Maquiavel
Murillo de Aragão: Maquiavel passou por Brasília
De tanto falarem nele, Maquiavel apareceu em Brasília. Resolveu conferir se seus ensinamentos estão sendo seguidos. De cara, surpreendeu-se com o abundante número de “Príncipes” batizados de caciques, coronéis, oligarcas, entre outros nomes, diferentemente das cortes na velha Itália, que se moviam em torno de um único Príncipe.
Percebeu ainda que, aqui, muitos são os polos de poder, sem que isso signifique democratização. E identificou na capital do Brasil uma luta de poder multipolar bem mais complexa dos que as disputas entre o Reino de Nápoles, o Ducado de Milão, os Estados Pontifícios e a República de Veneza.
Prosseguindo em sua observação, Maquiavel verificou que no Distrito Federal, mesmo passados cinco séculos da publicação de seu clássico livro (não à toa intitulado O Príncipe), o que alimenta a política é a conquista e a manutenção do poder, conforme já denunciava no livro. Independentemente de outros aspectos. E que, ainda conforme preconizou, muitos políticos se valem de todos os meios para se manter no comando.
Assim, constatou que a sua lição de que os fins justificam os meios foi muito bem aprendida no Brasil.
Ao tomar conhecimento da Operação Lava-Jato, o pensador, que nasceu em 1469 em Florença (onde também morreu, aos 58 anos), ficou atordoado com os números e a complexidade das relações entre empresas privadas e poder público no Brasil. Ficou ainda mais chocado quando soube que o que foi descoberto em torno do Petrolão não passa de uma das pontas de um imenso iceberg.
Ouvindo os relatos sobre a investigação, disse que os Príncipes daqui exageram no tocante a não serem limitados pela moralidade. Teria inclusive sugerido às minhas fontes que até para ser imoral deve existir um limite. E que o limite é o bom-senso, artigo em falta no país.
Sabendo que a Lava-Jato tem sangrado o mundo político e que este, pelo seu lado, não enfrenta a questão de frente ou não busca uma solução, Maquiavel pensou em sugerir uma ampla anistia aos políticos, desde que eles fossem banidos da política e pagassem uma multa. Ignorou comentários irônicos de que ele não entende de Brasília e que por aqui, como a esperança é sempre a última que morre, é melhor ir empurrando tudo com a barriga.
Convidado a ir a Curitiba para conhecer alguns dos protagonistas da força-tarefa da Lava-Jato, Maquiavel declinou do convite. Temia que em um surto de ativismo judicial pudesse se indiciado nos inquéritos e ele ficasse impedido de voltar ao Além. Vá lá que alguém o delatasse?! Preferiu não arriscar.
Paradoxalmente, observou que os políticos brasileiros são lenientes com os adversários: o inimigo de hoje pode ser o amigo de amanhã. E vice-versa. Ele acha que é assim mesmo em política, só que não se pode exagerar.
Ouviu, com espanto, que inúmeros aliados da ex-presidente Dilma Rousseff foram mantidos em cargos de confiança após seu impeachment. Não souberam explicar-lhe se por desinformação, imprudência ou os dois ao mesmo tempo. Para ele, no entanto, é intolerável que dissidentes não sejam severamente punidos e que inimigos não sejam sumariamente afastados de suas posições com a mudança de governo.
Nesse sentido, viu que os políticos no Brasil de hoje não levam em conta a história. Que a maioria mal sabe o que é história – pensa que é o que está no jornal de ontem e nem desconfia que ela pode ensinar.
Ficou espantado, por exemplo, ao saber que o ex-presidente Fernando Collor, mesmo tendo sofrido impeachment, está voltando ao banco dos réus sob suspeita de corrupção. E deduziu que nesse caso a história não se repete como farsa; a história é a própria farsa.
Viu ainda que o Brasil e os brasileiros vivem em uma espécie de presente intenso que se limita ao que é visível. E, em sendo óbvio, é objeto de reação e não de reflexão. Daí o desprezo pela história e o descuido com o futuro.
O que fez o pensador concluir que poucos políticos brasileiros de hoje se encaixam nos tipos de inteligência que ele admirava. Segundo ele, uma verdadeira inteligência entende por si mesmo o que se passa. Poucos por aqui estão entendendo – por si mesmo – o que se passa.
Um segundo tipo é capaz de discernir a partir do que os outros entendem. Igualmente, poucos ouvem opiniões independentes.
Existe um terceiro tipo não é capaz de entender por si nem entender pelos outros. É um inútil.
Maquiavel reconheceu a inutilidade da maioria dos políticos que conheceu em Brasília. Soube que a imensa maioria dos que passam pela cidade nada deixa. Ou, quando deixa, são histórias tristes para a cidadania.
Notou ainda a omissão da sociedade, que não quer se meter nos negócios públicos. Prefere manipulá-los a distância.
Vendo a confusão instalada, lembrou que, para ele, existem duas formas de combater o inimigo: com a lei e com a força. Não viu, no Brasil, o mundo político reagindo nem com um nem com outro ao desafio das investigações.
Percebeu que as forças judiciais da República de Curitiba são bem mais maquiavélicas que as do Reino da Fantasia de Brasília, já que usam tanto a força quanto a lei.
Instado a comentar sobre o governo Michel Temer e seu ímpeto reformista, lembrou-se de uma frase de seus escritos: “Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem das coisas. O reformador tem inimigos em todos os que lucram com a velha ordem das coisas e apenas defensores tépidos nos que lucrariam com a nova ordem.”
Reparou que poucos parlamentares defendem com vigor as reformas propostas pelo governo. Mesmo com o Estado “bancorotto”, governo e políticos dançam em meio a uma chuva de meteoritos torcendo para que nada os atinja.
Por fim, ao intuir a ausência de uma estratégia clara de comunicação por parte do governo, Maquiavel novamente lançou mão de uma frase sua: “Governar é fazer acreditar.” Lamentou que o governo, como um todo, não acredite em si mesmo nem tenha ideia do tamanho de seu poder. E que tampouco saiba dizer direito o que faz.
Perguntado se toparia dar consultoria ao Palácio do Planalto, respondeu que não. Temia que a Andréa Sadi noticiasse que ele foi recebido fora da agenda. Assim, preferiu voltar para a sua Florença.
* Murillo de Aragão é cientista político
Rubens Barbosa: Profissão: político
A profissionalização gera crescentes riscos para o exercício dos mandatos
O episódio lamentável da ocupação da Mesa Diretora do Senado – que serviu até de mesa de almoço – por senadoras que se opunham à aprovação da reforma trabalhista, contra todos os princípios de comportamento parlamentar, levou-me a reflexão sobre a atuação dos políticos na sociedade brasileira. Certamente, as nobres senadoras desconhecem uma das regras básicas na política, recomendada pelo cardeal Mazarino, homem público contemporâneo de Luís XIV, em seu Breviário dos Políticos, segundo a qual “é perigoso ser muito duro nas ações políticas”. A arte da política, como ensinou Maquiavel, consiste em organizar e superar as divergências entre partidos e pessoas, sem o que reinarão o conflito e a anarquia.
Max Weber, sociólogo alemão, assinalou que os políticos vivem “de” e “para” a política e que ela é não só uma vocação, mas também uma profissão. Uma vez entrando na política, são raros os que dela se afastam. Essa situação não existia na democracia ateniense. A regra era o sorteio, e não a eleição dos cidadãos, havia uma rotação de funções e as responsabilidades passavam de um cidadão para outro. Em alguns países essa situação ainda existe. Na Suécia, por exemplo, a renovação é de 40% e muitos dos que entram para a política depois retornam a suas atividades privadas.
Voltando para a nossa triste realidade, não surpreende que nas pesquisas de opinião pública aqui realizadas nos últimos anos seja justamente a classe política o grupo menos considerado pela sociedade. Há uma crise de representatividade. O grito das ruas é eloquente: “Eles não me representam”.
Como explicar o comportamento anárquico, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, durante as discussões e votações de matérias de grande interesse para cada cidadão e para o País, por serem reformas modernizadoras que vão permitir ao Brasil acompanhar as tendências num mundo em fase de grandes mudanças?
A política no Brasil virou profissão no mau sentido. Na França o novo presidente, Emmanuel Macron, classificou a política como um “negócio de profissionais convictos”. Pelo que estamos vendo nos fatos apurados na Operação Lava Jato, a palavra negócio ganha uma atualidade impressionante.
No Brasil, é difícil reconhecer na maioria dos políticos as três qualidade do homem público lembradas por Max Weber: paixão, no sentido próprio de realizar; sentimento de responsabilidade, cuja ausência os leva a só gozar o poder pelo poder, sem nenhum propósito positivo; e senso de proporção, a qualidade psicológica fundamental do político.
A profissionalização da política causa crescentes riscos ao exercício de mandatos, seja no Executivo, seja no Legislativo. A defesa das prioridades partidárias e de seus próprios interesses leva os políticos em geral a atuar deixando de lado o interesse nacional e o bem comum. De forma crescente, os interesses corporativos passam a dominar os objetivos da classe política, como temos podido observar nos últimos tempos. Além disso, com o crescimento da economia o Brasil mudou de escala e as oportunidades de negócios se tornaram muito atraentes, como vimos nos escândalos da Petrobrás. Regras instáveis para as eleições, para o financiamento das campanhas, para a criação e o funcionamento dos partidos, entre outros aspectos, levam à confusão entre o público e o privado e à defesa de interesses pouco republicanos. Aumenta o fosso entre o governante e o governado, cai o nível cultural e instala-se a corrupção.
Como justificar a permanência na vida política por tanto tempo? Muitos apontam para a complexidade das matérias em pauta e a necessidade de conhecimentos jurídicos, econômicos e outros que facilitariam a discussão de temas especializados. Historicamente, a política iniciou-se como uma atividade reservada à chamada elite rural e urbana e houve momentos em que só participavam dela os alfabetizados e os que tinham certo nível de renda. A democratização da vida política foi muito positiva, mas provocou distorções que hoje afastam muitas vocações da militância partidária e abre espaço para políticos que roubam para o partido, como assinalou o juiz Sergio Moro. Há um apego aos mandatos porque a profissão política oferece vantagem material e retribuição simbólica (sem falar narcisista) de grandeza, autoestima, capacidade de sedução e do “sabe com quem está falando”... O índice de renovação nas eleições proporcionais para o Congresso é muito baixo, embora esteja crescendo (43% no último pleito). A longa presença dos políticos na vida pública, com sucessivos mandatos (há mais de 15 deputados com mais de seis mandatos e alguns com mais de 30 anos na Câmara), torna-se regra, agora ampliada pela eleição de membros da mesma família (mulheres, filhos e outros parentes).
A França, depois a última eleição presidencial, está discutindo reformas institucionais que merecem ser acompanhadas pelos que se interessam pelo aperfeiçoamento dos costumes políticos. Macron propôs na campanha ampla reforma institucional. Eleito chefe de Estado, propôs algumas medidas visando a reduzir a acumulação de cargos: os parlamentares não podem exercer mandato nas Casas do Congresso e ao mesmo tempo ser nomeados para cargos no Executivo. Em discurso perante os parlamentares, ousou propor a redução do número de deputados e senadores em um terço e a reeleição a, no máximo, três mandatos. Se os políticos não aprovarem essas medidas, anunciou que vai convocar referendo para que o povo decida.
Eis uma agenda política que, se aplicada no Brasil, mudaria o cenário nacional e melhoraria a percepção dos eleitores quanto à representatividade e à importância da renovação política. Procura-se candidato, com coragem, para enfrentar esse desafio na eleição de 2018.
*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior
Fausto Matto Grosso: Por trás das aparências
Aproximam-se as eleições. Os primeiros pré-candidatos começam a aparecer. Será que teremos boas opções ou seremos reduzidos, mais uma vez, à triste condição de votar no menos pior?
O pano de fundo do processo eleitoral que se aproxima é o da frustração provocada pela natureza da pratica política existente em nosso País, caracterizada pelo descompromisso programático, pela promiscuidade entre o público e o privado, pela corrupção, pelo clientelismo e pela degenerescência das práticas políticas, situação essa que afeta os mais diferentes partidos e suas lideranças.
Mas afinal, como separar o joio do trigo, se nas eleições todos os discursos são parecidos e os candidatos aparentam serem todos iguais, aos olhos dos eleitores?
Uma boa ajuda para a tomada de decisão do voto pode vir da análise da tipologia de lideres políticos construída pelo chileno Carlos Matus. Chimpanzé, Maquiavel e Ghandi, assim o autor tipificava os estilos de liderança política, em uma escala do pior para o melhor.
Tais como nos grupos de chimpanzés, os líderes, assim classificados, são caracterizados pela expressão “o fim sou eu”. A forca representa o seu atributo político principal. Não existe projeto algum – o líder guia a manada a lugar nenhum e é guiado pela lógica de que “o projeto é o chefe e o chefe é o projeto”. É o estilo mais primitivo de fazer política. Os ditadores sul-americanos, velhos e novos, são uma boa representação desse espécime.
“Os fins justificam os meios” essa é a síntese da ideologia que sustenta o estilo Maquiavel. Em relação ao estilo anterior, a grande diferença é que neste caso há um projeto, que transcende o líder. O projeto não é mais individual, é coletivo, tem base social, mas é impossível realizá-lo sem o líder messiânico. Aqui o poder pessoal não é o objetivo, mas o instrumento. Nesse contexto, não há adversários, e sim inimigos que devem ser derrotados e, se necessário, eliminados. A esquerda autoritária foi pródiga em produzir tais lideranças.
Mas a humanidade já conseguiu produzir, embora mais raramente, outro tipo de líder, que baseia a sua liderança na força moral e no consenso. Ghandi é o paradigma desse tipo de liderança política. Talvez um bom exemplo mais recente seja Nelson Mandela.
Também aqui o projeto é coletivo, mas o líder não disputa para sê-lo. Não precisa força física, lidera pela superioridade de seus valores e da sua ética. Não precisa construir inimigos para vencê-los, mas sim subordinar e ganhar os adversários pela razão objetiva do projeto socialmente superior. Pratica a coerência entre discurso e ação, essa coisa hoje tão rara na política, cuja escassez está na origem da desmoralização dos líderes políticos.
Esses estilos de lideranças políticas raramente são encontrados em estado puro. Também, o líder não os escolhe ao seu bel prazer. O estilo real de cada político acaba sendo uma combinação particular entre esses estilos básicos e ainda vai depender do contexto dentro do qual se realizam as disputas.
A cada estilo de liderança vai corresponder, no exercício do poder, um comportamento político esperado. O de pensar e usar o governo como coisa sua, ou comportar-se segundo princípios republicanos. O de isolar-se no uso pessoal do poder ou de compartilhá-lo com a sociedade. O de perpetuar conflitos ou buscar convergências que possam viabilizar projetos de interesse público.
A essa altura, cada um deve estar procurando colocar as figurinhas dos líderes das disputas nos álbuns de personalidades, ou nos porta-retratos que lhes correspondem. O critério é de cada um, assim como a responsabilidade do acerto ou erro.
Fausto Matto Grosso é professor da UFMS, membro do Movimento por uma Cidade Democrática (Correio do Estado – 25/06/2016)