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Elio Gaspari: Mandetta fritou Bolsonaro
O presidente se conduziu de modo leviano e criou antagonismo desnecessário em meio à pandemia
Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi Luiz Henrique Mandetta quem fritou Jair Bolsonaro. Ele saiu maior e o capitão ficou menor. Tendo-se colocado numa posição teatral que ofendeu a ciência e a opinião pública, o presidente abandonou a piada da “gripezinha”. Boa notícia.
Bolsonaro fritou-se porque quis. Conduziu-se de maneira leviana e criou um antagonismo desnecessário com Mandetta. Em nenhum país a discussão da calibragem do isolamento, bem como das virtudes da cloroquina, levou a fricções como as que Bolsonaro produziu. (Se Donald Trump pudesse, teria cortado a língua do doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas desde 1984, mas preferiu calibrar seus próprios delírios.)
último domingo (12), quando ele disse que “parece que o vírus começa a ir embora”, lidou com fatos. Até aquele dia haviam morrido 1.233 pessoas, o contágio estava em expansão e, como se esperava, poderia bater a marca dos 2.000 óbitos.
Bolsonaro vive numa realidade paralela. Isso não é de hoje. Em maio do ano passado ele disse o seguinte: “Brevemente, estará sendo apresentado aos senhores um projeto que, com todo o respeito ao Paulo Guedes, a previsão é de termos dinheiro em caixa maior do que a reforma previdenciária em dez anos”. Cadê? (Provavelmente, era a ideia de se legalizar o jogo.)
Em fevereiro, Bolsonaro anunciou que iria aos Estados Unidos, onde visitaria uma empresa de militares que lhe apresentariam uma “transmissão de energia elétrica sem meios físicos”: “Se for real, de acordo com a distância, que maravilha! Vamos resolver o problema de energia elétrica de Roraima passando por cima da floresta”. Não era real, era conversa de maluco, e Bolsonaro foi aos Estados Unidos, mas não visitou a tal empresa. De lá, sua comitiva trouxe apenas 25 infectados pelo coronavírus.
Até a semana passada Bolsonaro cultivou a ideia da “gripezinha”. Pode ser que tenha moderado sua fé médica, mas quando a pandemia estiver controlada ele terá no colo uma inédita recessão.
Antes do vírus, ele administrava um pibinho com 12 milhões de desempregados. Depois dele, seu “Posto Ipiranga” está tonto, à frente de um superministério travado, encrencando com o Congresso.
Luiz Henrique Mandetta era uma solução, e Bolsonaro resolveu fritá-lo. Fritou-se. Não se pode saber o que fará Nelson Teich, o novo ministro da Saúde. Ele sabe que Rivotril não resolve, assumiu distribuindo platitudes e revelou que saúde e economia são complementares. (Em outra ocasião, usou a ciência econômica para justificar o descarte dos velhos doentes.)
Teich defendeu um amplo programa de testes para identificar pessoas contaminadas ou imunes ao vírus. Amanhã o doutor poderá telefonar ao seu colega Paulo Guedes para saber o que aconteceu com a proposta de um empresário inglês que há uma semana lhe ofereceu 40 milhões de kits de testes por mês.
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Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Demétrio Magnoli: Na pandemia, sociedades atemorizadas por monstros entregam sua sorte aos médicos
Polarização política no Brasil e nos EUA destila polêmica estúpida, mas não é assim na Alemanha
Nos EUA, é Anthony Fauci; no Brasil, Mandetta. Os dois médicos ocuparam o centro dos palcos, ofuscando Trump e Bolsonaro. O presidente americano resiste prudentemente ao perigoso instinto de demitir o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde. O brasileiro, comandado por sua própria seita de sicários de redes sociais, acaba de dispensar o ministro da Saúde.
Lá, como aqui, ainda que em tons menos primitivos, a polarização política destila uma polêmica estúpida que contrapõe saúde pública e economia. Não é assim na Alemanha, onde ninguém discute que os dois elementos pertencem à mesma equação.
A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo. Trump e Bolsonaro falaram numa "gripezinha". As sociedades reagiram, atemorizadas pelos monstros, entregando sua sorte aos médicos.
Nesse passo, enquanto a direita populista agrupava-se atrás do estandarte da "economia", todos os demais constituíam uma frente ampla em defesa da "vida". A quarentena converteu-se em programa político e, quanto mais à esquerda, mais radical é a convocação ao isolamento social.
Há uma certa lógica na atração da esquerda pela quarentena. A China fez a mais completa delas. Quarentenas reforçam o poder estatal, em detrimento das liberdades públicas e individuais. É a hora da polícia: a emergência propicia o controle da informação, a mordaça à imprensa. A paralisia econômica demanda agressivas políticas de distribuição de fundos públicos. A "mão invisível" do mercado cede lugar à mão bem visível do Estado. O fechamento de fronteiras promove desglobalização.
Contudo, diante dos monstros, a atração estende-se bem além da esquerda. Quem quer ficar à mercê de ideólogos descontrolados, santos guerreiros da salvação pela cloroquina? Como tolerar governantes que se associam a bispos de negócios empenhados na restauração da prática medieval de preces coletivas para expulsar a peste? Daí, a escolha majoritária pelo "governo dos médicos".
O populismo está longe do núcleo do poder na Alemanha. Por lá, o colchão de um robusto sistema de saúde pública propiciou a adoção de medidas de isolamento social menos draconianas que as da Itália ou da Espanha. O governo central e os governos estaduais operaram em estreita cooperação, ouvindo recomendações de equipes de especialistas. O sistema federal provou que é capaz de agir. A curva de óbitos foi achatada em níveis relativamente baixos. No processo, os médicos nunca tomaram o lugar dos representantes eleitos pelo povo.
A transição para a reabertura começou numa reunião da primeira-ministra Angela Merkel com os governadores. Merkel guiou-se por um relatório encomendado à Academia Nacional de Ciências. O roteiro foi preparado por 26 experts "“entre os quais, além de médicos, contam-se economistas, sociólogos, juristas e filósofos. A frase-chave diz que as medidas emergenciais devem ser gradualmente removidas "por razões constitucionais". A equação alemã tenta equilibrar não dois, mas três imperativos: saúde, economia, liberdades constitucionais.
Não é o paraíso, a morada dos anjos. Há divergências, dissonâncias, tensões, acesos debates políticos. Mas, por lá, praticamente ninguém discute sobre o valor relativo da vida e do dólar (ou do euro), pois dá-se como óbvio que economia é vida e, também, que os negócios não podem decolar em meio à instabilidade gerada por um colapso hospitalar.
"Saúde ótima e a rápida retomada da vida social não são fundamentalmente incompatíveis entre si, mas mutuamente dependentes", escreveram os experts, sintetizando um consenso nacional.
Na ausência do personagem do monstro, a novela sobre o médico e o monstro ficou fora das telas alemãs. A diferença não está na "cultura" dos alemães, mas numa paisagem política menos envenenada pelo populismo. Lá, o vírus é, exclusivamente, um microrganismo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Eliane Cantanhêde: Troca de Mandetta é questão de tempo. Ou de nome
Mandetta sabe que o presidente busca um substituto para ele e Bolsonaro sabe que Mandetta e sua equipe estão com um pé fora
Ao dizer na estreia do Estadão Live Talks, na quarta-feira, 14, que o ministro Luiz Henrique Mandetta “fez uma falta, merecia cartão”, quando cobrou uma “fala única” do governo sobre isolamento social, o vice-presidente Hamilton Mourão não estava manifestando uma posição apenas pessoal, mas dos generais, como ele, que têm gabinete no Palácio do Planalto e compõem hoje o núcleo de bom senso do governo. (Quem diria?, a turma da guerra virou a turma do deixa-disso.)
Depois de defender Mandetta e convencer o presidente Jair Bolsonaro a moderar o tom, esse núcleo não gostou – como disse Mourão com todas as letras – de o ministro manter as provocações contra o chefe nos balanços diários da pandemia e, sobretudo, na entrevista à Globo no domingo, quando admitiu que os brasileiros ficam confusos porque o presidente fala uma coisa e o ministro, outra.
Além de reproduzir a posição comum dos generais, Mourão, de certa forma, também abriu caminho para Bolsonaro demitir o ministro e essa discussão esquentou ontem, quando vários nomes já pululavam na mídia e redes sociais para a Saúde e a pergunta não era mais se Mandetta seria substituído, mas quando e por quem. Um paulista, possivelmente.
Assim, o espanto foi geral quando Mandetta surgiu no fim da tarde para a entrevista diária com os fiéis escudeiros João Gabbardo e Wanderson de Oliveira, demissionário. É, no entanto, só questão de tempo. Mandetta sabe que o presidente busca um substituto para ele e Bolsonaro sabe que Mandetta e sua equipe estão com um pé fora. O coronavírus deve estar morrendo de rir.
El País: Mandetta eleva críticas a Bolsonaro e adverte sobre troca na Saúde
Novela da demissão se alonga porque presidente não escolheu substituto. Após coletiva desafiante, ministro fala à ‘Veja’ e diz que saída é irreversível
A entrevista à revista foi o último lance de mais um dia turbulento. O país se prepara para entrar numa fase mais aguda da pandemia, com hospitais de referência em São Paulo com mais de 80% das UTIs ocupadas, mas a energia em Brasília e na própria pasta segue drenada pelo impasse. No momento em que Mandetta fazia ao vivo nas TVs e para os principais meios do país a atualização diária dos registros de óbitos de coronavírus no Brasil —os falecimentos registrados já são 1.736—, o presidente Jair Bolsonaro mandava beijos e fazia sinal de corações para jornalistas que o questionavam no Palácio do Alvorada se ele demitiria seu escolhido para a Saúde.
Desde o início da crise, Bolsonaro e Mandetta divergem. O presidente defende um afrouxamento nas regras de distanciamento social e o uso amplificado da cloroquina como tratamento para todos infectados, na contramão dos principais países do mundo afetados pela pandemia. Já o ministro diz que as regras rígidas de isolamento social impostas por prefeitos e governadores devem, em sua maioria, ser mantidas para evitar um colapso no sistema de saúde. É obrigado a repetir diariamente que não há comprovação científica de que a cloroquina seja eficaz no tratamento de pacientes de Covid-19 em geral. “O vírus se impõe. A população se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o [Donald] Trump, não vai negociar com nenhum Governo”, disse, à Veja nesta quarta, quando questionado sobre mudanças de rumo no ministério com sua provável saída.
Mandetta só não caiu ainda porque não há consenso sobre o nome de um substituto. Os candidatos são: o deputado Osmar Terra, um declarado opositor da atual gestão do ministério, e os médicos Roberto Kalil (cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, conhecido por acompanhar pacientes ilustres, como ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), Claudio Lottenberg (presidente do conselho de administração do Hospital Albert Einstein que foi secretário municipal de Saúde de São Paulo em 2005) e Nise Yamaguchi (imunologista e oncologista, entusiasta do uso da cloroquina contra a doença). Quem quer que aceite o desafio terá limitações para atender os desígnios do chefe contra as medidas de isolamento e em prol da reabertura da economia, já que nesta quarta o pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu que Estados e municípios têm, sim, autonomia para decidir que serviços podem funcionar durante a emergência.
Em uma das evidências da situação surreal na pasta, Mandetta chegou a dizer durante a coletiva coletiva que recebeu telefonemas dos sondados para substitui-lo. À Veja, repetiu: “Fico até encontrarem uma pessoa para assumir meu lugar”, disse o ministro, que goza de apoio popular —além do endosso majoritário medido pelo Datafolha, de acordo com pesquisa do Atlas Político, desta quarta-feira, nada menos que 76% da população se opõem à sua demissão. O ministro ainda conta com o suporte da frente parlamentar da saúde e de entidades médicas, mas perdeu o prestígio junto aos ministros militares depois que disse para a TV Globo, em entrevista ao Fantástico no domingo, que, durante a crise do coronavírus a população “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.
O descontentamento dos militares ficou estampado em uma manifestação do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, ao jornal O Estado de S. Paulo, que ele mesmo repisou na sua conta no Twitter. “A respeito da entrevista do Ministro Mandetta, eu vou utilizar uma linguagem do polo: o ministro cruzou a linha da bola, ele não precisava ter dito determinadas coisas”.
Políticos que acompanham os bastidores desse cabo de guerra dizem que Mandetta não pedirá demissão. “Ele está na trincheira. Vai trabalhar até o último minuto. A decisão da saída ou não compete só ao presidente”, disse um deputado do Democratas. O próprio ministro repetiu nesta quarta, de novo, que só sairia em três ocasiões: quando o presidente Jair Bolsonaro não quiser o seu trabalho, se é infectado e obrigado a se afastar e quando sentir que o trabalho que vem fazendo já não é mais necessário. Aproveitando os holofotes, o ministro ressaltou que, enquanto for ministro, fará uma defesa intransigente “da vida, da ciência e do SUS (Sistema Único de Saúde)”.
Turbulência na ponta
Secretários de Saúde ouvidos pelo EL PAÍS relataram que nos últimos dias já havia um “cenário ruim” por conta da clara divergência entre o Ministério da Saúde e o Planalto na condução do combate ao coronavírus, especialmente após a entrevista de Mandetta ao Fantástico. E que esse clima se agravou nesta quarta-feira, com a divulgação do pedido de demissão do secretário Wanderson de Oliveira, visto por grande parte dos gestores como um profissional capacitado na condução da estratégica Secretaria de Vigilância em Saúde. Tanto secretários estaduais quanto municipais de Saúde participam frequentemente de reuniões com os gestores do ministério. No início da crise, eles haviam pleiteado essa participação mais ativa e foram atendidos por Mandetta.
Pelo menos três secretários de Saúde que conversaram com o EL PAÍS, e que preferiram não ter seus nomes divulgados, afirmaram que todos são cargos de confiança e que o presidente tem liberdade para mudar seus gestores. Ainda assim, a avaliação é que qualquer mudança no comando da crise neste momento seria ruim para o Brasil. Um secretário municipal de saúde pediu equilíbrio e disse temer que alterar o comando em áreas tão sensíveis agora podem impactar no trabalho construído e planejado até o momento. “As ações vêm sendo conduzidas com muita técnica. Não vejo mudança como algo interessante. Tem que ter equilíbrio e bom senso para uma troca”, afirmou.
Empoderados pelas semanas de exposição e reconhecimento públicos, Wanderson de Oliveira e o secretário-executivo do ministério, João Gabbardo, fizeram coro Mandetta na entrevista coletiva desta quarta —eles participam quase diariamente das falas à imprensa desde o começo da crise. Oliveira, que havia se queixado em carta do temor de ser demitido num tuíte, reclamou do “cansaço” pelos embates com o Planalto. Gabbardo recordou sua trajetória: “Quando sair, saio com ele. Ano que vem, completo 40 anos de Ministério da Saúde. Eu não vou jogar no lixo esse patrimônio. Vou ficar o tempo que for necessário para fazer a transição. A sociedade espera continuidade do nosso trabalho”. A eles, Mandetta fez uma promessa: “Entramos no ministério juntos, estamos no ministério juntos e sairemos do ministério juntos”. Ficou evidente que nenhum dos três quer sair de cena sem que suas mensagens fiquem bastante claras ao público. O Brasil espera a sequência da novela.
Ricardo Noblat: Quem piscará primeiro – o presidente ou o ministro?
Esgotou-se a paciência de Mandetta com Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro disse que o coronavírus está indo embora do Brasil. Em que país ele vive? Ocorre justamente o contrário: o coronavírus espalha-se a galope pelo país, infectando e matando em maior número. E assim será pelos próximos dois meses, segundo o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde.
Quem pode estar indo embora do governo é Mandetta. A não ser que Bolsonaro engula mais um sapo indigesto que ele lhe serviu ontem ao dizer em entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, que está ministro, não é ministro. E que o brasileiro fica cada vez mais confuso quando ele diz uma coisa e Bolsonaro o oposto.
Vai encarar, presidente? Está disposto a demitir seu ministro da Saúde em meio à pandemia que só por aqui infectou 22.169 brasileiros até ontem, matando 1.223? E logo agora quando o vírus começa a alcançar os que não fazem parte dos chamados grupos de risco como idosos e vítimas de outras doenças?
Na última segunda-feira quando parecia estar por um fio, Mandetta participou da reunião mais tensa de sua vida. Foi com Bolsonaro no Palácio do Planalto, e mais uma dezena de ministros. Saiu faíscas, apagadas pelos ministros empenhados em evitar que Mandetta pedisse demissão ou que Bolsonaro o demitisse.
A certa altura, Mandetta disse com todas as letras a Bolsonaro: “Enquanto eu for ministro da Saúde, sou eu que mando ali, não o senhor”. Para surpresa geral, o presidente calou-se. Mais tarde, em confidência a um amigo, o general Fernando de Azevedo e Silva, ministro da Defesa , comentou ainda perplexo com a cena:
– Você me conhece. Saber que sou um conciliador. Mas naquele momento, se eu fosse o presidente, teria demitido Mandetta.
O problema de Bolsonaro é que ele se convenceu de que demitir Mandetta não seria um bom negócio. No caso, ficaria como o único responsável pelos estragos que o vírus causará ao país. Bolsonaro prefere fritar Mandetta em público e espera que, enfraquecido, ele se enquadre ou abandone o paciente.
A queda de braço entre os dois parece próxima do fim. Nem Mandetta suporta mais Bolsonaro, nem Bolsonaro a ele. Mandetta quer salvar vidas. Bolsonaro, a Economia. A paciência do ministro esgotou-se. Resta saber quem tomará a iniciativa da separação.
Bolsonaro é descartável – nós, os idosos, não
Se não virar um presidente mais ou menos normal, tchau e benção
Sinto-me bem aos 70 anos de idade, a quatro meses de completar 71. Há 7 anos ganhei duas pontes safena e uma mamária pelos mãos do cirurgião Fábio Jatene e aos cuidados do cardiologista Roberto Kalil. Nada de cloroquina. Só agora começo a ouvir falar dela como a droga dos sonhos de Bolsonaro.
Trabalho, em média, 16 horas por dia. Se você faz o que gosta, trabalhar não cansa. Estou acima do peso. E fumo dois charutos por dia, o que não deveria. Não me exercito com regularidade, apesar dos apelos do meu filho mais velho. Mas quando vou à academia, pedalo quase 7 quilômetros em 30 minutos.
Vivo em paz com minha mulher, com meus três filhos e seis netos. Ai deles se faltarem ao almoço dominical obrigatório. O almoço foi suspenso e deixei de vê-los há pelo menos 30 dias. O confinamento não me faz mal – salvo por não poder reunir a família. De certa forma, vivo confinado desde que inaugurei este blog há 16 anos.
Não arredarei o pé de casa até que me convença de que o perigo passou. Mesmo assim penso em fazer como soldados japoneses que continuaram lutando a 2ª Guerra Mundial décadas depois de ela ter terminado. Não seria uma má ideia, uma vez que isso não implicaria em me desconectar do mundo, por impossível.
Mas a propósito do que resolvi escrever sobre mim mesmo, o que raramente faço? Para dizer que mesmo fazendo parte do grupo mais vulnerável ao coronavírus não autorizo ninguém, muito menos Jair Bolsonaro, a me tratar, e aos demais da minha idade e nas mesmas condições, como mercadoria descartável.
Perfeitamente descartável seria ele, um aventureiro que se elegeu presidente sem dispor do mínimo preparo para o cargo. Que não tem e nunca teve uma proposta de governo para chamar de sua. E que diante do seu primeiro e grande desafio desde a posse, vaga por aí perplexo, amalucado, sem saber direito o que fazer.
Está cercado por ministros medíocres à sua imagem e semelhança, salvo honrosas exceções. E desesperado ao ver que poderá ir pelo ralo a única ideia que teve e persegue com obstinação: a de se reeleger em 2022. Vive para isso e para mais nada. Pois deveria se cuidar porque nem mesmo seu atual mandato está seguro.
A não ser capaz de reinventar-se, dificilmente governará o país por mais dois anos e meio. Não se tira presidente em meio a uma pandemia, concordo. Mas se tira depois que ela passar, depois que se avalie sua responsabilidade por tudo que aconteceu e depois que as panelas emudeçam e as ruas comecem a falar.
Os militares, 21 anos depois, voltaram aos quartéis sem que o país sofresse forte abalo. Dois presidentes da República foram depostos, dois ex-presidentes foram presos, e a democracia seguiu em frente. Por mais que Bolsonaro tente enfraquecê-la, Congresso e Justiça têm resistido a todos os seus arreganhos. E assim será.
Ou baixa a bola e vira um presidente mais ou menos normal, o que, convenhamos, exigiria muito dele, ou irá para o olho da rua, o que parece ser seu destino. E página virada.
Elio Gaspari: Mandetta pegou o vírus do holofote
Ministro perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia"
O ministro Luís Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar.”
Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.
A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes como as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?
O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.
Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário do exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.
O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da Máfia.
O Itaú Unibanco dá o exemplo
O Itaú Unibanco anunciará amanhã uma doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19. O dinheiro irá para a fundação do banco e será administrado exclusivamente por um conselho de profissionais da saúde, onde estarão diretores de hospitais públicos e privados. Dinheiro na veia.
Essa será a maior iniciativa filantrópica já ocorrida no Brasil e sua lembrança ficará gravada na história da pandemia. Para se ter uma ideia do tamanho da doação, estima-se que em 2016 todas as iniciativas filantrópicas de corporações brasileiras somaram R$ 2,4 bilhões. (Nessa cifra entraram ações relacionadas com cultura, meio ambiente e educação, por exemplo.)
De onde eles estão, Olavo Setúbal (1923-2008) e Walther Moreira Salles (1902-2001), criadores dos dois bancos, terão um momento de orgulho.
Andrew Carnegie
Não custa relembrar Andrew Carnegie.
Ele foi um pobre imigrante escocês que se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos. Em 1901, aos 65 anos, vendeu seu império siderúrgico e passou o resto da vida distribuindo dinheiro. Carnegie ensinou:
“Morrer rico é uma desgraça”.
Ele se foi em 1919, depois de ter doado 350 milhões de dólares. (Algo como US$ 10,5 bilhões em dinheiro de hoje.)
Tasca
O ministro Alexandre de Moraes sabe Direito e travou a ofensiva de Bolsonaro contra as medidas de isolamento determinadas pelos governadores.
Na sua decisão, redigida em juridiquês, ele foi além. Reconhecendo que “não compete ao Poder Judiciário substituir o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo Presidente da República no exercício de suas competências constitucionais”. Até aí, o óbvio, mas o doutor foi além:
“Porem, é seu dever constitucional exercer o juízo de verificação da exatidão do exercício dessa discricionariedade executiva (...) verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas.”
Se Moraes quer “coerência lógica” do presidente da “gripezinha”, perde seu tempo. Mesmo assim, não é atribuição do Poder Judiciário determinar sua interdição.
Em seu benefício, deve-se registrar que Alexandre de Moraes apenas segue uma virótica mania do Judiciário de ir além das próprias chinelas.
Sessões eletrônicas
As próximas sessões do Supremo Tribunal serão realizadas em videoconferências. Realiza-se assim o sonho de vários ministros.
Eles poderão ficar com os rostos no vídeo, tirando o som dos soporíferos votos de alguns colegas.
Memória
Nos anos 1940, o garoto Michel Temer vivia num sítio em Tietê, no interior de São Paulo, e por perto havia um bosque de eucaliptos chamado de Hospital. Ele não passava por perto e, muitas vezes, perdeu o sono por causa das assombrações que apareciam entre as árvores.
A memória da região contava que durante os surtos de febre amarela do início do século, era lá que se enterravam os doentes, alguns deles ainda vivos.
Carnificina
De um empresário que já viu de tudo:
“Vem aí uma carnificina em cima dos pequenos negociantes. Uma parte vai quebrar e quem tiver sorte venderá para um concorrente.”
Segunda-feira
Está entendido que, pelos piores motivos, Jair Bolsonaro quer demitir o ministro Luiz Henrique Mandetta. Também está entendido que Mandetta tem seus limites e se dispõe a ir embora para não ser avacalhado.
Mesmo assim, não se pode dizer que Bolsonaro estivesse disposto a demiti-lo na segunda-feira.
Ficou a impressão de que o presidente foi dissuadido por conselheiros militares (abracadabra). Admita-se, contudo, que a demissão iminente de Mandetta foi divulgada por gente que, sabendo-a incerta, queria que ao final Bolsonaro ficasse mal na fotografia, como se tivesse sido obrigado a engoli-lo.
O médico e o paciente querem se livrar um do outro. Ambos esperam o melhor momento.
Erosão
Em 2018 o candidato Jair Bolsonaro era o quindim da maioria dos médicos e de todos os empresários do agronegócio.
Com seu diagnóstico da “gripezinha” perdeu os médicos. Com a encrenca que seu ministro da Educassão arrumou com a China, perdeu as lideranças empresariais da lavoura e da pecuária.
Ricardo Noblat: Mandetta abre espaço para que Bolsonaro se divirta sozinho
Enquanto não chega a primeira grande onda do Covid-19
Depois de muito refletir, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, decidiu não mais bater de frente com o presidente Jair Bolsonaro. É por isso que tem aparecido menos nas entrevistas coletivas de fim de tarde. É por isso também que passou a recusar convites para participar de lives de cantores famosos.
Foi aconselhado a proceder assim por ministros militares lotados em gabinetes do Palácio do Planalto que há muito ganhou ares de quartel. O recuo de Mandetta abriu espaço para que Bolsonaro recobrasse o protagonismo político que o cargo confere ao seu ocupante e do qual ele jamais admitiu abrir mão.
Sem que ninguém lhe faça sombra, Bolsonaro sente-se seguro para passear por onde quiser, dizer o que quiser, sem medo de ser confrontado por Mandetta. Levou-o, ontem, para a inauguração de um hospital de campanha em Goiás. Enquanto confraternizava com seus devotos, Mandetta só observava, calado.
À custa de muita provocação dos jornalistas, o ministro, sopesando as palavras, limitou-se a comentar: “Posso recomendar, não posso viver a vida das pessoas. Pessoas que fazem uma atitude dessas hoje daqui a pouco serão as mesmas que estarão lamentando”. Frisou que não se referia naturalmente ao presidente.
Coube, mais tarde, a Wanderson de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde, repetir em entrevista o que Mandetta sempre disse desde que começou a falar sobre a ameaça do coronavírus: que o distanciamento social deve ser observado para impedir o colapso do sistema médico. Que a situação deverá agravar-se.
As embaixadas no Brasil da França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos emitiram comunicados onde pedem que seus cidadãos de passagem por aqui retornem imediatamente aos seus países. Por lá, o vírus mata e esfola, mas no Brasil as embaixadas temem que a pandemia possa causar maiores estragos.
Manaus, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo são as cidades que mais preocupam os técnicos do Ministério da Saúde. A contaminação por vírus nesses lugares tem sido maior, bem como o número de mortes. Em razão disso, os hospitais estão quase todos lotados e em breve começarão a recusar pacientes.
Bolsonaro segue se divertindo enquanto isso. Ao desembarcar do helicóptero para a inauguração do hospital de campanha em Goiás, levantou os braços em saudação à multidão que imaginava encontrar. Seu gesto foi filmado e apreciado nas redes sociais. Só que não havia multidão e quase ninguém ali. Era pura encenação.
Vera Magalhães: A hora da escalada
Semanas de pico da pandemia não permitirão mais os erros cometidos até aqui
Vai começar a subida da montanha, metáfora que vem sendo usada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para designar a fase, que há muito se sabe que chegaria, de escalada rumo ao pico de contaminação pela covid-19 no Brasil.
Até aqui, alguns fatores ajudaram e outros atrapalharam sobremaneira a preparação do País para essa escalada inexorável, pela qual todas as demais nações do globo passaram ou estão passando.
As nossas vantagens comparativas vêm sobretudo do timing. A contaminação começou na China e se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos antes de chegar aqui de maneira sustentada, o que nos deu tempo para aprender com acertos e erros de outros povos e outros governos.
Foi positivo, por exemplo, para que os governos estaduais e mesmo o governo federal decretassem situações de emergência, calamidade ou quarentena, a depender da designação, e com isso pudessem restringir a atividade econômica e a circulação de pessoas e preparar a retaguarda do sistema de saúde, que já está sendo pressionado e deve enfrentar uma situação próxima ao colapso, quando não de colapso efetivo, nos próximos dias.
Mas não soubemos aproveitar plenamente o que os especialistas chamam de “vantagem temporal” que o vírus nos deu. E isso graças a imperdoáveis erros e omissões políticos, que podem cobrar um preço enorme em termos de vidas perdidas e situação social e econômica agravada.
Nenhum desses erros tem a ver com a decisão de distanciamento social, como quer fazer crer a narrativa bolsonarista que campeia irresponsavelmente em gabinetes de Brasília e nas redes sociais, atormentando uma sociedade já assustada e que precisa de diretrizes inequívocas das autoridades para se guiar numa tempestade inédita.
Eles decorreram justamente do oposto: o boicote inexplicável do presidente da República e de seu entorno a tudo que envolve o protocolo de combate à pandemia, do distanciamento em si à liderança do ministro da Saúde. Birra.
Enquanto desautorizava Mandetta, divulgava medicamento e fazia traquinagem furando o distanciamento, Bolsonaro deixou de tomar providências urgentes e relevantes que ajudariam a preparar as mochilas de escalada dos brasileiros.
A começar pelas providências da área econômica. Essas, sim, deveriam ter sido alvo da obstinação teimosa do presidente. Por que não exigiu e cobrou a execução de um cronograma enxuto para o pagamento da ajuda emergencial de R$ 600 (que pode chegar a R$ 1.200) aos mais vulneráveis, que só começará a ser paga, se tudo der certo, amanhã?
Qual a razão para o presidente não ter impedido que qualquer auxiliar seu, a começar pelo filho e chegando ao ministro da Educação, que nada tem a ver com o peixe, criasse encrenca com a China no momento em que o Brasil vai precisar do país para retomar suas exportações e para importar insumos de emergência para o combate à própria pandemia?
Essas, sim, são tarefas eminentes ao uso da autoridade presidencial, essa que Bolsonaro adora afetar, ameaçando infantilmente usar a caneta para depois recuar, o que acaba apenas por desmoralizá-lo mais perante auxiliares, eleitores e o resto do mundo.
O presidente tirou uma “folga” ontem, depois de pintar o sete na segunda-feira e deixar o País com o fôlego preso diante da possibilidade de demitir o titular da Saúde em plena crise. O recuo não pode ser considerado definitivo, e a trégua de um dia estranhamente tranquilo pode ser aquela calmaria que antecede o caos.
Mas foi um bom teste. Se o presidente mantiver o foco em não atrapalhar a escalada, pode ser que cheguemos ao doloroso cume e comecemos a descer de volta menos machucados que nossos vizinhos desenvolvidos.
Bernardo Mello Franco: Sinais de afrouxamento
Enquanto Mandetta balançava, o Ministério da Saúde afrouxou regras de isolamento. “Isso fará com que a curva de contágio se acelere”, alerta o professor Roberto Medronho
Três semanas depois de registrar a primeira morte pelo coronavírus, o Brasil ultrapassou a marca das cem em um único dia. O recorde desta terça marca uma nova fase na epidemia. Daqui para a frente, o país deverá enfrentar uma forte escalada no número de vítimas da Covid-19.
“Ainda estamos no início da ascensão da curva epidêmica. Nos próximos dias, ela vai se acelerar de forma contundente”, prevê o epidemiologista Roberto Medronho, da UFRJ. “Agora entramos numa subida contínua até o pico da epidemia. E depois a descida ainda será lenta”, adverte.
Para o professor, o pico dos casos ocorrerá entre a última semana de abril e a primeira semana de maio. “Na velocidade atual, essa escalada levará ao colapso do sistema de saúde”, avisa.
Ontem Medronho estava mais pessimista. O motivo era o último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, que indicou um afrouxamento nas medidas de isolamento social. O documento saiu na segunda-feira, quando o ministro Luiz Henrique Mandetta chegou a arrumar as gavetas para deixar o cargo.
A linguagem usada no texto sugere um recuo negociado com o Planalto. Depois de resistir às pressões de Jair Bolsonaro pelo fim das restrições, a pasta passou a acenar com uma “transição para distanciamento social seletivo”.
“Vejo isso com muita apreensão. Na prática, parece um eufemismo para o tal isolamento vertical defendido pelo presidente”, critica o professor Medronho. “O afrouxamento das medidas fará com que a curva de contágio se acelere. Quem propunha isso mudou de ideia e hoje está na UTI”, afirma, referindo-se ao primeiro-ministro britânico Boris Johnson.
O epidemiologista traça um cenário sombrio caso o Brasil baixe a guarda contra o vírus. “Tudo o que não queremos é ver caminhões do Exército levando corpos para outras cidades por falta de vaga nos cemitérios. Isso ocorreu na Lombardia, a região mais rica de um país de primeiro mundo”, lembra.
Para Medronho, é preciso escapar da falsa escolha entre a economia e a saúde. “Se não mantivermos o isolamento rígido, a crise vai se aprofundar mais adiante. A prioridade agora é salvar vidas”, afirma.
Ranier Bragon: Navio-fantasma
Bolsonaro criou para si uma escolha de Sofia
Há bastante tempo, ninguém mais pode se dizer desavisado, apanhado de calças curtas em um território envolto em sombras. Do batedor de carimbos até o mais alto lustra-botas, seja no palácio, seja em qualquer outro lugar, inclusive na imprensa, todos já sabem muito bem a quem servem e o que tudo isso representa.
Resta-nos perguntar: mesmo que não sejam nem de longe inocentes, como reagirão, no caso de demissão de Luiz Henrique Mandetta, aqueles do governo que ainda tentam vender um verniz de sensatez e seriedade?
É certo que, sob uma lupa rigorosa, o ministro da Saúde pode não ter tido um desempenho tão bom assim. Mas o simples fato de não agir como um paspalhão —a exemplo do colega de Esplanada que "cuida" da Educação— o torna quase um Oswaldo Cruz dos dias atuais.
No mês passado, esta Folha ponderou, em editorial, que o melhor a fazer na ocasião seria deixar Bolsonaro isolado, falando e fazendo asneiras sozinho, enquanto os capacitados lidavam com o novo coronavírus. Mas o presidente quer retomar o leme do seu navio-fantasma.
Nesta segunda-feira (6), noticiou-se que Mandetta seria, enfim, demitido. A simples ameaça gerou panelaços e mobilização de servidores em frente ao ministério.
De acordo com o Datafolha, uma robusta maioria popular aprova o trabalho do ministro e o isolamento social defendido pela pasta e pela quase totalidade da ciência e das lideranças mundiais.
Por temor da reação popular ou pressão de auxiliares, até o início da noite não havia confirmação de que Bolsonaro tenha tido peito para escantear o subordinado. O que se sabe é que esse Salomão dos trópicos conseguiu criar para si uma escolha de Sofia: ou mantém Mandetta e passa o recibo de sua completa desmoralização e perda de autoridade ou o demite —e põe sobre suas costas e nas dos apoiadores todo o peso da responsabilidade de tratar a vida e morte de milhões de pessoas com base em achismo de botequim.
Eliane Cantanhêde: Caneta sem tinta
Demitir Mandetta é provocar STF, Congresso, governadores, sociedade e... generais
Na reunião decisiva de dez dias atrás em que alertou o enciumado presidente Jair Bolsonaro de que não pediria demissão, o ministro Luiz Henrique Mandetta também assumiu o compromisso de não capitalizar política e eleitoralmente o eventual sucesso da estratégia do Ministério da Saúde ao fim da pandemia. Isso, porém, não depende só de Mandetta, depende das circunstâncias.
Médico ortopedista, nascido em Mato Grosso do Sul, 55 anos, Mandetta foi secretário de Saúde no seu Estado, cumpriu dois mandatos de deputado federal e não disputou a eleição de 2018. Mas, apesar do currículo político magro e da discrição no primeiro ano no Ministério da Saúde de Bolsonaro, ele conquistou imensa visibilidade, disparou em popularidade e passou a mexer com os brios de Bolsonaro ao ser olhado como candidato. A quê? Neste momento, a qualquer coisa.
No início dos anos 1990, o professor e sociólogo Fernando Henrique Cardoso não se reelegeria para o Senado e discutia se valia a pena disputar uma vaga na Câmara quando o presidente Fernando Collor caiu, o vice Itamar Franco assumiu e ele, no Ministério da Fazenda, foi o grande avalista do Plano Real. Conclusão: em 1994, elegeu-se presidente da República já no primeiro turno.
O Plano Real foi para FHC o que a pandemia pode se tornar para Mandetta: a grande alavanca da sua carreira política. O Real, por ter sido o maior plano de estabilização da economia da história. A covid-19, por ser o maior desafio de vida ou morte das pessoas e das lideranças de todo o mundo. O ex-presidente Lula levou tão a sério o isolamento que nem se sabe onde está, nem que nome ele trabalha para 2022. Governadores equilibram-se entre a desgraça e o sucesso. Ciro Gomes só sabe gritar. Luciano Huck só aparece em propaganda de TV. E, em política, não há vácuos.
Bolsonaro está esfarelando seu capital eleitoral e sua credibilidade mundial e nacional com sua incrível teimosia e, quanto mais ele cai, mais Mandetta sobe. Até ao instituir entrevistas diárias de ministros para tirar os holofotes do titular da Saúde, Bolsonaro conseguiu o efeito oposto: as entrevistas se transformaram justamente em manifestação de união em torno de Mandetta.
Ressentido desde que o ministro trabalhou republicanamente com o governador João Doria contra a pandemia, Bolsonaro agora desdenha de quem se julga “estrela” e saca sua caneta para tentar mostrar quem manda. Sua obsessão em demitir Mandetta, porém, pode custar muito mais caro do que ele imagina. “O governo acaba”, diz importante personagem do poder.
O Supremo em peso, os presidentes e líderes do Congresso, a grande maioria dos governadores, os maiores partidos e a opinião pública se voltariam contra o presidente, que correria o risco de ser desautorizado em todos os flancos – e os generais do poder sabem disso. O STF pode derrubar a demissão de um ministro? Resposta de um jurista da ativa: “Em tese, ele não pode até que possa”. Ou seja, seria inédito, não impossível.
E, além do STF, Estados e municípios podem se rebelar contra o poder central (contra o fim do isolamento social, principalmente) e convém não esquecer que o deputado Rodrigo Maia não tem a caneta, mas tem a pauta da Câmara: cabe a ele decidir, por exemplo, se põe ou não em votação um processo de impeachment.
Se demitir Mandetta e desarticular a Saúde em meio a uma pandemia que matou mais de 75 mil pessoas no mundo até ontem, Bolsonaro estará traçando seu próprio destino e o de Mandetta. No vazio de homens e ideias que o Brasil vive, nada como uma pandemia para destruir governantes e alavancar novos líderes. Uma constatação que enlouquece Bolsonaro e prejudica Mandetta, mas é impossível tapar o sol com a peneira. O rei está nu.
Andrea Jubé: O capitão prepara o adeus ao marechal
Bolsonaro não desistiu de demitir ministro da Saúde
O começo teve ar de mau agouro. No dia 20 de novembro de 2018, quando confirmou a escolha do ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta para compor o seu time de auxiliares, o então presidente eleito Jair Bolsonaro disse aos jornalistas: “eu confirmo o marechal Mandetta, que se Deus quiser assumirá ano que vem com essa enorme missão”.
É singular a associação do nome de Mandetta, na largada do governo, a um posto da hierarquia militar extinto em 1967. O marechalato havia se transformado no regime militar em uma espécie de sinecura a militares em fim de carreira, e o fim da patente - embora decretado como uma tentativa do presidente Castello Branco de impor revés ao general Costa e Silva - acabou recepcionado como um aceno à austeridade fiscal.
Voltando ao presente, é como se Bolsonaro ao anunciar o “marechal Mandetta” para o ministério o tivesse nomeado já com prazo de validade.
Sem vaticínios ou ilações, o que os fatos mostram nas últimas semanas é o desgaste da relação entre o presidente e o auxiliar acentuando-se num crescendo quase insuportável. No domingo, Bolsonaro admitiu a um interlocutor que o visitou no Palácio da Alvorada que a decisão de demitir o ministro da Saúde é irrevogável. A dúvida continua sendo quando consumar o ato.
Segundo interlocutores que se reuniram com o presidente nos últimos dois dias, Bolsonaro está convicto de que Mandetta extrapolou os limites da hierarquia e incorreu em quebra de confiança em uma sequência de ações que remontam ao início da crise do coronavírus.
Bolsonaro ouviu de um de seus comensais no Alvorada neste fim de semana que errou ao não imitar neste episódio o presidente americano Donald Trump, que se abespinhou com seu secretário de Saúde Alex Azar, o porta-voz da pandemia que roubou a cena.
Trump sugeriu que a palavra sobre a crise deveria ficar com o responsável pelo Centro dos Serviços de Medicare e Medicaid, Seema Verma. Depois, rendeu-se à figura de Azar e passou a dar entrevistas ao lado do auxiliar. Bolsonaro, na visão de aliados, errou porque ao contrário de Trump, preferiu romper com Mandetta e se isolar.
A conclusão de quem ouviu Bolsonaro e Mandetta ao longo da fervura é de que a demissão do ministro se transformou em uma questão de honra para o presidente, convencido de que o auxiliar desafiou sua autoridade. Bolsonaro tornou público esse inconformismo. Em uma entrevista de rádio, teve de lembrar: “O presidente sou eu”. No domingo, foi mais explícito: “A hora deles não chegou, mas vai chegar. E a minha caneta funciona e será usada”.
Num momento em que as pesquisas de opinião atestam a deterioração de sua popularidade, Bolsonaro continua dando sinais de que vai mais uma vez ceder à ala ideológica do governo e comprovar a influência de Olavo de Carvalho.
No meio da tarde de domingo, o guru bolsonarista em sua conta no Facebook a cobrança: “Fora, ministro Punhetta [Mandetta]!” E prosseguiu: “O Punhetta [sic] é o exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”.
Poucas horas depois, um Bolsonaro visivelmente contrariado pareceu em sintonia com Olavo ao admitir a apoiadores na porta do Alvorada, que havia se equivocado na composição de seu ministério. “Escolhi por critérios técnicos, errei com alguns, alguns já foram embora, estamos vivendo agora um novo momento”.
A opção pela ala ideológica enquanto a economia marcha sobre o cadafalso terá um custo político. Após horas de suspense, com impacto direto no mercado, e nova onda de panelaços em bairros influentes de São Paulo, Bolsonaro terminou o dia sem demitir o ministro da Saúde. Mas o ambiente continua tenso e os sinais estão truncados.
O embate arrastado com o ministro da Saúde já fez ruir o apoio do grupo político que avalizou a nomeação do “marechal Mandetta”, capitaneado pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), agora um opositor declarado de Bolsonaro. Da mesma ala, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, saiu enfraquecido da Casa Civil, e o correligionário Abelardo Lupion perdeu o cargo de assessor especial no Planalto.
O apoio residual do DEM ao governo ainda não virou pó porque a manutenção de Mandetta no cargo garante a interlocução com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (RJ). Se o ministro for afastado, a relação institucional pode implodir.
Enquanto Mandetta e sua equipe agonizaram mais 24 horas ontem no cargo, o ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, cotado para substitui-lo, roubou os holofotes ao participar de uma reunião com Bolsonaro e os quatro ministros do Planalto - Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), Jorge Antônio de Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). A pauta foi a epidemia do coronavírus, mas sem o titular da Saúde.
Mandetta continua na cadeira, mas Terra calçou as chuteiras e está no aquecimento. Desde o ano passado, o emedebista faz movimentos discretos para tentar sentar na cadeira. A saúde sempre foi feudo do MDB, o partido dirigiu a pasta com o ex-deputado Saraiva Felipe (MG) e o hoje senador Marcelo Castro (PI).
De um lado, a cúpula do MDB afirma que se Terra for convidado por Bolsonaro, será um nome de sua cota pessoal. Nos últimos dias, as redes sociais do MDB publicaram mensagens explícitas de apoio a Mandetta e às medidas de distanciamento social.
A “cota pessoal” vale como retórica, mas se Terra ascender à Saúde, levará junto o MDB e acirrará a disputa de poder entre as siglas hegemônicas no Congresso. O MDB não tem ministério, mas tem os dois interlocutores do Planalto com o parlamento: os líderes do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (TO), e no Senado, Fernando Bezerra Coelho (PE).
Bolsonaro não tem base de apoio formal no Congresso, mas DEM e MDB têm apoiado o governo nas agendas econômicas. Acirrar a disputa entre as duas siglas às vésperas da sucessão nas presidências da Câmara e do Senado é inoportuno. Se ao fim e ao cabo Bolsonaro defenestrar o “marechal Mandetta”, perderá o DEM e a linha direta com o Congresso, num ambiente tenso em que a palavra “impeachment” deixou de ser um sussurro.