marcelo queiroga
Felipe Salto: Remendo novo em tecido velho
É a PEC Emergencial. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária
No melhor cenário, a chamada PEC Emergencial mudará muito pouco a gestão das contas públicas. Costumo dizer que o Brasil é pródigo em criar regras fiscais, mas nem tanto em cumpri-las. Desta vez, nem mesmo a criação foi promissora. Eventual ajuste decorrente da proposta de emenda à Constituição só virá em 2025. No caso dos Estados e municípios, as medidas serão facultativas e sua aplicação, incerta.
O teto de gastos foi mantido, mas ficou sem sanção para o caso de burla. Rompê-lo poderia ensejar, a partir de agora, crime de responsabilidade. Os gatilhos – medidas automáticas de ajuste –, que já estavam previstos na regra do teto, serão acionados quando as despesas obrigatórias superarem 95% das despesas primárias (não incluem juros da dívida), ambas sujeitas ao teto. Os gatilhos impedem reajuste salarial a servidores, criação de despesas, correção do salário mínimo acima da inflação e contratação de pessoal (a não ser para repor aposentadorias).
As contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), contudo, mostram que os 95% só seriam atingidos em 2025. Em 2020 o indicador ficou em 92,6% e em 2021 a projeção é de 93,4%. Assim, levando em conta que o objetivo era tomar medidas “emergenciais”, o porcentual proposto foi mal calibrado. Algumas áreas poderão acionar gatilhos mais cedo, já que a regra será aplicada por Poder e por órgão, mas sem efeito agregado relevante.
Então, não haverá reforço do ajuste fiscal. A ideia do Ministério da Economia era trocar o auxílio emergencial pela aprovação de um programa de consolidação fiscal. Isso não ocorreu. O auxílio foi viabilizado pela PEC, mas não haverá contenção adicional do gasto ou geração de novas receitas em horizonte de quatro anos.
Mais do que isso, em 2022, ano eleitoral, a porta para reajustes salariais estará aberta. O teto de gastos precisará ser observado, mas um eventual espaço orçamentário poderá ser canalizado para beneficiar certas categorias do serviço público. Essa não é uma tendência nova sob o atual governo. Basta ver que a reforma da previdência dos militares, em 2019, garantiu reajustes com custo de R$ 7,1 bilhões já em 2021. O restante dos servidores não ganhou o mesmo tratamento.
Durante a votação da PEC Emergencial na Câmara dos Deputados, o governo firmou acordo que enfraqueceu os gatilhos. A possibilidade de barrar as chamadas progressões e promoções dos servidores, no cenário de gatilhos acionados, saiu do texto. Em live do dia 11 de março, o presidente da República destacou essa blindagem, citando servidores da área de segurança pública e das Forças Armadas. A mudança abrange todos, mas essa revelação de preferência é digna de nota.
Na parte que trata do auxílio emergencial, constitucionalizou-se a permissão para financiá-lo por crédito extraordinário. Essa prerrogativa já estava prevista na Constituição, justificadas a imprevisibilidade e a urgência do gasto. Dado o ritmo lento da vacinação, as medidas restritivas à circulação e ao comércio terão de ser mantidas para preservar vidas e evitar o colapso total do sistema hospitalar. Isso retardará a recuperação da renda e do emprego. O risco é claro: para editar um provável novo crédito extraordinário, fora do teto, outra PEC será requerida.
A PEC Emergencial trata também dos chamados gastos tributários, hoje em torno de R$ 308 bilhões – ou 4,3% do produto interno bruto (PIB). São as desonerações, os regimes especiais e as isenções tributárias que o Estado carrega há décadas sem nenhuma revisão ou avaliação. O texto aprovado obriga o governo a enviar ao Congresso, em até seis meses, um plano para redução dessas renúncias. No entanto, foram ressalvados programas que correspondem a 50% do volume total. No primeiro ano ele teria de diminuir 10% e em até oito anos, a 2% do PIB. Não há sanção prevista para o caso de o plano não ser aprovado, como alertou a jurista Élida Graziane.
As regras criadas para os Estados e municípios contemplam gatilhos iguais aos da União, mas o critério é distinto. Se a despesa corrente ultrapassar 95% da receita corrente, as medidas poderão ser tomadas. A escolha será do prefeito ou do governador. Quem não se ajustar não terá mais aval do Tesouro Nacional em operações de crédito, a exemplo de empréstimos em bancos ou organismos multilaterais. No cálculo do Tesouro, 14 Estados já estariam em condição de acionar os gatilhos (95%). Contudo, pelos dados dos Estados, conforme mostrou a economista Vilma Pinto, nenhum governo estadual atingiu 95% em 2020.
Em resumo, o auxílio sairá do papel, autorizado pela PEC, mas poderá ser insuficiente. As compensações, em termos de redução de despesas ou aumento de receitas, não vieram. O arcabouço fiscal ficará mais complexo e, no caso da União, dificilmente produzirá efeitos concretos antes de 2025, véspera do ano em que a regra do teto poderá ser alterada, conforme prevê a Constituição. A PEC é um remendo novo em tecido velho. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária.
*Diretor Executivo da IFI e professor do IDP
Pedro Fernando Nery: O que o PIB não vai contar sobre a realidade do País
Crescimento em 2021 não vai refletir situação material de boa parte da população nos próximos meses
O Brasil deve crescer em 2021. Possivelmente a alta do PIB será a maior em mais de dez anos. Entretanto, de forma incomum, o crescimento do PIB nos próximos meses deve coincidir com elevações do desemprego e da pobreza – a recordes. O PIB não vai contar boa parte da história.
Vale entender melhor como o PIB tem se comportado. A atividade econômica no Brasil, em 2020, sofreu uma queda menor que a de outros países – em boa parte pelos efeitos do auxílio emergencial. O País chegou a subir posições na lista de maiores economias do mundo, para o 8.º lugar – segundo os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).
A imprensa deu grande ênfase a outro resultado, o de que o Brasil teria na verdade perdido posições nesse ranking, e inclusive saído do top 10. Isso só ocorre em uma comparação menos apropriada, que refletisse menos a variação do PIB e mais a forte queda do real, que diminuiria o valor do nosso PIB em outras moedas.
A comparação mais comum, porém, levando em conta o poder de compra das moedas, teria o Brasil ganhando posições – como nas estimativas do FMI em que supera França e Reino Unido. Afinal, em um dia em que o dólar sobe muito os brasileiros não ficam necessariamente mais pobres.
Se o Brasil ganhou posições na comparação internacional do PIB em 2020, e em 2021 deve crescer bem mais do que na média da última década, qual é então o problema?
O problema é que o crescimento da economia nos próximos meses não deve alcançar tanto os trabalhadores informais, os desempregados, os fora da força de trabalho. O agravamento da pandemia afetará o emprego informal e também o formal. E o orçamento do auxílio emergencial será um sexto do que foi em 2020.
Mesmo quando a curva de mortes voltar a níveis menores, muitos ainda estarão afetados pela crise. São trabalhadores de ocupações que demorarão para registrar a normalidade de 2019, ou de empresas que já não existem mais. Ainda que se beneficiem pelo auxílio emergencial reduzido, o novo valor só será pago por alguns meses. Depois, voltaremos ao Bolsa Família, que na ausência de reformas é uma rede incapaz de segurar a alta da pobreza extrema que vai ocorrer.
A divergência entre a situação mostrada por indicadores da atividade econômica como o PIB e indicadores do mercado de trabalho e renda já ocorre há alguns meses. Com a redução do auxílio emergencial ao fim de 2020, e a sua suspensão na virada do ano, milhões de famílias tiveram uma queda significativa de renda. A situação da pandemia manteve o mercado de trabalho difícil. Mas tudo que indicava que o PIB vinha crescendo.
O Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), divulgado ontem e considerado uma prévia do PIB, sugere que em janeiro deste ano a economia já estava em patamar próximo do de janeiro de 2020. Mas pelo menos alguns milhões não recuperaram seus empregos, e a pobreza está em alta (o que melhorará um pouco, é verdade, com o novo auxílio, ainda que reduzido).
Veja o leitor que o mero retorno da economia ao nível pré-pandemia, por ocorrer depois de uma queda, significa uma variação positiva: crescimento. Essa espécie de “efeito sanfona” do PIB também acontecerá em outros países, que apresentarão crescimento forte sem que haja melhora das condições de vida em relação a 2019.
Em especial, PIB crescendo com pobreza crescendo significa aumento da desigualdade. A sociedade deve querer então outras bússolas para este ano que não o PIB. Ele certamente vale a torcida, mas por condições atípicas não vai refletir a evolução da situação material de boa parte da população nos próximos meses.
Para onde devemos olhar então? A taxa de desemprego é agora outro indicador problemático, porque muitos que deixaram de trabalhar não estão necessariamente procurando ativamente uma vaga – porque não querem se contaminar pelo vírus. Eles não são computados na taxa de desemprego. Pelos dados do Google, a procura por vagas até subiu após o fim do auxílio emergencial, mas a piora da covid e as medidas restritivas devem continuar mantendo parte dos sem emprego em casa.
Assim, a taxa de desemprego tradicional, mesmo aumentando, ainda não vai absorver todo o drama. A imprensa deve passar a divulgar mais estimativas da taxa que contemplem essa população que queria trabalhar, mas não está na busca (desemprego oculto, sombra). Idealmente, o IBGE poderia já fazer essa projeção ao divulgar os resultados da Pnad.
Devemos dar ênfase também às estimativas de taxas de pobreza e de pobreza extrema, que não foram preocupantes em 2020 por conta do amplo auxílio emergencial – que, sabemos, acabou naquele formato. O complicador aqui é outro: essas não são projetadas mensalmente pelo governo. Vale ficar de olho, portanto, no trabalho da academia – como o da FGV Social.
Com a bússola errada será mais difícil chegarmos ao lugar certo.
*Doutor em economia
Monica de Bolle: Pandemia é chance para país desenvolver tecnologia de saúde
Para economista, Brasil tem potencial para ser referência em mundo no qual convivência com vírus será permanente
Eduardo Cucolo, Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O Brasil tem potencial para desenvolver uma indústria de ponta na área de saúde e utilizar a pandemia para se tornar um player global nessa área, de forma a se destacar em um “novo mundo pandêmico”, no qual a convivência com o novo coronavírus seria permanente.
Essa é a visão da economista Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University (EUA). Com especialização em Escola de Medicina de Harvard, de Bolle afirma, em entrevista à Folha, que não voltaremos à normalidade pré-pandemia e que a convivência com o vírus irá alterar a forma de funcionamento da economia global.Mundo pandêmicoA realidade que a gente tem pela frente não é uma realidade em que vai poder declarar um fim da pandemia. A fase aguda da pandemia vai passar, a gente não vai ficar no estágio em que está agora, mas esse estado de alerta permanente vai continuar conosco. Isso tem implicações em como os países, as pessoas e a economia vão se adaptar. Mercado de trabalho, ambiente de trabalho, aglomerações de todos os tipos, como eventos esportivos, viagens, todas essas coisas estão alteradas, e a gente não vai voltar ao que tinha antes.
No segundo semestre de 2021, a gente vai relaxar medidas restritivas, medidas sanitárias, em várias partes do mundo. Mas, supondo que todas essas vacinas deem conta dessas variantes, as que existem e as que vão surgir, a gente só consegue ter um contingente no mundo vacinado em quantidade suficiente para conseguir respirar com algum alívio, com certo otimismo, lá para o final de 2022.
Eu passei os últimos dois anos fazendo uma série de especializações em medicina em Harvard e calhou da pandemia acontecer. Para mim, pela natureza desse vírus, ele vai permanecer entre nós. A gente vai ter de se adaptar a conviver com isso, passar por surtos, por várias vacinas que vão ter de ser atualizadas recorrentemente e continuar com algum grau de cautela nas nossas vidas. Você vai ter sempre um repositório de Sars-Covid-2 em algum lugar do mundo sofrendo mutações.Mudança na economiaO setor de serviços vai ter de se reinventar. Já havia uma pressão para se pensar novos modelos de trabalho e na pandemia isso teve de acontecer. Você pode pensar pelo lado negativo, algumas pessoas vão perder permanentemente os empregos que tinham porque eles vão desaparecer. Por outro lado, há mudanças que geram uma flexibilidade maior, muitas pessoas não voltarão aos escritórios, e isso gera um ganho de eficiência enorme.
Para um país poder se sair melhor que outro vai ter de investir muito na área de saúde. Em tudo: testagem, equipamento de proteção pessoal, capacidade de vigilância genômica, que requer vários laboratório com equipamentos de ponta e uma rede que converse entre si e esteja rastreando no país inteiro.Nova agenda para o BrasilA agenda para mim no Brasil hoje, se tivesse um governo com visão estratégica, seria a saúde pública. É onde a gente tem uma vantagem natural, pelo sistema de saúde que a gente tem.
Você vê a Índia exportando vacina para muitos países e também exportando medicamente, produtos químicos. A China, a mesma coisa. A Rússia está tendo o mesmo tipo de posicionamento. Se você olhar para esses países [do Brics], tirando o B [de Brasil], o resto dos Brics estão todos fazendo esse reposicionamento. O Brasil teria uma posição muito privilegiada para fazer isso. Já fomos grandes produtores de medicamentos e vacinas, mas abrimos mão dessa vantagem.
A agenda de longo prazo deveria ser essa. Dessas coisas começam a vir inovações, tecnologias, inserção global, capacidade de estar mais envolvido nas cadeias de produção globais, tudo pela via da saúde pública.
Quais são as reformas que a gente precisa fazer para alcançar esses objetivos? Aí você faz as reformas com esses objetivos em mente. Vamos fazer uma reforma administrativa que atenda a esse objetivo, uma reforma tributária de modo a alcançar esse objetivo.EUAColocar a saúde pública no centro das discussões faz com que essas oportunidades fiquem mais visíveis e você começa a mudar um pouco o debate no Brasil. Aqui nos EUA, vai acontecer a mesma coisa. O setor de saúde aqui tem uma precariedade que o Brasil não tem. Tem muitas escolas de medicina de ponta, mas o sistema de saúde vai ter de ser reinventado.
O envelhecimento populacional é outro aspecto importante do porquê investir em saúde pública. E tem as sequelas da própria Covid. O número de pessoas que vão precisar dessa área para continuar sendo produtivas... Algumas vão ter sequelas para sempre, que as torna dependentes de centros de reabilitação.
Aqui nos EUA, todos os hospitais têm centro de reabilitação para quem teve Covid. A gente já tinha essa realidade de envelhecimento populacional somada a uma carga de doenças crônicas cada vez maior. Agora, além disso, tem o efeito que vem com as sequelas da Covid.
Míriam Leitão: Em reunião difícil, BC deve subir juros
O Banco Central começa hoje a reunião mais difícil feita no atual governo. A inflação de fevereiro foi mais alta do que o previsto e pode chegar perto de 8% em junho, em 12 meses. A expectativa é que caia depois, mas ontem a sondagem do BC mostrou que, de uma semana para outra, as projeções para o ano saíram de 3,98% para 4,6%. Os juros estão em 2%. A maioria dos economistas de bancos e consultorias acha que o Copom subirá a Selic em meio ponto percentual. O problema é que a economia ainda está em ambiente recessivo e o desemprego aumentou. Desapareceram em um ano 8,4 milhões de postos de trabalho. Se os juros não subirem, confirma-se a expectativa de alta da inflação. Se eles subirem, pode-se esfriar ainda mais a economia.
A inflação atual é bem complicada. Sobem alimentos, produtos industriais e há falta de algumas peças e insumos na indústria. Tudo ao mesmo tempo e no meio de uma recessão. Os alimentos e bebidas subiram 15% nos últimos 12 meses. Alguns itens deram saltos enormes, como as carnes, com alta de 29%, e frutas, 27%. Os combustíveis subiram 9,37% nos dois primeiros meses deste ano. A produção industrial está sendo atingida por gargalos e choques de preços. Aço subiu 30%. O gás natural, 40%. O setor de plásticos só tem conseguido entregar 50% dos pedidos. Algumas indústrias estão parando por falta de peças. Há dificuldades na compra de resinas e na produção de papelão. Isso afeta as embalagens, o que faz com que vários setores tenham dificuldades de produção.
O dólar subiu 8,14% só este ano. O real está entre as moedas que mais se desvalorizaram no mundo, ao lado do peso argentino. As commodities que o Brasil exporta também subiram. O índice CRB, que faz uma média das cotações internacionais das matérias-primas, mostra valorização de 14% este ano. Como a soja e o minério de ferro tiveram alta nas cotações, o Brasil está recebendo mais dólares. Isso, em qualquer tempo, geraria queda da moeda americana em relação ao real. Mas a incerteza sobre o país fez com que houvesse esse fenômeno raro, em que as matérias-primas que exportamos e o dólar sobem ao mesmo tempo.
É o custo dos erros do governo no combate à pandemia e do intervencionismo econômico do presidente. Além disso, foi necessário ampliar muito os gastos públicos para mitigar os efeitos da crise sanitária e econômica. A dívida pública é de 89% do PIB, num país que está há seis anos com déficits primários e assim permanecerá pelos próximos anos. O risco-país, medido pelo Credit Default Swap (CDS), saltou de 142 pontos no início do ano para 199 pontos, ontem. Essa é uma medida de percepção de risco sobre uma economia.
Na equipe econômica admite-se que essa alta da inflação é o grande problema agora, porque se as expectativas forem de descontrole das contas públicas as tendências inflacionárias vão permanecer. Por isso, a aprovação da PEC Emergencial era considerada fundamental nesse esforço para “ancorar as expectativas”. Mas o problema é que o projeto foi tão desidratado que poucos economistas de fora do governo acreditam que ela fará diferença. Oficialmente o Ministério da Economia divulgou nota chamando a PEC de “a maior reforma fiscal dos últimos 22 anos”. Isso foi motivo de piada entre os especialistas em contas públicas.
Diante desse quadro, o Copom vai se reunir hoje e amanhã. Inflação alta, ambiente recessivo, choque de preços, desvalorização cambial e falhas no abastecimento afetando a cadeia produtiva. Além do cenário de piora das contas públicas. No mercado, a maior parte dos economistas aposta que o Banco Central anunciará uma elevação de meio ponto percentual. Um grupo menor acha que o aumento será de 0,25%.
Começa a fechar a janela de oportunidade que se abriu com os juros mais baixos da nossa história. Nesse meio tempo o país poderia ter aprovado mudanças que apontassem para uma redução do déficit público no futuro. Mas nada anda porque o governo tem uma agenda caótica e uma calamitosa forma de administrar o país. As trapalhadas, nas últimas horas, para a escolha do quarto ministro da Saúde na pandemia mostraram isso. Que sentido faz o filho do presidente sabatinar uma médica e perguntar o que ela acha da liberação das armas. Em que governo do mundo isso é pré-requisito para alguém assumir o comando do Ministério da Saúde, em um país onde já morreram quase 280 mil pessoas?
Joel Pinheiro da Fonseca: Mudar de ministro não adianta; o problema é o presidente
Mudar o rumo do governo seria admitir que Bolsonaro foi diretamente responsável por dezenas de milhares de mortes
Os protestos pró-Bolsonaro que tomaram o Brasil neste domingo foram marcados por muito fanatismo, muitos pedidos de golpe militar e muita teoria da conspiração.
O sentimento de revolta que movia os participantes, contudo, é em parte compreensível. Voltar a fechar grande parte da economia —o que significa falir negócios, destruir empregos, desamparar famílias, aumentar o estresse doméstico— é desesperador. Só uma situação muito crítica justifica esse tipo de medida drástica.
Se ainda não está claro para alguém, a situação está crítica. O estado de São Paulo, por exemplo, triplicou os leitos de UTI disponíveis, e mesmo assim os internados logo excederão a capacidade do sistema.
Outros estados vivem situação similar. Dos pacientes de Covid-19 que são internados em UTI, mais da metade sucumbe. O único jeito de impedir essa tragédia de aumentar ainda mais é reduzir as aglomerações e, paralelamente, acelerar o tanto quanto possível nossa única porta de saída: a vacinação em massa.
Para os manifestantes, as medidas de isolamento de governadores são um plano para se capitalizar politicamente e contrariar o presidente. Se fosse, seria o plano mais estúpido da história. Não há nada mais impopular do que impor medidas duras sobre a população. Quem tenta se capitalizar politicamente é quem vê a tragédia chegando e nada faz, exceto, pela terceira vez na pandemia, mudar seu ministro da Saúde.
Neste momento, não sabemos o que esperar do sucessor de Pazuello, o presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcelo Queiroga. Antes, especulou-se sobre a médica Ludhmila Hajjar, profissional competente e ética. Durante a pandemia, ela defendeu as medidas de isolamento, foi contra a promoção de cloroquina, foi favorável ao uso de máscara e combateu a politização da doença. Ela trabalha com base na ciência. Ou seja, é diametralmente oposta a tudo que o governo federal fez e faz.Pazuello foi um péssimo ministro da Saúde. Com efeito, ele jamais deveria ter sido ministro. Assumiu o cargo interinamente depois da saída de Nelson Teich, quando ficou claro que nenhum médico sério estaria disposto a assumir a vaga, que trazia apenas uma condição: submissão total aos desejos do presidente.Pazuello mostrou-se submisso e por isso ficou. Suas trapalhadas mortais exasperaram o Brasil. Sua troca, porém, será, na melhor das hipóteses, não mais do que um paliativo. O real problema da Saúde não é o ministro, e sim o presidente da República.
Mudar o rumo do governo seria admitir que o presidente foi diretamente responsável —não por ignorância, e sim por má-fé— por dezenas de milhares de mortes. Bolsonaro não mudará; não vai em momento nenhum assumir a responsabilidade do cargo ou algo que o valha. Continuará igualmente inepto e mal-intencionado. Precisará, portanto, de um novo Pazuello. O que está em jogo não é uma medida ou outra; é a própria essência do bolsonarismo, um movimento de fanatização das massas para permitir que Bolsonaro continue no poder e siga agindo contra a população impunemente. No momento em que ele abandonar o discurso vitimista e for julgado por seus resultados, o projeto implode.
A única possibilidade de mudança virá caso Bolsonaro aceite entregar o ministério ao centrão. Zelar pela saúde pública é impossível; jogar o ministério mais rico de todos nas mãos dos interesses fisiológicos do Congresso, aí sim, pode acontecer. E quem negará que já seria um avanço? O Brasil atual só nos permite sonhar baixo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Ricardo Noblat: Queiroga, o novo testa de ferro de Bolsonaro na Saúde
Os filhos zero ajudaram o pai a ganhar mais uma vez
Despenca o grau de segurança dos ministros e demais auxiliares de Jair Bolsonaro quanto à permanência de cada um deles no governo. E por uma simples razão: se você faz algo no cargo que desagrada a Bolsonaro, pode ser demitido a qualquer momento. Se você obedece a todas as ordens dele, arrisca-se a ser demitido.
Tem mais: se você cair na mira de fogo de alguns dos filhos zero do presidente, seu emprego não vale nada. Foi assim que Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria-Geral da presidência, acabou dispensado. Carlos Bolsonaro, o Zero Três, sentia ciúmes de sua aproximação excessiva com o pai. Daí…
Outro ministro, esse tido como poderoso porque amigo há mais de 40 anos de Bolsonaro, também desagradou a Carlos e dançou. O filho convenceu o pai de que o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria do Governo, conspirava para derrubá-lo. Valeu-se para isso de uma notícia falsa.
A insegurança dos que servem a Bolsonaro aumentou depois que ele demitiu o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, cujo erro foi ter cumprido todas as vontades do presidente sem nem pestanejar. A ponto de humilhar-se certa vez ao dizer com um sorriso amarelo: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Não bastou para Pazuello ter juízo. Ele foi obrigado a ceder o lugar a um cardiologista que nunca ocupou um cargo público e que deve sua indicação a Flávio Bolsonaro (Republicanos), conhecido como Zero Um e às voltas com a justiça desde que foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Pazuello caiu, pois, por excesso de obediência, além do fato de que o Centrão pediu a Bolsonaro a cabeça dele, e para manter a sua, o presidente entregou. Marcelo Queiroga será o quarto ministro da Saúde em pouco mais de um ano. Henrique Mandetta foi demitido porque não quis obedecer. Nelson Teich, pelo mesmo motivo.
Os filhos zero deram mais uma inegável demonstração de força junto ao pai quando pareciam enfraquecidos. Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, participou do interrogatório da médica Ludhmila Hajjar, cardiologista famosa, cujo nome era apoiado pelo Centrão, o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal.
Convocada a Brasília, ela compareceu pensando que se tratava de coisa séria. Estava disposta a aceitar o convite. Pediu autonomia para montar sua equipe e mais vacinas. Mas era uma farsa. Foi recebida por Bolsonaro, Eduardo e Pazuello, que admitiu estar de saída porque carecia de apoio político. Imaginem a cena…
Eduardo quis saber a opinião dela sobre aborto e armas para a população – Ludhmila espantou-se e desconversou. Bolsonaro foi logo dizendo que ela não poderia decretar lockdown no Nordeste para não “foder” a reeleição dele. Antes que o encontro terminasse, a médica já estava sendo achincalhada nas redes sociais.
De volta ao hotel, ficou sabendo que o número do seu celular havia sido divulgado em grupos de WhatsApp e que estava sendo ameaçada de morte. Ainda passou pelo susto de três tentativas frustradas de invasão do seu apartamento. No dia seguinte, procurou Bolsonaro, agradeceu o chamado e despediu-se.
Antes de embarcar para São Paulo, onde trabalha no Instituto do Coração, leu em sites que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, negou que ela fora convidada para suceder Pazuello. Só então se deu conta da armadilha em que se deixou aprisionar. Decência é um atributo que falta à família presidencial brasileira.
Era previsível o desfecho do episódio. Bolsonaro nunca quis rever sua posição em relação ao combate à pandemia que, segundo Ludhmila, poderá matar de 500 mil a 600 mil pessoas. Está perto das 300 mil. É para que morram os que tiverem de morrer da “gripezinha” que, em dezembro, estava no seu “finalzinho”.
Então que venha Queiroga, um ilustre desconhecido, curtidor dos comentários do presidente e amigo da família. Boa sorte! Porque da próxima vez, como observa irritado um dos líderes do Centrão, não estará em foco a troca de mais um ministro da Saúde caso Queiroga fracasse, mas sim a troca do presidente da República.
A semente da violência política se espalha pelo país
O mau exemplo vem do alto
Um repórter do jornal O Estado de Minas foi agredido, ontem, em Belo Horizonte por manifestantes bolsonaristas que protestavam contra as medidas de isolamento, pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e defendiam a ditadura militar de 64.
O cardápio, pois, era o de sempre, apresentado há um ano em Brasília diante do Quartel-General do Exército com a presença do presidente Jair Bolsonaro. O Supremo abriu inquérito para apurar quem financia manifestações hostis à democracia.
Mas, como se vê, elas voltaram a se repetir, e, agora, com o emprego de violência contra jornalistas obrigados a cobri-las. O resultado da parceria de Bolsonaro com a Covid está deixando os bolsonaristas cada vez mais nervosos, e aí mora o perigo.
O governador João Doria registrou queixa na polícia contra os que o ameaçam de morte. Em vídeo gravado no último dia 13, em São Paulo, um homem dá tiros em alvos improvisados e chama Lula de “filho da puta”. Depois, vira-se para a câmera e vocifera:
“Presta atenção no recado que eu vou dar para você, seu vagabundo: se você não devolver os R$ 84 bilhões que você roubou do fundo de pensão dos trabalhadores, você vai ter problema, hein, cara? Você vai ter problema”.
A segurança de Lula será reforçada em breve. E os que no momento fazem parte dela receberão novos treinamentos. A direção nacional do PT pedirá a abertura de processo contra o homem do vídeo. Avisado, Doria tomará suas providências.
O governo federal não dá sinais de preocupação com nada disso. Pelo contrário: sempre que pode, como ocorreu na semana passada, Bolsonaro fala em Estado de Sítio, afirma que é muito fácil implantar uma ditadura no país e diz que o ditador seria ele.
Não levar a sério o que o presidente da República propaga nas redes sociais lembra o comportamento de milhões de brasileiros que apenas o viam como um candidato dado a falas exageradas. Não havia exagero. Era Bolsonaro em estado bruto tal como é.
Carlos Andreazza: O movimento pendular
Bolsonaro não muda. Não foi mudado pelo fator Lula; não em seu comportamento frente à peste. (Será matéria para outro artigo; mas, à sombra do ex-presidente, responderá sobretudo na economia, com uma derrama populista de dinheiros, com Guedes, com tudo, para financiar a reeleição e pagar o preço do Centrão, que subiu.)
Frente à pandemia, rara escada para a agitação reacionária, Bolsonaro será ainda mais radicalmente Bolsonaro; um mentiroso, investidor no sectarismo, que prospera no choque, mas que sabe se moldar — poucos alcançam distorcer a própria palavra como ele — ante a imposição do mundo real.
Irá assim até o final, aquele que disse nunca ter se referido à peste como “gripezinha”. Não nos iludamos com um baile de máscaras à tarde. A noite vem. E, ao ato que pareceu indicar moderação, logo corresponderá a forja de novos inimigos. E, do gesto que pareceu considerar uma médica séria para o Ministério da Saúde, logo emergirá a intenção de pazuellizá-la.
Bolsonaro é Bolsonaro. Não importa, pois, o futuro de Pazuello no governo, se fica ou cai; ministro da Saúde que nunca foi, cavalo — no sentido espiritual — para que Bolsonaro o fosse. Bolsonaro é. Outros pazuellos virão. Hajjar não topou. Haverá quem tope. E Bolsonaro continuará sendo.
O padrão está dado. Aqui e ali, quando já sem alternativa, cederá ao mundo real. Ou não terá sido ele a se sentar com a Pfizer depois de desqualificar por meses o laboratório? Ou não terá sido ele a comprar uma vacina, a CoronaVac, que tratara como inimiga e jurara jamais adquirir?
O mundo real se impõe, e ele se ajusta; a isso respondendo, sempre, com horror — normalmente com ataques à democracia liberal.
Bolsonaro opera em movimento pendular. De um lado, tocado pela imposição do mundo real, o vírus que o empareda, que depreda a economia, que fere a popularidade, de súbito se torna defensor da vacinação em massa — aquela contra a qual difundiu bárbara desconfiança. De outro, pressionado pela necessidade de dar satisfação — alimento — aos sectários que lhe compõem a base de apoio fundamental, incomodados ante seus contatos com a civilização, fabrica guerras. É como se equilibra. Bolsonaro se equilibra na instabilidade, na imprevisibilidade. O chão em que será competitivo.
Enquanto ousa se apregoar como alguém que sempre defendeu que a economia só teria condições de se reabilitar organicamente por meio de vacinação em massa (encaixou essa versão na semana passada, com Guedes, aquele que resolveria a pandemia com R$ 5 bilhões); enquanto frita Pazuello, cavalo que verteu em boi de piranha, o culpado por o Brasil não ter iniciado seu programa de imunização em 2020, noutra mão Bolsonaro balança o berço de seus fanáticos cultivando ameaças artificiais.
Já foi, repito, a vacinação em massa; com os bolsonaristas mobilizados contra uma imunização obrigatória que consistiria em invadirem nossas casas para nos cravarem agulhas ao braço. Hoje, o mais influente inimigo fantasioso é o lockdown; algo que nunca houve no Brasil, não até agora, mas contra o que o bolsonarismo luta a batalha definidora do futuro. Um lockdown imaginário; que, no entanto, transforma governantes em tiranos e justifica a constituição de milícias da resistência. Governadores e prefeitos legitimamente eleitos, que tomam medidas restritivas legais, vendidos, por Bolsonaro, como ditadores.
O presidente que vestiu máscara e que foi lido como alguém que se amansava ante à restituição dos direitos políticos de Lula sendo o que, no mesmo dia, pouco depois de falar das Forças Armadas e em como era fácil baixar uma ditadura no Brasil, afirmou ser aquele que teria como garantir nossa liberdade. Mais: o que se apresentou — em construção típica de um autocrata, o nosso Viktor Orbán — como “o garantidor da democracia”.
Começa assim. Com “o meu Exército”; e não tarda chega-se à “minha democracia”. Já chegamos a esta generosidade: “Eu sou a pessoa mais importante desse momento. Faço o que o povo quiser”. Que povo? É relevante considerar o sentido de povo para alguém como Bolsonaro; povo sendo aqueles que o apoiam — uma compreensão essencialmente totalitária. O povo sendo aquele que vai à porta da mãe de um governador para intimidá-la.
Veja-se a maneira altiva como suprime filtros republicanos: “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Porque, se eu levantar a minha caneta e falar shazam, eu vou ser ditador”. Depreende-se que, amparado (pelo povo, segundo Bolsonaro), poderia agir como ditador sem ser ditador. É isso?
Claro que ele sabe o que é estado de sítio; mas precisa deturpar o toque de recolher — medida restritiva definida em lei — em ato discricionário, de modo a substanciar seu lockdown tirânico. É desinformação golpista.
Que também necessita — projetando um futuro caótico — gerar pânico nuns, soprar o apito para outros. “Invasão de supermercados. Fogo em ônibus. Greves. Piquetes.” Manifesta-se aquele que foi o maior entusiasta — um agente estimulador — da revolta dos caminhoneiros que parou o país em 2018. Alguém cuja pregação armamentista deixou de se deter à velha defesa da propriedade privada para se fundamentar numa ideia de resistência civil à opressão de governantes. Gravíssimo.
Eliane Cantanhêde: Médico sério defende o que Bolsonaro condena e condena o que ele defende. E Queiroga?
O novo ministro vai ter a altivez de Luiz Mandetta, Nelson Teich e Ludhmila Hajjar, ou vai replicar Pazuello e jogar a ciência para o alto?
A médica cardiologista Ludhmila Hajjar é o oposto do general da ativa Eduardo Pazuello e deixou a demissão dele do Ministério da Saúde ainda mais humilhante. Ela conhece profundamente a situação da pandemia e tem noção clara não só do que fazer, mas sobretudo do que não fazer. E ele? O homem errado, na hora errada, passando vexame. Mas a grande diferença entre os dois nem é essa. É que ela tem brios.
Ao ser chamada a Brasília pelo presidente Jair Bolsonaro, Hajjar já tinha estratégia, equipe e estava pronta para a guerra – diferentemente do general. “Mas foi só um sonho”, desabafou a doutora, depois do encontro com Bolsonaro. O mais surpreendente é que ela sabia exatamente o que o presidente pensa da pandemia, mas ele nem sabia com quem estava falando. Só aí soube que os dois são como azeite e água.
Bastava fazer uma busca na internet e ouvir umas poucas pessoas para Bolsonaro saber que Hajjar é contra cloroquina, despreza o tal “tratamento precoce”, segue a ciência, defende o isolamento social e as máscaras e é obcecada pelas vacinas – e pela vida. Ou seja: ela defende tudo o que ele condena e condena tudo o que ele defende. Por isso, é mais uma a virar alvo de ataques covardes da tropa bolsonarista.
Isso, aliás, combina à perfeição com a provocação que uma alta fonte do governo me fez na semana passada, quando ficou claro que Pazuello não duraria muito na Saúde: “Quem pôr no lugar? Desafio você a sugerir um médico respeitável, com credibilidade, que aceite assumir a Saúde numa hora dessas!”
Pura verdade. Qualquer médico sério pensa como Hajjar. Logo, Bolsonaro ficou entre um nome do Centrão ou um doutor pronto a seguir a máxima de Pazuello: “um manda, outro obedece”. Assim, o novo ministro, Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, está no foco. Vai ter a altivez de Luiz Mandetta, Nelson Teich e Ludhmila Hajjar, ou vai replicar Pazuello e jogar a ciência para o alto?
O País está em polvorosa, caminhando para 300 mil mortos, com governadores e prefeitos tontos, médicos e enfermeiros no limite, mas o que fez Bolsonaro mudar o ministro e o discurso não foi nada disso. Foi a entrada do ex-presidente Lula em cena. Era preciso um bode expiatório rápido. E um general da ativa é um bode expiatório e tanto.
Depois de fritado pelo presidente e três generais de Exército, inclusive o ministro da Defesa, Pazuello ainda divulgou que, ao contrário das versões palacianas, ele não estava doente, não tinha pedido demissão e não tinha sido demitido. E, ontem, disse que 15% dos grupos prioritários estarão vacinados em março e 88% em abril. Convém guardar esses números, porque uma das marcas do general é fazer previsões que não se confirmam, nem de datas, nem de doses, nem de contratos, nem de testes...
E ele se “esqueceu” de dizer que, se 10 milhões de brasileiros foram vacinados até agora, é graças ao governador João Doria (SP), ao Butantan, ao laboratório Sinovac e à Coronavac, atacada como “aquela vacina chinesa do Doria”, quando Bolsonaro bateu no peito, disse que ele é que mandava e cancelou a compra de 46 milhões de doses que Pazuello anunciara.
Se dependesse de Bolsonaro, os brasileiros nem estariam se vacinando até agora, quando estão morrendo sem direito a UTI, dignidade, humanidade. É por isso, aliás, que a gestão da pandemia no Brasil foi parar na Conselho de Direitos Humanos da ONU, sofre investigações do STF, do TCU e do Ministério Público e pode virar alvo do Congresso.
Caso a CPI seja instalada, não há gabinete do ódio, carreatas e fake news que possam apagar todas as monstruosidades de Bolsonaro a favor do vírus, contra a vida. A dúvida é como Queiroga vai lidar com isso. E com a realidade.
Igow Gielow: Pazuello resume o dano que aderir a Bolsonaro causou aos militares
Gestão desastrosa de general é símbolo da adesão das Forças ao governo Bolsonaro
A desastrosa gestão de Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde, ora encerrada, concentra todas as contradições da relação das Forças Armadas com o governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro.
General de intendência com três estrelas no ombro, topo de sua carreira, Pazuello gozava de ótima reputação entre seus pares.
Sua fama de coordenador logístico foi criada durante o exercício multinacional Amazonlog-17, em 2017, no qual foi simulado o atendimento humanitário a refugiados nas fronteiras amazônicas do Brasil com a Colômbia e com o Peru.
Ela acabou consolidada na prática, com a Operação Acolhida de refugiados da ditadura venezuelana em 2018, gerenciada por Pazuello.
Foi elogiado efusivamente pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, no seu polêmico livro-depoimento. Para ele, “sem falsa modéstia, [Pazuello] fez com que nos tornássemos referência mundial”.
Na Saúde após a não-passagem de Nelson Teich na esteira da implosão política de Luiz Henrique Mandetta, Pazuello comprovaria o adágio segundo o qual os militares “cumprem missão e resolvem problemas”.
A questão é que o problema estava acima das capacidades do general e a missão, explicitada quando ele baixou a cabeça a Bolsonaro e freou a compra de vacinas no ano passado, estava corrompida.
A adesão tardia à vacinação e ao distanciamento social e o entusiasmo pela coloroquina, por motivação política contra a Coronavac de João Doria ou simples cegueira epidemiológica, ajudaram o país a se tornar um celeiro de variantes mais mortíferas do Sars-CoV-2.
São ao menos dez processos sobre o manejo da pandemia, com a crise de Manaus como seu maior símbolo, que podem colocar Pazuello, e por extensão simbólica os militares, no banco dos réus.
Houve crises secundárias, como a maquiagem de números da Covid-19, a bizarra militarização de postos na Saúde e até a escolha de uma amiga para um cargo comissionado do ministério por Pazuello. Isso tudo temperado pelo tom autoritário em qualquer entrevista coletiva.
Generais da ativa, em campanha para tentar dissociar sua imagem daquela dos fardados no governo, perceberam que o fato de Pazuello não ter ido à reserva cobraria um preço ainda maior da corporação.
Houve todo tipo de pressão para que isso acontecesse, mas o fato é que o militar não só ficou na ativa, mas ainda operou uma tentativa de saída honrosa articulando uma inexistente promoção para a quarta estrela.
Ao fim, com 2.000 cadáveres sendo empilhados diariamente devido à pandemia no Brasil, Pazuello cedeu, assim como Bolsonaro —no caso, à pressão de seus novos amigos do centrão e à entrada avassaladora de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no jogo de 2022.
Para as Forças Armadas, Exército à frente, sobrou o ônus de imagem.
A ideia acalentada pelos militares que viram em Bolsonaro o caminho para a idealização de seu antipetismo e para a redenção final de imagem pela ditadura era a de que forneceriam quadros qualificados para um novo tipo de governo.
Enquanto suas capacidades estavam circunscritas à falta de articulação política ou às ideações paranoides da área de inteligência, o público não tinha muito o que dizer.
Quando a incapacidade ou, na visão de pessoas que o admiram, o respeito à hierarquia de Pazuello se impuseram e legaram o pior da crise ao país, a história é outra.
Pois a adesão a Bolsonaro, descrita de forma didática no livro de Villas Bôas, traz intrínseca uma armadilha: militares são seres que respeitam hierarquias.
Assim, declarações golpistas do hoje vice-presidente Hamilton Mourão foram punidas tanto no governo Dilma Rousseff (PT) quanto no de Michel Temer (MDB).
Quando vários oficiais-generais, da ativa e da reserva, migraram para o governo Bolsonaro, a identificação ficou patente.
A ameaça de crise institucional de 2020, quando Bolsonaro namorou hordas golpistas na rua, engolfou a cúpula militar, Ministério da Defesa incluso.
Como reação àquele momento crítico, houve um afastamento crescente da ativa, culminando numa fala do sucessor de Villas Bôas, Edson Leal Pujol, que parecia ter riscado uma linha divisória no chão.
Pazuello na Saúde apagou tal fronteira. Sua saída deverá facilitar o restabelecimento dela, mas o dano à imagem dos fardados vai demorar muito mais tempo para ser consertado.
Isso se deve às opções feitas sob a supervisão de Villas Bôas, outro ícone militar brasileiro. Essa autocrítica, feita apenas à boca miúda por alguns setores, ainda está para ser feita.
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro escolhe médico Marcelo Queiroga como ministro da Saúde
Médico, que entra no lugar do general Pazuello, será o quarto nome a assumir a pasta desde o início da pandemia
Marcelo de Moraes e Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Sob pressão para conter o avanço do novo coronavírus no País, o presidente Jair Bolsonaro decidiu nomear o médico Marcelo Queiroga para o Ministério da Saúde. O presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia vai substituir o general Eduardo Pazuello, demitido depois de acumular desgastes, como a demora para a compra de vacinas e falta de coordenação com Estados no combate à covid-19, e das quase 280 mil mortes causadas pela doença. Queiroga, que é pró-isolamento, será o quarto a assumir o comando da pasta desde o início da pandemia, há um ano.
Ao escolher o cardiologista, Bolsonaro segue uma indicação feita pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho mais velho, após a recusa da médica Ludhmila Hajjar, que era o nome preferido do Centrão e de ministros do Supremo Tribunal Federal, muitos dos quais foram seus pacientes.
Horas antes de o próprio presidente anunciar a troca no pior momento da pandemia, Pazuello fez um desabafo em entrevista virtual na sede da pasta. “Eu não vou pedir para ir embora. Não é da minha característica. Isso não é um jogo, uma brincadeira (para dizer) ‘quero ir embora’. Isso é sério, a pandemia, é o Ministério da Saúde”, disse o general, que havia assumido o cargo em maio do ano passado.
A grande dúvida, agora, é se Queiroga terá autonomia para gerenciar a ação do ministério no enfrentamento da pandemia ou se repetirá o comportamento de Pazuello, que obedeceu às ordens sem questionamento. Embora afirme que seus auxiliares têm liberdade, na área da Saúde o presidente tem atuado como se ele fosse o ministro. Os outros médicos que passaram pelo posto, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, deixaram o cargo justamente por não aceitarem a interferência de Bolsonaro.
A escolha de Queiroga foi anunciada por Bolsonaro após os dois se reunirem no Palácio do Planalto. “Já o conhecia há alguns anos. Não é uma pessoa que tomei conhecimento há alguns dias. Tem tudo, ao meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento ao que Pazuello fez até hoje”, disse o presidente ao falar com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. “Paralelamente a tudo isso, o senhor Marcelo Queiroga, médico, também gestor, mas muito mais entendido na questão de saúde”, acrescentou.
Queiroga foi o plano B de Bolsonaro. Só foi escolhido depois da desastrada operação feita para tentar convencer a médica Ludhmila Hajjar a aceitar o cargo. Chamada no domingo para conversar com o presidente no Palácio da Alvorada, a médica passou por uma espécie de sabatina de quase três horas comandada por Bolsonaro, pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e por Pazuello. O ministro já sabia que tinha sido rifado pelo presidente.
Na conversa, Ludhmila passou por momentos constrangedores. Foi questionada sobre defesa de tratamento precoce, incluindo o uso de cloroquina, e ouviu críticas sobre o lockdown praticado pelos governadores. Discordou frontalmente da posição do presidente. Mas precisou falar até mesmo sobre sua posição em relação às armas, numa pergunta feita por Eduardo.
Depois do segundo e rápido encontro que sacramentou a recusa, o governo não esperava que Ludhmila fosse à imprensa e contasse com riqueza de detalhes as razões da não aceitação do convite. A leitura dos aliados do presidente é de que a médica passou a ideia de que recusou o convite porque Bolsonaro seguia intransigente na defesa das suas práticas.
Ligações
O acerto com Queiroga foi mais fácil pela sua proximidade com o clã Bolsonaro. Ele é amigo de Flávio e já havia sido indicado para uma vaga de diretor na Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas a nomeação estava parada no Senado. Também fez parte da equipe de transição do governo após a eleição de Bolsonaro, em 2018.
Na prática, a escolha técnica que Bolsonaro fez para o Ministério da Saúde passa por laços familiares. Os três principais nomes cotados para o cargo integram a diretoria da SBC. E lá são colegas de diretoria de Hélio Roque Figueira, sogro de Flávio. Nessa espécie de “clube do coração”, Queiroga é o presidente da SBC, Ludhmila é coordenadora de Ciência, Tecnologia e Inovações e Figueira é coordenador de Assuntos Estratégicos.
Mesmo elogiado pelo presidente na saída, Pazuello sabe que agora precisará lidar com as consequências de sua gestão. Suas ações são investigadas pelo Supremo Tribunal Federal, que apura seus atos e eventuais responsabilidades pela crise generalizada no sistema de saúde. Além disso, fora do ministério, o general perde o foro privilegiado e o caso vai para a primeira instância.
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