machado de assis

Coleção Astrojildo Pereira lançamento em Brasília | Foto: Cleomar Almeida/FAP

FAP realiza debate em lançamento da Coleção Astrojildo Pereira, em Brasília

Cleomar Almeida, coordenador de Publicações da FAP

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) iniciará, na terça-feira (28/6), a série de três lançamentos presenciais da Coleção Astrojildo Pereira, que leva o nome de um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e que morreu aos 75 anos, no Rio de Janeiro, em 1965. O primeiro evento será realizado no Espaço Arildo Dória, auditório da Biblioteca Salomão Malina, em Brasília, a partir das 16 horas, com transmissão ao vivo pela TV FAP e redes sociais da entidade. A entrada é gratuita.

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Veja vídeo de lançamento da Coleção Astrojildo Pereira, em Brasília

A coleção foi lançada recentemente pela FAP e Boitempo, que comercializa, em seu site, os seis títulos em uma caixa especial ou avulsos. Confirmaram presença no primeiro evento de lançamento da coleção o diretor-geral da fundação, o sociólogo e consultor do Senado Caetano Araújo; o jornalista e escritor Carlos Marchi e o historiador Martin Cezar Feijó, autor do livro O revolucionário cordial, que é a biografia de Astrojildo Pereira.

Aberto ao público em geral, o primeiro evento da FAP de lançamento da coleção será realizado no auditório, com espaço climatizado, dentro da Biblioteca Salomão Malina. O endereço é SDS, Bloco P, ED. Venâncio III, Conic, loja 52, Brasília (DF). Interessados podem buscar informações por meio do WhatsApp (61 984015561). 

Coleção Astrojildo Pereira é lançada com nova edição de seis obras

Outros lançamentos estão previstos para serem realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro, nos meses de julho e agosto, com participação de intelectuais e admiradores da história de Astrojildo Pereira. Os eventos serão realizados pela FAP, em parceria com a Boitempo.

A coleção

Na nova coleção, Astrojildo Pereira (1890-1965) teve seus cinco livros revistos, ampliados e reunidos na nova coleção batizada com o seu nome, lançada em celebração aos 100 anos da história do PCB, do qual ele foi um dos fundadores e primeiro secretário-geral. A obra do historiador Martin Cezar Feijó completa o conjunto de seis títulos.

Astrojildo Pereira é considerado um dos grandes intelectuais e entusiastas de uma política cultural pioneira para o Brasil. Com obras de sua autoria, a coleção chega ao público, com nova padronização editorial e atualização gramatical. 

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Obras

Confira, abaixo, a relação de seis títulos da Coleção Astrojildo Pereira.

URSS Itália Brasil (1935);

Interpretações (1944);

Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos (1959);

Formação do PCB: 1922-1928 (1962);

Crítica impura (1963); 

O revolucionário cordial, de Martin Cezar Feijó

URSS Itália Brasil

URSS Itália Brasil
URSS Itália | Arte: FAP

“Em suma, a realidade brasileira é a da exploração econômica e da opressão política em que vivem as classes laboriosas, operários da indústria e da lavoura, colonos e pequenos lavradores, artesãos e intelectuais pobres, todos sem exceção jungidos ao capitalismo estrangeiro — ou diretamente nas empresas imperialistas, ou indiretamente por intermédio do capitalismo ‘nacional’. Realidade axiomática, que dispensa demonstração, porque é sentida e sofrida por 99,9% da população brasileira. Realidade-mater, de cujos flancos nascem todas as realidades de um país riquíssimo habitado por uma gente pobríssima”. (Trecho da obra)

Publicada pela primeira vez em 1935, com textos lançados na imprensa de 1929 a 1934, a primeira obra de Astrojildo foi URSS Itália Brasil. O livro é imprescindível para estudiosos dos anos de 1930. Naquela época, o Brasil passava por uma fase de consolidação do Estado centralizado após a chamada Revolução de 30. O comunismo e o fascismo eram poderosas forças que se contrapunham no contexto geopolítico.

Os textos de Astrojildo Pereira registram importantes depoimentos do período e levam ao leitor um rico material de informação e análise sobre a formação do Estado soviético, as condições do fascismo italiano e as contradições intelectuais e políticas do Brasil da primeira metade do século 20.

Interpretações

Interpretações | Arte: FAP
Interpretações | Arte: FAP

“Sem dúvida, nem tudo são misérias e desgraças no Nordeste; nem é só no Nordeste que existem misérias e desgraças. Elas existem em todas as regiões do Brasil, de Norte a Sul; existem igualmente em todos os países do mundo, em grau menor ou maior. Já sabemos disso. Mas o de que se trata, nessa questão dos romancistas do Nordeste, é que eles são por vezes acusados de nos seus livros só retratarem a cara feia e dolorosa da miséria nordestina. Demais de injusta, semelhante acusação a meu ver peca pela insensatez e pelo pedantismo”. (Trecho da obra)

A obra Interpretações inclui textos redigidos entre 1929 e 1944, ano em que foi lançada. Com positiva repercussão pela crítica e pelas instituições culturais, o livro foi incluído no Summary of the History of Brazilian Literature, programa de divulgação cultural que colocava Astrojildo ao lado de autores consagrados como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Interpretações está dividido em três partes: Romances BrasileirosHistória política e social e Guerra após Guerra. Obras de diversos romancistas nacionais estão abordadas na primeira parte. Entre eles estão Machado de Assis, Manuel Antonio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, Lima Barreto e Graciliano Ramos.

A segunda parte analisa as mudanças históricas da formação brasileira, como o debate sobre a abolição da escravatura, durante o Segundo Reinado. Na terceira e última parte, Astrojildo aborda as questões internacionais, como a ascensão do nazismo e a Segunda Guerra Mundial, além de refletir sobre os deveres do intelectual brasileiro diante do conflito mundial.

Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos

Machado de Assis | Arte: FAP
Machado de Assis | Arte: FAP

“Assim como o coração tem razões que a razão desconhece, poderíamos talvez dizer que a razão ou o gênio tem sentimentos que o coração desconhece. E nisto reside, ao que suponho, a essência do problema do ‘bom’ e do ‘mau’ Machado de Assis. Era Machado de Assis um homem bom, um homem mau? O ponto preliminar a esclarecer neste caso é o seguinte: o fato de botar a nu a crueldade, a dissimulação, a hipocrisia, as pequenas vaidades e os secretos apetites de homens e mulheres observados na sociedade, e revividos em contos e romances, significa que o psicólogo, que estuda e desnuda o caráter alheio, seja ele próprio portador das taras e defeitos que analisa?” (Trecho da obra)

Lançado pela primeira vez em 1959, o livro Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos é considerado um dos trabalhos mais importantes e conhecidos de Astrojildo Pereira. Nelas, o intelectual analisa a vida e obra de um dos maiores nomes da literatura brasileira, revelando um escritor perspicaz, crítico atento e sensível e um romancista com forte sentido político e social.

No ano do centenário de fundação do PCB, a obra é relançada, também, com a inclusão de alguns textos. As introduções das edições passadas foram suprimidas, e novos foram incorporadas, com exceção no caso do escrito de José Paulo Netto.

Quase 30 anos depois da redação de Astrojildo: política e cultura, Paulo Netto retomou o seu texto e preparou uma nova versão que abre a presente edição como seu prefácio. O historiador Luccas Eduardo Maldonado assina a orelha. As ilustrações de Claudio de Oliveira utilizadas na terceira edição foram mantidas na atual.

Alguns anexos foram incorporados, como a crônica A última visita, de Euclides da Cunha (1866-1909), na qual relata a visita de Astrojildo Pereira ao leito de morte de Machado de Assis. Outro incremento foi Machado de Assis é nosso, é do povo, do fundador do PCB, publicado em novembro de 1938 na ocasião dos 30 anos do falecimento do Bruxo do Cosme Velho.

O texto apareceu originalmente na Revista Proletária, periódico vinculado ao PCB que tinha uma circulação extremamente restrita devido à ditadura do Estado Novo. Um artigo do militante comunista Rui Facó (1913-1963), intitulado Em memória de Machado de Assis, foi anexado.

Esse texto apareceu originalmente em 27 de setembro de 1958 no Voz Operária, jornal oficial do comitê central do PCB, e fazia uma homenagem ao fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL) no cinquentenário de sua morte. Por fim, inclui-se também uma resenha de Machado de Assis de Astrojildo, escrita por Otto Maria Carpeaux, intitulada Tradição e Revolução

Formação do PCB

Formação do PCB | Arte: FAP
Formação do PCB | Arte: FAP

“O Congresso de fundação do Partido não foi coisa realizada de improviso, mas resultou de um trabalho de preparação que durou cerca de cinco meses. Por iniciativa e sob a direção do Grupo Comunista instalado no Rio a 7 de novembro de 1821, outros grupos se organizaram, nos centros operários mais importantes do país, com o objetivo precípuo de marchar para a fundação do Partido. Tinha-se em vista estabelecer certos pontos de apoio nas regiões onde havia alguma concentração de massa operária. Compreendia-se, por outro lado, que o Partido devia ter desde o início um caráter definido de partido político de âmbito nacional” (Trecho da obra)

Principal articulador da fundação do PCB em março de 1922, Astrojildo Pereira escreveu, ao longo dos anos, para jornais e revistas, uma série de textos sobre os fatos que marcaram a fundação do partido. Em 1962, quando se comemorava os 40 anos da fundação do partido, reuniu os melhores artigos e notas sobre a história da legenda e os publicou com o título Formação do PCB 1922/1928.

Nesse conjunto de textos, Astrojildo Pereira apresenta as lutas operárias desde os últimos anos do século 19 e a criação das bases que possibilitaram a fundação do partido. Reúne também muitas de suas memórias daqueles anos e uma série de contribuições às revistas Movimento ComunistaA Classe Operária A Nação, veículos dos quais ele esteve à frente e com que colaborava regularmente.

Crítica impura

Crítica impura | Arte: FAP
Crítica impura | Arte: FAP

“Lima Barreto não era um marxista, longe disso, e nem se pode vislumbrar nos seus escritos nenhum pendor para trabalhos e estudos teóricos que o levassem a uma adesão plena às concepções filosóficas do marxismo. Desde jovem se afizera ao trato dos livros, mas sua formação sofria do mal muito comum do ecletismo, uma certa mistura de materialismo positivista, de liberalismo spenceriano, de anarquismo kropotkiniano e de outros ingredientes semelhantes. Nascido, no entanto, de família pobre, vivendo sempre na pobreza e no meio de gente pobre, fez-se escritor por vocação — escritor honesto e consciente da sua condição”. (Trecho da obra)

Editado originalmente, em 1963, Crítica impura foi o último livro publicado por Astrojildo. É uma das cinco novas edições de obras lançadas em vida pelo fundador do PCB. A obra reúne textos publicados originalmente em diferentes jornais e revistas e selecionados para compor três eixos temáticos.

A primeira parte é dedicada à literatura, com estudos sobre a vida e obra de autores como Machado de Assis, Eça de Queiroz, Monteiro Lobato, José Veríssimo e outros. Nesse momento, pode-se ver a produção que colocou Astrojildo Pereira entre os principais críticos literários brasileiros.

A segunda parte aborda a China comunista. Nela, Astrojildo Pereira analisa uma série de relatos de viagens sobre o país asiático feitos durante os anos 1950 e 1960. Apresenta-se, então, um militante comunista atento ao processo revolucionário chinês que havia ocorrido há pouco. O último eixo aborda as vinculações entre política e cultura, contextos de intervenção pública que marcaram a trajetória política do intelectual em diversos debates centrais do Brasil na metade do século 20.

O revolucionário cordial

O revolucionário cordial | Arte: FAP
O revolucionário cordial | Arte: FAP

“Astrojildo, aos 37 anos de idade, atravessou de trem o centro do país até a cidade de Corumbá, no Mato Grosso, para depois então, de automóvel, se encontrar nas proximidades da fronteira com o líder tenentista – na verdade capitão que havia em pouco tempo se transformado em general – Luís Carlos Prestes, também conhecido como o ‘Cavaleiro da Esperança’. Astrojildo foi bem recebido pelo revolucionário, que queria notícias do Brasil, e deu uma entrevista para o jornal tenentista que promoveu o encontro. Prestes também ficou com os livros sobre teorias revolucionárias que o líder trazia em suas bagagens. O revolucionário exilado, após ter atravessado o país com uma coluna de soldados dispostos a transformarem o quadro de miséria e atraso do Brasil, leu com atenção aqueles livros todos, e considerou aquele visitante um mensageiro que trazia uma nova possibilidade para seu anseio de transformar o mundo e não apenas derrubar um governo. E este encontro levou Astrojildo a receber uma das maiores e mais fortes críticas dentro do partido, de ser “prestista”. Esta foi uma das justificativas de sua expulsão do PCB, depois de ter sido destituído do cargo de secretário-geral, em 1931”. (Trecho da obra)

A obra O revolucionário cordial é uma tentativa de interpretação da trajetória do intelectual Astrojildo Pereira por meio de seus escritos e sua comunicação, principalmente aquela impressa em livros. O trabalho do historiador Martin Cezar Feijó busca apresentar os escritos militantes do fundador do PCB, marcados por profunda tensão entre a revolução e a modernidade, no período que compreende a Primeira Grande Guerra (1914-1918) e o fim da Segunda Guerra (1939-1945).

O livro analisa a proposta de construção de uma política cultural levantada por Astrojildo Pereira. O projeto de alfabetização proposto por ele levava em conta a cultura popular e preferia chamar à luta um setor da sociedade civil rebelde às imposições do Estado: os intelectuais. Investimento na formação intelectual, moral e estética de todas as pessoas, em condições iguais e democráticas. É a origem de um projeto de política cultural de um revolucionário que leva em conta a memória dos afetos e das dores do país, apontando para um futuro melhor, apesar das adversidades.


Merval Pereira: Machadiano

Merval Pereira, O Globo

À falta de coisa melhor na política, num momento em que a radicalização leva a situações surreais no país, dedico este espaço a um encontro acontecido no leito de morte de Machado de Assis em sua casa no Cosme Velho, que não existe mais pela incúria de nossa política cultural. Um encontro entre um jovem estudante, que se tornaria importante figura da política nacional, e o maior escritor brasileiro.

Foi assim que Euclides da Cunha descreveu o encontro, no Jornal do Commercio de 30 de setembro de 1908:

“Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo.

Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitálo. Relutara contra essa ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograva vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.

E o anônimo juvenil — vindo da noite — foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.

Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida.

Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo — no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.

Ele saiu — e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.”

Estavam reunidos na casa, relata Euclides, grandes intelectuais como Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio. O nome ficou guardado durante muitos anos, até que a escritora Lúcia Miguel Pereira revelou, em 1936, ser Astrojildo Pereira, que viria a se tornar escritor, jornalista, crítico literário e entraria na História do Brasil como fundador do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que completa 100 anos.

Para comemorar a data, a editora Boitempo, em colaboração com a Fundação Astrojildo Pereira, ligada ao partido político Cidadania, comandado por Roberto Freire, o antigo PCB que, depois de um aggiornamento necessário, está, em companhia de PSDB e MDB, em busca de uma saída que supere a polarização entre Lula e Bolsonaro, editou sua obra, que pode ser comprada em uma caixa de seis livros ou separados.

O único dos livros que não é obra dele chama-se “O revolucionário cordial”, em que o historiador Martin Cezar Feijó descreve Astrojildo Pereira como um “revolucionário cordial, à frente de seu tempo, tempo este sombrio, pouco dado a cordialidades, entendida como subserviência ou oportunismo”. Os outros contêm textos sobre a criação do PCB, suas críticas, literárias e políticas, que levaram Francisco de Assis Barbosa a classificá-lo como “um dos nossos mais completos homens de letras, tais a seriedade de sua cultura e a clareza de seu estilo”.

Em sua faceta de crítico literário, Astrojildo Pereira, com outros intelectuais como Nelson Werneck Sodré, liderou o movimento para analisar as obras de escritores brasileiros não apenas nos aspectos formais, mas também sociais na construção dos textos, como salienta o professor de História Luccas Eduardo Maldonado na orelha do livro “Machado de Assis”, que reúne ensaios e artigos publicados esparsamente.

Pois o mesmo José Veríssimo, jornalista, escritor, crítico de literatura brasileira, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que o recebeu à porta da casa de Machado de Assis naquele dia fatídico, foi um dos mais criticados por Astrojildo, por não contextualizar, na análise dos livros, a situação do país em que as tramas se passam. Em Machado de Assis, Astrojildo via um escritor crítico das diversas desigualdades e contradições da sociedade da época.

No texto “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado”, ressalta Maldonado, o futuro fundador do PCB via “na sutileza e ironia” a característica do texto machadiano, “uma série de ácidas críticas à sociedade brasileira do Segundo Império”.

*Texto publicado originalmente em O Globo


Conheça a história da visita de Astrojildo Pereira a Machado de Assis

João Rodrigues, da equipe da FAP

No mês do centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicamos a história do breve encontro entre Astrojildo Pereira e Machado de Assis, um dia antes de morrer. O momento foi descrito por Euclides da Cunha, numa homenagem ao escritor publicado em 30 de setembro de 1908, no Jornal do Commercio.
"Chegou, não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois de algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu", escreveu Euclides da Cunha sobre a visita de Astrojildo Pereira a Machado de Assis.

Confira abaixo o vídeo.




Livro de Machado de Assis é discutido em webinar da Biblioteca Salomão Malina

Histórias sem data, originalmente publicado em 1884, é título que tem justificativa do próprio autor

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Mantida pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) em Brasília, a Biblioteca Salomão Malina realiza, nesta segunda-feira (6), das 18h30 às 20h, webinar mensal do Clube de Leitura Eneida de Moraes para discutir o livro Histórias sem Data, de Machado de Assis. Público em geral poderá participar do evento online, que terá transmissão ao vivo na página da biblioteca no Facebook. O site da FAP e a página da entidade no Facebook fazem a retransmissão em tempo real.

Assista ao vídeo!

https://www.facebook.com/salomaomalina/videos/771527386987258

O webinar será mediado pelo escritor Paulo Souza e pela coordenadora da biblioteca, Thalyta Jubé, que, por meio do whatsapp (61) 98401-5561, vai compartilhar o link do aplicativo de videoconferência a todos que quiserem participar diretamente do webinar, para aparecer no vídeo e interagir com os demais participantes, virtualmente. Perguntas e comentários também poderão ser enviados na página da unidade de leitura no Facebook.

Histórias sem data é reunião de 18 contos de Machado de Assis publicados em periódicos cariocas. A escolha do título do livro é explicada pelo próprio escritor no prefácio de advertência da 1ª edição da obra.

“De todos os contos que aqui se acham há dois que efetivamente não levam datas expressas; os outros a têm, de maneira que este título Histórias sem Data parecerá a alguns ininteligível, ou vago”, escreveu, para continuar: “Supondo, porém, que o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhe pode acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de explicação.”

À primeira vista, como em um prefácio normal, Machado de Assis anuncia sua independência de seu tempo. Com efeito, mais de um século decorrido, verifica-se que o tempo atua a seu favor. Fato indiscutível é que o autor não quer seus leitores presos a qualquer data, nem sequer à descrição que faz de seus próprios personagens.

Histórias sem Data foi publicado, originalmente, em 1884, três anos depois de Memórias póstumas de Brás Cubas e quando o autor provavelmente já idealizava o romance Quincas Borba. Este quarto livro de contos tem todos os ingredientes que fazem de Machado de Assis um contista referência para os demais escritores.

A Biblioteca Salomão Malina tem três exemplares do livro disponíveis para empréstimo. Durante o período da pandemia, é oferecido ao público em geral, sem qualquer custo, o serviço de empréstimo delivery. A solicitação deve ser realizada por meio do whatsapp da biblioteca.

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Política Democrática: Ruy Fabiano fala de Machado como ‘vítima de plágio’

Em artigo de sua autoria publicado em revista da FAP, jornalista lembra relevância do escritor brasileiro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Já se disse quase tudo de Machado de Assis, avalia o jornalista Ruy Fabiano na edição de dezembro da revista Política Democrática. Para ele, pouco, no entanto, se mencionou sobre o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges.

» Acesse aqui a 14ª edição da revista Política Democrática online

A obra de Machado, conforme lembra Ruy Fabiano, começou a ser traduzida para o espanhol exatamente em Buenos Aires, a partir de 1940, quando Borges estava em plena atividade, não só como escritor, mas também como crítico literário e ensaísta. “E o primeiro livro de Machado em castelhano foi, muito a propósito, Memórias Póstumas de Brás Cubas”, afirma o jornalista.

“Carlos Fuentes, no ensaio Machado de LaMancha (Editora Fondo de Cultura, México, 2001), captou essas ‘coincidências’ e registra que o próprio Borges, posto diante delas, as reconheceu, declarando: ‘Por incrível que pareça, acredito que exista (ou tenha existido) outro Aleph’ – a que Fuentes acrescenta: ‘De fato: o de Machado de Assis’, continua o jornalista.

Ruy Fabiano escreve que, como todo artista de gênio, Machado é um ser poliédrico, que pode ser lido e compreendido sob ângulos diversos, que aparentemente se contradizem, mas, ao final, formam uma unidade. “Já se falou das influências francesas, inglesas, portuguesas, alemãs, espanholas, greco-romanas e judaicas na obra de Machado de Assis”, diz o jornalista.

De acordo com o autor do artigo publicado na revista Política Democrática online, já se falou do Machado cético, ateu, irônico, humorista. “Machado apolítico e, inversamente, político; Machado alienado, habitante de uma torre de marfim ou, muito pelo contrário, engajado a seu modo nas questões políticas e sociais do Segundo Reinado, como constatou o crítico e ensaísta Astrojildo Pereira”, completa.

 

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Revista Política Democrática || Ruy Fabiano: O plágio, de Borges a Machado

Já se disse quase tudo de Machado de Assis, avalia Ruy Fabiano. Para ele, pouco, no entanto, se mencionou sobre o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges 

A respeito de Machado de Assis já se disse quase tudo. Quase. Sua gigantesca fortuna crítica, que não para de crescer, é marcada por antagonismos. A controvérsia, que em vida lhe causava tédio, o enriquece e o torna ainda mais esfíngico perante a posteridade.

Como todo artista de gênio, Machado é um ser poliédrico, que pode ser lido e compreendido sob ângulos diversos, que aparentemente se contradizem, mas, ao final, formam uma unidade. Já se falou das influências francesas, inglesas, portuguesas, alemãs, espanholas, greco-romanas e judaicas na obra de Machado de Assis.

Já se falou do Machado cético, ateu, irônico, humorista; Machado apolítico e, inversamente, político; Machado alienado, habitante de uma torre de marfim ou, muito pelo contrário, engajado a seu modo nas questões políticas e sociais do Segundo Reinado, como constatou o crítico e ensaísta Astrojildo Pereira.

Poucos, no entanto, mencionaram (ou mesmo perceberam) o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges. Tudo começa no capítulo VI, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o Delírio, que Eça de Queiroz recitava de cor e proclamava antológico. Nele, Brás descreve sua própria alucinação.

Não bastasse a circunstância singular dessa descrição – já que o delírio interrompe a razão, ao passo que o relato literário é um exercício que exige razão –, seu conteúdo é ainda mais espantoso. E esotérico. Brás, depois de se constatar transformado na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, vê-se arrebatado por um hipopótamo, que o informa que irão “à origem dos séculos”. E o conduz ao alto de uma montanha, de onde, de certo ponto específico, vê passar por seus olhos, como “coisa única” uma redução dos séculos, “um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”.

Faz aí menção a um lugar do Universo em que a história humana – toda ela – estaria armazenada: passado e futuro, unificados num presente contínuo. Para descrever esse desfile dos séculos em turbilhão – diz Machado – seria preciso uma impossibilidade física: “fixar o relâmpago”.

Vejamos agora Borges.

O conto chama-se “O Aleph, talvez o mais festejado de seu magnífico acervo. Na história de Brás Cubas, a perda de uma mulher, Virgília, que o troca por outro, o leva àquele estado delirante.

Em Borges, também uma perda feminina, a morte de Beatriz Viterbo, o leva a encontrar o Aleph, que, na definição do homem que dele lhe dá notícia, um poeta medíocre, que julga louco, chamado Carlos Argentino, é “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”. A mesma ideia de Machado, o mesmo fundamento esotérico.

Para contemplar o Aleph, o observador, em vez de subir ao topo de uma montanha (como Brás), deita-se ao rés do chão, no porão de uma casa em ruínas, prestes a ser demolida, e fixa o olhar numa escada velha. Muda o cenário em que cada personagem se instala, mas não o essencial, o que vê.

O personagem de Borges fixa o olhar na parte inferior do degrau, à direita, e percebe uma pequena esfera furta-cor, o Aleph. A partir daí, o que descreve é uma variante do delírio machadiano.

Diz ele:

“Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo (...). ”

E descreve cenas análogas às de Brás Cubas: o desfile dos séculos, dos impérios, cenas locais de sua cidade, de seu bairro, de seu quarto, mescladas a cenas de outras civilizações e de outras eras, coisas que não entendia, coisas que reconhecia. O Todo em simultaneidade; o relâmpago fixo. A Memória Universal em desfile.

Em um e noutro – em Machado e em Borges –, o tom quase bíblico do relato, à maneira do Apocalipse de São João, igualmente arrebatado, na Ilha de Patmos, por visões místicas, que um psiquiatra não hesitaria em diagnosticar como “alucinações”.

Mas o que é uma alucinação: algo que se vê e não existe ou algo que existe, mas só se vê em estados especiais de consciência, como aqueles que Dostoiévski atribuía às pessoas acometidas de patologias mais graves? Em síntese, é uma ilusão ou uma instância da realidade, acessível e acessável apenas em momentos especiais?

Tais questionamentos permeiam tanto o relato de Machado como o de Borges. Mas há ainda outras coincidências: os personagens Brás e Carlos Argentino evocam seus respectivos países: Brás, de Brasil, e Argentino, de Argentina; e há ainda a semelhança dos nomes Virgília e Viterbo. Atos falhos?

Provavelmente, sim, o que não macula ou diminui a obra de Borges, que é indiscutivelmente original e grandiosa.

Mas, por óbvias razões cronológicas, Borges leu Machado, e Machado não leu Borges. Machado morreu em 1908, quando Borges tinha nove anos. Susan Sontag, no ensaio Vidas Póstumas – O Caso de Machado de Assis, se engana, ao afirmar que Memórias Póstumas só foi traduzido para o espanhol em 1960.

A obra de Machado começou a ser traduzida para o espanhol exatamente em Buenos Aires, a partir de 1940, quando Borges estava em plena atividade, não só como escritor, mas também como crítico literário e ensaísta. E o primeiro livro de Machado em castelhano foi, muito a propósito, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Carlos Fuentes, no ensaio Machado de La Mancha (Editora Fondo de Cultura, México, 2001), captou essas “coincidências” e registra que o próprio Borges, posto diante delas, as reconheceu, declarando: “Por incrível que pareça, acredito que exista (ou tenha existido) outro Aleph” – a que Fuentes acrescenta: “De fato: o de Machado de Assis”.

Maria Esther Vasquez, colaboradora e amiga de Borges por décadas, informou, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1999, por ocasião do lançamento da biografia Borges, Esplendor e Derrota, de sua autoria, que “havia dois escritores de língua portuguesa que ele (Borges) amava: Camões e Machado de Assis”. Borges, porém, nas numerosas entrevistas que concedeu ao longo de sua vida, jamais fez referências a Machado de Assis.

O escritor brasileiro que ele mencionava com frequência era Euclides da Cunha, mais especificamente, seu épico Os Sertões, que considerava obra-prima universal. Citava também dois outros autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz e Camões. Ninguém mais.

É possível que tenha omitido Machado de Assis exatamente para não trair a influência. Euclides da Cunha, estilisticamente falando, nada tem a ver com Borges. Nem muito menos Eça ou Camões. Já Machado tem – e muito. Possuem afinidades de concisão, elegância, ironia e erudição, destilada com critério e precisão, em frequentes citações. Os dois tinham ainda em comum o amor à literatura inglesa. Shakespeare os unia.

E mais: foram ambos leitores de Schopenhauer e mesclaram a visão pessimista daquele filósofo à busca aflitiva de transcendência em seus escritos. Ambos se proclamavam sem religião, mas não sem espiritualidade. A busca do conhecimento, em qualquer nível que se dê, vinculada ou não a uma doutrina específica ou a uma crença religiosa, conduz à religação buscada pelos místicos.

Constitui, pois, ato religioso por excelência – que tanto Machado como Borges souberam cultivar, com genialidade.

 


José de Souza Martins: Capitu traiu?

 

É curioso que, em relação a uma das mais importantes obras da literatura brasileira, "Dom Casmurro", de Machado de Assis, com estranha frequência leitores empaquem na figura de Capitu. Ao término do livro fica em muitos a dúvida: Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar, amigo de ambos? O filho, que tem a cara do amigo e não a do presumível pai, é filho de quem?

Em seminário recente sobre esse livro, no Clube de Leitura da Academia Paulista de Letras, aberto ao público, que ali se reúne toda última quinta-feira do mês, às 18h30, o escritor Luiz Carlos Lisboa chamou a atenção para um julgamento simbólico de Capitu, presidido por um ministro do STF, com a participação de pessoas eminentes. Capitu foi absolvida. Lisboa, erudito autor, sublinhou a distorção que semelhante procedimento representa em face da riqueza própria e característica da obra de Machado.

De fato, a querela em torno da figura de Capitu indica, entre nós, a deformante força da leitura fundamentalista, capturada por uma mentalidade bem nossa, polarizada e binária. Mentalidade que é a grande personagem da sociedade e da política brasileiras até hoje. Ao ler Machado de Assis desse modo redutivo expomos nossos defeitos de compreensão do que somos.

Nossa tendência é a de não ver nem interrogar quem não está no centro do palco dos acontecimentos, os aparentemente meros coadjuvantes, sem os quais as figuras centrais nem podem existir num mundo em que cada um não é mais do que construção da reciprocidade de relacionamentos.

Temos mais dificuldade ainda para perceber e compreender os subterrâneos implícitos das relações sociais, o inconsciente coletivo e mesmo o inconsciente pessoal, a alienação que nos oculta de nós mesmos, as manipulações de que somos vítimas todos os dias e todas as horas na afirmação da trama de interesses e de poderes.

Desconhecemos as invisibilidades que, com o advento da sociedade moderna e de seu sistema de ocultações, já não são os fantasmas da sociedade tradicional. São agentes ativos da vida moderna.

Machado de Assis, preto de ascendência, teve a biografia estratégica de uma socialização limítrofe, entre dois lados, o da sociedade que acabava e o da sociedade que começava. Era o que lhe permitia ver mais e melhor as mudanças e transformações sociais.

Em 1881, em "O Alienista", ele já havia compreendido o abismo imenso que se abria entre Simão Bacamarte, educado na Europa e formado num padrão avançado da medicina, e a interiorana Itaguaí. Na volta ao Brasil, é claro que sua moderna psicologia médica torna-o postiço em relação à sua própria sociedade. Leva-o a ver em todos os habitantes da localidade sinais de loucura, desencaixados seres humanos dos padrões da modernidade que ele supunha representar, fingindo sem o saber.

No final, só ele fica fora do manicômio. Está aí a alienação do alienista, o que enquadra quase todos os outros e só tardiamente enquadra a si mesmo, porque acima da lei e da ordem, do verdadeiro e do falso. A modernidade só subsiste na cultura da mentira não sabida. Mentir e fingir tornaram-se técnicas sociais de sobrevivência. Estamos vendo isso nestes dias. E não é ficção.

"Dom Casmurro" desdobra essa consciência machadiana de que o Brasil mudava, mas mudava nos subterrâneos da consciência social, nas invisibilidades do real. Pela época da publicação de "Dom Casmurro", o país atravessava os momentos mais dramáticos da transição social e política. A escravidão recém terminara, a República postiça fora proclamada. Quase se pode dizer que proclamada pelo próprio Simão Bacamarte.

Não é outra coisa que nos conta a Guerra de Canudos (1896-1897), a República de ficção vendo em pobres moradores do sertão da Bahia subversivos da velha ordem porque não se encaixavam na nova ordem da ficção republicana de cidade grande. A lesão dos parcos direitos dos brasileiros e o enquadramento dos frágeis continuam sendo o grande instrumento da dominação política que nos aprisiona.

Protegido pelos valores ambivalentes do subúrbio, Bentinho também se divide. Condenado por uma promessa da mãe de que seria padre, apaixona-se, na adolescência, pela vizinha, Capitu, com quem se casa depois de passar pelo seminário e de libertar-se da autoridade materna. A suspeita de que Capitu o traíra com o amigo o persegue. O casamento se desfaz no distanciamento que os separa um do outro e do filho.

O fato é que Capitu é irreal, a figuração do medo, próprio da modernidade que desembarcava no porto do Rio de Janeiro. É inútil julgá-la como é inútil procurar a traição numa personagem de ficção. Fomos traídos pela história, que nos impôs ser o Bentinho que somos e nos entrega à tutela de quem não é quem supomos.

* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).