromissos políticos em detrimento do debate aberto”, o que teria terminado por fazer com que a conformidade ideológica “diminuísse a tolerância às diferenças”.

Com isso, o manifesto provocou reações negativas generalizadas. Foi visto por alguns como tolerante demais com as condições pouco democráticas vigentes em diversos países, a começar nos EUA, onde há ameaças explícitas recorrentes aos direitos humanos e à dignidade dos cidadãos. Apoiadores da Black Lives Matter não gostaram da carta, que questiona as vertentes identitárias exacerbadas. “É um amontoado de declarações vagas que parecem defender a liberdade de expressão. Mas quem não é favorável à liberdade de expressão? Na realidade, o que defendem é uma expressão sem consequências para aqueles que sempre usufruíram dessa liberdade”, fuzilou a escritora Rebecca Solnit.

Talvez tenha havido, entre os signatários, ingenuidade e erro de cálculo, pois esse progressismo está em ascensão e a situação que predomina em diversas sociedades o beneficia. Como ser “tolerante” com um racista discriminador, como instituir o diálogo com um fanático negacionista ou um machista violento? Reivindicar o direito de discordar quando todos discordam de todos o tempo todo pareceu ser algo supérfluo.

O problema, na verdade, aparece quando os progressistas brigam com quem está em seu próprio campo e aceita os mesmos valores de justiça, igualdade e direitos. O debate, nesse caso, tem-se mostrado bastante improdutivo. Não só porque a livre troca de informações está travada, mas também porque a má vontade com o argumento dos outros se ampliou demais e a agressividade prevalece nas conversas, sobretudo nas redes. Sobra, portanto, intolerância.

Formas de “democracia iliberal” estão espalhadas hoje pelo mundo. Estão vivas no Brasil de Bolsonaro. Em todas as situações o quadro se repete: governantes eleitos pelo voto, com seus partidos e movimentos fanatizados, usam expedientes democráticos para minar a democracia, corroê-la por dentro, por meios insidiosos, seja como valor, seja como ideia de representação política, governança e organização institucional do Estado.

Os “iliberais” atacam os fundamentos do liberalismo político, no qual a democracia representativa e os direitos políticos ocupam lugar de destaque. Pretendem ser liberais na economia, mediante incentivos desenfreados à desregulação, à privatização e ao mercado livre. Costumam, também, defender a liberdade de expressão de maneira tortuosa, sem concebê-la de modo irrestrito, ou seja, negando-a aos adversários e restringindo-a ao direito de dizer tudo o que for contra o “politicamente correto” e a democracia substantiva. Fabricam inimigos por todo lado, falseiam informações e organizam campanhas de difamação.

O clima criado pelos “iliberais” não é sem consequências. Tem favorecido a expansão de uma zona contaminada no próprio campo democrático, dificultando sua autoconsciência e sua organização. Paralisados pelas dificuldades criadas pelos adversários momentaneamente “empoderados”, os democratas giram em torno de si próprios, muitas vezes brigando com suas sombras e autoimagens. Com isso, deixam de fechar o cerco ao autoritarismo e a tudo o que há de indesejável na vida atual. Dispersam-se, quando deveriam se unir.

No Brasil, em particular, o atual governo é um misto de autoritarismo explícito e “iliberalismo” inconsistente. É uma plataforma doutrinária de ocasião, rasa e desprovida de teoria. O “gabinete do ódio” fornece sua melhor expressão. Em nome de uma ideia torta de liberdade, ele promove um ataque incansável aos princípios constitucionais básicos, aos direitos humanos e aos institutos voltados para a separação dos poderes e o controle social. Em vez de governo, tem-se na verdade um front ideológico, uma brigada dedicada à guerra cultural, ao combate à ciência, à cultura e à intelectualidade.

Faz-se assim a degradação nominalmente democrática da democracia.

O resultado é trágico, até por se combinar com a pandemia e com uma sociedade cortada pela desigualdade. “Democracia iliberal” é um nome pomposo para o autoritarismo dissimulado, que está agravando os diferentes problemas nacionais e paralisando os democratas. Há uma marcação cerrada do Poder Judiciário sobre o governo e suas práticas, o que representa uma importante redução de danos. O Congresso Nacional tem-se movimentado também e ajuda a moderar a virulência governamental. Mas falta alguém para colocar o guizo no gato.

O efeito negativo é múltiplo. O país está perdendo confiança em si próprio. Sua imagem externa é deplorável, perdem-se espaços estratégicos na economia mundial. Internamente, a solidariedade e a liderança (política, intelectual) estão-se evaporando, com uma dificuldade brutal para fixar uma perspectiva de crescimento, recomposição da infraestrutura, de reforma do Estado e combate à desigualdade. Estamos carentes de políticas sociais de inclusão e proteção.

A intolerância e o tratamento autoritário das diferenças políticas empurram o país para trás. Não há como evitar que postulações identitárias se espalhem pela sociedade, à esquerda e à direita. Elas não podem, porém, congestionar o espaço democrático ou bloquear uma coesão política que possibilite a construção do futuro. A saída passa, estrategicamente, por uma articulação política que unifique os democratas e garanta a pluralidade inerente à complexidade social em que vivemos.

*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista).


Marco Aurélio Nogueira: O futuro que nos escapa

Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional

Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.

Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.

A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.

O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.

A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas, carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade. Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e procedimentos.

Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor, inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as bases da Nação e do Estado.

A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma utopia.

Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.

De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos. Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.

O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas, como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda o que está conectado, o todo.

O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.

A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos incerto e duvidoso.

Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.

Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.


Marco Aurélio Nogueira: As ruas como recurso e dilema

A democracia não vive sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Há, porém, a pandemia e a correlação de forças

Como fazer manifestações presenciais – nas ruas – em plena pandemia? O vírus está vivo, em propagação ascendente, e todo contato é fonte de perigo. Manifestações aglomeram, mesmo quando feitas com organização.

Mas como pregar que as pessoas não se manifestem? É provável que muitas estejam cientes do contágio a que estarão expostas. Mesmo assim aceitam o risco, o que é meritório. Há um quê de paradoxal aqui: combate-se a crise sanitária com uma mobilização que, no limite, pode agravar a própria crise. Também ocorre que muitos manifestantes são pessoas já expostas diariamente ao vírus, para as quais ir ou não às ruas pode não fazer maior diferença em termos de segurança sanitária.

Talvez não haja outro modo de proclamar o mal-estar, a indignação, a revolta. Afinal, tem sido o próprio governo a promover tal estado de espírito coletivo. Martelando o conflito e o autoritarismo o tempo todo, Bolsonaro entrou em atrito com fatias crescentes da sociedade. Hoje, pesquisas indicam que seu apoio não passa de 30%, e é declinante. Inevitável que sempre mais gente queira ir às ruas, por a angústia para fora, sacudir o pó acumulado pelos longos meses de quarentena. É um estado de espírito que necessita de ponderação e análise circunstanciada da realidade concreta.

A democracia e a luta por ela não vivem sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade com retrocessos autoritários, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Além disso, precisamos admitir que a política institucional não está respondendo à sua própria crise, aos abusos do governo e ao sofrimento popular. Seus setores mais “saudáveis” estão carentes de pressão e apoio.

Deste ponto de vista, as ruas podem ajudá-los.

Manifestações de rua não são a única forma de luta, certamente. Tão importante quanto elas é a articulação dos democratas e a abertura, no mundo político em sentido estrito, de fendas que propiciem a construção de melhores patamares de negociação.

Nenhuma ida às ruas é sem consequências. Mesmo que a intenção seja tão somente dar vazão a uma revolta, o ato em si tem desdobramentos. Hoje, não é difícil visualizar dois desdobramentos potenciais.

Um é a ampliação do enfraquecimento do governo, com a explicitação mais ostensiva de que ele não goza de consenso inequívoco, como o bolsonarismo vem declarando. Por esse caminho, as vozes da rua podem ecoar no campo político e incentivar a ação mais firme dos políticos, dando a ele condições de dar passos além. No terreno concreto em que nos encontramos, isso pode significar impulso para que avancem as tratativas dedicadas a formar frentes e alianças pela democracia.

Outro desdobramento é mais complicado. As ruas podem ser instrumentalizadas pelo governo. A disposição à violência pode não integrar os planos iniciais, mas simplesmente acontecer graças a provocadores, infiltrados ou não, e à exacerbação dos ânimos. Afinal, são “torcidas”. Se ocorrerem colisões com a polícia repressora ou com os bolsonaristas, as ruas podem servir de pretexto para um reforço demagógico da narrativa governamental, qual seja, a de que há “baderneiros” querendo atacá-lo e prejudicá-lo.

Neste segundo desdobramento, há quem argumente que as ruas podem facilitar a manobra golpista do bolsonarismo. É um risco real, não há como negar. E cabe, aos democratas, firmeza para dizer isso com todas as letras.

Mas será que, perante tal ameaça, as ruas também não poderão funcionar como antídoto, criar um cordão protetor da democracia? Caso consigam se organizar com um mínimo de eficiência e afastem de si as tentações maximalistas e voluntaristas, uma página será virada. Os democratas também precisam reconhecer isso, com seriedade e cautela.

O dilema das ruas está justamente na intersecção destes pontos.

Bolsonaro não tem forças para dar um golpe contra o governo democrático, ou seja, um autogolpe. Não tem maioria sustentável na sociedade e seus apoios nas Forças Armadas parecem não ser tão expressivos quanto se imagina.

Durante a corrente semana, o governo perdeu batalhas importantes. Viu crescer a tragédia da epidemia sem oferecer qualquer resposta ou demonstrar qualquer empatia. Revelou-se também que o Ministério da Saúde camufla e retarda a divulgação de dados. Ampliou-se seu desgaste entre a população. E, com as manifestações da OAB e da Câmara dos Deputados, o presidente perdeu a possibilidade de permanecer defendendo a “intervenção constitucional” das Forças Armadas.

Estamos numa encruzilhada complicadíssima. As “torcidas” estão de algum modo “empoderadas”. Há “heroísmo” de um lado. As hordas bolsonaristas são insufladas pelo presidente e pelo gabinete do ódio. O confronto será trágico, caso ocorra. Por outro lado, não há força política para interromper isso. Vozes em prol da ponderação são importantes e devem se posicionar. Podem alguma coisa, mas não podem tudo e não são ouvidas pelos ativistas. Também não têm representatividade suficiente para conclamar as pessoas a que não se manifestem fisicamente.

Falta ao país um megafone, uma liderança. Instituições como o Congresso e o STF estão cumprindo um papel decisivo, com cautela e paciência, de certo modo travando os movimentos do Poder Executivo. Mas, como instituições, seus ritos e ritmos não acompanham a insatisfação social no mesmo andamento dela. Ainda são vistos com desconfiança pela sociedade. Os partidos não dirigem nem orientam, estão a dever.

Tudo isso está necessitando de reforço: criar uma opinião democrática no âmbito da opinião pública, valorizar as instituições e trabalhar para que elas sejam compreendidas pela população.

Temos muito coisa em marcha, mas faltam-nos coesão, liderança clara, narrativa e capacidade de compreensão do que há de novo na sociedade.

Manifestos são excelentes como forma de vocalizar o grito de angústia preso na garganta. Indicam que a sociedade passou a se mexer em sentido democrático. Mas precisamos ir além da reverberação deles. A direita democrática, o centro liberal e a esquerda precisam se articular e honrar o “Basta!” que vem sendo proclamado. A hora é de unidade política. Quem não se dispuser a ela, que fique para trás.

*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Democratas de todas as colorações, uni-vos!

Ou se unem com determinação, ou o Brasil ficará inviável por longo período

Não é preciso arrolar, pela enésima vez, os ilícitos e as perversões que desabam sobre a sociedade. Formam robusto prontuário. Só não os vê quem não quer.

A continuidade do governo Bolsonaro ameaça a vida, a Nação, a sociedade. Lança-nos num vórtice de destruição, que potencializa o vírus e infecta a reprodução da ordem social.

Precisamos dar um basta a essa situação, em que a insanidade governamental se mistura com o ativismo fanatizado da extrema direita e com o silêncio dos democratas. Bolsonaro é a crise viva, em expansão. Sua remoção precisa ser posta na mesa, para que se evite o abismo.

Mas não é só o impeachment. Será preciso reorganizar o País. Disputas internas não ajudarão, por mais que sejam inevitáveis.

Também somos responsáveis pelo que está aí. Cometemos erros, que não foram processados. Continuamos a nos dividir, a brigar com a própria sombra, a insistir em atitudes e discursos que não dialogam com as pessoas, não as direcionam, não as esclarecem. Somos prisioneiros do cálculo eleitoral, do oposicionismo retórico. Estamos carentes de ideias, de luzes, de lideranças. De articulação.

Temos de encontrar um meio de fazer oposição com eficácia e generosidade. Sem vetos. Sem postulações doutrinárias. Sem maniqueísmos. Sem tergiversações. É um suicídio continuarmos a repetir fórmulas que não funcionam mais e prolongam uma agonia paralisante.

Há que agir. No Parlamento, nas redes sociais, na imprensa, nos núcleos da sociedade civil. A quarentena não é pretexto para ficarmos à espera de um raio que caia em Brasília. A cautela não dispensa a denúncia veemente, antes a exige.

Ainda há muitos brasileiros impregnados pela imagem redentora do “mito”, ressentidos, frustrados, com raiva, sem compreensão dos tempos da política, do valor da democracia e da representação parlamentar. Precisamos alcançá-los, trazê-los para o terreno da racionalidade democrática. Não avançaremos repetindo mantras surrados, que não levam a lugar nenhum, nem convencem quem precisa ser convencido.

Devemos reconhecer nossas limitações, insuficiências, falhas de compreensão da realidade.

Os democratas brasileiros – de centro, liberais, conservadores, de esquerda – deixaram-se dividir por excessos, querelas ideológicas, batalhas infrenes de poder. Levaram longe demais a exploração de suas diferenças. Não olharam atrás da porta. Não perceberam que pela direita crescia uma onda contrária a eles, hostil a seus programas, às perorações de seus líderes, ao modo como se apresentavam ao mundo.

Não decodificaram a linguagem da época. Continuaram amarrados aos mesmos dogmas, às mesmas diatribes e polêmicas, reunindo-se em tribos impotentes, agredindo-se reciprocamente.

Menosprezaram o adversário principal, achando que poderiam derrotá-lo com um sopro. Assistiram à propagação de uma gosma venenosa que contagiou parte importante da população. Permaneceram agarrados às obsessões de antes, a fantasmas insepultos, a promessas ocas e frases de efeito.

Em 2018 perderam a eleição presidencial para um político tosco, inescrupuloso e manipulador, que fez seus adversários comerem poeira. Foi um espetáculo vergonhoso, trágico, pelo qual estamos pagando alto preço.

Passada a refrega, os democratas permaneceram a lamber suas feridas. Viram o circo pegar fogo, orbitando lideranças que não lideram, rotinas engessadas, partidos estraçalhados e impotentes. Hoje zelam pelas instituições e pelos ritos constitucionais, o que é ótimo. Mas suas falas não reverberam, só fazem prolongar a existência de um governo perdido e descompensado.

Continuaremos a brigar as mesmas brigas? Teremos coragem e disposição para reorganizar a agenda, aposentar o que não mais agrega valor à política, buscar o que lateja em meio aos escombros do sistema que ajudamos a erguer, mas não mais nos ajuda? Saberemos afastar preconceitos e abrir espaço para os jovens, as novas linguagens, os youtubers e comunicadores, os parlamentares que não seguem ordens partidárias rígidas? Ou vamos prosseguir achando que somos donos do futuro?

Muitos acreditam que o sistema de pesos e contrapesos está intacto. Em nome disso, ignoram o arbítrio e a violência legal do Executivo. Não criticam os jogos procrastinadores do Congresso, a covardia de suas lideranças. São benevolentes com o Judiciário.

Chegamos à hora da verdade. Necessitamos de pessoas que ajam com firmeza democrática e republicana. Nossa fronteira está além de contraposições inúteis entre esquerda e direita, liberalismo e socialismo, mercado e Estado. Temos de nos reposicionar. Reaprender a dialogar, com paciência e tolerância. Que os moderados se disponham a lutar, que os radicais lutem de outro modo. Que todos baixem o tom, dispensem maximizações extemporâneas e apurem o foco.

Ou os democratas se unem com determinação – para fazer política, travar a luta cultural, interpelar a população – ou o País ficará inviável por um longo período.

Unamo-nos, enquanto há tempo!


‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

Em artigo na revista Política Democrática Online, cientista política aponta Bolsonaro transmite ‘mensagem de guerra’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

 O cientista político Marco Aurélio Nogueira, professora da Unesp (Universidade Estadual Paulista), critica a falta de postura de Jair Bolsonaro condizente para o cargo que ocupa. “Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia [do coronavírus]”, escreveu, em artigo produzido para a nova edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). “Bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial”, afirma, em outro trecho.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados de graça no site da entidade. De acordo com cientista político, o presidente só se preocupa em mobilizar o seu próprio clã. “O presidente fala, e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo”, critica.

De acordo com Nogueira, Bolsonaro não pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. “Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder”, lamenta. “Os olhos esbugalhados apontam para 2022, e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha”, afirma.

Na avaliação do professor da Unesp, conforme artigo publicado na revista Política Democrática Online, outra articulação, benéfica, mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. “Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional”, observa.

Nogueira destaca que “o bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial”. “Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é ‘antipetista’, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de ‘olavismo’, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática”, analisa o professor da Unesp.

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Marco Aurélio Nogueira: O pão de cada dia

Ficar em casa é atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade

Quarenta dias depois de iniciado o confinamento domiciliar recomendado pelos órgãos sanitários, duas questões chamam atenção quando se observa a cena brasileira. Ambas são de natureza comportamental.

Em que pesem todos os alertas e apelos médicos, as mortes que se acumulam, uma parte da população não aceita ficar em casa. Movimenta-se, aglomera-se sem necessidade, criando o ambiente de que necessita o vírus para se espalhar. São pessoas que parecem imunes à dor e à solidariedade. Para elas, o problema é sempre dos outros.

Há que fazer um desconto nessa constatação. Muitos simplesmente não podem ficar em casa. Precisam trabalhar, ganhar o pão de cada dia, tocar a vida. Outros não têm como se isolar, vivem em habitações exíguas, sub-humanas, em bairros de densidade demográfica tão alta que as casas parecem formar um monólito indivisível. Sem levar na devida conta essas circunstâncias, não conseguiremos ir além de uma leitura moralista da situação.

Há, porém, uma fatia importante da população que não se enquadra nesses casos. São pessoas que jogam futebol ao ar livre, fazem atividades em grupo, não dispensam os contatos interpessoais. Também não tomam precauções nem procedem com cautela. Enchem os belvederes em dia de sol, levam os filhos para brincar nos parquinhos, frequentam bares, vão às “feiras do rolo” que continuam a se realizar, como na Sé, em São Paulo.

Sabe-se que continuam a ocorrer bailes funk em periferias urbanas. Em Manaus, onde a epidemia tem sido particularmente devastadora, noticiou-se que o Estádio Carlos Zamith, que funcionou como centro de treinamento para a Copa do Mundo de 2014, abrigou uma festa regada a bebidas alcoólicas. Em Blumenau, uma multidão invadiu os shopping centers reabertos pela prefeitura, sendo recebida com aplausos pelos lojistas.

É um assombro que haja tanta indiferença justamente entre nós, com nossa alma latina, sempre pronta a se derramar em lágrimas e a se comover com a desgraça alheia.

Algumas dessas pessoas pretendem-se “ativistas”. Protestam contra o isolamento, fazem carreatas, detonam políticos e autoridades, agitam faixas e bandeiras nos portões de palácios e quartéis. Aceitam o obscurantismo anticientífico e o negacionismo, atacam as instituições e pregam a volta da ditadura, como se isso fosse um desejo da maioria dos brasileiros. Muitas delas são manipuladas por profissionais e influencers de extrema direita. Mas nem sequer se dão conta disso. Deixam-se levar, convictas de que prestam um serviço ao País.

Intriga que tais pessoas não mudem mesmo quando tudo indica que o caminho não é do confronto e da negação dos fatos, quando o presidente, em plena pandemia, dispara uma cretinice por segundo, que só faz piorar a situação. A atitude não tem que ver com posição política ou ideológica. É de natureza psíquica, liga-se a um egoísmo entranhado na alma e na mente.

São pessoas levadas pelo ódio: ao PT, às esquerdas, aos políticos, à democracia. Muitas dizem carregar Jesus no coração, mas estão orientadas por uma raiva doentia, que as cega e embrutece. Estão expostas a um tipo de veneno que inebria e aliena, que vai sendo destilado dia a dia pelo presidente e por seu “gabinete do ódio”, com seus robôs incansáveis e suas fake news. São pessoas reativas, que não pensam. Acreditam que o “mito” está certo, haveria mesmo uma “conspiração” sendo articulada contra ele. No fundo, agem contra a sociedade, a ordem institucional, o Estado como comunidade política de homens e mulheres. Sua mentalidade é de manada, de tribo.

Sair do confinamento não é uma questão econômica, ligada à retomada dos negócios. Só terá sentido se souber se articular com a preservação da vida. A solução não é a saída abrupta de milhões de pessoas sem que o sistema de saúde esteja preparado para a multiplicação dos doentes graves. Porque todos serão infectados, não haverá como evitar. A volta à normalidade é algo muito mais sanitário que econômico. Precisa, por isso, ser planejada com inteligência estratégica, considerando que o vírus permanecerá ativo e agressivo.

Ficar em casa é uma medida defensiva, de proteção à vida pessoal e familiar. Mas é também uma atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade. Com base nela, pode-se retardar a disseminação do vírus para que todos os doentes, em especial os mais frágeis, possam ser atendidos pelo sistema de saúde.

O “ficar em casa” a que estamos sendo conclamados não é uma restrição opressiva. Há como se movimentar um pouco, tomar sol, caminhar. O que não se pode é agir como manada, sem manter distância cautelar mínima e cuidados de higiene. Não é difícil de entender.

Constatar que existem pessoas que não conseguem compreender isso faz com que se desconfie da humanidade dos humanos e da sua capacidade de reagir com lucidez nos piores momentos. Prova que estamos carentes de fraternidade e solidariedade, entregues à crueldade do mundo, como costuma dizer o filósofo Edgar Morin.

 


Marco Aurélio Nogueira: Diga-me com quem andas

Ministro da Justiça, Sérgio Moro está comendo o pão que o diabo amassou

Ontem, conversando com o jornalista Alexandre Machado, observei que não é aceitável que o ministro da Justiça fique em silêncio num momento como o atual. São tantas ilegalidades, tanto desrespeito aos direitos humanos, à Constituição e à democracia, que o mínimo que o titular da pasta deveria fazer seria se posicionar. Qualquer outra coisa que não isso é constrangedora.

Sérgio Moro está comendo o pão que o diabo amassou. Pagará caro pela omissão e pela covardia que o converteram em objeto de decoração de um governo descerebrado. Não terá como apagar de seu currículo o serviço que está a prestar a um presidente que pouco caso faz à Justiça.

Hoje, o noticiário dá conta de que Moro está pensando em se demitir. O motivo seria a disposição do presidente de se livrar do diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo. É uma novela que se arrasta há tempo. A razão da irritação presidencial não é conhecida, mas não é difícil imaginar quais são suas preocupações e intenções.

Caso termine por se consumar, a demissão de Moro deixa o governo mais fraco na opinião pública, mas não em termos políticos e administrativos. O atual ministro já era carta fora do baralho governamental. Para azar dele, acabará saindo tarde demais, sem tempo hábil para recompor a imagem e calibrar a narrativa. Terá de fazer um esforço enorme para sustentar que apesar de ter andado na companhia da família Bolsonaro não manteve laços de identidade com ela.

*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp