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Maílson da Nóbrega: 2021, o pior Orçamento da história

O Orçamento da União para 2021, uma mixórdia, é o pior da era republicana. É inconcebível que isso tenha acontecido com a peça legislativa mais importante depois da Constituição. A Lei Orçamentária Anual é, ademais, a principal da área econômica, pois define as prioridades do País e a destinação dos recursos públicos.

O Orçamento esteve na origem da Carta Magna inglesa (1215), a primeira das grandes mudanças institucionais que legaram a democracia ocidental. A Revolução Gloriosa inglesa (1688) atribuiu ao Parlamento a supremacia do poder e a aprovação anual do orçamento. Questões orçamentárias compuseram as fontes e as transformações das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789).

No Brasil somos herdeiros de outras tradições, as do mundo ibérico colonial, em que as finanças do rei se confundiam com as do Estado. Talvez por isso o Orçamento não seja levado a sério. Até 1937 o Congresso o usava para dar nome a ruas e promover funcionários. Daí o dispositivo acaciano introduzido pela Constituição de 1937 e mantido desde então: o Orçamento só cuida da receita e da despesa.

Nos últimos 20 anos, segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), várias vezes o Orçamento foi aprovado meses depois do início do exercício fiscal. Quase virou regra. De fato, durante esses 20 anos, em apenas dois a lei foi publicada antes do término do ano anterior.

Durante a Constituição de 1946, o Orçamento era desfigurado por excesso de emendas. No outro extremo, o regime militar proibiu-as. A Constituição de 1988 restabeleceu essa necessária atribuição do Congresso, mas condicionada ao cancelamento de dotações de mesmo valor ou por “erros e omissões”.

Erros e omissões seriam, óbvio, erros materiais, mas no primeiro Orçamento da democracia, o de 1989, o relator interpretou que abrangiam engano na estimativa da receita. Ao projetar artificialmente uma arrecadação maior, ele abriu espaço para emendas. A maroteira, inconstitucional, foi consagrada mediante sua inscrição como norma do Congresso.

O teto de gastos tornou a manobra inviável, pois a despesa passou a ter um limite. Mesmo que se reestime a receita, as emendas não podem aumentar. Depois de dois exercícios o Congresso achou a saída: criar o espaço para emendas pela redução de gastos obrigatórios como as aposentadorias. Flexibilizou-se o que é fixo por natureza.

Uma justificativa para a barbaridade teria sido estudo do Ministério da Economia sugerindo que o auxílio-doença fosse pago pelas empresas, que descontariam o seu valor no pagamento de tributos. Seria violado um princípio básico do processo orçamentário, pelo qual o Orçamento deve conter todas as despesas e receitas do governo. Prejudicaria a transparência e propiciaria fraudes.

O Congresso fez uma festa com as emendas: somaram inacreditáveis R$ 49 bilhões. Tudo com o aval do Ministério da Economia, segundo o relator, senador Márcio Bittar. Depois dos vetos, esse valor foi reduzido para R$ 35,6 bilhões, correspondente a 47% dos gastos discricionários, ou seja, os não obrigatórios. Para comparar, em 2008 atingiram 19,6%. Veremos mais ginásios de esportes, ambulâncias, tratores e postos de saúde Brasil afora, em detrimento da melhoria da infraestrutura nacional, da ciência e tecnologia, do apoio ao agronegócio e, pasmem, do censo demográfico.

O governo teria participado da negociação de uma pedalada fiscal. A meta do resultado primário de 2021 vai excluir as despesas com saúde, o programa de preservação de empregos (BEm) e o crédito para pequenas e médias empresas (Pronampe). O certo teria sido rever a meta, e não renovar essa estratégia petista. Tais despesas serão financiadas com créditos extraordinários, o que as exclui do teto de gastos. Para tornar viável a manobra, alterou-se a Lei de Diretrizes Fiscais aprovada em 2019, permitindo que essas despesas não precisem ser compensadas com cortes equivalentes em outras áreas.

Ainda mais esquisito foi incluir na Constituição os R$ 44 bilhões de recursos para financiar o auxílio emergencial. Uma dotação orçamentária virou mandamento constitucional, o que deve ser caso único no mundo. Se a pandemia não for controlada, será necessário estender o auxílio, provavelmente por crédito extraordinário. No mesmo exercício, um programa oficial será baseado em emenda constitucional e em decreto presidencial.

