Marcelo de Azevedo Granato

César Mortari Barreira e Marcelo de Azevedo Granato: Democracia

No Brasil o exercício da administração pública por militares de novo dá em fracasso

Nos últimos meses tem sido intenso o debate sobre a conveniência ou superioridade da democracia sobre outras formas de governo, em particular no caso brasileiro. De pedidos e ameaças de golpe militar a pesquisas de opinião e campanhas jornalísticas, a democracia não sai do noticiário.

Mas quem é ela, a democracia? Há diversas respostas, decorrentes de distintas matrizes teóricas. Sabemos, no entanto, que a democracia moderna é caracterizada pela ideia de representação. Em regra, elegemos aqueles que tomarão as decisões coletivas em nosso nome. Ou seja, nosso voto normalmente não decide, ele elege quem deverá decidir.

Essa compreensão vai ao encontro da definição que Norberto Bobbio dá à democracia: “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O Futuro da Democracia). Trata-se de uma definição que Bobbio mesmo chama de “mínima”, e que também é formal, já que ela não nos diz o que se deve decidir numa democracia, mas quem deve decidir (“participação mais ampla possível dos interessados”) e como se deve decidir (“regras de procedimento para a formação de decisões coletivas”).

Mas Bobbio não ignora a existência de valores e condições da democracia. Alguns desses valores e condições estão implícitos nas seis regras pelas quais Bobbio especifica sua definição “mínima”.

A primeira regra dispõe que “todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária, sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele”. A segunda regra estabelece que “o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso”.

Nessas duas primeiras regras sobressai o valor da igualdade tanto na inclusão do maior número de pessoas no processo de formação das decisões coletivas quanto na atribuição de igual importância ao voto de cada uma delas.

Na terceira regra, Bobbio afirma que “todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião, formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si”. Conforme a quarta regra, todos “devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos”.

Nessas duas regras sobressai o valor da liberdade tanto no sentido de que a opinião política de cada um deve poder se formar livremente, sem distorções (daí o necessário pluralismo dos e nos meios de informação), quanto no sentido de que as pessoas devem dispor de alternativas políticas reais, que permitam que elas se identifiquem com alguma orientação política (daí a importância dos diferentes partidos e movimentos políticos).

Na quinta regra Bobbio afirma que, “seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos”. Essa regra traz um meio que garante a eficiência do processo de decisão coletiva: a regra da maioria, pela qual vence o candidato ou a decisão que obtiver o maior número de votos.

Enfim, a sexta regra da democracia dispõe que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (…) maioria em igualdade de condições” (Teoria Geral da Política).

Esta última regra não se refere, como as outras cinco, ao quem ou ao como do processo de escolha e decisão política. Ela se refere ao quê, ao conteúdo das decisões políticas. E nos permite um comentário final sobre as regras do jogo democrático.

Ao dizer que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (…) maioria”, Bobbio toca num ponto crucial, que é o fato de a democracia ser um regime que permite a alternância pacífica de governos. Nela os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (Le Basi della Democrazia).

A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia e a definição “mínima” ou formal trazida acima é justamente uma técnica de convivência destinada a resolver conflitos sociais sem o recurso à violência. Na democracia a violência dá lugar ao compromisso.

Assim, na atual discussão sobre democracia ou ditadura, pode-se afirmar que o regime democrático é preferível ao regime militar não só porque, no Brasil, o exercício da administração pública por militares dá novamente em fracasso, mas também porque, na lógica democrática, “o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O Futuro da Democracia).

*Respectivamente, doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, coordenador científico do Instituto Norberto Bobbio; e doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio e professor da Facamp


Marcelo de Azevedo Granato: Democracia dos cliques

É temerário que eles substituam os políticos, ainda que os políticos assim se substituam

A grande renovação do Congresso nas eleições de 2018 reforçou um modo peculiar de representação política, em que alguns políticos fazem enquetes nas redes sociais para definir seus votos. A ideia parece ser a de dar voz ao cidadão (especificamente ao cidadão que acompanha o político nas redes sociais) no momento da tomada de decisão política. Ou tornar mais direta a democracia representativa, que é indireta, já que nela elegemos representantes que tomam decisões políticas em nosso lugar.

Essa iniciativa suscita a pergunta: se fosse possível a todo cidadão “transmitir seu voto a um cérebro eletrônico sem sair de casa e apenas apertando um botão” (Bobbio), estaríamos dispostos a assumir, no lugar dos políticos, a responsabilidade de decidir sobre questões importantes para o País? Seria bem-vinda essa onipresença da política em nossa vida?

Já há alguns anos a política assumiu um lugar central na sociedade brasileira, tornando-se seu elemento marcante até na forma como nós mesmos enxergamos a nossa sociedade. Daí que, à hipotética pergunta acima, talvez muitos respondam que aceitam assumir, no lugar dos políticos, a decisão sobre o maior número possível de questões importantes do País. Argumentariam, por exemplo, que ninguém melhor do que nós mesmos para definir assuntos que nos dizem respeito: o foco da democracia, afinal, é o autogoverno. Ainda mais diante dos representantes políticos que temos.

Essa seria uma resposta respeitável para um problema real. Mas não nos parece ser essa a melhor resposta. Ou seja, não nos parece que uma hipotética democracia “total” ou mesmo uma democracia das lives e dos cliques seja um remédio para a nossa democracia representativa.

O fato inegável de que a prática política brasileira frequentemente não se orienta pelo interesse da sociedade não será reparado pela simples retirada do poder de decisão das mãos de pessoas incumbidas da identificação, discussão e maior acomodação possível dos interesses nacionais e sua atribuição a todas as pessoas, que não precisam ter outro interesse senão o próprio.

É verdade que os políticos e seus partidos têm sido incapazes, até por desinteresse, de realizar essa identificação, o direcionamento, a conciliação de demandas sociais. Mas entender que a solução para isso está na simples agregação das preferências do maior número possível de pessoas é ignorar que democracia sem paciência, diálogo, compromisso, baseada só na contagem de votos, em “quem ganhou” e “quem perdeu”, é falsa democracia.

Nela é preciso parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss); um acordo que a política meramente aritmética, de pulsão e imposição, não poderá atingir. E assim nossas divisões político-ideológicas – que já contaminam outras esferas da vida social – se perpetuarão, em prejuízo da nossa comunidade.

É temerário, portanto, substituir políticos por cliques, ainda que os próprios políticos assim se substituam, como no caso das enquetes que definem votos. É preciso recordar que o político não é mero porta-voz de seus eleitores; a relação entre eles é de confiança, de modo que o representante político age, sim, em nome dos representados, mas, ao fazê-lo, deve tutelar não só os interesses dos que o elegeram ou de algum grupo, mas os de toda a sociedade.

Daí a verdadeira “gororoba representativa” encenada nas enquetes: de um lado, o político orienta/vincula seu voto ao parecer da maioria de seus seguidores virtuais, talvez vendo aí a expressão de uma opinião pública, que, porém, é a simples soma de cliques mais ou menos informados/refletidos de sujeitos (e robôs?) privados. De outro, é o próprio político que decide quais questões serão tratadas dessa maneira.

A crítica desse estado de coisas não significa adesão a “tudo o que está aí” nem oposição ao envolvimento direto da população em assuntos de interesse público. O que emerge do que está acima é a necessidade de repensar os partidos 1) em sua organização, para que não continuem sendo o playground de suas inamovíveis lideranças nem partidos de um homem só; 2) em seus perfis e ideias para o País, o que dificilmente justificará as mais de 20 agremiações representadas no Congresso; 3) em seu distanciamento dos filiados, proporcional à sua proximidade com profissionais de marketing; 4) em sua seleção de quadros, para que propostas como a de candidaturas avulsas sejam desnecessárias.

Certamente, essas indicações não se farão presentes sem a persistente intervenção dos eleitores, da militância partidária e das instituições, nem serão o remédio para todos os males da nossa democracia representativa, mas constituem, a nosso ver, um projeto mais promissor que o da democracia “total” ou dos cliques. A atitude do bom democrata, disse Bobbio, “é a de não se iludir com o melhor e a de não se resignar com o pior”.

* DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO (ITÁLIA), INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP