marcelo queiroga
Reinaldo Azevedo: Sem juízo e as regras do jogo, morreremos todos sufocados
Que os políticos e os magistrados se lembrem de que a destruição do devido processo legal nos legou a Terra dos Mortos
Na minha contabilidade, Jair Bolsonaro cometeu 26 crimes de responsabilidade, alguns deles também crimes comuns. Por qualquer caminho, não entrarei em minudências, seriam necessários dois terços da Câmara para retirar das suas mãos os instrumentos de Estado que servem, por ação e omissão, ao morticínio em massa. Os etimologistas do caos contestam a palavra "genocídio". Mesmo diante do genocídio. Se operadores da política e da Justiça cometerem erros importantes agora, morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.
O país já enfrenta a falta de anestésicos e de neurobloqueadores para intubar pacientes. Entes públicos e privados precisam da autorização imediata para tentar comprá-los onde quer que estejam disponíveis no mundo. O colapso chegou. O caos se avizinha. Não temos mais UTIs. Não temos mais respiradores. Não temos mais mão de obra disponível. E agora o pior: há o risco de a infraestrutura existente se tornar inútil porque faltam as drogas necessárias.
Não obstante, até esta quinta, tínhamos, na prática, dois ministros da Saúde que não valiam por um. Porque, de fato, a pasta é conduzida por Bolsonaro. Marcelo Queiroga chegou simulando apego à ciência. Indagado sobre o uso da cloroquina, afirmou: "É algo que precisa ser analisado para que a gente consiga chegar a um ponto comum que permita contextualizar essa questão no âmbito da evidência científica e da ciência".
Madame Natasha, fonte exclusiva de Elio Gaspari, fiquei sabendo, deu o rapaz como caso perdido. E aí digo eu, não ela: há uma dimensão da linguagem que não guarda relação com a sintaxe ou com a etimologia. O conteúdo, ainda que meio atrapalhado, tem mais intimidade é com o caráter mesmo.
Quanto ao ministro que está saindo, um general da ativa, não resisto a lembrar aqui, mais uma vez —e o farei quantas forem necessárias—, o tuíte do general Villas Bôas, então comandante do Exército, escrito para intimidar magistrados e pavimentar, querendo ou não, o terreno para homicidas em massa: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?".
No começo, como é mesmo?, a Covid-19 matava "nossas avós", como discursava o "Lírico da Cloroquina". Eram as gerações passadas. "Todo mundo morre um dia", ele avançou, com o realismo típico aprendido ali pelas bandas da zona oeste do Rio. Jovens e crianças estão morrendo agora. São as "gerações futuras", em nome das quais o general ameaçou civis desarmados, ora vítimas da irresponsabilidade, da ignorância, da mesquinharia sórdida.
E agora retomo o fio que deixei lá no primeiro parágrafo. As forças e lideranças que se opõem a Bolsonaro e os operadores da Justiça comprometidos com a Constituição têm de se perguntar, a cada dia, se sua ação pode concorrer para a eventual reeleição do mandatário. Sairemos lanhados dessa tragédia humanitária e civilizatória. Precisaremos reconstruir o tecido esgarçado da democracia. Ainda é possível. Resta-nos a esperança no fundo da caixa.
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), num raciocínio essencialmente correto e moral, falou sobre a necessidade de as esquerdas e o centro se unirem em defesa de algum futuro. É pouco provável que aconteça no primeiro turno. Mas saibam todos: discursos e postulações, no terreno antibolsonarista, que criem zonas de exclusão —dando mais relevo ao inconciliável do que a uma pauta mínima de defesa da ordem democrática— concorrem para a permanência daquilo que nos mata como indivíduos e nos inviabiliza como país.
Da mesma sorte, nunca foi tão grande a responsabilidade dos togados. A destruição do devido processo legal e da política como espaço de resolução de conflitos nos conduziu ao desastre. A exemplo de todo salvacionismo, também o dos fanáticos de Curitiba resultou em devastação e morte. Tenham a coragem, senhores ministros, de resgatar as regras do jogo. Não é um golpe que nos ameaça. É a desordem. Ou morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.
Bruno Boghossian: Aparato de intimidação de Bolsonaro reflete governo enfraquecido
Ministério persegue críticos do presidente e estimula polícias a seguir diretriz
O governo criou um aparato para perseguir críticos de Jair Bolsonaro. O Ministério da Justiça, a Polícia Federal, o Ministério da Educação, a Controladoria-Geral da União e polícias locais já foram atrás de gente que chamou o presidente de genocida ou de "pequi roído". Não é coincidência, é doutrina.
A política oficial desceu dos gabinetes de Brasília para os quartéis. Nesta quinta (18), um grupo foi detido pela Polícia Militar da capital por estender um cartaz que criticava Bolsonaro e o associava a uma suástica. Os agentes viram uma ameaça à segurança nacional e levaram os manifestantes para a Polícia Federal. Eles foram liberados porque o delegado viu o óbvio: não havia crime.
As polícias locais não têm competência para investigar infrações à ordem política e social, como as previstas da Lei de Segurança Nacional. Ainda assim, outras autoridades nos estados passaram a lançar acusações contra críticos de Bolsonaro.
No Rio, a Polícia Civil intimou o youtuber Felipe Neto por ter se referido ao presidente como genocida. A juíza Gisele Guida de Faria reconheceu que um delegado estadual não poderia abrir o caso e mandou suspender a investigação.
A inspiração partiu do Ministério da Justiça. A pasta já acionou a Polícia Federal para investigar jornalistas, advogados e outros críticos do presidente. Num dos casos, o ministro André Mendonça ficou incomodado com o autor de um outdoor em Palmas que dizia que Bolsonaro valia menos do que um "pequi roído".
Boa parte desses procedimentos deve ser barrada na Justiça ou acabar numa gaveta, mas o objetivo não é levar a investigação adiante. A ideia é acuar os críticos de Bolsonaro e estimular a polícia dos estados a seguir essa diretriz, mesmo que cometa abusos no caminho.
A campanha reflete a essência autoritária do bolsonarismo, que busca um dispositivo da ditadura para calar desafetos. Mas o movimento também revela o medo de um governo fragilizado. Nenhum presidente forte precisa intimidar seus críticos.
Vinicius Torres Freire: Comando do Congresso se torna cúmplice do matadouro de Bolsonaro
Em um país sob risco de ficar sem remédio e UTI, lideranças não reagem a Bolsonaro
No dia mais sombrio da epidemia no Reino Unido, soube-se da morte de 1.253 pessoas. Quer dizer, mais de 18 britânicos mortos por milhão de habitantes do país. No Brasil, seria o equivalente a 3.913 mortes, considerada apenas a diferença de tamanho da população, sem outros ajustes estatísticos. O Reino Unido levou mais de 20 dias para reduzir o número de mortes diário à metade.
No Brasil de agora, anotamos nas nossas lápides mais de 2 mil mortos por dia. Isto é, mais de 9 mortos por milhão de habitantes (na média móvel de sete dias). Algo menos que os picos da Alemanha em janeiro, da Espanha em fevereiro ou da França em novembro. Esses países levaram mais de um mês para reduzir o morticínio à metade. Isso porque, mal ou bem, têm governo. E aqui?
Por sabotagem de Jair Bolsonaro, pela pobreza, pela desigualdade ou por diferenças na interação social, as medidas de restrição tendem a funcionar menos. Mesmo se a onda de mortes diminuísse como nos grandes países europeus, ainda teríamos mil mortes por dia em meados de abril. Mas o Brasil nem sabe se chegou ao pico do monte diário de cadáveres. No presente ritmo da epidemia e pelo número de leitos por ora disponível, não haverá mais UTIs em uns dez dias, antes do fim de março.
O clamor do desastre era alto nesta quinta-feira. Os remédios necessários para entubar os doentes estariam para acabar em 20 dias, noticiou Mônica Bergamo nesta Folha. Associações de prefeitos, de secretários de saúde, de hospitais privados, de farmacêuticos ou de médicos intensivistas avisavam do colapso dentro do colapso. A cidade de São Paulo vai praticamente parar na segunda quinzena de março, pelo menos (a economia paulistana faz 11% do PIB do país).
O Brasil vai para o matadouro bolsonariano quase em silêncio político, sem reação maior de sua elite. Os governadores tentam administrar a crise, na ausência de governo federal, isso quando não têm de se defender na guerra civil midiática promovida por Jair Bolsonaro. Os estados tentam articular uma vaga e frágil tentativa de coordenação nacional. Mas parece haver um acordo para evitar o confronto com o genocida.
As lideranças do Congresso estão à beira de se transformar em cúmplices de Bolsonaro. Os presidentes de Câmara e Senado contemporizam e querem manter de pé o acordão que os colocou nos comandos do Parlamento.
Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do Senado, fez declaração protocolar de interesse de agir: “Sentar à mesa, planejar e agir o mais rapidamente possível. Isso é fundamental! A situação crítica do Brasil exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e toda colaboração dos demais Poderes, governadores, prefeitos e instituições”.
Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, menos do que isso: “Os brasileiros precisam ter esse conforto, e nós precisamos evitar essa agonia e esse vexame internacional... Então nós temos, sim, que nos unir, sem estar apontando justamente culpados”.
Isso é conversa fiada.
Parece que o apoio restante a Bolsonaro, 30% do povo, serve de baliza para justificar a contemporização oportunista com a morte, ao menos na política de governistas, agregados ou cúmplices. O possível efeito de uma convulsão política na economia, afora os colaboracionismos animados, parece o motivo do imobilismo da elite econômica. A morte tem um preço que, parece, vale pagar.
Não é fácil entender os motivos da apatia ou da cumplicidade. Mas era certo que neste 18 de março de 2021, o Brasil se dirigia quase sem reação para o abatedouro de Jair Bolsonaro.
Fernando Abrucio: Bolsonaro é o adversário do centro
O cenário mais provável para 2022 é de um peso enorme para o antibolsonarismo
A volta de Lula para a ribalta da política fez as peças do tabuleiro de 2022 se mexerem. O primeiro a sentir essa mudança foi o presidente Bolsonaro, que colocou até máscara e teve de trocar o ministro da Saúde, mais pelo discurso de São Bernardo do que pelas mais de 270 mil mortes causadas pela covid-19. Já a oposição de Centro ficou muito abalada pela decisão do STF e reagiu na linha do antipetismo. É natural que a maioria dos contrários ao PT reagisse negativamente, inclusive Ciro Gomes, que terá de conquistar boa parte da centro-esquerda. Passado o choque inicial, deveria vir o diagnóstico eleitoral. Neste ponto, uma coisa é clara: o principal adversário do Centro é Bolsonaro.
Entender quem é seu oponente central e descobrir como enfrentá-lo são os dois passos estratégicos para quem quer entrar na disputa política. O posicionamento de Bolsonaro e do lulismo no jogo político está bem claro. Ainda há dúvidas sobre como Ciro Gomes vai se reposicionar. Mas a maior incógnita está no Centro oposicionista (em contraposição ao Centrão), que congrega vários partidos e candidatos com pretensões presidenciais, tem importantes governos estaduais e capitais em suas mãos, além de ter um suporte de importantes grupos sociais. É um cabedal político muito forte, mas que por ora está fragmentado e não consegue produzir um projeto eleitoral nítido.
O discurso contra a polarização gerada pelo bolsonarismo versus o lulismo serve para criar uma identidade, mas é claramente insuficiente para se vencer a eleição. Três razões embasam esse argumento. A primeira é que o jogo político da redemocratização tem se organizado de forma polarizada, no sentido estrito da ciência política: duas forças têm predominado na eleição presidencial, com pouco espaço para uma terceira via.