O valor das despesas discricionárias, R$ 74 bilhões, tende a ser insuficiente para manter o funcionamento das atividades administrativas do governo. Haverá o risco de shutdown, pois dificilmente o governo concordaria com a ruptura do teto, ainda que para ampliar dotações e desse modo evitar a paralisia da administração. Nas atuais circunstâncias, seria uma catástrofe, o que tornaria inviável a reeleição de Bolsonaro.

Depois de tudo isso, pelo menos se pode esperar a preservação do teto de gastos, que constitui a âncora fiscal do País. Parece que estamos livres do pior.

ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,2021-o-pior-orcamento-da-historia,70003698541


Maílson da Nóbrega: As quatro reformas tributárias

Se aprovada a PEC 45, haverá crescimento da produtividade e do potencial da economia

Sob o nome genérico “reforma tributária”, discutem-se atualmente quatro distintas propostas para reformar o caótico, regressivo e injusto sistema tributário brasileiro. São elas:

1) A reforma da tributação do consumo configurada nas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 45 (Câmara dos Deputados) e 110 (Senado), que criam um imposto sobre o valor agregado (IVA), denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O método é adotado por mais de 160 países. 2) A criação de um IVA federal mediante a fusão e simplificação do PIS e da Cofins. 3) A proposta do Ministério da Economia para recriar um tributo nos moldes da CPMF, associado à desoneração das contribuições sobre a folha de salários e ao aumento do emprego. 4) E a proposta do Ministério da Economia para melhorar a equidade do sistema tributário, reduzindo privilégios e aumentando a progressividade do Imposto de Renda.

A mais relevante de todas é a primeira, por atacar a principal fonte de ineficiências da economia. Prevê a unificação de cinco tributos, três federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS). Entre as suas principais características estão a alíquota única, a proibição de seu uso como incentivo fiscal (eliminando a guerra fiscal), a completa desoneração nas exportações e a devolução, em espécie, do IBS incidente no consumo dos segmentos menos favorecidos. A PEC 45, a melhor, baseia-se em projeto preparado pelo Centro de Cidadania Fiscal, sob liderança do economista Bernard Appy.

A PEC 45 conta com o apoio inédito e unânime dos secretários de Fazenda estaduais, convencidos das disfunções do ICMS. A questão federativa em tentativas de reforma anteriores constituía ponto de veto. Assim, a proposta tem viabilidade de aprovação, mesmo diante dos desafios políticos.

A PEC 45 e a fusão do PIS e da Cofins, têm forte oposição da área de serviços, hoje subtributados pelo ISS, pois aumentarão a carga tributária em segmentos como os de educação, saúde, lazer e turismo, consumidos pelas classes de maior renda. Os pobres não costumam ter acesso a tais serviços, o que agrava a regressividade da tributação do consumo no Brasil. A coalização contrária à reforma é politicamente poderosa e tem contado com a simpatia da imprensa. Isso poderá levar à solução de compromisso de admitir duas alíquotas, uma para bens e outra, menor, para serviços. Há precedentes mundiais de mais de uma alíquota em IVAs.

A segunda reforma é modesta em seus efeitos, mas tem vantagens, principalmente a de engajar o governo federal no processo. O IVA dual (governo central e governos subnacionais) existe em outros países, mas a PEC 45 é melhor por ser mais ampla e completa. É provável que a proposta seja incorporada nessa PEC.

A terceira reforma tem conhecidos defeitos, a saber: 1) trata-se de tributo disfuncional, em cascata, o que provoca ineficiências e reduz a competitividade dos produtos exportáveis. 2) Torná-la permanente é muito perigoso. Tributos de fácil arrecadação costumam ter sua alíquota elevada durante crises fiscais. 3) Pior do que a CPMF, a nova contribuição incidiria no comércio eletrônico, penalizando transações mais eficientes do que as do comércio físico. 4) Dificilmente haverá aumento de emprego. Como se sabe, na prática o ônus das contribuições previdenciárias recai sobre o trabalhador. Assim, nos casos em que a medida foi adotada, o efeito foi elevar a renda dos empregados, não criar postos de trabalho. 5) A contribuição previdenciária do trabalhador é a base para o cálculo das aposentadorias. Se a proposta incluir sua eliminação, caberia às empresas informar os salários pagos. O potencial de fraudes poderia elevar os gastos previdenciários.

A quarta reforma, fundada basicamente na equidade tributária, buscaria eliminar privilégios que reduzem a progressividade do Imposto de Renda, o qual, historicamente, desde que o mundo o conheceu, no início do século 20, incorporou objetivos sociais. Seu propósito sempre foi o de tributar proporcionalmente mais os segmentos mais ricos, promovendo redistribuição da renda.

No Brasil, conforme demonstraram os economistas Marcos Mendes, Marcos Lisboa e coautores, há incentivo à prestação de serviços mediante a constituição de pessoas jurídicas em substituição ao regime regular de pessoas físicas, a chamada “pejotização”. Com isso se transforma rendimento do trabalho em rendimento do capital. Contribuintes de maior renda gozam do privilégio de abater, na sua declaração anual de rendimentos, as despesas com saúde e educação, o que reduz a progressividade. Os lucros são tributados na pessoa jurídica, o que impede a progressividade na distribuição de dividendos a pessoas físicas. O Ministério da Economia estaria cogitando de rever todas essas distorções.

Caso seja aprovada a proposta mais relevante, a da PEC 45, haverá elevação da produtividade e do potencial de crescimento da economia brasileira. Cálculos recentes indicam que, em 15 anos, ela aumentaria o produto interno bruto (PIB) potencial em 20%. Não é pouco.

SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA


Maílson da Nóbrega: Boas novas e riscos do ‘orçamento de guerra’

Passada a crise, cabe realizar uma criteriosa reflexão sobre como devem tramitar as PEC

O “orçamento de guerra” é uma iniciativa positiva e sem paralelo institucional. A emenda constitucional permite suspender, durante a crise da covid-19, as restrições que nos protegem contra aventuras fiscais e creditícias.

Em seus pontos altos, destacam-se a criação do comitê gestor, a autorização para o Banco Central adquirir títulos do Tesouro e papéis privados no mercado de capitais e o caráter temporário das medidas. Não há registro de evento legislativo de tal envergadura. Tradicionalmente, cabiam ao Poder Executivo as medidas na área de finanças públicas. No regime militar, essa era uma das hipóteses em que se podiam baixar decretos-leis.

Sua aprovação reflete três novidades no Congresso: 1) a percepção do vácuo de poder derivado do déficit de liderança do presidente da República; 2) a coordenação das preferências parlamentares pelos presidentes das duas Casas do Congresso, o que já fora feito na reforma da Previdência, dada a renúncia do presidente Jair Bolsonaro a exercer o papel de coordenador do jogo político do presidencialismo de coalizão; e 3) a qualidade técnica dos quadros do Congresso, compreendendo o corpo competente dos consultores da Câmara dos Deputados e do Senado, bem como da recente e promissora Instituição Fiscal Independente do Senado.

O “orçamento de guerra” foi aprovado rapidamente porque, além dessas novidades, fez-se vista grossa para as regras regimentais sobre tramitação de emendas constitucionais. A não observância dos dias de interstício entre votações nas comissões e no plenário assegurou o célere andamento da emenda e a aprovação do projeto a toque de caixa, em comissões e em duas votações no plenário. Claro, essa inédita velocidade foi justificada diante de uma situação excepcional.

Em todo o mundo, propostas de emenda constitucional obedecem a um rito legislativo mais complexo do que o de leis ordinárias. Afinal, cuida-se de alterar o estatuto fundamental do país. É preciso que se permita discussão mais demorada. A votação em dois turnos assegura um espaço para reflexão sobre o que passou no primeiro. Exige-se número mínimo de sessões e um intervalo de tempo entre as votações. Nos Estados Unidos, emendas constitucionais precisam ser ratificadas por três quartos das assembleias legislativas estaduais. Levam até quatro anos para sua ratificação. Num exagero, a Emenda 23, aprovada em setembro de 1789, foi ratificada em maio de 1992.

Se foi justificado o rito sumário da emenda do “orçamento de guerra”, é preciso evitar que ele se torne permanente. Na verdade, há que rever o regimento para assegurar que propostas de emendas constitucionais tenham mais tempo para debate, reflexão e aprovação. Elas não estão sujeitas a veto. Emendas constitucionais são promulgadas pelo presidente do Congresso Nacional, que é o presidente do Senado. Parlamentares já se deram conta de que esse é o caminho para obter a aprovação de medidas populistas, pois conseguem se livrar do veto presidencial, na verdade, um apelo à ponderação É preciso cuidado com o uso abusivo de emendas constitucionais.

A característica detalhista da Constituição de 1988 é um convite à sua permanente alteração. Dispositivos que poderiam constar de legislação ordinária e até de decretos presidenciais viraram mandamento constitucional. O texto cuida de aspectos como o lugar onde deve morar o juiz, cinco tipos de polícia, muitos direitos e poucos deveres. O Brasil é provavelmente o único país onde reformas como as da Previdência ou do Sistema Tributário Nacional precisam de mudanças na Constituição. Diferentemente disso, o presidente americano, Donald Trump, conseguiu empreender uma reforma tributária sem recorrer a emenda constitucional. O ex-presidente Maurício Macri mudou por lei o regime previdenciário argentino.

A Constituição tem 250 artigos, além dos 114 que compõem o Ato das Disposições Transitórias. Daí por que, em apenas pouco mais de 31 anos, ela já foi emendada 105 vezes antes da emenda do “orçamento de guerra”. A Constituição americana tem sete artigos e foi emendada apenas 27 vezes em quase 223 anos. Na prática, foram 18 emendas, pois o Bill of Rights (Carta de Direitos) poderia ser considerado uma única emenda, e não as dez constantes do texto, que foi aprovado num único ato.

Repetindo, nossa Carta Magna é um convite a mudanças. Várias propostas de emenda constitucional (PEC) que circulam no Congresso são verdadeiras pautas-bomba, capazes de infligir sérios danos às finanças públicas e, assim, à capacidade do País de crescer e gerar renda e empregos. É o caso da PEC que equipara os salários de bombeiros de todo o País aos vencimentos dos bombeiros do Distrito Federal, uma temeridade.

Passada a crise, cabe realizar uma criteriosa reflexão sobre como devem tramitar as PECs. A interpretação da norma permitiu a aprovação célere do “orçamento de guerra”, mas pode ter sido o germe que tornará possível tomar decisões prejudiciais ao futuro do País.

SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA


Mailson da Nóbrega: Os graves riscos da PEC do Orçamento impositivo

Emendas à Constituição não podem ser feitas de maneira açodada, em apenas duas horas

A Câmara e o Senado aprovaram emenda constitucional que determina a execução obrigatória de emendas parlamentares de bancada e de dotações para obras e equipamentos. A rigor, a emenda chove no molhado.

De fato, pela Constituição de 1988 o Orçamento é impositivo. Mesmo assim, ele é tido como “autorizativo” pela Secretaria do Tesouro Nacional e por economistas, jornalistas, cientistas políticos e até parlamentares. Essa ideia, sem justificativa histórica ou institucional, inexiste onde as finanças públicas são levadas a sério. A Constituição (artigo 165, § 8.º) fala em previsão da receita e fixação da despesa (grifos nossos), ou seja, a receita é estimada e a despesa é determinada. Mas esse não é o foco deste artigo.

Lamentou-se o aumento da rigidez orçamentária. O Tesouro teria perdido a flexibilidade, isto é, o poder utilizado pelo Executivo, não previsto na Constituição, de executar o que lhe interessa. Ressalvam-se o serviço da dívida pública, a partilha de receitas com Estados e municípios e os gastos obrigatórios com pessoal, Previdência, educação e saúde. Afora essa equivocada interpretação, a maneira como a proposta de emenda foi aprovada pelos deputados, em apenas duas horas, representou enorme irresponsabilidade.

Emendas à Constituição não podem ser feitas de maneira açodada. Menos ainda se a aprovação contiver, como parece, uma reação a um presidente da República que até agora não entendeu o papel que lhe cabe no presidencialismo de coalizão. Este pressupõe o compartilhamento do poder para formar uma base parlamentar coesa, que se comprometa a apoiar a agenda do governo. Não é necessariamente corrupção, como sugere o presidente Jair Bolsonaro.

Tais emendas não se submetem ao sistema de pesos e contrapesos proposto pelo barão de Montesquieu, o qual constitui a essência da separação dos Poderes: cada um deles (Executivo, Legislativo e Judiciário) está apto a conter abusos do outro, de modo que se harmonizem e se equilibrem. As emendas são a única exceção a esse sistema, pois não estão sujeitas ao veto do Executivo. São promulgadas de modo unilateral pelo Congresso logo que aprovadas.

Por isso seu processo legislativo é mais lento e complexo. No Brasil exige-se aprovação em dois turnos em cada Casa do Congresso. Depois da passar pelo teste da admissibilidade nas Comissões de Constituição e Justiça da Câmara e do Senado, que se manifestam sobre sua conformidade à Constituição, a proposta de emenda precisa enfrentar uma tramitação mais longa que a de projetos de lei.

A tramitação obedece a interstícios, isto é, intervalos de tempo entre uma etapa e outra. As emendas costumam levar, assim, seis meses ou mais até sua aprovação final. A tramitação mais demorada reflete a necessidade de dedicar mais tempo à discussão ampla de seu objetivo e a sopesar custos e benefícios.

Outros países seguem processos mais rigorosos e cuidadosos, como os Estados Unidos, cuja Constituição de 1787 exige o quórum de dois terços (66,7%) de cada Casa do Congresso para alterá-la, maior do que a nossa Constituição, de três quintos (60%).

Aprovada a emenda no Congresso americano, é preciso que ela seja ratificada por três quartos das Assembleias Legislativas dos Estados. A maior complexidade deriva do modo como a Constituição de Filadélfia foi elaborada. Uma de suas grandes discussões foi em nome de quem ela seria aprovada, se do povo ou dos Estados, que gozavam de forte autonomia pelo Estatuto da Confederação, aprovado no ano seguinte ao da Declaração de Independência, de 1776. A solução de compromisso foi estabelecer que Câmara representava o povo e o Senado, os Estados.

Dada a lentidão do processo, a proposta pode ficar esquecida por muito tempo nos escaninhos das Assembleias. Foi assim na emenda pela qual a alteração dos subsídios dos parlamentares só entra em vigor na legislatura seguinte. O texto, aprovado pelo Congresso em setembro de 1789, só foi ratificado pelos Estados em maio de 1992, quase 103 anos depois.

Oriundo de raízes históricas distintas, o Brasil não precisa esperar mais de um século para concluir o processo de emendar a Constituição. Tampouco se justifica mudá-la em apenas duas horas. Trata-se de irresponsabilidade que traz grandes riscos para os cidadãos e para o País, que podem sofrer os efeitos negativos de emendas criadoras de incertezas e desequilíbrio fiscal.

Muitas das centenas de projetos de emenda constitucional (PECs) em tramitação tratam de matérias típicas de lei ordinária, que poderiam enfrentar o veto do presidente da República se viessem a incorporar custos excessivos às finanças federais e estaduais. É o caso da PEC que propõe equalizar, em todo o País, os proventos dos bombeiros. A base seria a maior delas, a do Distrito Federal, bem superior à observadas nos Estados menos desenvolvidos, desconsiderando as suas distintas capacidades de arrecadação.

Se apresentadas por meio de projetos de lei, tais proposições tenderiam a ser vetadas pelo presidente da República. Cabe lembrar, a propósito, que o veto não derroga os poderes do Congresso. Representa, na verdade, um pedido de reconsideração do ato legislativo pelas razões que o presidente expõe. Por isso o veto pode ser derrubado pela maioria absoluta dos votos dos deputados e senadores.

A aprovação relâmpago da PEC do Orçamento só foi possível porque os plenários da Câmara e do Senado revogaram, para o caso, os interstícios de votação e as demais etapas exigidas para sua aprovação. É preciso, assim, estabelecer amarras institucionais quanto aos prazos de tramitação. O Brasil não pode continuar sujeito à aprovação de emendas constitucionais sem a consideração adequada e responsável de sua justificativa e seus riscos.

* MAÍLSON DA NÓBREGA É SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA


Maílson da Nóbrega: A reforma da Previdência precisa tramitar sozinha

Sem ela não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País

O êxito do governo de Jair Bolsonaro depende, essencialmente, de reformas para vencer dois desafios cruciais: 1) evitar a insolvência fiscal, o que depende da reforma da Previdência; e 2) adotar medidas para elevar a produtividade e, assim, expandir o potencial de crescimento da economia. Há, além disso, mudanças vinculadas a promessas de campanha, voltadas para os costumes e a segurança pública.

A complexidade da agenda dificilmente tem paralelo no País. Já vencemos outros graves desafios, como os de restaurar a democracia e superar o processo hiperinflacionário dos anos 1980 e 1990, mas em nenhum se requeria o difícil conjunto de mudanças deste momento.

É verdade que a agenda pós-Plano Real, como as da privatização e da eliminação de restrições ao capital estrangeiro, demandaram reformas constitucionais, mas as ações para enfrentar os dois citados desafios eram menos complexas. Situavam-se preponderantemente nas áreas da negociação política e do desenho de um plano para estabelecer o modelo do processo de estabilização monetária.

Hoje, o risco de insolvência e as demandas do eleitorado criam pressões para o ataque simultâneo a todos os desafios. E muitos se empenham em preparar medidas com esse objetivo. A área econômica elabora o projeto de reforma da Previdência, cuja apresentação ao Congresso Nacional depende apenas da chancela do presidente, após seu retorno a Brasília, recuperado da cirurgia recente. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes, da Economia sinaliza propostas ousadas de privatização e abertura da economia, ligadas à produtividade. Enquanto isso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou um pacote para combater a corrupção, atacar o crime organizado e coibir crimes violentos, o que implicará mudanças de porte no Código Penal e em outras áreas da legislação.

Ainda na campanha, Bolsonaro prometeu reduzir e simplificar a carga tributária, o que reiterou no Fórum de Davos. A redução é inviável, pois as despesas obrigatórias superam a receita, o que desaconselha perdas de arrecadação. A simplificação é desejável, mas pressupõe profundas mudanças nas regras tributárias, incluindo uma saída para a caótica tributação do consumo.

Entre os especialistas cresce a percepção de que chegou a hora de implantar um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), cobrado pela União e repartido automaticamente com Estados e municípios, eliminando o ICMS, o ISS, o PIS e a Cofins. Essa é a regra em mais de 150 países. Reforma semelhante, realizada na Índia em 2018, produziu aumento de dois pontos de porcentagem no potencial de crescimento da economia. O mesmo poderia acontecer por aqui, mas isso vai requerer difíceis negociações com os governadores em torno da respectiva emenda constitucional.

Ainda que menos polêmico nos dias atuais, o projeto de lei complementar que atribui autonomia operacional ao Banco Central foi incluído nas medidas prioritárias dos cem primeiros dias de governo. As esquerdas podem mobilizar as redes sociais com o objetivo de acirrar o sentimento antibanco que ainda existe no País. E a opinião pública menos informada pode comprar a ideia errada de que o projeto vai beneficiar banqueiros.

A agenda de costumes e de combate à corrupção tem elevado potencial de resistências no Congresso e no Judiciário, além de ser propícia à mobilização dos que a ela se opõem. Aliás, já se esboçaram as primeiras reações negativas de membros desses dois Poderes tão logo o ministro Sergio Moro anunciou o projeto e começou o diálogo com áreas relevantes. A abertura da economia é consensual entre os analistas, mas tende a enfrentar oposição no empresariado industrial, o que poderia dispersar apoios à reforma da Previdência.

Se a tudo isso acrescentarmos a ausência, até agora, de uma base parlamentar majoritária, teremos uma ideia dos riscos de levar adiante todas as mudanças de uma só vez, tanto as associadas aos desafios da insolvência fiscal e da produtividade, quanto as relativas a promessas de campanha. A simultaneidade ou mesmo o ataque a mais de um dos objetivos tende a dividir e dispersar esforços e apoios.

Deve-se lembrar, por último, que, apesar de a relação dívida pública/PIB, hoje em 76,7%, indicar o risco de insolvência fiscal, os mercados continuam investindo em papéis do Tesouro, baseados na narrativa de que haverá uma reforma da Previdência. Espera-se, além disso, que ela seja profunda e abrangente o suficiente para estabilizar em alguns anos essa relação e em seguida colocá-la em trajetória de queda. Sem a reforma ou com um projeto desidratado de suas ambições, essa narrativa desmoronará, provocando rápida queda de confiança e fuga de capitais, com todas as suas graves consequências, a principal delas a volta da inflação elevada e sem controle.

Por tudo isso, parece aconselhável que o governo, que já elegeu a reforma da Previdência como prioridade máxima, adote uma sequência que evite estabelecer concorrência com as demais reformas. Nenhuma outra é tão fundamental. Todas as restantes podem esperar. O fracasso na reforma da Previdência e seus devastadores efeitos econômicos e sociais corroeriam gravemente o capital político do presidente. O êxito que se espera do seu governo viraria simples quimera.

A sequência adequada requer não apenas, vale repetir, que a reforma da Previdência seja a primeira, como parece já estar decidido, mas também que se evite a simultaneidade com qualquer outra mudança capaz de gerar conflitos, dividir esforços, tumultuar a tramitação no Congresso ou elevar seus custos de transação. Não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País sem a reforma da Previdência. É preciso que ela tramite sozinha.

*ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA