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Bruno Boghossian: Ressaca no STF pode produzir decisões controversas e acovardamento
Divisão no julgamento sobre reeleições no Congresso volta a agitar rede de intrigas do tribunal
A divisão do Supremo no julgamento que barrou a reeleição dos atuais presidentes da Câmara e do Senado agitou mais uma vez a rede de intrigas do tribunal. A maioria do plenário não fez mais do que sua obrigação ao reafirmar aquele veto, mas a decisão acirrou disputas de poder que têm efeito direto sobre o comportamento dos ministros.
Logo depois da votação do último domingo (6), uma ala da corte acusava Luiz Fux de traição no processo. Ministros diziam que existia um pacto para liberar as reeleições e que o presidente do Supremo havia descumprido o acordo. Em retaliação, eles prometiam tomar decisões para dificultar a vida do colega.
Se o problema fosse apenas a vaidade ferida de um punhado de juízes, ninguém precisaria se preocupar. As desavenças ficariam restritas ao cafezinho nos intervalos das sessões, e haveria alguns embates ríspidos durante os julgamentos. A conflagração política no Supremo, porém, pode se tornar mais um elemento de tensão no frágil equilíbrio democrático do país.
Mesmo em tempos de paz, o farto poder dos ministros do STF é capaz de perturbar essa estabilidade. Decisões monocráticas, pedidos de vista e liminares exóticas costumam provocar traumas e desgastes ao tribunal, estimulando alguns de seus integrantes a jogar na defensiva. Em certos casos, a corte se vê constrangida e deixa de cumprir seu papel.[ x ]
Após o choque da última semana, Fux já ensaiou um apelo à autocontenção. Dois dias depois do julgamento, ele recomendou moderação ao tribunal, disse que o Supremo deve evitar a "orgia legislativa" e sentenciou: "Não é hora de ninguém ganhar nada nem de perder nada. É hora da manutenção do status quo".
O STF faria bem em segurar os próprios excessos e intromissões na vida política do país, mas esses limites não deveriam ser frutos de crises internas ou pressões externas. Se a recente cisão no tribunal produzir mais decisões controversas e acovardamento institucional, Jair Bolsonaro pode dormir tranquilo.Bruno Boghossian
*Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
Vera Magalhães: Se dividir, Bolsonaro leva
É vital união entre forças divergentes e entre Câmara e Senado
Se o jogo da disputa pelas presidências da Câmara e Senado continuar a ser jogado de maneira desarticulada, e na base do cada um por si entre os partidos ditos opositores ao bolsonarismo, Jair Bolsonaro tem boas chances de emplacar aliados seus nas duas Casas do Congresso e com eles tocar seus dois últimos anos de mandato. E, bem no fundo, pode ser justamente isso que muitos dos atores do momento político querem. Vamos analisar um pouco a forma como cada um deles age.
Comecemos por Davi Alcolumbre. O presidente do Senado risca os dias na folhinha em pânico desde que o Supremo Tribunal Federal acabou com sua tentativa de dar um chega pra lá na Constituição e disputar novo mandato. Morto de medo de voltar ao baixo clero, tenta uma costura dissociada do correligionário Rodrigo Maia para eleger alguém sob sua influência para sua cadeira.
Para isso, vale até uma aliança com o presidente. Mais ainda se no pacote vier, quem sabe, um ministério para evitar que ele desça de volta à planície sem escala.
Se Alcolumbre fosse fechado com o DEM, seu partido, e se estivesse disposto a ajudar numa articulação para colocar alguém de fato independente em seu lugar, o jogo teria de ser casado com a Câmara, de forma a que o MDB fizesse o candidato lá, e o DEM ou algum partido sob a influência de Alcolumbre, o postulante à presidência do Senado.
E teria de ser uma “chapa” com o discurso da independência, para atrair ou pelo menos tentar arrancar um compromisso público de todos os partidos que entendem que dar o comando do Congresso a Bolsonaro agora significa autorizar que ele “passe a boiada” com sua pauta retrógrada em campos vitais da vida brasileira e tenha uma vantagem imensurável para fechar uma aliança e se posicionar para 2022.
Além disso, é ilusório achar que Arthur Lira (PP-AL), o candidato do bolsonarismo na Câmara, tenha qualquer compromisso com a responsabilidade fiscal. Só o pacote de promessas que ele fez para se eleger no périplo que vem cumprindo por lideranças partidárias já é suficiente para estourar o Orçamento e arrombar o teto de gastos. Se somar as emendas que o próprio Bolsonaro vem autorizando que sejam negociadas, a conta dobra.
Isso num ano em que a pandemia ainda está longe de acabar, como de novo de forma irresponsável mentiu o presidente, e está mais próximo o número de Paulo Guedes de voltarmos ao sinistro patamar de mais de mil mortes diárias por covid-19.
Já escrevi que não é o STF que deve ser responsabilizado pela vantagem com que Bolsonaro conta hoje, mas os próprios Maia e Alcolumbre, que se deixaram empanturrar pela fome de poder e agora correm o risco de ficar de mãos abanando, por não terem organizado a sucessão a tempo, quando ainda detinham o poder da caneta e uma coalizão forte em torno de ambos.
É por isso que cabe aos dois, e ao partido do qual fazem parte, bem como ao autoproclamado centro democrático e à esquerda que se diz antibolsonarista se unirem para evitar um desastre político com risco de se alastrar para a saúde, os costumes, o meio ambiente, a segurança pública, a educação e todas as outras áreas em que o toque de Midas reverso de Bolsonaro, que transforma tudo em morte e devastação, puder tocar.
Que o PT negocie com Lira em troca da revisão da Lei da Ficha Limpa e de outros marcos civilizatórios que são conquistas da sociedade brasileira diz muito sobre o estágio de putrefação avançada do partido, do qual ele teima em não sair.
Na ausência de democratas de verdade, cabe ao capitão autoritário, que antes se recusava a fazer política, ditar as regras e distribuir as cartas. O que mostra que quem foi derrotado em 2018 não aprendeu nada, nem diante dos descalabros de 2020.
José Casado: Primeira vítima
Bolsonaro avança no campo minado do Congresso
Era uma luta de facas no escuro. Acabou domingo, quando um Supremo em autocombustão impediu a tortura da Constituição para extrair o contrário daquilo que ela diz.
Agora, é guerra aberta pelo domínio do Congresso. Vencedores na Câmara e no Senado terão poder decisivo sobre as votações, além de influência na disputa presidencial de 2022.
Quem comandar a Câmara terá nas mãos o destino da pilha de pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro. No Senado, decidirá a sorte de processos contra parlamentares, como Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e ministros do STF.
Bolsonaro se convidou para a guerra, levando-a para o governo. É decisão de alto risco para quem trata aliados com desconfiança, adversários como inimigos e acha que pode vencer a pandemia sem vacina, sem crime de responsabilidade. Ele faz política movido pelo rancor. Em 2002, declarou-se aliado “de corpo e alma” a Ciro Gomes e, depois, de Lula — seus atuais inimigos — porque estava contra o governo Fernando Henrique Cardoso, a quem sugeria fuzilar.
Tornou-se a primeira vítima da luta no Legislativo, associado ao PT na aposta frustrada da reeleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP).
Na Câmara, quer inviabilizar candidatos alinhados a Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente. Há quatro visíveis: Baleia Rossi (MDB-SP), Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), Marcos Pereira (Republicanos-SP) e Elmar Nascimento (DEM-BA). Começou apoiando Arthur Lira (PP-AL), mas já admite Tereza Cristina (DEM-MS), ministra da Agricultura, e Fábio Faria (PSD-RN), das Comunicações. Está deixando um rastro de ressentimentos.
No Senado, dividirá o MDB ao optar entre Eduardo Braga (AM), Fernando Bezerra (PE) e Eduardo Gomes (TO). Rejeitados devem ir para as candidaturas de Tasso Jereissati (PSDB-CE), Antonio Anastasia (PSDB-MG), Esperidião Amin (DEM-SC) e Simone Tebet (MDB-MS).
Bolsonaro avança no campo minado do Congresso. Já não pode evitar as consequências.
Folha de S. Paulo: Ministros veem traição de Fux, expõem mal-estar no STF e já preparam retaliação
Reviravolta no placar que barrou reeleição da cúpula do Congresso é creditada à pressão da opinião pública
Julia Chaib, Matheus Teixeira e Gustavo Uribe, da Folha de S. Paulo
O voto de Luiz Fux no julgamento que vedou a possibilidade de reeleição da atual cúpula do Congresso intensificou o racha entre as alas do Supremo Tribunal Federal e, como consequência, deve gerar empecilhos para sua gestão na presidência da corte.
Em conversas reservadas, ministros falam em “inviabilizar o plenário”, caso discordem da pauta encampada por Fux, e ameaçam se opor a medidas administrativas defendidas pelo presidente do Supremo.
Fux divergiu do relator, ministro Gilmar Mendes, e votou na noite deste domingo (6) para declarar inconstitucional a recondução de parlamentares ao comando das Casas dentro da mesma legislatura.
Os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin votaram da mesma forma e em horário aproximado, o que foi interpretado internamente como uma evidência de que eles atuam em grupo.
Os magistrados defenderam que a Constituição é clara ao vetar a reeleição e formaram maioria contra o entendimento de Gilmar, que atropelava a Carta ao interpretar a vedação à recondução como uma autorização à medida.
O placar ficou em 6 a 5 contra a reeleição de Alcolumbre, e 7 a 4 contra a de Maia.[ x ]
O maior problema, segundo três ministros ouvidos pela Folha em caráter reservado, é que, diferentemente de Fachin, os ministros Fux e Barroso haviam se comprometido a acompanhar Gilmar, que liberava a recondução de Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Rodrigo Maia (DEM-RJ) nas presidências do Senado e da Câmara, respectivamente.
Ambos os magistrados, afirmam integrantes do Judiciário e do Legislativo, chegaram a verbalizar a ministros e senadores que votariam a favor da tese que abriria caminho para os parlamentares buscarem a recondução.
Gilmar, inclusive, só teria decidido pautar a matéria porque tinha a certeza da maioria dos ministros do tribunal, dizem pessoas próximas.
A interlocutores Barroso afirmou que não se comprometeu em autorizar a reeleição e que apenas disse que iria refletir sobre o tema e que não tinha posição firmada a respeito. Auxiliares e aliados de Fux se mantiveram em silêncio nesta segunda-feira (7).
Ministros dizem que começaram a suspeitar que Fux poderia ceder à pressão contra o atropelo à Constituição quando demorou a votar no plenário virtual, uma vez que o relator e os quatro colegas que o acompanharam votaram na sexta (4), primeiro dia do julgamento.
O adiamento da apresentação do voto do presidente do STF, que em tese já estava definido, causou estranhamento e, quando foi publicado, gerou revolta entre magistrados.
O mal-estar, avaliam ministros, vai gerar consequências práticas e negativas para a gestão de Fux. Magistrados classificaram como traição a atitude do ministro.
Além de acirrar ainda mais a relação com a ala contrária à Lava Jato, formada pelos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, Fux também se indispôs com Alexandre de Moraes.
Moraes é visto hoje como um ator importante da corte porque é relator de temas relevantes, não tem posição pré-definida em julgamentos criminais e costuma ser uma espécie de fiel da balança em discussões de peso.
Assim, o presidente pode ter perdido um aliado essencial para formar maioria em direção aos rumos que pretende dar para o STF.
Uma decisão de Moraes desta segunda-feira foi interpretada, na visão de outros colegas, como tendo o objetivo de jogar no colo de Fux um problema a ser resolvido.
O magistrado rejeitou o pedido do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para que o inquérito contra ele fosse enviado à Polícia Federal para conclusão.
Além disso, Moraes ressaltou que o chefe do Executivo não tem o direito, nesta etapa do processo, de decidir que não prestará o depoimento.
O ministro afirmou que isso só será definido após o plenário da corte deliberar se o presidente da República tem o direito de prestar depoimento por escrito ou se a oitiva deve ser presencial. O caso apura suposta interferência de Bolsonaro na PF.
O magistrado reconheceu a existência do direito ao silêncio e da garantia de não autoincriminação de qualquer alvo de inquérito, mas ponderou que a lei “não possibilita aos investigados a escolha prévia e abstrata sobre a realização de atos investigatórios; sob pena de total desvirtuamento das normas processuais penais”.
Moraes mandou oficiar Fux para que o tema seja pautado e ressaltou que o inquérito está paralisado desde 8 de outubro porque o plenário não decide se Bolsonaro tem ou não a prerrogativa de depor por escrito.
A gestão de Fux também deverá sofrer impactos em outras frentes.
Na semana passada, por exemplo, o presidente da corte tentou levar à análise dos pares uma proposta de mudança no regimento para tornar automático o julgamento das decisões individuais liminares (provisórias) pelo plenário, mas teve de recuar porque não conseguiu votos suficientes para aprovar o que queria.
Essa é uma das principais medidas que Fux pretende tomar e, agora, deve ter mais dificuldades para ser aprovada. Ele tem dito que a remessa obrigatória ao plenário irá acabar com a monocratização do STF e, com isso, ele deixará a presidência em 2021 tendo conseguido reinstitucionalizar a corte.
A tendência é que a partir de agora ele não consiga mesmo respaldo ao que quer aprovar. Outra marca que ele pretendia deixar na sua gestão era o aumento de condenações criminais de políticos envolvidos na Lava Jato.
Para isso, Fux articulou a aprovação de uma emenda regimental que retirou o julgamento das ações penais das turmas da corte, que vinham impondo diversas derrotas à operação, principalmente a Segunda Turma, e enviou os casos ao plenário.
A análise desses processos costuma ser demorados, por envolver discussão de provas e dosimetria de pena, e a ideia do presidente era remeter boa parte delas ao plenário virtual.
Agora, porém, ministros prometem pedir destaque nesses processos, o que força a ida ao julgamento presencial, atualmente realizado por videoconferência, que é mais lento e acontece apenas duas vezes por semana.
E, mesmo no plenário físico, integrantes da corte prometem apresentar pedidos de vista em matérias de interesse do presidente do Supremo. Magistrados ainda vão fazer pressão para que ele leve ao plenário os processos que tratam da criação dos juiz das garantias.
Tanto ministros de tribunais superiores quanto o meio político creditaram a reviravolta no placar no STF à influência da opinião pública e da imprensa a respeito da mudança que o tribunal poderia autorizar.
O cenário passou a mudar no final de semana, depois de Fux e Barroso receberem diversas críticas por eventual voto em desacordo com a Constituição, que é expressa ao vetar a reeleição dos presidentes de cada Casa —isso só é permitido em legislaturas diferentes.
Relator do caso, Gilmar defendeu que a reeleição deveria ser autorizada em respeito à separação de Poderes e porque o dispositivo “nunca fora princípio estruturante do Estado brasileiro, ou elemento normativo central para a manutenção da ordem democrática”.
O trecho da Constituição que trata do tema é claro e, conforme a maioria do tribunal, não dá margem para interpretação: "Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente".
Ricardo Noblat: O Supremo Tribunal salva-se do vexame de rasgar a Constituição
Menos mal, mas nada a celebrar
Nada a comemorar quando o Supremo Tribunal Federal decide que os atuais presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado não poderão ser reeleitos. Por maioria de votos, os ministros do Supremo limitaram-se apenas a respeitar o que está escrito no parágrafo 4 do artigo 57 da Constituição que diz:
“Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
A atual legislatura começou em fevereiro de 2019 com a eleição de David Alcolumbre (DEM-AP) para presidente do Senado, e a reeleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) para presidente da Câmara. E se estenderá até fevereiro de 2023. Logo, eles não poderiam permanecer onde estão a partir de fevereiro próximo.
O que espanta é que até a semana passada houvesse no Supremo uma maioria de votos para favorecer os dois e, na prática, rasgar a Constituição. Ministros que acabaram votando contra, como Luiz Fux, por exemplo, presidente do tribunal, admitiam votar a favor com a intenção de barrar o avanço de Bolsonaro no Congresso.
O presidente da República queria a recondução de Alcolumbre, seu aliado, mas não a de Maia a quem considera um desafeto e aliado do governador João Doria (PSDB-SP) que deseja concorrer com ele na eleição de 2022. Agora, para que Bolsonaro consiga o que quer, precisaria aprovar uma emenda à Constituição. Mas como?
Emendar a Constituição requer dois terços dos 513 votos possíveis na Câmara e dos 81 no Senado. Bolsonaro não conta com mais do que 200 na Câmara, e menos da metade necessária no Senado. Resta-lhe trabalhar para que os sucessores de Alcolumbre e Maia sejam nomes pelo menos simpáticos ao seu governo.
Na Câmara, esse nome seria o do deputado Arthur Lira (PP-AL). Acontece que Lira é alvo de denúncias de corrupção e Maia se opõe à sua escolha. A parada para Bolsonaro poderá ser menos difícil no Senado onde são muitos os que desejam seu aval para se eleger. Muita água ainda rolará por debaixo da ponte até lá.
O Supremo salvou-se da vergonha de se meter onde não deveria e fechar os olhos ao que manda a Constituição – menos mal. Mas só o fez, é bom reconhecer, porque foi grande e unânime a reação da opinião pública. Pena que tenha sido acima de tudo por isso. O episódio não engrandeceu a toga.
Merval Pereira: STF acima da lei
É difícil compreender a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nesse caso da permissão de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado na mesma legislatura. Seria fácil se partíssemos da aparência de posição política dos votos dados até agora. Apenas o ministro Marco Aurélio ateve-se à única questão que importa: “Indaga-se: o § 4º do artigo 57 da Lei Maior enseja interpretações diversas? Não. É categórico”.
O próprio Gilmar Mendes, relator que deu origem aos votos favoráveis à reeleição de Rodrigo Maia e David Alcolumbre, disse em seu voto que essa é uma questão política, e como tal deveria ser tratada pelo Congresso. Imaginei que os ministros pudessem avaliar como uma decisão interna do Congresso, o que já era uma interpretação distorcida, pois a Constituição proíbe expressamente, e o STF tem a obrigação de resguardá-la.
Mas os ministros partiram para interpretações que revelam posições pessoais, como, por exemplo, o relator dizer que a regra de proibição de reeleição só vale a partir do ano que vem. Como explicar que a Constituição vale num ano e não vale no outro? Deixar passar essa mudança apenas com uma autorização do Congresso, sem alterar a Constituição, é mesmo incompreensível.
A indefinição desta eleição está atrasando as votações no Congresso há meses. O presidente do Senado, David Alcolumbre também faz um papel muito feio, parou tudo no Senado para negociar sua reeleição, e a eleição de seu irmão à prefeitura de Macapá. Feio é perder, poderá responder, típica atitude de quem, como ele, procurou a reeleição sem nem mesmo tentar mudar a Constituição.
Já a posição de Rodrigo Maia é inteligente politicamente. Diz que não vai se candidatar e quer aprovar as reformas. Pode até sair candidato mais tarde - e parece que nos bastidores está trabalhando para isso - , alegando pedidos. Se pensar a longo prazo, não fará isso. Mas é tentador não deixar que o presidente Bolsonaro tome conta da Câmara.
O ministro Gilmar Mendes alegou, entre tantas outras interpretações criativas, que a proibição de reeleição foi baseada na legislação da ditadura militar, que queria dificultar a vida dos políticos de oposição. Esqueceu-se de que a os constituintes de 1988 mantiveram a proibição, com o fim específico de que ela impedisse a reeleição da mesma direção da Câmara no mandato subsequente ao que exerceu na Mesa Diretora.
Gilmar considerou “desinfluente”, para o estabelecimento desse limite, que a reeleição ou recondução ocorra dentro da mesma legislatura, ou por ocasião da passagem de uma para outra. Nada mais longe da intenção dos legisladores da Constituinte. Bastava uma pesquisa rápida, se realmente não tinha essa informação, para saber que dias antes da aprovação da Constituição, o senador Jarbas Passarinho, ex-ministro de governos militares, propôs que o artigo 57 fosse mais explícito incluindo a expressão "por dois anos", a duração dos mandatos dos presidentes das Casas.
O então deputado Nelson Jobim, que trabalhou na redação da Constituição, explicou que o que se queria evitar é que a Mesa eleita no primeiro ano da legislatura fosse reeleita para o terceiro e o quarto ano da legislatura. O deputado ressaltou que não haveria proibição de que "a mesa eleita no terceiro ano da legislatura pudesse ser reeleita no primeiro ano da legislatura seguinte".
Mesmo assim, a rigidez era tamanha que a reeleição em legislaturas diferentes só foi permitida em 1999, quando Antonio Carlos Magalhães e Michel Temer conseguiram um segundo mandato consecutivo para comandar o Senado e a Câmara. Jobim está vivo e poderia esclarecer a intenção dos constituintes se o ministro Gilmar Mendes tivesse alguma dúvida.
O preocupante é que a Justiça está assumindo posições políticas em suas decisões. O ministro Nunes Marques, bolsonarista convicto, votou a favor da reeleição, mas apenas do Senado, favorecendo o afastamento de Rodrigo Maia, desafeto do Palácio do Planalto. E o juiz da Terceira Vara Criminal de Maceió, Carlos Henrique Pita Duarte, anulou as investigações e arquivou o inquérito que acusava o deputado Arthur Lira, candidato do presidente Bolsonaro à presidência da Câmara, de ter enriquecido com base em “rachadinhas” quando era deputado estadual.
Há uma frase famosa de Rui Barbosa que diz que o Supremo tem direito a errar por último. Parece ser o caso.
Hélio Schwartsman: As regras do jogo
No país da gambiarra, nem o Legislativo tem apreço pela previsibilidade das regras
O forte da democracia não é assegurar a escolha de líderes competentes, do que dão testemunho Jair Bolsonaro e Donald Trump, para ficarmos em dois casos gritantes e recentes. É sempre possível comprar os eleitores com programas populistas ou iludi-los com promessas falsas. E isso não é uma falha circunstancial, mas uma característica do sistema. Não dá para livrar-se dela sem se livrar da própria democracia.
Ainda assim, ela é o melhor regime político de que se tem notícia. A aparente contradição se dissolve quando analisamos o pacote de instituições que costumam acompanhar as democracias. Falo de coisas como livre iniciativa, liberdade de expressão, Judiciário independente e previsibilidade das regras do jogo.
É sobre este último item que gostaria de me deter. Um dos mecanismos pelos quais sociedades democráticas tendem a ser mais prósperas que regimes arbitrários é que elas dão aos cidadãos segurança para investir esforços e economias em atividades produtivas. Se eu sei que o soberano não vai amanhã mudar as regras do jogo e se apropriar do que é meu, construo uma fábrica; se acho que ele vai criar problemas, converto tudo em diamantes com os quais posso fugir.
É claro que regras não precisam ser eternas. Elas existem para nos servir, e não nós a elas. Mas previsibilidade não é imutabilidade. Regras podem e devem ser atualizadas para acompanhar a realidade, mas sempre seguindo princípios de impessoalidade, publicidade e anterioridade, que assegurem que ninguém seja pego de calças curtas.
Não acho particularmente boa a regra que impede os presidentes da Câmara e do Senado de buscar reeleição na mesma legislatura, mas é óbvio que eventuais mudanças só poderiam valer para ocupantes futuros desses cargos, não para os atuais. Se nem o Legislativo tem apreço pela previsibilidade das regras, seria melhor decretar de vez que o Brasil é o país da gambiarra.
Vera Magalhães: Antes de 22 vem 21
Sucessão no Congresso é lance vital para a eleição presidencial
Não adianta nada nomes como Luiz Henrique Mandetta queimarem a largada especulando sobre candidatura presidencial a essa altura do campeonato. Não bastasse haver um vírus à solta que terá matado 100 mil brasileiros até o início de agosto, ceifado milhões de empregos, virado o programa econômico de Paulo Guedes de cabeça para baixo e transformado as eleições municipais em nota de rodapé, isso para ficar só nos efeitos domésticos, outros acontecimentos em Brasília são pressupostos fundamentais para posicionar os corredores na linha de largada.
Eles começam agora, nesse segundo semestre que inicia oficialmente em agosto. Não à toa Rodrigo Maia saiu do silêncio que vinha mantendo para comandar uma dissidência no “blocão” de partidos da Câmara que deu suporte à sua presidência nesses quatro anos. Maia sabe que é vital não apenas para sua sobrevivência como líder político relevante, mas para a construção de qualquer projeto de centro dissociado do bolsonarismo e minimamente competitivo, manter o comando da Câmara no último biênio do governo.
Não que o Congresso tenha sido o protagonista nos atos de contenção a Bolsonaro nesse 2020 em que o presidente resolveu rasgar a fantasia. Esse papel, como se sabe, tem sido exercido pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas é ali, na Câmara, que pode nascer um dos temores maiores da existência do presidente, maior que acabar a cloroquina no meio da noite: a abertura de um processo de impeachment, algo que Maia evitou alimentar nesses dois anos de convivência tensa, mas que é um trunfo à mão de qualquer presidente da Casa, a depender do impulso das ruas, de um motivo jurídico e de combustível dos setores econômicos.
Por ora nenhum desses fundamentos está dado. A pandemia tira a possibilidade de grandes manifestações de rua, Bolsonaro se segura ali no limiar dos 30% de aprovação, com um público que está trocando de pele da elite agora horrorizada com seus descalabros para as classes D e E conquistadas à base de auxílio emergencial. E o ainda bagunçado apoio do que restou do Centrão ao presidente pode lhe dar os votos necessários para evitar ter o mesmo destino de Dilma Rousseff.
Mas não é esse o único poder que emana dos comandantes da Câmara e do Senado. Bolsonaro não teve êxito até aqui em avançar com sua pauta reacionária no Legislativo. O que conseguiu para “escancarar a questão das armas”, por exemplo, fez via decreto. Alguns foram, inclusive, derrubados pelos parlamentares. A tentativa de aprovar pautas obscurantistas como a tal Escola sem Partido nunca foi adiante, e os vetos do presidente a projetos aprovados ou alterados pelos deputados e senadores podem ser derrubados a qualquer momento.
Sem o controle da pauta dificilmente o presidente terá mais sorte nos dois últimos anos de seu mandato. Isso além dos obstáculos institucionais que enfrentará em outras searas, como o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral.
Por tudo isso, para chegar competitivo a 2022 Bolsonaro tem de sobreviver não só ao 2020 do vírus e do desastre econômico como a dois últimos anos com atores no comando que ainda não estão em cena. Dois deles são escolhas de deputados e senadores, mas outros dependem da caneta do próprio Bolsonaro, que vai indicar, entre outros postos, um ministro do STF, Corte hoje hostil a ele e unida como poucas vezes, em novembro.
Ignorar essas variáveis e como a economia vai se comportar só fará com que eventuais postulantes à Presidência se exponham ao sol sem protetor. Mandetta não é o único a se arriscar a uma queimadura. Deveriam ficar mais embaixo do guarda-sol organizando os exércitos, como Maia está fazendo, e procurar algum grau mínimo de coesão.
Rosângela Bittar: O errado perfeito
A grande aliança que solucionaria os problemas de Bolsonaro voou pelos ares
O DEM e o MDB eram a alma dupla do Centrão. Davam consistência, história, peso político, acesso ao empresariado e à sociedade, ao paquiderme dominante do espaço parlamentar, agora imbuído de uma nova missão, a de salvar Jair Bolsonaro. No entanto, estavam em baixa. Ao declararem independência do governo e se retirarem do bloco, na última segunda-feira, os dois partidos viraram o jogo e passaram a liderar novamente o processo.
Golpearam, ao mesmo tempo, o projeto do presidente Jair Bolsonaro de usar o grupo como principal braço da sua articulação política no Congresso. E derrubaram o arranjo do escolhido para representar o governo nas negociações, o líder Arthur Lira, que esperava ser premiado com a sucessão à presidência da Câmara, sem esforço.
Sucessão esta que também ficou incerta porque volta a colocar na disputa, com presença notável, o candidato que o presidente da Câmara vier a escolher para suceder-lhe. Não se sabe quem, nem quando será. Por experiência da sua própria eleição, Rodrigo Maia não tem pressa. Quando recebeu o apoio do DEM, seu próprio partido, já era véspera da disputa, e, quando o aliado PSDB se manifestou, já era a manhã do dia D.
Ao se enfraquecer com a saída dos dois principais partidos, o Centrão enfraquece o governo, que nunca acertou na articulação política. O presidente demorou a se decidir pela aliança e, quando o fez, depositou suas esperanças de sustentação em um homem só. A busca de atalhos, na negociação política, nem sempre dá certo.
Sua estratégia ficou clara: queria ganhar, sim, mas não bastava. Maia precisava perder. Uma rusga que atravessou o ano e ancorou na pandemia.
Errou também o presidente por desconhecimento das regras da articulação, dos princípios e dos ritos na relação entre os Poderes e entre estes e as unidades da Federação.
Numa conferência recente sobre a intrincada conjuntura política do País o ex-ministro e ex-presidente da Câmara Aldo Rebelo fez uma paródia do jargão para cunhar outra expressão que define este tipo de confluência de desastres em uma mesma situação: “o errado perfeito”. Do manual do erro, Bolsonaro não deixou nada de fora, cumpriu todos. Tanto que, com um piparote, a grande aliança que solucionaria seus problemas voou pelos ares.
A primeira lição que o presidente deveria aprender com o revés é que a articulação política exige ciência, por mais que a palavra atinja seus brios. Não se coordena a relação do Poder Executivo com o Poder Legislativo apenas com um general afável, competente relações públicas, e alguns líderes neófitos e inexperientes membros do baixo clero parlamentar.
Os exemplos de fracassos e sucessos de governos anteriores ensinam também a quem quer aprender. Não é necessário ao governo ter um Luiz Carlos Santos que, segundo a lenda, dava nó em fumaça. Muitos depois dele, e sem a sua experiência e habilidade, saíram-se bem.
Uma segunda lição é que para se ter uma boa articulação política é preciso ter, primeiro, uma política. Representada em um projeto de governo a que se possa aderir, em torno do qual estabelecer negociação e dividir tarefas de execução. Sem isto não dá para fazer nada, a não ser acertos aleatórios e pontuais, geralmente descumpridos de parte a parte.
O articulador precisa contar com a total confiança do presidente e inspirar confiança e respeito dos seus interlocutores. Voz de comando não funciona: articulação política não é uma guerra nem uma campanha eleitoral. Ah, importante: tem de reconhecer a importância e respeitar a oposição.
Em um governo forte, com base no Congresso, plano de trabalho, unidade dos ministros, a articulação flui. Mas se é um governo desorientado, como o de Jair Bolsonaro, com um presidente que não tem autoridade além da conferida pelo cargo, assiste-se a uma derrota atrás da outra.
Ricardo Noblat: O congestionamento de candidatos do centro poderá marcar a eleição
A esquerda agradece. Bolsonaro se preocupa
No primeiro momento, a saída do DEM e do MDB do conglomerado de partidos conhecido pela alcunha de Centrão tem a ver com a eleição do próximo presidente da Câmara dos Deputados, em fevereiro do próximo ano.
Indica que DEM e MDB pretendem formar um bloco junto com o PSDB e partidos de oposição ao governo para eleger o sucessor de Rodrigo Maia. Ou reeleger Maia, caso se aprove uma emenda à Constituição para tornar possível o que hoje não é.
O Centrão aliou-se ao governo atraído pela oferta de cargos, liberação de dinheiros e outras sinecuras que o presidente Jair Bolsonaro dizia antes abominar. Conversa para enganar eleitor. Bolsonaro já foi filiado a quase todos os partidos do Centrão.
Está interessado, agora, em valer-se dos votos do Centrão para barrar a abertura de um processo de impeachment contra ele, aprovar projetos do governo e pôr no lugar de Maia um presidente da Câmara mais confiável. Foi aí que o bicho pegou.
Num segundo momento, o racha do Centrão tem a ver com a sucessão do próprio Bolsonaro. É remota a possibilidade do DEM e do MDB apoiarem a reeleição do presidente. É mais do que provável que se unam ao PSDB para bancar outro nome.
O governador João Doria (PSDB), de São Paulo, quer ser esse nome. O combate à pandemia do coronavírus ofereceu-lhe a oportunidade de se apresentar como um candidato de centro-direita capaz de enfrentar Bolsonaro daqui a dois anos.
A eleição presidencial de 2022 poderá assistir a um congestionamento de candidatos do centro – Doria, Sergio Moro, Ciro Gomes que parece caminhar nessa direção, e quem mais aparecer. O PT agradece desde já. Bolsonaro se preocupa.
Quanto aos partidos do Centrão de raiz, para esses tanto faz como tanto fez. O imediato é o que importa. De resto, são sensíveis à direção dos ventos. Sabem tirar vantagem de tudo. E, ao fim e ao cabo, sempre estarão com o governo, qualquer um.
A boiada de Ricardo Salles passou sobre a política ambiental
Bolsonaro deu ouvidos ao ministro
Resta comprovado que o presidente Jair Bolsonaro seguiu o conselho de Ricardo Salles, seu ministro do Meio Ambiente, e aproveitou os meses iniciais da pandemia do coronavírus para reforçar os maus tratos à natureza, marca do seu governo até aqui.
Um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo em parceria com o Instituto Talanoa mostra que, entre março e maio deste ano, o governo publicou 195 atos no Diário Oficial, todos ligados ao tema ambiental. Nos mesmos meses de 2019, foram apenas 16.
Na reunião ministerial de 22 de abril último, Salles sugeriu a Bolsonaro que aproveitasse o momento em que a imprensa estava ocupada com a pandemia para “passar a boiada”, mudando “todo o regramento e simplificando normas” na área do meio ambiente.
E foi isso o que Bolsonaro autorizou que se fizesse como aponta a análise inicial das principais portarias, instruções normativas, decretos e outras normas baixadas ou alteradas. O processo de desmonte das políticas ambientais ganhou celeridade.
A instrução normativa 4/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA), por exemplo, que trata da priorização de indenização para populações tradicionais em reservas ambientais, criou uma brecha para facilitar a expulsão de índios e quilombolas dessas áreas.
A portaria 432/2020 permitiu ao ICMBio centralizar a gestão de duas unidades de conservação em Roraima, cancelando a criação de mais duas bases avançadas. Ali, há registros recentes de invasão de garimpeiros e de aumento da derrubada de árvores.
Os defensores do meio ambiente estão furiosos com o que aconteceu. E com razão.
Vinicius Torres Freire: Começa a eleição da governança do país
Disputa pelo comando da Câmara move partidos e deve redefinir 'parlamentarismo branco'
O que existe de governança do Brasil é uma resultante do desgoverno de Jair Bolsonaro, de um anteparo na Câmara e de surtidas do Supremo contra desbordamentos do bolsonarismo. Diga-se “governança” por conveniência e brevidade, para dar um nome ao que resulta do salseiro. Não é governo, que inexiste, nem equilíbrio de Poderes. É uma bruxa inacreditável, mas que existe.
Esse esquema de governança improvisada, por informe, gelatinoso e variável que seja, deve mudar a partir do começo do ano que vem com a eleição dos novos (ou não) presidentes da Câmara, em especial, e do Senado. Vai definir se a Câmara continua como um anteparo das exorbitâncias do governo e dar uma medida mais precisa do apoio que Bolsonaro tem no Congresso (se é que quer mesmo algo assim, tão normal).
Essa eleição começou. Ou, melhor, começa o rearranjo de blocos partidários que vão apoiar este ou aquele candidato. O DEM do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o MDB fizeram questão de se separar do bloco formal de partidos que incluía a geleia do centrão. Com eles, o PSDB deve compor uma troica, embora outras adesões sejam possíveis. Os três partidos juntam 74 dos 513 deputados.
Parece pouco, mas não é lá bem assim. O grupo de parlamentares tidos como mais à esquerda não tem o que fazer a não ser aderir a quem não seja bolsonarista ou ficar fora do jogo (uma estupidez sem sentido prático, político ou interesseiro, pois teriam ainda menos poder de ocupar qualquer posição de relevância na Câmara). Juntam uns 140 deputados, por aí. A troica e a “esquerda” somam, pois, mais de 210 parlamentares.
É o grupo que poderia levar adiante uma versão do “parlamentarismo branco” que colocou alguma ordem na política politiqueira de Brasília, negociou, relatou e aprovou projetos relevantes e rejeitou desmandos piores do Planalto. Foi o que restou de governança sensata do país, goste-se ou não de seus projetos e programas.
O que sobrou do blocão antes integrado por DEM e MDB é mais ou menos o que se chama de centrão, 158 parlamentares. Esse bloco ainda pode rachar, tendo em vista a eleição da Câmara (fevereiro de 2021), e deve contar com agregados do PSL (parte bolsonarista, parte não, parte talvez) e seus 41 deputados, e do Republicanos, 33 deputados, que vem a ser o partido da Igreja Universal. Esses partidos têm uns três candidatos a princípio viáveis.
Decerto essas continhas são demasiadamente certinhas no mundo ainda mais gelatinoso de uma Câmara em que inexiste uma coalizão de governo e no qual mais de 70% dos deputados se dividem ideologicamente entre conservadorismo, extremo conservadorismo e extrema direita. São continhas ainda mais precárias em um Congresso de fragmentação partidária recorde e de legendas que começam a pensar em fusões e aquisições tendo em vista a ameaça da cláusula de barreira, em 2022.
Mas é dessas danças do acasalamento infiel é que deve sair a cara do comando improvisado do país. Na disputa da Câmara vai ficar mais claro o tamanho do bloco da boquinha bolsonarista, instável, mas relevante para saber das possibilidades ora remotas de impeachment e dos riscos de serem aprovados projetos “passa a boiada” pelo país. A disputa está muito no começo. O governo mal passou a jogar o jogo da coalizão, do qual tenta participar desde abril. Na verdade, nem se sabe se vai ser esse o jogo, o de uma normalização política, business as usual. Mas as cartas estão indo para a mesa.
Afonso Benites: Congresso antecipa debate por sucessão de Maia e Alcolumbre
Articulação pelas eleições das Casas, que só acontecem em fevereiro de 2021, está a todo vapor, sob desafio de manter independência do Governo. Apesar do apoio, deputados centristas estão divididos, à espera dos efeitos da pandemia sobre a popularidade do presidente no próximo ano
Mesmo com sessões à distância por causa da pandemia do novo coronavírus, congressistas brasileiros têm intensificado a discussão para a sucessão dos comandos da Câmara e do Senado Federal. A votação ocorrerá na primeira semana de fevereiro de 2021. A escolha dos presidentes das duas Casas legislativas marcará a segunda metade do Governo Jair Bolsonaro (sem partido), quando se saberá exatamente qual o impacto humano, social e econômico da pandemia do coronavírus que, até lá, terá ultrapassado a marca dos 100.000 óbitos. São as mesas diretoras de Câmara e Senado que definem a pauta de votação dos projetos de lei, das medidas provisórias e das propostas de emendas constitucionais. E é o representante dos deputados quem tem, inclusive, o poder de dar o pontapé inicial em processos de impeachment contra o chefe do Executivo.
Entre os opositores, há quem aposte que uma espécie de “bola de neve” deve ser formada e que acabará pressionando o Governo. Os argumentos dessa corrente é que a economia deve degringolar com uma queda acentuada do Produto Interno Bruto (PIB) de até 9%, e um aumento exponencial do desemprego o que, consequentemente, deve desgatar a popularidade do presidente – hoje oscila entre 25% e 33%, de acordo com o instituto de pesquisa. Com menor apoio popular, o que deve segurar um mandatário no poder deve ser o Legislativo, onde tramitam mais de 40 pedidos de destituição presidencial. Aqui consta apenas o cálculo político, não o jurídico-criminal, onde, no Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro enfrenta ao menos mais seis processos que pedem a cassação da chapa que ele compôs com o general Hamilton Mourão (PRTB) na eleição de 2018.PUBLICIDADE
Ciente do risco que corre principalmente na Câmara, Bolsonaro já cedeu espaço em seu Governo ao Centrão, grupo fisiológico de cerca de 200 deputados de centro direita. Além disso, deu mais poder a esse grupo ao destituir sua fiel aliada Bia Kicis (PSL-DF) da vice-liderança do Governo na Câmara após ela votar contra o novo Fundeb e deixar a vaga reservada para um membro do Centrão. Mas o apoio desses parlamentares não é a garantia de terá uma viagem em céu de brigadeiro. A razão: o Centrão está dividido. Uma parte considerável ainda apoia Rodrigo Maia (DEM-RJ) e defende uma maior independência com relação ao Executivo. Maia é o mais longevo presidente da Câmara, tem três mandatos seguidos, sendo um tampão. Ele não pode mais disputar a reeleição, mas a sua bênção a um nome tem certo peso na Casa.
Entre os possíveis nomes na disputa pela Câmara estão ao menos cinco do Centrão, o que reforça essa divisão. Estão no páreo Arthur Lira (Progressistas-AL), Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB), Marcos Pereira (Republicanos-SP), Marcelo Ramos (PL-AM) e Capitão Augusto (PL-SP). Os três primeiros estariam entre os favoritos do Centrão para a disputa. Os dois últimos buscam deixar seus nomes em evidência para possivelmente concorrerem a outras funções dentro da Mesa Diretora ou para presidente de comissões permanentes, por onde tramitam os projetos de lei antes de chegarem ao plenário. Algo que Ramos refuta. “Não é hora de antecipar a eleição porque a superação dos efeitos sanitários, econômicos e sociais depende de união da Câmara. Antecipar o processo gerará uma divisão que prejudicará o país”.
Um outro possível candidato é da oposição ao Governo Bolsonaro, Alessandro Molon (PSB-RJ). Outro nome cogitado é o de Fábio Ramalho (MDB-MG), que ora circula entre os independentes, ora entre os governistas. Por fora ainda aparece o nome de Baleia Rossi (MDB-SP). O que pesa com relação ao nome de Rossi é o fato de ele ser o presidente do partido e líder da legenda na Câmara, além de uma tentativa dos emedebistas de focar no comando de apenas uma das Casas do Legislativo, o Senado. “Quem muito quer, nada tem. O acordo é costuramos entendimentos com deputados e senadores para conseguirmos retomar o comando do Senado, não o da Câmara”, disse um parlamentar do MDB que participa das negociações.
Rodrigo Maia tem bom relacionamento com todos os concorrentes, mas ainda não deu sua palavra a nenhum porque ainda aguarda os movimentos do bolsonarismo. Uma coisa é certa. Ele não quer Lira por entender que o parlamentar é muito próximo a Bolsonaro – as indicações para cargos no Governo tiveram o seu aval – e porque seria uma versão 2.0 de Eduardo Cunha (MDB-RJ), o ex-presidente da Câmara que recriou o Centrão e acabou preso condenado por corrupção. “Lira é herdeiro do Cunha. É o político do baixo clero que faz de tudo para chegar ao poder”, afirmou um deputado governista. O que pesa a favor dele é que, atualmente, lidera um grupo de nove legendas que, juntas, somam 221 dos 513 parlamentares.
Interlocutores de Maia afirmaram que ele estaria propenso a apoiar Marcos Pereira, um membro da Igreja Universal e representante da bancada evangélica, ou Aguinaldo Ribeiro. A opção Pereira, que é vice-presidente da Câmara, só seria conveniente caso ele demonstrasse independência com relação a Bolsonaro e um descolamento de Lira. Já Ribeiro seria uma espécie de estepe, caso seja possível rachar o Centrão ao meio. Para onde Maia apontar deverá haver um apoio quase automático de um grupo de 106 parlamentares do MDB, DEM, PSDB, Cidadania e PV. As lideranças dessas siglas comprometeram-se a caminhar juntas na disputa pela Câmara.
Senado e o feudo do MDB
No Senado, o cenário deve ter menor influência do Governo, onde ele não tem base e o Centrão tem pouca interferência no plenário. Bolsonaro tenta costurar apoio ao seu atual líder no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). Ele, no entanto, enfrentará resistências dentro do próprio MDB, que está empenhado em retomar o comando, mas minimamente descolado do Governo. Desde o fim da ditadura militar, há 35 anos, o Senado só não foi comandado por emedebistas em sete anos, durante duas gestões de Antonio Carlos Magalhães (DEM-BA), um mandato tampão de Tião Viana (PT-AC) e a atual, de Davi Alcolumbre (DEM-AP). Era quase um feudo do MDB.
Desde 2019, o Senado está sob a batuta de Alcolumbre, que travará uma batalha judicial para disputar a reeleição. A Constituição impede que um presidente de uma das casas do Legislativo dispute a reeleição dentro de uma mesma legislatura. O entendimento até aqui era de que a legislatura se encerrava a cada quatro anos e o mandato de presidentes da Casa é de dois anos. Mas Alcolumbre tentará que o Supremo Tribunal Federal declare que a metade de um mandato de um senador é aos quatro anos, já que o mandato de senadores é de oito anos. E, portanto, poderia disputar a reeleição. A tese encontra resistência dentro do próprio Senado, entre quem o ajudou a acabar com a hegemonia emedebista e derrotar Renan Calheiros (MDB-AL) em 2019.
Internamente, no MDB, a bancada se decidirá por Eduardo Braga (MDB-AM) ou Simone Tebet (MDB-MS). Ela tem maior simpatia do grupo independente Muda Senado, formado por 21 dos 81 parlamentares, que estuda também a viabilidade de lançar Álvaro Dias (Podemos-PR). O sentimento entre de três dos 13 senadores emedebistas é que Simone une, enquanto qualquer um dos Eduardos, divide.
Por fora, também circula o nome de Antonio Anastasia (PSD-MG), que deixou o PSDB para ter mais apoio no Legislativo. Vice-presidente do Senado e visto como um técnico, Anastasia ainda estuda o terreno para lançar seu nome. Não gostaria, por exemplo, de disputar com Simone, de quem é amigo, ou de não ter o apoio do grupo Muda Senado. Limitada a cerca de 15 senadores, a oposição ao Governo pode lançar um nome apenas para marcar presença na disputa. Em caso de segundo turno, deve apoiar quem menos se identificar com Bolsonaro.