Na primeira eleição direta da redemocratização, houve uma grande dispersão no primeiro turno, particularmente porque os partidos estavam ainda se organizando e se posicionando frente à sociedade. Foi só depois do impeachment do presidente Collor que se estruturou o eixo polarizado do sistema político brasileiro. Assim, de 1994 a 2014, a disputa presidencial brasileira foi orientada pela competição entre PSDB e PT. Ou, nos termos do excelente livro de César Zucco e David Samuels (“Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil”), criou-se uma dicotomia entre petismo e antipetismo que estruturou as preferências dos eleitores por pelo menos 20 anos. Em todas as eleições presidenciais da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores esteve no segundo turno, perdendo em quatro ocasiões (1989, 1994, 1998 e 2018) e ganhando nas outras quatro vezes (2002, 2006, 2010 e 2014).
A força petista, bastante vinculada à liderança do ex-presidente Lula, é algo que tem levado os demais grupos políticos a lutar para ser o outro lado desse jogo. Seguindo essa lógica, o Centro disputa com Bolsonaro para ver quem será o adversário do petismo. Esse raciocínio foi esquecido por muitos analistas políticos e, especialmente, por lideranças centristas de oposição. Talvez estivessem pensando que tal fator não apareceria mais em 2022, pois o antipetismo cresceria de tal forma que a escolha seria de um nome não-petista para competir com Bolsonaro.
E aqui entra a segunda razão pela qual o Centro tem de ir além da narrativa da polarização entre PT e Bolsonaro: o principal eixo da eleição de 2022 será o antibolsonarismo, do mesmo modo que a disputa presidencial de 2018 teve no antipetismo sua peça-chave. A crise atual é imensa, mas claro que o governo pode se recuperar às vésperas do pleito. Só que o cenário político aparenta ter mais pedras e espinhos no caminho bolsonarista do que esperança de uma reeleição tranquila.
A lista de fatos problemáticos para o governo é extensa. A crise da pandemia terá seus piores momentos nos próximos três meses, quando a cobertura vacinal será muito baixa e não haverá ainda vacinas para um bom contingente da população. As mortes se multiplicarão e serão cada vez mais dramáticas, como foram em Manaus. Num cenário como esse, além da revolta de boa parte da população com o fracasso da política de saúde, não há a menor chance de a economia andar no primeiro semestre. O auxilio emergencial agora será bem menor e a popularidade obtida no ano passado não se repetirá.
Nos próximos meses, incluindo o início do segundo semestre, Bolsonaro perderá muita popularidade. Não se sabe ainda qual é o seu piso, mas se chegar mais próximo dos 20%, o Centrão cobrará caro para evitar o impeachment ou a transformação do presidente num “lame duck” (pato manco), sem autoridade até com quem lhe serve o café. Esse preço causará mais danos sobre a imagem presidencial, bem como uma possível piora na parte fiscal. Tudo isso num contexto em que os juros poderão subir para se evitar a inflação, em que o dólar não vai cair porque o descrédito do Brasil só acabará com uma mudança radical desse governo (algo difícil de acontecer) ou quando assumir o próximo.
O aumento da cobertura vacinal e o impulso econômico vindo de fora poderiam ser dois empurrões para a recuperação econômica brasileira e, com isso, o presidente poderia subir novamente nos indicadores de popularidade. É uma hipótese possível, mas que ainda terá que competir com vários escândalos envolvendo a família Bolsonaro e que vão assombrar o Planalto até o fim do mandato. Soma-se a isso o fracasso em outras áreas de políticas públicas, como educação, meio ambiente e garantia de direitos humanos nas questões de gênero e raça, para não falar do sepultamento de qualquer política anticorrupção.
Todos esses fatos tendem a levar um grande contingente de eleitores a não votar em Bolsonaro, mesmo que ocorra alguma bonança econômica, até porque esta será suave e sem as proporções de um Plano Real ou do desempenho do segundo governo Lula. Neste sentido, uma eventual reeleição de Bolsonaro tenderia a ser mais parecida com a de Dilma, isto é, de alguém que ganha com uma diferença ínfima e que teria uma altíssima rejeição, inclusive de grupos com forte capacidade de mobilização. Uma vitória assim é a antessala para a ingovernabilidade, como já vimos por duas vezes desde a redemocratização.
O cenário mais provável para 2022, portanto, é de um peso enorme para o discurso antibolsonarista. Isso não impede Bolsonaro de chegar ao segundo turno, do mesmo modo que o PT foi para a disputa final em 2018 quando foi o auge do antipetismo. Mas, nesta situação, Bolsonaro e suas ideias se transformam no espantalho a ser batido. Quem percebeu isso? Lula, muito mais do que o PT, e num só discurso se colocou como mais antibolsonarista do que o Centro em dois anos de mandato. Ao fazer esse movimento, o ex-presidente tornou-se o líder mais apto a conquistar o eleitorado mais de centro-esquerda e os eleitores das classes D e E. Se o centrismo de oposição não radicalizar seu viés contrário ao presidente da República, inclusive encampando o impeachment ou atuando para criar CPIs, perderá o trem da história.
Uma ressalva poderia ser feita pela oposição de Centro: contava-se com uma candidatura petista que não fosse Lula. Na verdade, não há ainda nem a certeza de que o ex-presidente poderá ser candidato, visto que o STF é a instituição menos previsível da democracia brasileira. O que poderia ser um alento para os antipetistas é, antes de mais nada, miopia, uma vez que, sendo candidato ou não, Lula terá muito mais influência do que na eleição de 2018, seja porque o antipetismo será menor e a história da “prisão injusta” vai conquistar mais gente agora, seja porque Bolsonaro estará em declínio.
Esta é a terceira razão que deveria levar o Centro a criar uma estratégia mais consistente do que o mero discurso da polarização: sendo ou não candidato, a influência de Lula tende a ser capaz de garantir mais de 30% dos votos do primeiro turno, se não mais - afinal, Fernando Haddad, nome nacionalmente pouco conhecido, com Lula preso e no auge do antipetismo, teve 29,28% na votação inicial. Em outras palavras: é muito difícil que um representante do lulismo não esteja no segundo turno. O outro oponente sairá da luta entre Bolsonaro e seus outros adversários.
Encurralar Bolsonaro e lhe fazer uma dura oposição, que torne claro o seu antibolsonarismo para a população, é o melhor caminho para o Centro ganhar um lugar no segundo turno da eleição presidencial. Para tanto, é preciso começar agora esta tarefa, e não deixar para o ano que vem, marcando por um longo tempo uma posição, de modo a torná-la eleitoralmente consistente. Poderia começar por defender uma visão favorável ao impeachment ou a uma responsabilização pública mais forte do presidente. Quem estiver nitidamente com a maioria do povo nos próximos meses, que serão os piores da pandemia, poderá ser recompensado em termos de apoio político.
Mas essa atuação centrista deve ser precedida por uma proposta alternativa de políticas públicas e, sobretudo, da união em torno de uma posição antibolsonarista, criando uma identidade mais relevante do que a narrativa da polarização. Muitos do Centro já falam num candidato único, que seria a solução política mais efetiva, porém, esse esforço só fará sentido para se chegar ao segundo turno se conseguirem destronar Bolsonaro da posição de adversário preferencial do PT.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Eliane Cantanhêde: Causa e efeito - Brasil afunda na pandemia, Bolsonaro cai nas pesquisas e no Centrão
Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade
Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade. Numa profunda e drástica relação de causa e efeito, o Brasil vive uma catástrofe sem precedentes com a pandemia e o presidente Jair Bolsonaro passa por seu pior momento, uma ilha cercada de desastres e más notícias por todos os lados.
O melhor índice do Ministério da Saúde no combate à pandemia, de 76%, foi quando o então ministro Luiz Henrique Mandetta traçava estratégias, tomava providências efetivas e mantinha a população rigorosamente informada. Segundo o Datafolha, esse índice esfarelou para 28% desde Mandetta até o general Eduardo Pazuello.
Assim como não consegue admitir a gravidade da covid-19, Bolsonaro nunca foi capaz de compreender duas obviedades: 1) só combatendo a pandemia é possível reduzir os danos na economia, na renda e nos empregos; 2) o sucesso de Mandetta e da Saúde seria o seu próprio sucesso, seu passaporte para a reeleição.
Por ignorância, teimosia e a mania de dar ouvidos a idiotas, Bolsonaro fez o oposto, demitiu Mandetta e desdenhou a pandemia. O resultado está aí, com recordes de mortos e contaminados, vacinas a conta-gotas, colapso da saúde, descontrole fiscal, quebra-quebra de empresas e... queda de popularidade e de confiança em Bolsonaro: 56% consideram Bolsonaro incapaz de liderar o País.
Pandemia, crescimento baixo, inflação alta (sobretudo para alimentos), aumento dos juros básicos após seis anos dos menores níveis da história e sucessivas altas dos combustíveis têm efeito direito sobre o humor da população – e dos eleitores. E o auxílio emergencial, que demora, é muito menor do que já foi.
No Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que parecia tão amigável, impôs duas derrotas ao “01”, senador Flávio Bolsonaro. Isso nos lembra que oito dos 11 ministros do STF tinham sido nomeados nos mandatos petistas, mas seis deles votaram contra o habeas corpus que livraria o ex-presidente Lula da cadeia. Amigos, amigos, votos à parte. E eles nem são tão amigos assim dos Bolsonaros.
Papai Bolsonaro, assim, está sendo compelido a tomar várias medidas em prol da sobrevivência. A mais vistosa é que ele continua negacionista e falando absurdos como sempre, mas demitiu o general da Saúde e nomeou o quarto ministro em dois anos, Marcelo Queiroga, sem alterar a máxima de que “um manda, o outro obedece”.
Na economia, o presidente continua corporativista, antiliberal e oportunista, fingindo que prestigia o ex-Posto Ipiranga Paulo Guedes, enquanto puxa o tapete dele dia sim, outro também. A última: depois de acertar com Guedes o veto à anulação de dívidas de igrejas com a Receita Federal, ele avalizou a derrubada do próprio veto no Congresso. Jogo duplo. E sujo.
Na política, presidente fraco equivale a Legislativo forte – e a Centrão ganancioso. A aliança fica mais cara quando Bolsonaro cai nas pesquisas e desconvida a médica Ludhmila Hajjar, indicada pelo Centrão, para pôr na Saúde o Queiroga, amigo dos filhos. O presidente da Câmara, Arthur Lira, defensor de Hajjar, agora, bem atrasado, teme que a crise da covid “vire vexame internacional”. E o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem uma carta na manga: a CPI da Pandemia.
Bolsonaro está diante de 300 mil mortos de covid, colapso da saúde, desemprego, inflação, dólar alto, gasolina cara, aumento de juros, queda nas pesquisas, agitação no Centrão, risco de CPI e Lula no cangote. Lula é o catalisador das esquerdas. As conversas do centro com a esquerda esquentam. O senador Major Olimpio, morto ontem de covid, fortalece o bolsonarismo arrependido à direita. Nada, porém, tão devastador contra Bolsonaro do que o próprio Bolsonaro.
Folha de S. Paulo: Para 79%, pandemia de coronavírus está fora do controle, e medo é recorde, mostra Datafolha
Pesquisa coincide com colapso hospitalar país afora e registros diários de quase 3000 mortes por Covid
Angela Pinho, Folha de S. Paulo
No momento em que o sistema de saúde entra em colapso por todo o país e o governo Bolsonaro anuncia seu quarto ministro da área, o medo de pegar o coronavírus e a percepção de que a pandemia está fora de controle atingem níveis recordes.
Pesquisa Datafolha mostra que 79% dos brasileiros acham que a pandemia está sem controle, ante 62% que manifestavam essa opinião em janeiro.
Outros 18% dizem que a situação está parcialmente controlada, 2% que está totalmente controlada, e 1% não sabe.
O levantamento, com margem de erro de dois pontos percentuais, foi feito por telefone com 2.023 pessoas de todos os estados do país nos dias 15 e 16 de março.
No domingo (14), as movimentações para a substituição do general Eduardo Pazuello do posto de ministro da Saúde ganharam força, com a ida da médica Ludhmila Hajjar a Brasília para uma conversa com o presidente Jair Bolsonaro.
Ela acabou por recusar o cargo, e a troca foi efetivada na segunda-feira, com o cardiologista Marcelo Queiroga no lugar de Pazuello, desgastado após a crise da falta de oxigênio em Manaus e atrasos e falhas logísticas na distribuição de vacinas.[ x ]
Queiroga assume em meio a uma rápida e trágica escalada de mortes pela Covid-19. Nesta quinta-feira (18), o país completou 20 dias seguidos de recordes na média móvel de óbitos, que chegou a 2.096.
Desde o início da pandemia, quase 288 mil brasileiros já morreram pela doença.
Em meio às notícias sobre falta de leitos para pacientes em diversas partes do país, a parcela da população com temor de se infectar pelo vírus alcançou nível recorde.
A pesquisa Datafolha mostra que 55% dos entrevistados declaram ter muito medo, enquanto o levantamento anterior, de janeiro, registrou 44%. Outros 27% têm um pouco de medo, 12% não têm, e 7% relataram já ter contraído a doença.
Diz ter muito medo uma parcela mais expressiva das mulheres (61% ante 48% dos homens), dos mais velhos (58% da faixa etária com 45 anos ou mais, ante 48% dos de 16 a 24) e moradores do Nordeste (61% contra 44% da região Sul).
Mas mesmo entre os homens houve aumento significativo entre os que manifestaram ter muito temor da doença: de 33% no levantamento em janeiro, essa parcela foi para 48% entre eles. Entre elas, passou de 55% para 61%.
Também passou a declarar muito medo uma parcela maior dos segmentos de jovens de 16 a 24 anos (foi de 34% para 48%) e dos mais ricos, com renda mensal de mais de dez salários mínimos (passou de 41% para 55%).
Esses estratos têm sido particularmente afetados na atual fase da pandemia. Na esteira de aglomerações no final do ano e no Carnaval, médicos têm observado uma presença maior de pacientes jovens nas UTIs.
Em um cenário de esgotamento generalizado da capacidade de atendimento, o acesso a plano de saúde não é mais suficiente para garantir atendimento. Hospitais privados de ponta têm unidades lotadas, e parte deles já chegou a pedir leitos para o SUS em São Paulo.
O colapso na saúde no país contrasta com cenas de aglomerações e eventos clandestinos. Em São Paulo, onde já se registra morte por falta de leito de UTI, o índice de de isolamento social estava em 43% na quarta-feira (17), longe da meta do governo paulista de 50%.
A pesquisa Datafolha mostra que a não adoção de distanciamento não decorre necessariamente de desconhecimento sobre a gravidade da pandemia.
A percepção de que a disseminação da doença está fora de controle é majoritária mesmo entre os que estão vivendo normalmente, sem nenhuma medida extra de isolamento.
Nessa parcela da população, a maioria ou tem muito medo (26%) ou um pouco de medo (29%) de contrair a Covid-19. Já 34% declaram não ter receio.
Consenso entre especialistas para frear um vírus transmitido principalmente por gotículas de saliva e aerossóis, o isolamento social vem sendo combatido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) desde o início da pandemia, com aglomerações e falas nesse sentido.
Ele chamou de histeria, mimimi e fantasia a reação ao vírus. “Vão ficar chorando até quando?”, indagou no início do mês.
A alternativa mais eficiente ao distanciamento social é a vacinação, que patina no país. Além da demora em firmar contratos com fornecedores, o governo Bolsonaro já adiou sucessivas vezes o cronograma de aplicação dos imunizantes já aprovados na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Não por acaso, a percepção de que a pandemia está fora do controle é mais alta entre os que reprovam o governo Bolsonaro (94%) e entre os que não confiam em suas declarações (93%).
É maior também entre mulheres (85%, contra 73% entre os homens) e entre os mais pobres (82% ante 69% dos mais ricos).
Considerando-se a religião, a parcela dos entrevistados pelo Datafolha que declara ter muito medo de pegar a Covid é maior entre os católicos (61%) do que entre os evangélicos (45%). Já a percepção de que a pandemia está fora de controle não varia tanto entre os dois grupos —fica em 81% e 76%, respectivamente.
Diante do pior momento da pandemia e da possibilidade concreta de enfrentar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa eleitoral de 2022, Bolsonaro agora ensaia discurso a favor da vacinação em massa, contrariando diversas declarações pelas quais colocou em dúvida a confiabilidade dos imunizantes.
Bernardo Mello Franco: Estado de intimidação
A PM de Brasília prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa contra o presidente na Praça dos Três Poderes. A notícia remete aos anos de chumbo, quando os militares perseguiam quem ousasse contestar a ditadura. Aconteceu ontem, sob o governo de Jair Bolsonaro.
A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas.
Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição.
O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um “estado de intimidação”. “O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva”, define.
A crônica dos abusos só aumenta. No Rio Grande do Sul, professores foram processados por criticar o presidente. No Rio de Janeiro, pesquisadores foram intimados por denunciar o desmonte da Casa de Rui Barbosa.
No Tocantins, o ministro Mendonça mandou a PF investigar um sociólogo que pede impeachment de Bolsonaro. Seu crime foi escrever, num outdoor, que o capitão “não vale um pequi roído”. O pequi ainda não foi ouvido para se defender da comparação.
Os manifestantes de Brasília foram enquadrados na LSN porque chamaram o presidente de “genocida”. Três dias antes, o youtuber Felipe Neto foi convocado a depor pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, recorre-se a uma lei da ditadura para sufocar a liberdade de expressão na democracia.
“A LSN está sendo usada para perseguir quem critica o governo. Isso é um abuso de autoridade e um ataque ao Estado democrático de direito”, diz o advogado Augusto de Arruda Botelho. Ele ajudou a fundar o grupo Cala a Boca Já Morreu, que vai oferecer defesa gratuita a novas vítimas da caça às bruxas.
Enquanto o Supremo não varre o entulho autoritário da LSN, o bolsonarismo continua a cultuar a tirania. A Justiça Federal acaba de autorizar o Exército a festejar o 57º aniversário do golpe de 1964. Se a decisão não for reformada, os militares poderão praticar o esporte preferido do seu comandante em chefe.
Vera Magalhães: Sociedade civil, finalmente, inicia reação ao arbítrio
E pur si muove!
Não se sabe se Galileu Galilei de fato proferiu a famosa frase depois de ter renegado a teoria heliocêntrica e se retratado perante a Inquisição, mas ela é, até hoje, um libelo em favor da razão e da Ciência — e contra a censura e a perseguição político-religiosa.
Sim, a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Além de se mover, ela é redonda, como recentemente atestou até Jair Bolsonaro, ao aparecer com um globo terrestre movido a pilha numa das suas infernais lives semanais.)
A frase imputada a Galileu me voltou à mente diante da resistência cívico-jurídica organizada pelo influenciador Felipe Neto, que, diante da tentativa de intimidação judicial que sofreu por parte de Carlos Bolsonaro, filho e guarda-costas do presidente da República, montou uma rede com alguns dos melhores advogados criminalistas do Brasil, para defender gratuitamente aqueles que vierem a ser perseguidos por se manifestar contra o governo e o capitão.
A inaceitável tentativa de enquadrar o youtuber na Lei de Segurança Nacional caiu por ora, graças a uma liminar, mas a ameaça autoritária já há muito saiu do campo da possibilidade e da retórica para virar realidade cotidiana.
Nesta quinta-feira, foi a vez de manifestantes serem presos por protestar em frente ao Palácio do Planalto portando cartazes e faixas chamando Bolsonaro de “genocida”.
A Polícia Militar do Distrito Federal executou a ação e tentou envolver a Polícia Federal, que liberou os manifestantes e, desta vez, não participou da tentativa de cerceamento à livre manifestação.
Digo “desta vez” porque, acionada diretamente pelo ministro da Justiça, André Mendonça, a mesma PF abriu recentemente inquérito contra um sociólogo do Tocantins que confeccionou um outdoor dizendo que o presidente vale menos que um caroço de pequi roído.
O cerco não é hipotético, não se trata de paranoia da oposição nem de exagero dos críticos. Mais: ele é alimentado pelo recurso cada vez mais frequente do próprio presidente a ameaças veladas ou abertas a medidas “drásticas” ou “precipitadas”, como ele fez nesta quinta naquele bate-papo com puxa-sacos no cercadinho do Alvorada.
Que haja por parte da sociedade civil organizada — influenciadores, advogados, artistas, jornalistas — a organização de respostas claras, imediatas, destemidas e, sobretudo, concretas a esse caldo de cultura golpista é, finalmente, um alento, uma vez que as instituições, que tenho cobrado a cada artigo neste espaço, seguem inertes.
Bolsonaro é, cada vez mais, um bicho acuado. Pela própria covardia, pelo negacionismo que praticou neste ano de pandemia — e que é, sim, o grande responsável pela maioria das mais de 287 mil mortes registradas pela Covid-19 — e pela falta de equipe e de bússola que tire a ele e ao país desta gravíssima crise sanitária, econômica, social, moral e política que atravessamos.
Alguém com pendor autoritário assim assustado é um perigo para um país já traumatizado e com instituições frouxas, dirigidas por homens frouxos. Ainda bem que alguém encabeçou uma ação de fácil compreensão e rápida eficácia.
Felipe Neto, diante dos inquisidores, berrou que a Terra se move, sim, e continuará se movendo a despeito da tentativa de mordaça. E não é a primeira vez: no episódio na censura do ex-prefeito Marcelo Crivella a quadrinhos na Bienal do Rio, em 2019, foi o “moleque”, como gostam de bradar os bolsonaristas, a ir lá e comprar todos os livros com temática LGBTQIA+ e distribuir gratuitamente.
Para além das notas de repúdio e da indignação diluída das redes sociais, esse tipo de iniciativa gera resultado. Que ela inspire os que são pagos por nós para zelar pela democracia.
Fernando Gabeira: Sombrio panorama na terra do sol
São os preconceitos e o obscurantismo de um obtuso que definem a política contra a covid
Quando desistiu do cargo de ministro da Saúde, a dra. Ludhmila Hajjar afirmou que o panorama no Brasil é sombrio. Diria que é singularmente sombrio, por algumas razões. O Brasil é o único país que teve quatro ministro diferentes durante a pandemia. E desponta como o segundo colocado no mundo em número de mortos, que deve chegar próximo dos 300 mil neste fim de semana.
Para completar o quadro, uma nova variante do coronavírus não só tem contribuído para expandir o vírus, esgotando os leitos de hospital, mas também vai devastando uma parte da juventude, setor da população que estava mais protegido na primeira onda da pandemia.
Apesar de toda a gravidade do momento, a dra. Ludhmila tinha esperanças. Afinal, fora chamada para conversar sobre o cargo pelo presidente Bolsonaro. Isso significava, aparentemente, que o próprio governo queria mudar. Convocava uma especialista para quem a política do governo contra a covid-19 é um conjunto de erros.
A dra. Ludhmila foi massacrada pelos hostes bolsonaristas e o presidente recuou. Ela falava uma linguagem muito próxima do que dizem os médicos e a maioria esmagadora dos políticos. E, consequentemente, muito distante da família Bolsonaro e de seus dogmas diante da pandemia.
Embora não tenha sido escolhida para o ministério, a dra. Ludhmila, em curtas e fragmentadas declarações, acabou reafirmando uma série de pontos vitais no combate ao coronavírus, uma espécie de consenso nacional do qual só não participam a família Bolsonaro e seus seguidores.
Ponto decisivo no seu programa de trabalho era criar um comitê de crise que atendesse governadores e prefeitos 24 horas por dia. Uma resposta ao clamor de todos por uma coordenação nacional.
Outra indicação importante é a ideia de ser preciso adotar medidas de isolamento social, mesmo que se chegue necessariamente a um lockdown em todo o País, grande e complexo demais para ser abordado com uma única medida.
Admitir que não existem remédios eficazes contra a covid-19 não significa que se deva deixar de buscar contatos com todo o mundo científico, com abertura a todas as iniciativas que se mostrem eficazes e seguras. Mas tudo dentro de uma linha de raciocínio que privilegie a vacina.
Esse ponto de intensificar a vacinação como saída não só para poupar vidas, como retomar a economia, é tão consensual que o próprio governo Bolsonaro decidiu adotá-lo depois de meses de hesitação e sabotagem. O ex-ministro Mandetta calcula que era possível começar a vacinação nos últimos meses de 2020 se o governo tivesse aproveitado a oportunidade. Perdemos meses e continuamos perdendo tempo, apesar da contratação de 545 milhões de doses.
Ao falar do tratamento da covid, a dra. Ludhmila mencionou também a necessidade de protocolos e treinamento adequado. Há gente morrendo porque foi intubada de forma equivocada.
Acrescentaria a isso algo que ela não mencionou, mas circula nos meios especializados: a necessidade de contratar mais gente, no mínimo 50 mil novos funcionários. De fato, as equipes de trabalho estão esgotadas, física e psicologicamente.
Um ponto novo no debate foi incluído também nas declarações da dra Ludhmila: a necessidade de um esforço nacional para recuperar vítimas de covid-19, tratar as sequelas, propiciar que voltem ao trabalho. É uma tarefa também para o SUS, uma vez que milhares de pessoas não têm recursos para pagar um processo de reabilitação. Os preços são muito altos. Na briga de governo federal e Estados para que Brasília pagasse leitos de UTI, ficou claro que um único leito desses custa R$ 1.600 por dia. Sem o SUS os pobres morreriam nas enfermarias.
Um novo ministro da Saúde foi escolhido e esses temas foram varridos para debaixo do tapete, ao menos por enquanto. O ministro Marcelo Queiroga não tem projeto próprio. Já disse que executará uma política do governo. É uma versão mais palatável do general Pazuello: um manda, o outro obedece. No fundo, Queiroga está dizendo a mesma coisa, sem refletir como é limitada uma política de governo definida pelos preconceitos e pelo obscurantismo de Bolsonaro.
O presidente sempre subestimou a pandemia, sempre considerou um ato contra o seu governo restringir a circulação de pessoas, sempre acreditou em remédios milagrosos, em vez de investir na vacina, que bombardeou das trincheiras da ideologia e da pura superstição.
O fato de ter-se recusado a aceitar os seus erros e investir na mudança personificada pela dra. Ludhmila mostra também como Bolsonaro está isolado. Nem os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com seu apoio, o acompanham em sua política contra a pandemia.
Ainda não se percebeu que a tão decantada frente ampla existe de uma forma que beira o consenso quando se trata da pandemia. Bolsonaro está só com sua família e a minoria de seguidores. A existência de um quase consenso dessa importância é animadora, mas o fato de instrumentos tão poderosos estarem nas mãos de um presidente obtuso torna o panorama sombrio.
Luiz Carlos Azedo: Apagão logístico na Saúde
Queiroga assume o ministério deslumbrado com o cargo e alinhado com Bolsonaro, mas completamente perdido diante da gravidade da crise sanitária
O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, assume o cargo em meio a um apagão logístico: faltam vacinas, mesmo com o escalonamento da programação, leitos, respiradores, oxigênio, material para intubação, sedativos e pessoal treinado em várias regiões do país. Em São Paulo, o estado com mais recursos, maior rede hospitalar e principal produtor de imunizantes do país, a situação é dramática, com uma morte a cada dois minutos. Queiroga fez, ontem, um discurso ambíguo, no qual defendeu a “política de saúde do presidente Jair Bolsonaro” e, ao mesmo tempo, destacou a importância das “evidências científicas” na condução da pasta, o que é uma contradição. Bolsonaro é contra as medidas de governadores e prefeitos para conter a propagação do vírus e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). Está deslumbrado com o cargo, mas completamente perdido diante da gravidade da situação.
Com a saída de Pazuello, não haverá uma transição, mas continuidade da política que estava sendo implementada por ele. Nenhuma mudança na equipe do ministério, formada por militares, foi anunciada. O novo ministro assumiu a pasta no dia em que o Brasil registrou 2.841 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, recorde absoluto desde o início da pandemia, e 84.362 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Com isso, o número de vítimas fatais da doença chegou a 282.128, e o total de casos, a 11,603 milhões. Falta uma coordenação nacional de combate à pandemia, agravada pelo fato de que o presidente Bolsonaro estimula a desobediência civil e o desrespeito às medidas de isolamento social.
Rio Branco, Rio de Janeiro, João Pessoa, Macapá e Aracaju interromperam a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19 porque o estoque acabou. Maceió suspendeu a imunização programada para ontem. Em Belford Roxo (RJ), milhares de pessoas se aglomeraram nos postos de vacinação sem conseguir receber a dose, todos idosos. Até agora, o Brasil vacinou cerca de 10 milhões de pessoas, o que equivale a 4,7% da população. É muito pouco, porque a chamada P1, originária de Manaus, já se espalhou por todo o país. Esse vírus mutante é responsável pelo novo perfil da pandemia, com taxa de contaminação mais alta e letalidade maior. Também está hospitalizando pacientes mais jovens, por longo tempo.
Falta de insumos
Em São Paulo, foram 679 novas mortes provocadas pela covid-19 em 24 horas, a maior taxa desde o início da pandemia. O estado totaliza 64.902 óbitos causados pelo coronavírus. Nessa escalada, será inevitável um lockdown em muitas cidades, pois 90% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) para covid-19 estão ocupados. O índice considera hospitais públicos e particulares. Na Grande São Paulo, a taxa média é ainda maior, 90,6%. Em todo o estado, 69 cidades já alcançaram 100% de ocupação de leitos de UTI. São 24.992 pessoas internadas, sendo 10.756 em UTIs e 14.236, em enfermaria.
No Rio Grande do Sul, foram 502 óbitos nas últimas 24 horas. É o maior registro diário em toda a pandemia. A taxa de ocupação dos leitos de UTIs estava em 109,6%. Dos 3.461 pacientes hospitalizados em leitos críticos, 2.534 são de pessoas confirmadas com covid (73,2%). Na rede privada, a situação é ainda mais grave: 135% das vagas de UTI adulto estão ocupadas. No Sistema Público de Saúde (SUS), a taxa é de 99%. Faltam equipamentos; os profissionais de saúde estão esgotados e adoecendo.
Em Mato Grosso, faltam respiradores. Em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá, médicos que trabalham na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Ipase desmontaram estetoscópios para usar a mangueira do aparelho como mangueira de oxigênio, já que o insumo está em falta. No Ceará, todos os hospitais da rede privada de Fortaleza estão em colapso, com 100% dos leitos de enfermaria e UTI ocupados. No Paraná, 28 hospitais de Curitiba e região estão em colapso, mesmo com o lockdown. Em Santa Catarina, faltam bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de intubação de pacientes em tratamento contra a doença. Acabaram os estoques de medicamentos, como Rocuronio, Propofol e Atracúrio.
Queiroga: 'Ministro executa a política do governo', diz sobre 'continuidade' na Saúde
O médico afirmou que não tem 'avaliação' sobre a gestão do general Eduardo Pazuello, nem 'vara de condão' para resolver os problemas da saúde nacional
Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo16 de março de 2021 | 11h12 SAIBA MAIS
BRASÍLIA - Escolhido para ser o quarto ministro da Saúde em plena pandemia, o cardiologista Marcelo Queiroga disse nesta terça-feira, 16, que dará continuidade ao trabalho até agora executado na pasta. "A política é do governo Bolsonaro, não do ministro da Saúde. O ministro executa a política do governo", disse Queiroga.
O médico afirmou que não tem "avaliação" sobre a gestão do general Eduardo Pazuello, nem "vara de condão" para resolver os problemas da saúde nacional. "O ministro Pazuello tem trabalhado arduamente para melhorar as condições sanitárias do Brasil. Eu fui convocado pelo presidente Bolsonaro para dar continuidade a este trabalho e conseguirmos vencer essa crise na saúde pública brasileira", disse Queiroga ao chegar na sede da Saúde para a sua primeira reunião de trabalho.
O cardiologista foi escolhido na segunda-feira, 15, pelo presidente Jair Bolsonaro ao ministério, após desgaste de Pazuello no cargo. Queiroga reúne-se nesta manhã com o general e sua equipe para tratar da transição de gestões. "Não vim aqui para avaliar a gestão Pazuello. Vim aqui para trabalhar pelo Brasil. Juntamente com o general Pazuello e com outros ministros do governo. O Presidente está muito preocupado com essa situação", disse Queiroga.
Apesar de já ter manifestado rejeição a bandeiras do governo Bolsonaro, como o uso da cloroquina, medicamento ineficaz para covid-19, Queiroga não deve realizar mudanças bruscas na pasta. Ao chegar na sede da Saúde, ele afirmou que o País precisa de "união nacional" para vencer a crise sanitária. "Não tenho vara de condão", disse o médico.
Queiroga disse que as suas posições sobre temas como distanciamento social "são públicas". Ele usou máscara e pediu que os jornalistas não se aglomerem durante as entrevistas. O novo ministro disse que daria novas declarações após a reunião com Pazuello.
O novo ministro deve acompanhar Pazuello em agendas da Saúde nesta semana. Ambos devem participar de reunião na Câmara dos Deputados, na quarta-feira, 17, e de entrega de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, envasadas na Fiocruz, em cerimônia no Rio de Janeiro, na mesma data. Pazuello deixou a sua equipe à disposição de Queiroga para a transição na saúde, que deve durar até duas semanas, conforme o presidente Bolsonaro disse na segunda-feira.
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Alon Feuerwerker: Com firma reconhecida
Documento oficial do governo americano informa que os Estados Unidos atuaram (ainda atuam?) junto ao Brasil para evitar que usássemos (usemos?) vacinas russas contra a Covid-19 (leia). Aparentemente, essa pressão tem sido feita sem a oferta de contrapartidas. Por exemplo, os americanos poderiam oferecer-nos vacinas deles em lugar das do concorrente geopolítico.
Pressões desse tipo são esperadas num ambiente global de acirramento das disputas. A principal hoje é entre os Estados Unidos e a China, mas a polarização entre americanos e russos também vai adquirindo desenhos assemelhados aos da Guerra Fria, que durou do pós-2a. Guerra até o colapso e a consequente extinção da União Soviética.
Mas não é normal que o poder de barganha de um país esteja tão diminuído para uma pressão desse tipo não vir acompanhada de ofertas compensatórias. Afinal, vacinar os brasileiros deveria em teoria interessar ao mundo todo. Ou, pelo menos, ficar bem com o Brasil deveria ser do interesse do ocupante da Casa Branca, qualquer que fosse ele.
O debate político aqui dentro vai muito aquecido, com cada jogador tentando tirar o máximo proveito da desorganização no combate à Covid-19. Parece faltar, entretanto, quem esteja pensando antes de tudo no interesse nacional. E o interesse nacional é um só. Ter e aplicar o maior número de doses de vacina no menor tempo possível.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação