marcelo tognozzi
Marcelo Tognozzi: Uma lição não aprendida
Brasil repete era de violência extrema. O senador Cid Gomes invadiu uma manifestação da PM no Ceará com uma retroescavadeira e levou 2 tiros durante o protesto
Misturar política com forças de segurança sempre acaba em tiro, sangue e porrada. A cena dantesca do senador Cid Gomes partindo para cima de uma multidão de PMs grevistas nos remete ao Brasil de 98 anos atrás, quando o mineiro Artur Bernardes se elegeu presidente da República no dia 1º de março de 1922. Os anos Bernardes (1922 – 1926) foram ofuscados pela era Vargas. Representam um momento de grande ruptura política e confronto violento, num Brasil tão efervescente quanto o de hoje.
A começar pelas fake news. Bernardes recebeu o mais duro ataque da campanha através de duas cartas com sua assinatura falsificada, contendo duras críticas aos militares e publicadas pelo Correio da Manhã, então principal jornal da capital Rio de Janeiro. Elas foram meticulosamente preparadas por 3 partidários do Marechal Hermes da Fonseca que, antes de vende-las ao senador antibernardista Irineu Machado, procuraram o próprio Artur Bernardes pedindo 30 mil contos em troca delas. Bernardes mandou-os pentear macacos e achou que não teriam coragem de ir além.
Ledo engano. Machado entregou-as ao Correio. E aí vemos a história se repetir nos detalhes, quase que por inteiro 1 século depois, quando o vale-tudo de reportagens mal apuradas e erros grosseiros acabam sendo transformados em verdade, denegrindo a reputação da imprensa enquanto instituição. Naquele 1921, o Correio até tentou reconhecer a firma de Bernardes, mas o tabelião Djalma Fonseca Hermes recusou, porque a considerou incompatível com a assinatura arquivada no cartório.
Mesmo assim o Correio da Manhã insistiu na fake news. A primeira carta foi publicada na edição do dia 21 de outubro de 1921. O jornal atacou duramente o candidato do Partido Republicano Mineiro. Edmundo Bittencourt, dono do jornal, foi para a Europa em janeiro de 1922 tentar arranjar um perito que confirmasse a autenticidade das cartas e da assinatura. Conseguiu um francês para atestar a autenticidade.
Em fevereiro, o lendário Virgílio de Melo Franco –um dos artífices do Manifesto dos Mineiros 21 anos depois– zarpou para a Itália, mostrou as cartas a peritos da Faculdade de Direito de Roma e, depois, a especialistas do Instituto de Ciências Políticas de Lausanne, na Suíça, comprovando a falsidade das 2 cartas e enchendo de água o chope de Bittencourt.
Mesmo com a recusa do tabelião em reconhecer a firma de Bernardes e as perícias de italianos e suíços, as cartas falsas continuaram repercutindo e incendiando. Serviram de estopim para a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 5 de julho de 1922, quatro meses depois da eleição de Artur Bernardes, na primeira ação do que veio a se tornar conhecido como Movimento Tenentista.
Empossado em 15 de novembro de 1922, o 12º presidente do Brasil formou um gabinete de 9 ministros e governou um país conflagrado pela violência, mantendo o Estado de sítio durante todo o mandato. Em 1923 explodiu no Rio Grande do Sul a guerra entre os ximangos liderados por Borges de Medeiros e os maragatos de Assis Brasil.
Uma guerra famosa pela degola, daí o lenço vermelho usado pelos maragatos. Em 5 de julho de 1924, estourou a revolução em São Paulo liderada pelo general Isidoro Dias Lopes, guerreiro da Revolução Federalista gaúcha de 1893 contra Floriano Peixoto, o que lhe valeu uma temporada de exílio em Paris. Anistiado pelo presidente Prudente de Morais, voltou ao Exército. Em 1924, Isidoro conspirou com Miguel Costa, então comandante da Força Pública Paulista, equivalente à PM de hoje em dia.
A mistura venenosa de fake news, agitadores militares e membros da Força Pública rendeu uma revolução curta e sangrenta. São Paulo foi bombardeada inúmeras vezes durante os 23 dias da revolta pelas aeronaves Morane Salnier e Nieuport 21E1, ambas de 80HP, soltando bombas de 60 kg, além de artilharia de 75, 105 e 155mm. Havia gente morta e despedaçada pelas ruas, especialmente na Mooca e regiões operárias, prédios desmoronados, incêndios e nem o Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo paulista, escapou das bombas. A população se escondia como podia, muitos fugiram e São Paulo viveu uma onda de saques e estupros.
O governo de Bernardes ganhou esta guerra, mas uma outra começou em seguida com o surgimento da Coluna Prestes-Miguel Costa, mostrando que o conflito viera para ficar. Em 1930, Washington Luís, sucessor de Bernardes, foi derrubado por uma revolução apoiada pelos tenentes e a burguesia. A pacificação só aconteceria 10 anos depois, em 1932, quando Getúlio Vargas sufocou a Revolução Constitucionalista de São Paulo, desta vez sem bombardear a capital dos paulistas, mas castigando especialmente cidades do Vale do Paraíba e Campinas, em operações comandadas pelo então major Eduardo Gomes a bordo do seu vermelhinho, como eram conhecidos os aviões Waco do governo. Os aviões paulistas eram os gaviões de penacho, comandados pelo major Ivo Borges.
Quase 1 século depois da violência e do extremismo dos anos 1920, assistimos à repetição da explosiva combinação de política com forças de segurança no Ceará. O ex-governador Paulo Hartung sabe muito bem o que é isso. Em 2017, 217 pessoas morreram durante a greve da PM iniciada em 4 de fevereiro. A reivindicação era a mesma de sempre: melhores salários.
O caos se instalou no Espírito Santo durante 20 dias até que Hartung conseguiu negociar a paz. Com o movimento do Ceará sendo tratado a golpes de retroescavadeira, o Brasil dá uma marcha à ré rumo a uma era de violência extrema, um trauma não superado e uma lição da história até hoje não aprendida.
Marcelo Tognozzi: O Chile saiu do armário
Chilenos protestam contra preço do metrô. Imagem de país próspero é propaganda. Chile viveu 17 anos de uma ditadura. O Brasil trilhou caminho parecido
Black blocs atacam agências de bancos e lojas de luxo no Rio e em São Paulo. Em Brasília, um grupo de encapuzados tenta incendiar a sede do Itamaraty. Uma guerra urbana estava declarada. Naquele junho de 2013 a violência dos protestos foi inédita e em muitas ocasiões os manifestantes colocaram a polícia para correr. Não era pelos 20 centavos, diziam os líderes do Movimento Passe Livre se referindo ao aumento das passagens de ônibus em São Paulo.
Seis anos depois a situação se repete no Chile, fruto de um mesmo estopim: o aumento no preço do metrô. Como no Brasil de seis anos atrás, as principais cidades chilenas estão tomadas por ondas de protestos. “Não é mais pelos 30 pesos (R$ 0,18), mas por 30 anos”, gritam os manifestantes.
O Chile viveu 17 anos de uma ditadura iniciada em 1973, quando o general Augusto Pinochet tomou o poder depois de bombardear o palácio do governo e matar o então presidente Salvador Allende, do Partido Socialista. Desde 1990 é governado por democratas cristãos, socialistas e políticos de centro-direita como o atual presidente Sebastian Piñera. Entre os presidentes pós-ditadura dois deles, Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, foram eleitos pelo Partido Socialista.
O Brasil trilhou caminho parecido na fase pós-governo militar, embora tenha apeado do poder dois presidentes pelo impeachment. Tivemos governos de centro-direita com Sarney, Collor e Itamar, de centro-esquerda com Fernando Henrique, Lula e Dilma, e agora Bolsonaro governa com a direita.
As semelhanças entre os dois países não param por aí. Ambos buscaram reduzir o tamanho do estado privatizando serviços públicos e estimulando o empresariado a investir em educação e serviços de saúde. No Brasil, embora a Constituição garanta ensino público e Sistema Único de Saúde (SUS), isso ficou restrito aos pobres. Ricos e classe média pagam escola particular e plano de saúde. Um símbolo de status. O Chile deu um passo a mais: privatizou a Previdência.
Queridinho do FMI e das agências internacionais de risco, o Chile sempre foi tido e havido como um exemplo a ser seguido. Os protestos deste outubro começam a mostrar um pedaço do Chile até então escondido debaixo do tapete. Planos de saúde, previdência privada e escolas particulares se tornaram 1 negócio comandado pelos grandes conglomerados financeiros, para os quais tudo é 1 negócio, inclusive a sociedade.
Recente estudo publicado pela BBC mostra que apenas 20% dos chilenos têm acesso a um sistema de saúde decente. Os demais dependem do sistema público, onde as esperas são imensas e a qualidade medíocre, porque falta o essencial: investimento. Nas aposentadorias a insatisfação é total, porque a população perdeu a confiança nas Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), empresas privadas responsáveis por cuidar das aposentadorias. Os socialistas e liberais imaginavam que os chilenos conseguiriam se aposentar com 70% dos rendimentos dos últimos 5 anos. Deram com os burros n’água.
A diferença fundamental entre o Chile e o Brasil é que aqui houve a preocupação de manter mecanismos de distribuição de renda capazes de aliviar a pressão nas classes menos favorecidas. É o caso do bolsa família, por exemplo, dos programas habitacionais, vale gás, cestas básicas e outros auxílios. Bolsonaro sabe que não se pode acabar com estas coisas, tanto que criou o 13º para quem recebe bolsa família. Tomar que tenha ensinado isso a Paulo Guedes. O Brasil ainda tem uma saúde pública com ilhas de excelência como o Hospital das Clínicas em São Paulo ou o Instituto Nacional do Câncer no Rio, onde qualquer um pode se tratar.
Da mesma forma que em 2013 o Brasil mostrou uma cara muito diferente daquela estampada na propaganda do governo Dilma, o Chile deste 2019 revela ao mundo que a imagem de país próspero e povo feliz não passava de pura propaganda de governos durante os quais o abismo entre ricos e pobres não parou de aumentar. Este modelo nivelou as pessoas por baixo, criando uma sociedade com uma classe média achatada e cada vez mais pobres sem acesso à educação de qualidade, à saúde e serviços públicos essenciais.
As redes sociais se tornaram o principal canal de resistência a este modelo, onde os protestos são gerados e geridos. São ao mesmo tempo instrumento de manipulação com eficiência proporcional ao tamanho da ignorância das pessoas. Neste contexto as turbulências tendem a aumentar a prevalecer este sistema de lucros e privilégios baseado na exclusão e na negação da cidadania.
O Chile real saiu do armário e seus governantes precisam encarar a realidade, repensar o modelo e as relações entre a sociedade e os grandes conglomerados financeiros. Eles não podem continuar governando.
Marcelo Tognozzi || Bárbaros e civilizados
Civilizado Macri foi emparedado. Kirchner é rainha dos bárbaros. Argentina precisa de um estadista
Aperto o play do Libertango de Piazzola, porque é inevitável falar sobre a Argentina, um país dividido por Domingo Faustino Sarmiento entre civilizados e bárbaros no seu livro Civilização e Barbárie de 1845. Estava em Buenos Aires a primeira vez que ouvi falar em Juan Facundo Quiroga, por quem Sarmiento era fascinado. Um repórter meu amigo contou que o então presidente Carlos Menem se inspirara em Quiroga ao decidir cultivar suas célebres costeletas. Ambos governaram a província de La Rioja, no pé dos Andes, fronteira com o Chile, famosa pela carne e vinhos.
Inimigo político de Quiroga, Sarmiento escreveu a biografia do caudilho mais amado da Argentina, el Tigre de Llanos, corajoso, violento, temido e assassinado numa emboscada aos 46 anos. Seu livro narra a história da formação do país a partir de 1810, quando a Espanha, invadida e humilhada por Napoleão, perdeu o controle dos vice-reinados do Prata. A Argentina de Sarmiento nasce dividida entre bárbaros e civilizados, os primeiros representados pelos caudilhos, gaúchos e nativos e os segundos por uma elite de formação europeia e simpatizante dos Estados Unidos. Os bárbaros queriam uma federação; os civilizados um país unitário.
Passados 174 anos, Civilização e Barbárie continua sendo uma referência para entender a Argentina e seu povo. Sarmiento governou a província de San José, foi embaixador nos Estados Unidos e presidente entre 1868 e 1874 pelo Partido Liberal, logo transformado em Partido Autonomista Nacional (PAN). Como bom civilizado, investiu pesado em educação, transportes e guerreou contra o Paraguai ao lado do Brasil e Uruguai. Criou as bases para o surgimento de uma Argentina rica, que em 1913 inaugurou em Buenos Aires a primeira linha do metrô, chamado de subte pelos portenhos.
Em 1930, o reinado do PAN foi interrompido quando um general bárbaro chamado José Felix Uriburu virou a mesa e instalou uma ditadura. Pouco mais de um ano depois o poder passou para as mãos de outro general bárbaro, Agustín Pedro Justo, e nelas permaneceu por seis anos. Até 1946, quando Juan Domingo Perón chegou ao poder, o país viveu uma sucessão de governos fracos e fugazes.
Perón ficou uma década na cadeira. Um caudilho moderno, nem por isso menos bárbaro aos olhos dos civilizados. Não liderava uma massa armada como Quiroga, mas um exército de pobres surgido na decadência econômica pós 1930, quando política e caridade se misturaram e o sindicalismo entrou na rota da ascensão social e política. Depois de Perón veio o dilúvio numa sucessão de governos frágeis e curtos até ele voltar ao poder em 1973, morrer menos de um ano depois e a Argentina cair no buraco negro de uma ditadura terrivelmente bárbara. A democracia voltou a bordo do governo do civilizado Raúl Alfonsín, sucedido por Carlos Menen do Partido Justicialista, o esperto riojano bárbaro de costeletas que fincou as bases para a hegemonia peronista em vigor e sovada por sindicatos fortes, movimentos sociais atuantes e políticos maleáveis.
O que estamos assistindo neste momento é o civilizado Mauricio Macri ser emparedado por Cristina Kirchner, rainha dos bárbaros e comandante de uma fantástica máquina eleitoral. Antes dele, outro civilizado, Fernando de lá Rúa, não conseguiu governar e o poder voltou para as mãos dos peronistas. Desde a redemocratização nenhum civilizado terminou o mandato. Alfonsín jogou a toalha faltando sete meses e De La Rúa ficou 2 anos e 10 dias. Macri tem sido acusado de muita coisa desde que as prévias deram uma vantagem de 15 pontos para Alberto Fernandez e Cristina Kirchner. Inclusive ser um filhinho de papai civilizado demais.
Este país que nasceu dividido entre uma elite soberbamente civilizada e os caudilhos bárbaros capazes das maiores ousadias, nunca precisou tanto de um pacto, de um entendimento capaz de neutralizar estas diferenças transformadas no maior ingrediente do atraso e da crônica falta de rumo político e econômico. A Argentina necessita de uma mercadoria cada vez mais escassa nos 5 continentes: um estadista. Os estadistas são antes de tudo construtores de nações e viabilizam o entendimento, como fez Adolfo Suarez ao costurar o pacto que mudou para sempre e para melhor a história da Espanha. Os argentinos precisam se libertar deste ciclo vicioso iniciado em 1930 e fazer as pazes com eles mesmos, tornar os civilizados um pouco mais bárbaros e os bárbaros um pouco mais civilizados.
Marcelo Tognozzi: Sánchez não deu e não levou
Premiê espanhol não formou maioria. Partidos pequenos queriam barganhar
Ministérios, cargos e até uma vice-presidência. Unidas Podemos, a extrema esquerda espanhola, não levou o que exigiu e impediu o PSOE do primeiro-ministro Pedro Sánchez de governar. Por duas vezes, terça e quinta-feira (23 e 25.jul.2019), os deputados foram chamados a votar e confirmar, ou não, se Sánchez seguiria no Palácio de la Moncloa. Nas duas o socialista foi derrotado. Perdeu para o fisiologismo explícito de uma extrema esquerda que encolheu nas últimas eleições e desejava um naco gordo do governo, coisa muito comum nos presidencialismos de coalisão como o brasileiro. Pela primeira vez em 40 anos o parlamento diz não a um governante vencedor de duas eleições seguidas no voto popular: as gerais da Espanha e as do Parlamento Europeu.
Este é provavelmente o período mais tóxico da política espanhola desde o fim do franquismo. Durante muito tempo os socialistas do PSOE (Partido Socialista Obrero Espanhol) tinham como principal adversário o Partido Popular (PP), de centro direita. Foram se revezando no poder e tudo parecia muito confortável até que na última década a política começou a mudar com o surgimento de três novas forças: Unidas Podemos, de extrema esquerda, Ciudadanos, de centro, e Vox, de extrema direita. Vieram mais um sem número de outros partidos nanicos de expressão regional, todos com pouco voto, a viver a maravilhosa experiência do poder e da influência. É o caso do Partido Nacional Vasco (PNV). Com uma bancada de 5 deputados eleita em 2016, decidiu o destino do ex-mandatário Mariano Rajoy (PP), derrubado do governo em maio do ano passado por um voto de censura aprovado graças aos votos de um PNV paparicado pelo PSOE de Sánchez.
Quase um clone do velho Pedro de Lara, famoso jurado da era de ouro da TV, o líder do Podemos, Pablo Iglesias, decidiu partir para o tudo ou nada e literalmente tentou encurralar o primeiro-ministro Pedro Sánchez. Ou ele e seu partido ganhavam um latifúndio no governo, o Ministério do Trabalho e toda a área social, ou Sánchez não governaria. O primeiro-ministro precisava de 176 votos. Tinha 123 do seu partido, 1 do Partido Regionalista da Cantábria e precisava dos 42 de Unidas Podemos para chegar lá. Conseguiu apenas 124. O PSOE morreu na praia abraçado ao Podemos.
Sánchez foi derrotado pelas suas escolhas, não pelos adversários. Excessivamente tolerante com os independentistas da Catalunha, processados por rebelião pela Suprema Corte, poderia ter pacificado negociando a perda dos direitos políticos e a liberdade dos envolvidos. Preferiu deixar tudo como estava. Resultado: cinco presos foram eleitos. Quatro são agora deputados e um é senador. Esta turma, junto com outros nanicos nacionalistas de outras regiões, não moveu uma palha para ajudar os socialistas.
Ainda há a remota –mas não impossível– possibilidade de uma nova tentativa de formar um governo até 23 de setembro, quando a lei prevê que o Congresso seja dissolvido e novas eleições convocadas. Se contra todas as probabilidades Pedro Sánchez conseguir compor um governo, está claro nascerá fraco e sem a força necessária para impor seu ritmo. Será um governo manco, sujeito ao risco de uma moção de censura a qualquer momento, porque PP, Ciudadanos e Vox não sossegarão até que ele caia ou se transforme num morto-vivo.
A pulverização dos partidos e o enfraquecimento das duas maiores agremiações, que perderam parlamentares e simpatizantes para Podemos, Ciudadanos e Vox, está mexendo com o estado de espírito dos espanhóis. Nesta semana o país parou para acompanhar as negociações e as votações na Câmara dos Deputados. Era comum ouvir nas ruas, cafés, metrô e restaurantes que os partidos pequenos não podem impedir que quem ganhou a eleição governe. Entre os grandes partidos já há propostas para uma reforma política capaz de tirar poder dos pequenos partidos. Pura ilusão. Ninguém abrirá mão de poder. Terão de se entender na marra. Dando e recebendo, no melhor estilo franciscano.
Marcelo Tognozzi: O incorruptível
Em 28 de julho de 1794, o revolucionário francês Maximilien de Robespierre foi guilhotinado na Praça da Concórdia, em Paris. Sua morte marcou o começo da última fase da Revolução Francesa
Sua morte se convertera numa necessidade. Ele impusera mudança dura e incontrolável. A um amigo confessara ter perdido a conta de quantos ladrões do dinheiro público prendera e expusera publicamente a vexames. Acabara com eles, pela lei e pela força. E prometera a si mesmo que nada o pararia. Tinha o poder de decidir sobre o destino dos ricos e poderosos, sonegadores de impostos e até pequenos canalhas.
Fazia calor quando chegou ao Parlamento naquele 26 de julho. Suava por debaixo do traje formal ao começar sua fala: “Não me confundam com aqueles indignos representantes do povo, os que desonraram a representação nacional. Não podemos fazer vista grossa dos seus crimes deixando que fiquem impunes. O que está havendo é uma conspiração para preservar criminosos entre os quais alguns que estão aqui hoje”.
Demonstrava uma coragem e uma ousadia incomuns. E seguia com seu discurso cheio de perigo: “o único remédio para o país é castigar os traidores. Ninguém pode ser contra a verdade. Eu nasci para combater o crime, não para dirigi-lo”. E continuou como se pressentisse seu destino: “Ainda haverá um momento em que os homens honrados poderão servir à nação sem serem castigados”. Era o limite: não restava outra opção, somente a morte. Julgado e condenado sem tribunal, a sentença deveria ser executada o mais rápido possível para impedir reações.
No dia seguinte pipocaram graves acusações de espionagem contra deputados, diziam que ele não passava de um tirano capaz de desrespeitar a lei, o estado de Direito e desprezar o devido processo legal. Ele reagiu com coragem, encarando seus inimigos olho no olho naquela sua derradeira ida ao Parlamento. Um deles, o mais exaltado, fez questão de mostrar que levava uma arma. Sentiu um arrepio vindo da descarga de adrenalina. Sua boca encheu de saliva. Um homem pronto para matar e morrer.
Reunido com seus companheiros, tentou articular uma resistência, mas ela não passou de um suspiro. Ocupou a prefeitura e pegou em armas. Eram duas da madrugada quando a tropa encarregada de cumprir a ordem de prisão contra ele cercou o prédio e iniciou um tiroteio. Estavam numa ratoeira. Seu amigo, o comissário Felipe, matou-se com um tiro na cabeça. Seu irmão Agostinho tentou fugir pulando de uma janela e quebrou as duas pernas. Ele resistiu como pode. Sangrava muito do tiro que acertou a mandíbula quando um dos soldados o agarrou e sacudiu como um troféu. Experimentou a mesma humilhação e medo impostos a seus inimigos. Ferido, suado, sujo, quebrado.
Eram 6 da tarde daquele mesmo dia quando três carroças saíram da prisão da Conciergerie em direção a Place de la Revolucion, num trajeto de meia hora. Na que abria o cortejo estava Maximiliano de Robespierre, 36 anos, advogado, ex-juiz criminal, o incorruptível, caçador dos ladrões do dinheiro público. A multidão gritou palavrões e vaiou o agora ex-herói da Revolução Francesa de 1789.
O carrasco fez a última inspeção na guilhotina, engraxada e preparada com esmero. Sacou o capuz de Robespierre, que gritou de dor por causa da mandíbula ferida. Em menos de um minuto a cabeça rolou para o cesto consumando a sentença necessária. E seu corpo levado para uma cova rasa e sem identificação no cemitério Des Errancis. Coberto de cal virgem para eliminar quaisquer vestígios da sua incômoda existência, logo recebeu aquela terra cinza de Paris. No dia 28 de julho de 1794. Num verão, há exatos 225 anos.
Marcelo Tognozzi: O caso de Josep Borrell nas eleições do Parlamento Europeu
Eleições serão realizadas até domingo. Borrell é contra independência da Catalunha
O filho de um padeiro nascido no interior da Catalunha se tornou um dos mais respeitados engenheiros e matemáticos da Europa, foi duas vezes ministro e presidente do Parlamento Europeu. Josep Borrell, 72 anos, é mais uma vez candidato a eurodeputado nas eleições deste domingo. Nasceu na Espanha do pós-guerra, na primeira das 4 décadas da ditadura de Francisco Franco.
Desde 1975 milita no PSOE (Partido Socialista Obrero Espanhol) e nas últimas décadas consolidou seu perfil de líder moderado, uma espécie de voz da razão num cenário político onde os extremos ocupam cada vez mais espaço. Um homem das exatas convertido em mestre de uma inexata ciência chamada diplomacia.
Josep Borrell tem uma eleição praticamente certa –não digo exatamente certa, porque vencer eleição não depende só dos votos, mas sobretudo do imponderável. Ministro das Relações Exteriores do governo de Pedro Sánchez, é contra o movimento de independência da Catalunha e há meses o sempre elegante e polido Borrell abandonou o estúdio de uma emissora alemã depois de pressionado por um jornalista visivelmente parcial em relação aos independentistas, parecendo mais um inquiridor a la Torquemada do que um repórter.
Foi uma atitude corajosa. Cobrou do jornalista que se informasse melhor sobre o assunto e fez deste episódio um exemplo de sua luta contra o separatismo.
“Precisamos fazer pedagogia contra as mentiras deles”, declarou Borrell há poucos dias numa entrevista ao jornal El Mundo. Ele sabe muito bem que tem pela frente uma guerra de narrativas, a qual até agora vem sendo vencida pelos líderes do movimento separatista catalão, cujo principal comandante Carles Puigdemont fugiu para a Bélgica e seus outros companheiros estão presos e processados por rebelião pela Suprema Corte.
Chegará forte no Parlamento Europeu depois de ser um dos artífices da vitória socialista nas eleições de abril, quando todos imaginavam um cenário diferente: a extrema direita crescendo e dando aos partidos de direita e centro-direita os votos necessários para tirar o PSOE do poder, como aconteceu em dezembro na Andaluzia.
Como um dos líderes da Espanha socialista saída das urnas, ele chegará a Bruxelas levando uma agenda de mudança, a qual passa pelo enfrentamento de forças como Trump, Orban, Salvini, China, Putin, o Brexit e os separatistas da Catalunha.
Entende ser este enfrentamento capaz de transformar riscos em oportunidades, como usar o Brexit para incrementar a união política da Europa, reforçar o discurso de defesa dos direitos fundamentais e rediscutir a política de defesa.
As propostas que os socialistas espanhóis levarão a Bruxelas são de uma Europa mais social e democrática, com mudança no atual modelo pelo qual o social é responsabilidade de cada um dos países e o macroeconômico da União Europeia. A agenda Borrel passa por uma unificação do salário-mínimo, do seguro desemprego e dos tributos.
Com este discurso e estas propostas, o governo espanhol pretende que ele ocupe a cadeira de Alto Representante para a Política Exterior, uma espécie de ministro das relações exteriores da Europa, hoje nas mãos de Federica Mogherini, 46 anos, ex-chefe da diplomacia italiana. Dentro de poucas semanas, quando os sócios da União Europeia se reunirem para decidir a partilha dos seus principais cargos, o governo espanhol reivindicará o posto.
Com a Inglaterra enfraquecida pelo Brexit, o governo Macron sacudido pelos protestos dos coletes amarelos e com Trump atacando o superávit alemão, uma Espanha que emergiu politicamente forte, respaldando o centro no Parlamento Europeu, tem grandes chances de fazer a agenda de Borrell triunfar. Como filho e neto de padeiros, saberá colocar a mão nesta massa ou melhor; nesta agenda de futuro para os próximos 5 anos.
Marcelo Tognozzi: Sonho e realidade se encontram na eleição do Parlamento europeu
Pleito está marcado para 25 de maio serão onde "sonho e realidade se encontram" European Union. Europeus prezam seu sistema de vida, mas não conseguem bons trabalhos. Na Espanha, há Previdência quebrada. Jovens têm sido atraídos pela direita, pelo discurso de retomar empregos
Diferente do Brasil, onde a conta das aposentadorias e pensões é paga com dinheiro do Tesouro, na Espanha, a exemplo de outros países da União Europeia, há um fundo de reserva para bancar a Previdência. Mas as contas não fecham porque os trabalhadores da ativa não estão gerando contribuições suficientes para bancar os inativos.
Um fenômeno em toda Europa é o envelhecimento da população e a Espanha é o país com menor taxa de natalidade do mundo desenvolvido. A mais baixa desde 1941, quando o país se reerguia após uma guerra civil que em quatro anos matou mais de 500 mil pessoas.
Em 3 cidades não nascem crianças há uma década, como no pequeno município de Yernes y Tameza, em Astúrias. Lá o único menor de idade, com 13 anos, é o menino Adrian Beovides, o último a nascer ali.
Boa parte dos jovens espanhóis, como a maioria dos europeus, terminou a universidade, mas não consegue emprego. Na faixa entre 20 e 30 anos, já são praticamente 1/3 os excluídos do mercado de trabalho. Muitos deles com uma pós-graduação, às vezes duas, e enorme frustração por não conseguirem exercer a profissão escolhida.
A sociedade está diante de uma encruzilhada: jovens super qualificados não conseguem trabalho e, consequentemente, pagam menos impostos e contribuições. Disputam vagas de garçom, vendedor ou recepcionista com imigrantes com pouco ou nenhum estudo.
O Estado investe muito na formação das pessoas e, quando estão prontas para devolver este investimento sob a forma de impostos, são excluídas do mercado de trabalho. O resultado é este curto-circuito nas constas da Previdência.
Esta rapaziada está de mau humor. As duas últimas pesquisas do CIS (Centro de Investigação Social), órgão público responsável pelas pesquisas de opinião mostram uma descrença nos políticos, a percepção de uma política contaminada pela corrupção e uma baixa expectativa de que o atual governo será capaz de oferecer soluções.
A esquerda e a centro-esquerda parecem ter esgotado sua criatividade para manter e expandir o estado de bem-estar coletivo (welfare state) com base em políticas sociais. Há uma evidente falta de propostas em relação ao tema que mais preocupa os espanhóis: o desemprego e a falta de perspectivas para a criação de novos postos para profissionais qualificados.
O descontentamento levou boa parte dos jovens a votarem na direita e centro-direita em dezembro passado, nas eleições da Andalucía, derrotando a esquerda depois de 36 anos de sucessivos governos. Após estas eleições, a extrema direita e a centro-direita passaram a gerar uma expectativa concreta de poder para o eleitorado.
Na França, após os protestos dos coletes amarelos, as últimas pesquisas indicam um crescimento de Marie Le Pen, a candidata de extrema direita derrotada por Emanuel Macron. O voto na direita não reflete ideologia, mas um pragmatismo de quem deseja ver seu problema resolvido no curto praz e que cansou de esperar.
Quando um engenheiro, psicólogo ou arquiteto, disputa uma vaga de 1.000, 1.500 euros com um trabalhador que veio do Oriente ou da África fugindo da fome e da morte, é sinal de que as coisas estão indo de mal a pior. A maioria continua sendo absorvida pelo setor de serviços, no qual o Turismo segue como o grande empregador de mão-de-obra qualificada ou não.
A esquerda e a centro-esquerda perderam a conexão entre o discurso, a prática e os resultados. Hoje milhares de diplomas vão para o fundo de alguma gaveta sem a menor utilidade numa Europa em que o setor financeiro não para de aumentar seus lucros e gerando cada vez menos postos de trabalho graças a automação, enquanto um contingente cada vez maior de trabalhadores é obrigado a sobreviver fazendo o que não gosta e abandonar o sonho de exercer a profissão escolhida.
Há ainda um agravante: os imigrantes com algum dinheiro “compram” seu próprio trabalho investindo num negócio, como fizeram milhares de chineses com suas lojas de quinquilharias.
Os europeus prezam muito seu sistema de vida. E têm horror quando são obrigados a sair da zona de conforto. Ao contrário dos sul-americanos, asiáticos e africanos, não sabem e não gostam de improvisar.
Foram acostumados durante décadas a uma rotina iniciada na escola de tempo integral e encerrada numa aposentadoria com direito a remédios, médico, transporte público e segurança para ir e vir.
A crise está colocando tudo isso em risco. O discurso adotado pela direita e centro-direita incluindo a revisão das políticas sociais, luta contra a corrupção, resgate dos valores da família e de estímulo aos que desejam ter filhos tem soado como música para uma fatia cada vez maior do eleitorado por propor o resgate desta zona de conforto ameaçada.
Para eles, questão da imigração não é problema quando o imigrante pode pagar impostos e ajudar a financiar um sistema no qual os contribuintes são cada vez mais escassos.
Há ainda a falta de crédito para o consumo que colabora para agravar a situação. Enquanto no Brasil e nos Estados Unidos as pessoas compram comida e bens de consumo como roupas e eletrodomésticos financiados em 10, 12, 24 vezes, os consumidores europeus não podem fazer isso.
Os limites dos cartões de crédito são curtos e o crédito disponível se concentra no setor imobiliário e na venda de veículos. Ou seja: o dinheiro circula menos, as vendas são menores e há menos oferta de emprego.
Stéphane Hessel (1917-2013), escritor, diplomata e um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, lançou em 2010 um panfleto de 32 páginas intitulado “Indignai-vos”, pelo qual exortava os jovens europeus a uma insurreição pacífica contra um capitalismo de privilégios para o setor financeiro em detrimento da cidadania.
Mais de 1,5 milhão de exemplares foram vendidos somente na França, servindo de inspiração para protestos e o surgimento de novos influenciadores. Na Espanha, a jornalista Rosa Maria Artal coordenou a livro “Reaja” (Reacciona), lançado em 2011, reunindo textos de intelectuais progressistas sobre a necessidade de combater a corrupção, os poderes financeiros e uma política cada vez mais distante da cidadania.
Nove anos depois, o pragmatismo do eleitor que quer emprego e aposentadoria fez a indignação e a reação começarem a migrar para uma direita que adotou as mesmas palavras de ordem.
Assim como os trabalhadores da Deep America votaram em Donald Trump em troca da promessa receber de volta seus empregos perdidos para os asiáticos, os jovens europeus namoram a direita pesando no seu 1º emprego, em uma Europa de oportunidades. No caso dos Estados Unidos os empregos e as oportunidades reapareceram.
Na Europa eles ainda são sonho e embalam o crescimento da direita na Itália, Espanha, França, Holanda, Áustria, Bélgica e Hungria. Até chegarmos na encruzilhada de 2019, o ano em que o sonho e a realidade têm encontro marcado dia 25 de maio nas eleições do Parlamento Europeu.