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Eliane Cantanhêde: Candidatura Lula, uma ficção
Logo Lula vai perceber que politizar suas dificuldades na Justiça dá munição a sua tropa, mas não muda a realidade
O relator João Pedro Gebran contou uma história com princípio, meio e fim para comprovar que o ex-presidente Lula ganhou o triplex da OAS em troca de desvios na Petrobras. O revisor Leandro Paulsen discorreu do mensalão ao petrolão para concluir que Lula foi responsável pelos esquemas de corrupção e se beneficiou deles. E o desembargador Victor Laus já abriu sua fala deixando evidente um acórdão por unanimidade.
Foi assim que o TRF-4 ratificou a condenação de Lula pelo juiz Sérgio Moro e ampliou sua pena de 9 anos e meio para 12 anos e um mês, tornando a candidatura Lula à Presidência praticamente uma ficção. Condenado em segunda instância, réu em seis outros processos e indiciado em mais três, Lula não tem a mínima condição de se candidatar nem a ministro do Trabalho na vaga da deputada Cristiane Brasil, quanto mais a presidente.
Como previsto, houve manifestações tímidas a favor da condenação e protestos ruidosos, e vermelhos, contra. Mas o mundo não acabou, o país não parou e a vida continua, com a previsão de recursos na Justiça e uma frenética rearticulação das campanhas, a começar, claro, no PT.
Lula esgotou uma das suas armas mais poderosas tentando “sensibilizar” o TRF-4: a pressão dos movimentos alinhados. Logo vai perceber que politizar suas dificuldades na Justiça dá munição a sua tropa, mas não muda a realidade. Se há sobrevida, é à custa dos recursos no próprio TRF-4, no STJ e no Supremo, mas eles não reabrem a discussão do mérito, do conteúdo do inquérito, apenas possibilitam questionamentos de forma. Esticam a agonia, mas não mudam os fatos e Lula deve concentrar energias para não parar na cadeia.
A grande dúvida é se muitos que apoiam Jair Bolsonaro por medo de Lula se sentirão liberados para opções menos radicais e se os que votam no PSDB pela polarização com o PT buscarão novos caminhos. A saída inevitável do líder das pesquisas mexe bastante o tabuleiro eleitoral, mas o resultado era profundamente incerto com Lula e continua profundamente incerta sem ele.
Merval Pereira: Mais próximo do fim
O Brasil novo que luta para nascer dos escombros da velha ordem patrimonialista se pronunciou ontem em Porto Alegre. A situação do ex-presidente Lula, depois da confirmação unânime de sua condenação pelo TRF-4, pode ser resumida da seguinte maneira: hoje ele está mais próximo da cadeia do que do Palácio do Planalto. Mas, como ainda é a velha ordem que predomina, tudo pode acontecer.
O efeito colateral do julgamento de ontem é que o ex-presidente Lula poderá ser preso nos próximos poucos meses, pois o único recurso que lhe resta, o embargo de declaração, não altera o conteúdo da sentença. A defesa tem que entrar com embargos de declaração até dois dias depois da decisão final publicada.
Geralmente, no TRF-4, os embargos de declaração são resolvidos em 30 dias. A partir daí, a defesa do ex-presidente recorrerá aos tribunais superiores para tentar reverter a decisão de segunda instância, mas, sobretudo, para obter um efeito suspensivo do cumprimento da pena.
Ele provavelmente conseguirá um efeito suspensivo da prisão e da inelegibilidade enquanto recorre simultaneamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), mas seu prazo está cada vez mais curto.
A decisão do STF sobre prisão em segunda instância a torna consequência necessária, e só os tribunais superiores podem liberar o condenado, por meio de habeas corpus ou medida cautelar. A lei vale para todos, e não há regra específica sobre ex-presidentes. Se não fosse assim, haveria discricionariedade e seletividade para decidir quem vai preso.
Se o STF achar que é muito grande a probabilidade de reversão da decisão, pode sustar a prisão. Ao mesmo tempo, a condenação em segunda instância torna o réu inelegível. Existe a previsão, na lei das inelegibilidades, de recurso, que deve ser feito no mesmo momento em que for impetrado no STJ o recurso contra a decisão do TRF-4.
De posse das duas liminares, Lula continuará solto e podendo dizer-se pré-candidato à Presidência da República. O processo sobre a inelegibilidade, no entanto, deve ter prioridade sobre todos os demais no Superior Tribunal de Justiça, e se confirmada a inelegibilidade, Lula poderá ainda recorrer ao Supremo.
Os prazos não são tão curtos que permitam afirmar que ele não poderá registrar sua candidatura. Mas a decisão unânime da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal de Porto Alegre (TRF-4), reafirmando a condenação do ex-presidente Lula e aumentando sua pena para 12 anos e 1 mês em regime fechado, tem um significado fundamental: fica muito difícil um tribunal superior reverter condenação tão contundente, ou mesmo permitir que Lula se candidate subjudice.
Diante de uma decisão tão enfática do TRF-4, o julgamento deve ser uma tarefa dos colegiados dos tribunais superiores, que terão em mente a necessidade de dar ao cidadão-eleitor e ao país segurança jurídica na campanha eleitoral, realizando-o em tempo hábil para que ela transcorra sem dúvidas jurídicas. E dificilmente os tribunais superiores aceitarão desmoralizar uma lei como a da Ficha Limpa, uma ação popular, para beneficiar um candidato.
Nos próximos cinco meses os tribunais terão tempo suficiente para definir a situação de elegibilidade do ex-presidente Lula, antes da realização de convenções partidárias para indicação oficial dos candidatos, prazo que se esgota em 5 de agosto.
Também as alianças partidárias para apoiar a candidatura de Lula perderão a inevitabilidade que pareciam ter. Como se aliar a um candidato que pode ser impugnado mesmo tendo seu nome na urna? Como fechar um acordo com o PT sem saber quem será o candidato do partido, se Lula ou outro poste? E se for um poste, Lula ainda terá força para eleger mais um, depois do fracasso do governo Dilma?
O Brasil parece disposto a bater seus próprios recordes negativos. Nunca na História houve um presidente no exercício do cargo sendo acusado de crimes comuns, como aconteceu com Michel Temer. Mas também nunca antes neste país um ex-presidente esteve nessa situação atual de Lula, e por isso não se sabe como reagirão os tribunais superiores, que mais uma vez decidirão os destinos do país.
Os tempos jurídicos e os políticos podem se desencontrar, a favor ou contra Lula.
O Globo: colunistas analisam o presente e o futuro de Lula
Equipe faz um balanço do julgamento do ex-presidente, condenado a 12 anos e um mês
A equipe de colunistas de O GLOBO faz um balanço do julgamento e analisa o futuro político de Lula.
Lauro jardim: Lula perdeu. E agora?
O TRF-4 foi acachapante. Mas, a partir da decisão destaquarta-feira, nasceu um fantasma que vai assombrar poderosamente a eleição de outubro. O fantasma, naturalmente, é Lula. Sua candidatura recebeu um tiro no peito. Seu protagonismo na eleição, não. Até onde a vista alcança, continuará a comandar o espetáculo. Ao menos nos próximos meses. Ao menos enquanto as pesquisas eleitorais sorrirem para ele.
O PT vai lançá-lo hoje mesmo à Presidência, a despeito de sua condenação unânime — e com “provas fora de qualquer dúvida razoável”, como destacou o desembargador Leandro Paulsen.
Os petistas trabalharão com afinco a estratégia da vitimização, sempre explorada com maestria por Lula. Insistirão no argumento da “falta de provas” — assim como até hoje batem na tecla do “foi golpe”. Nada que tenha consistência. Não importa. A luta política nem sempre se ancora em fatos. O que interessa é arranjar uma palavra de ordem para unir a militância e seguir em frente.
Na estratégia petista, é fundamental que as próximas pesquisas eleitorais o mantenham como líder absoluto. Ainda que perca pontos, não faz sentido crer que sua densidade eleitoral murche a ponto de torná-lo irrelevante. Há um tipo de simpatizante de Lula que não está nem aí para o julgamento de ontem: simplesmente, avalia que todos os políticos são ladrões e que, no tempo de Lula como presidente, vivia melhor. Esse eleitor de Lula não vai às ruas quando ele é condenado, como não foi ontem. Mas quer votar nele. Seus adversários têm que trabalhar duro para desconstruí-lo diante desse eleitorado.
Na dianteira nas pesquisas, Lula deverá rodar o Brasil carregando pelo braço um vice que ele pode tornar popular. Um poste que, no momento certo, pode colocar de pé para receber o voto do seu eleitor. Ou simplesmente apoiar outro candidato à esquerda, como Ciro Gomes.
Nem Lula nem o PT assumirão que serão obrigados a trabalhar um plano B. Seja um vice de Lula ou um candidato de outro partido. Mas é disso que vão ter que tratar a partir de agora, ainda que não assumidamente.
Miriam Leitão: O labirinto eleitoral
O ex-presidente Lula se lançou candidato como parte da estratégia no processo criminal. A ideia é que, se ele ficasse forte politicamente, estaria protegido da Justiça. Nesta quarta-feira, ele foi condenado em um órgão colegiado e por unanimidade. Se Lula puder ser candidato, por alguma brecha legal, ou pelo tempo dilatado do julgamento de recursos, o país estará no seguinte labirinto: um réu não pode ser presidente da República, mas um condenado — e réu em diversas ações — pode se candidatar ao cargo. E, caso vença, todos os processos são suspensos porque os crimes foram anteriores ao mandato. Então quebra-se o princípio constitucional. Se a Justiça eleitoral for lenta, leniente ou falha, o país estará em situação perigosa.
A candidatura do presidente Lula tem agora poucas perspectivas. O PT disse que vai mantê-la, mas, se não acionar logo um plano B, é o grupo político que estará numa armadilha. O cenário possível é de prisão de Lula, ao fim dos embargos de declaração, que, como se sabe, são apenas para esclarecer pontos obscuros. São poucos e mais rapidamente julgados. A ordem do desembargador Leandro Paulsen já foi dada ontem: assim que forem esgotados esses recursos, o juiz de primeira instância deve expedir a ordem de prisão. O PT diz que vai “radicalizar” e que não reconhece as decisões da Justiça. Qual o próximo passo? O partido precisa ter a resposta para essa pergunta, por estratégia de sobrevivência.
Os desdobramentos desse caso colocam em questão muito mais do que o futuro do Partido dos Trabalhos ou o destino do ex-presidente Lula. O Judiciário terá que desatar o nó criado por desencontros legais. Parece óbvio que um réu em diversas ações não pode concorrer à Presidência. A Lei da Ficha Limpa socorre em parte esse imbróglio por estabelecer que o réu que for condenado em segunda instância não pode ser candidato, após todos os recursos. Mas os tribunais superiores precisam ser mais efetivos na proteção da Presidência da República. Ela não pode ser o esconderijo perfeito de um condenado da Justiça.
Gabeira: O momento da verdade
A esquerda sofre o primeiro grande baque na sua tática de contornar os escândalos revelados, em vez de buscar o caminho mais longo e doloroso de reconhecimento dos fatos e uma tentativa de renovação.
Foi uma escolha voluntarista. Saltar a montanha de evidências — milhões de dólares devolvidos, delações, ruína da Petrobras — só era possível através da politização nebulosa. O grande processo de corrupção foi narrado como uma conspiração da Justiça e articulada com uma imprensa manipuladora
O segundo passo Lula tomou ao se declarar candidato. Agora a conspiração da Justiça e da imprensa não era mais do que uma tentativa de barrar sua candidatura.
Mas os fatos estavam aí. A previsão otimista da tática era despertar um grande processo popular, através da pré-campanha, de apoio ao líder perseguido. Isso não aconteceu. Só foi possível reunir militantes e movimentos sociais a partir de um estímulo vertical.
Na medida em que isto não acontecia, a tendência foi a de elevar o tom, de radicalizar verbalmente. A senadora Gleisi Hoffmann chegou a afirmar que muita gente ia morrer. Quem ia morrer? O porteiro do TRF-4?
O senador Lindbergh Farias disse também que era preciso uma esquerda de combate, e que aqueles que defendiam a condenação de Lula iriam encontrá-los preparados para a luta na rua.
Quando José Dirceu afirmou que era preciso bater o adversário nas urnas, visava a um adversário específico, tanto que Mário Covas foi a vítima.
Mas como realizar esse combate, se as pessoas que querem a condenação de Lula estão vivendo sua vida normalmente, alheias ao roteiro dramático de Lindbergh. A única maneira seria sair por aí, nos bares, nas praças, perguntando quem é a favor da condenação de Lula e, aí então, sair na pancada.
Esse movimento de fé acabaria, como quase todos, em visões dessas que aparecem quando desejamos muito.
A senadora Gleisi Hoffmann viu um defensor de Lula na torcida do Bayern de Munique. Era apenas um cartaz dizendo “Forza, Lucca”, um torcedor ferido num estádio europeu.
O deputado José Guimarães viu num comboio de sacoleiros rumo à fronteira os ônibus de apoiadores de Lula.
E a deputada Maria do Rosário usou a previsão de um tsunami nos Estados Unidos, marcado em vermelho no mapa meteorológico, com ondas gigantes que chegariam ao Guaíba. Neste caso, estava sonhando através da ironia.
Para quem apontou em inúmeros artigos o desvio da política para a defesa religiosa de um líder, isso não é uma surpresa. O choque da realidade chegou. Vamos ver como reage a torcida do Bayern.
Casado: As vítimas da Lava-Jato
Foi uma jornada singular: mais de nove horas de cenas explícitas (ao vivo) de julgamento de um ex-presidente da República, dois ricos empreiteiros e um antigo burocrata do sindicalismo, num caso criminal que é notável exceção na tradição judiciária brasileira: não há réus pobres na Lava-Jato. O juiz relator Pedro Gebran Neto lembrou: “Não estamos tratando de pobres, miseráveis ou descamisados que usualmente são os destinatários das ações penais no Brasil”.
Os processos da Lava-Jato contrariam o senso comum sobre a velha ideia de Justiça no Brasil. Nele, as vítimas são os pobres, ampla maioria da população — a quem os governantes têm o dever constitucional de servir e defender, principalmente na gestão dos negócios públicos.
Nesta quarta-feira, a Petrobras estava na bancada de acusação em Porto Alegre. Seus representantes evocaram o histórico de 64 anos da companhia, incensado num nacional-estatismo em nome dos pobres, que ainda hoje alimenta sonhos de poder de grupos autoproclamados de esquerda.
A empresa estatal declarou-se “vítima” de um ex-presidente, dono de uma biografia épica de migrante pernambucano que chegou ao Sul e ascendeu à elite nacional como ex-operário e sindicalista, depois de se arriscar na liderança de greves em desafio à ditadura, a empresas e à burocracia sindical cevada na tesouraria governamental desde a era Vargas. Ele se moveu como um líder ungido para renovar o modo de fazer política no país. A Petrobras apoiou o Ministério Público, que assim resumiu a acusação: “Lamentavelmente, Lula se corrompeu”.
O ex-presidente acorda hoje como um “ficha-suja” na política. É a consequência jurídica prática da condenação unânime no tribunal federal, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro de propina da construtora OAS em troca de negócios favorecidos com a Petrobras.
Seu futuro como candidato do PT na eleição de outubro é tão incerto quanto o início do cumprimento da pena que recebeu (12 anos e um mês de prisão).
É como Lula dizia na sua primeira campanha presidencial, em 1989: “A corrupção e a existência de concorrências ilícitas não são novidade. Novidade acontecerá no dia em que alguém for para a cadeia”.
Ancelmo Gois: Lula e seus demônios
Boa parte da plateia que vai assistir a “Caravanas”, a nova turnê de Chico Buarque, tem cantarolado “Olê, olê, olê, olá/Lula, Lula”. Sempre se pode dizer — e é verdade — que aquele público que pagou ao menos R$ 220 para assistir ao grande artista e simpatizante petista não é representativo da sociedade brasileira. Mas é verdade também que Lula, desde que resolveu politizar o julgamento no TRF-4, tem conseguido recuperar um pouco dos corações e das mentes de sua militância, notadamente da classe média. Ainda assim, essa militância não conseguiu, ontem, encher as ruas, como ocorria em outros carnavais.
Vamos combinar que Lula não tinha muita saída. Ele, como todo mundo que acompanha a Lava-Jato, sabia de antemão que muito dificilmente seria absolvido. Afinal, Porto Alegre vem referendando nove em cada dez decisões de Curitiba. Desde que foi marcado o julgamento de ontem, Lula tinha, então, duas opções. Uma era ir calado para o matadouro gaúcho. A outra, que prevaleceu, foi botar o bloco na rua. Vem daí a volta das caravanas por todo o país e a montagem de uma rede de apoio à sua causa aqui e no exterior. Essa mobilização não deve refluir com a condenação de ontem. Talvez até aumente a partir de hoje.
Ou seja: Lula conseguiu fazer as pazes com a militância. Falta fazer as pazes com sua biografia.
O que ficou claro nas mais de nove horas de julgamento desta quarta-feira, em Porto Alegre, é que o nosso maior líder popular, e que tem uma admirável capacidade de sobrevivência, é, entretanto, promíscuo, para dizer o mínimo. Nomeou para a Petrobras uma diretoria cheia de gatunos.
Também impressionou no voto dos três desembargadores como Lula era queridinho e íntimo de Léo Pinheiro, da OAS, assim como de outros empreiteiros. Aceitou favores mesmo sabendo que essa turma não tem amigos políticos. Tem interesses.
É esse tipo de fantasma do passado que Lula terá de carregar pelo resto da vida.
Eugênio Bucci: A Justiça obscura e sua tragédia
Ao confirmar a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no processo do tríplex do Guarujá, o TRF-4 enveredou por uma retórica obscura e aprofundou o abismo entre o Judiciário e o povo. O brasileiro médio não entendeu nada, o que é uma tragédia. Quando soa incompreensível para o senso comum, com decisões baseadas em circunvoluções processualísticas e pouco lastreadas em fatos evidentes, a Justiça ganha ares de lâmina idiossincrática e as instituições perdem credibilidade.
A conduta criminosa atribuída ao ex-presidente, no caso, não se traduziu na vida prática. Aí está o problema. Lula teria sido agraciado com uma promessa de propina imobiliária (numa improbabilíssima forma de suborno), mas — atenção — a promessa não se cumpriu: ele nunca recebeu ou usou o imóvel, que nunca foi transferido para o seu nome ou de seus parentes. Que ato ilícito ele praticou, então, se não tomou posse do tríplex? Haja hermenêutica.
Não que o líder petista esteja acima de qualquer suspeita. Não está. Basta lembrar o sítio de Atibaia, embelezado por empreiteiras dirigidas por agentes corruptores, do qual Lula usufrui sem pejo. Refestelado em sua “dacha” tropical, ele incorreu, se não em crime, num conflito de interesses que o descredencia aos olhos de quem preza a ética pública.
O tríplex é um imbróglio diferente, sem amparo em fatos tão clamorosos. Daí resulta a tragédia. Na falta de outra explicação plausível, o cidadão é levado a crer que o que condenou Lula não foi um julgamento jurídico, mas uma conspiração política de nervuras kafkianas, efetivada em tempo recorde.
Agora, o Lula condenado vai brilhar mais que o Lula candidato. A narrativa de que o PT é vítima de um golpe de Estado vai crescer. Lembremos que o impeachment de Dilma Rousseff padeceu do mesmo vício de obscuridade: o alegado “crime de responsabilidade”, descrito por meio de tecnicalidades indecifráveis, nunca foi entendido pelo público. Pior: desconfianças muito mais graves pairam sobre Michel Temer — e este, não obstante, segue incólume. A sensação de que a Justiça brasileira tem lado se alastra.
Ricardo Rangel: 4 a 0
A Justiça seguiu seu curso e condenou um criminoso. Deveria ser banal, mas é um assombro, porque o réu foi, por duas vezes, presidente da República; porque é o candidato favorito a presidente; pela profusão de ameaças e intimidações contra os juízes; pela tradição nacional que, até ontem, garantia a impunidade a ricos e poderosos; porque o réu é, para tanta gente, um mito.
A condenação de Lula é exemplar e indiscutível: o tribunal foi unânime e ainda majorou a pena. E vale lembrar que, como Moro, foi cauteloso e reconheceu apenas dois dos 71 crimes imputados a Lula pelo MP. Lula foi condenado por quatro juízes em duas instâncias: a tese de que o ex-presidente é uma vítima não é apenas risível: é surreal.
A condenação de um criminoso, no país da impunidade, é motivo de comemoração, mas a condenação de um ex-presidente é motivo de pesar. Como pudemos nos enganar tanto, a ponto de reelegê-lo depois do mensalão? Como pudemos lhe dar incríveis 80% de aprovação? Como pudemos eleger uma presidente incapaz só porque foi indicada por ele?
Olhando para frente, Lula está acabado. Ninguém no Supremo vai se dispor a criar uma crise institucional só para salvar uma candidatura ilegal e que não interessa a quase ninguém. Sem a candidatura, é difícil impedir sua prisão.
Tancredo Neves dizia que político acompanha o cortejo fúnebre até o fim, mas não entra na sepultura junto com o defunto. Todos os políticos sabem que Lula está moribundo, e cada um vai seguir com seu projeto pessoal: em breve, não sobrará ninguém ao lado do ex-presidente.
Do ponto de vista de saúde da democracia, é positivo que Lula esteja fora. Era um escárnio que alguém tão suspeito fosse candidato. A ausência de Lula na cédula confere respeitabilidade ao pleito.
Do ponto de vista prático, a ausência de Lula na disputa diminui muito as chances do anti-Lula. Tudo sugeria, até ontem, que o segundo turno deveria se dar entre Lula e Jair Bolsonaro. Sem Lula, o candidato moderado, seja quem for, tem uma boa chance. O que é ótima notícia.
Cora Rónai: Feito pessoas comuns
Nesta quarta-feira, manifestantes pró-Lula fecharam estradas em São Paulo, ocuparam Porto Alegre, fizeram comícios. Todos diziam lutar “pela democracia”, o que prova que mesmo as palavras mais claras e inequívocas podem ter o seu significado distorcido ao sabor das conveniências. A verdade é que ontem a democracia saiu fortalecida do tribunal onde, pela primeira vez na História deste país, um ex-presidente da República viu confirmada a sua condenação por atos de corrupção. Por mais que a defesa e o PT tenham politizado o julgamento, por mais que intelectuais e políticos estrangeiros participem de abaixo-assinados a favor de Lula, o fato é que ele foi condenado pela falta de lisura da sua relação com o famigerado tríplex, um crime sem qualquer tintura — ou grandeza — ideológica.
Lula não foi condenado por ser Santo Lula, o representante máximo dos despossuídos; foi condenado porque continuou com as práticas pouco democráticas que se repetem no Brasil desde os tempos coloniais, práticas que ele tanto atacou antes de chegar ao poder.
É essencial para o bom funcionamento de uma democracia que todos sejam iguais perante a lei, assim como é essencial que todos os funcionários públicos, do mais humilde ao mais graduado, percebam que servem aos cidadãos que pagam os seus salários, e não a si mesmos, a seus amigos ou correligionários. Lula, cuja vida prática sempre esteve envolta em mistérios e incongruências, de apartamentos e jatinhos emprestados a sítios suspeitos e familiares que enriqueceram do nada, se esqueceu completamente disso, se é que algum dia soube.
Não é o único, nem a sua eventual prisão vai, sozinha, endireitar o país. Há muita gente solta que já devia estar presa há tempos, e há, ainda, a excrescência que é o foro privilegiado, que de ferramenta de proteção contra o autoritarismo se transformou em garantia de bandidos. Mas a decisão do TRF-4 aponta para um futuro melhor, para um Brasil sem cabeças coroadas, onde os poderosos responderão pelos seus atos como todos nós, mortais comuns, respondemos — ou deveríamos responder.
Diego Escosteguy: Rumo ao cárcere
Tornou-se altamente provável — quase uma certeza jurídica — a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E ela não tarda. Salvo uma reviravolta processual sem precedentes no passado recente, a prisão do petista, uma consequência do cumprimento provisório da pena após a condenação em segunda instância, transcorrerá em, no máximo, dois meses. É o tempo previsto para a análise do último recurso à disposição da defesa de Lula perante o TRF da 4ª Região.
Entre a cúpula da Lava-Jato e juízes do caso em diversas instâncias, não há dúvida de que esse recurso, os chamados embargos de declaração, não mudará, em nenhum sentido, a decisão unânime e severa tomada ontem pelos desembargadores. Ao avaliar esse último recurso, os desembargadores devem seguir o padrão acolhido em casos semelhantes — e decretar o início do cumprimento provisório da sentença. Essa decisão inclui a prisão imediata do condenado. No caso, de Lula.
É o relógio da análise sobre os embargos de declaração que passa a contar o tempo para a provável prisão de Lula. Caso essa decisão se confirme, a defesa do petista tem um percurso dificílimo para revertê-la. O ministro Felix Fisher, relator do caso no Superior Tribunal de Justiça, costuma manter as decisões das instâncias inferiores.
Sobraria a Lula recorrer, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal. Eis a última barreira do petista: o ministro Edson Fachin, relator do caso dele no tribunal. Qualquer recurso, o que inclui um habeas corpus, cairá com ele. E Fachin também tem sido rigoroso. O ministro já manteve, em numerosas ocasiões, o entendimento do STF de que vale o cumprimento provisório da pena após condenação em segunda instância. O que vem a ser precisamente o caso de Lula.
Restaria ao petista uma última tentativa, ao plenário do STF. É o recurso do recurso do recurso — do recurso. Se os ministros mantiverem a posição da Corte e não identificarem alguma violação aos direitos do ex-presidente, não haverá mais apelação. Lula estará encarcerado. E não será candidato.
Míriam Leitão: A tese da República
O centro da decisão de ontem do TRF-4 foi que o crime de corrupção é mais grave quando cometido pela pessoa que ocupa ou ocupou a Presidência. O que o ex-presidente Lula colocou em risco foi mais que o “patrimônio da Petrobras”, mas “o Estado Democrático de Direito”. Essa foi a tese do desembargador João Pedro Gebran Neto, reafirmada pelos desembargadores Leandro Paulsen e Victor Laus.
Quem preside a República enfeixa sonhos e esperanças, tem poderes concedidos pelos cidadãos através do voto, a autoridade de conduzir a Nação. É por isso que, se cometer crimes, ele tem “culpabilidade extremamente elevada”. Isso fez subir a pena de Lula. Num país com democracia em construção, em que dois presidentes sofreram impeachment no espaço de 24 anos, esse é um ponto fundamental.
A grande pergunta é o que acontece agora? A ordem do desembargador Leandro Paulsen foi a de que o juiz Sérgio Moro, assim que se esgotarem os recursos, determine o cumprimento da pena, ou seja, a prisão em regime fechado do ex-presidente. Fontes da área judicial, que acompanham o processo, acham que o STJ pode manter esse entendimento, mas o STF pode ser levado a reabrir a questão da prisão em segunda instância. O tema ronda o Supremo. A ministra Cármen Lúcia não colocou o assunto de volta porque a decisão foi tomada muito recentemente. Mas o ministro Gilmar Mendes quer que o assunto volte ao plenário. É mais uma ironia, da sempre surpreendente história brasileira, que Gilmar Mendes se transforme na esperança do PT.
Um ponto central do debate em torno do julgamento do caso do Triplex do Guarujá foi a existência ou não de provas. Os defensores de Lula sempre disseram que não havia provas, já que não haveria documentos da propriedade. Os desembargadores disseram que, ao contrário, existem provas abundantes, diretas, indiretas, materiais e testemunhais de que o apartamento estava destinado a Lula, foi reformado para atender às demandas da família e que estava no nome da OAS por um pedido para se esconder a propriedade. O que aconteceu ontem fortaleceu o trabalho do juiz Sérgio Moro, porque a sua sentença foi confirmada pelos três desembargadores que analisaram o recurso do ex-presidente. Toda a sua linha de raciocínio e suas decisões foram mantidas.
A estratégia da defesa, durante o processo, foi construída em cima de três movimentos. Primeiro, afirmar que não havia provas, segundo, arguir a suspeição do juiz Sérgio Moro e a falta de competência da 13ª Vara. Terceiro, apresentar Lula como uma vítima de perseguição política. Essa politização estimulou manifestações de militantes. A campanha antecipada aumentou as intenções de voto. Tudo parecia estar dando certo. Mas ontem ficou claro que a politização não melhorou a chance no tribunal. Como disse Gebran Neto, houve um momento em que Lula teve o direito de falar por vinte minutos diante do juiz Sérgio Moro e ele escolheu fazer afirmações “sem qualquer utilidade jurídica”.
Gebran começou seu voto derrubando todas as preliminares da defesa, e neste ponto mostrou os erros da estratégia dos advogados do ex-presidente. Cristiano Zanin insistiu em questões já julgadas pelo mesmo tribunal, em recursos que ele mesmo havia movido anteriormente. A queda das preliminares foi confirmada pelos outros juízes. Gebran Neto mostrou exemplos de falta de sentido nas teses da defesa. Um deles: os advogados, certa vez, quiseram recusar documentos da Petrobras alegando que foram fornecidos por meio eletrônico e não em papel. “Todo o processo aqui é eletrônico”.
Na discussão de mérito, além de derrubar as alegações de falta de provas, não foi considerado o argumento de que faltou um ato de ofício. Isso foi exaustivamente discutido no mensalão, o entendimento majoritário do Supremo neste caso é que não é necessária uma decisão específica que beneficie a empresa corruptora, mas o conjunto de decisões de quem tenha poder.
O grande princípio consagrado ontem foi o de que quem ocupa a Presidência da República tem que zelar com mais rigor para que não ocorram desvios de recursos públicos. “Sua excelência em algum momento perdeu o rumo”, disse Laus. Que isso sirva de aviso aos governantes.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Valor Econômico: "O jogo começa agora", afirma FHC
Encerrado o julgamento do ex-presidente Lula pelo TRF da 4ª Região, com surpreendente unanimidade na condenação e na extensão da pena para 12 anos e um mês a ser cumprida em regime fechado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comentou: "O jogo começa agora". Referia-se à composição das forças políticas para as eleições presidenciais de outubro.
Por Claudia Safatle
FHC falou ao Valor sobre o futuro da política sem a eventual presença da figura quase mitológica de Luiz Inácio Lula da Silva na disputa. Antes, porém, lamentou a situação em que se enredou o maior líder dos trabalhadores que o país já conheceu, condenado por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, sob risco de ser levado à prisão ou de ter que pedir asilo a algum outro país.
Sem a candidatura de Lula, é bastante provável que murche a do seu extremo oposto, deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), e que o centro se organize melhor para concorrer, seja com Geraldo Alckmin, governador de São Paulo pelo PSDB, ou com algum outro candidato.
Fernando Henrique não vê espaço para "outsiders" na disputa da Presidência da República. Também não considera o apresentador de TV Luciano Huck definitivamente fora do páreo. "Luciano não desistiu", disse FHC, de quem é amigo. Para se colocar na disputa, porém, o apresentador terá que mostrar-se capaz de sensibilizar os outros partidos mais alinhados com o centro, a exemplo do PPS, presidido por Roberto Freire.
Fernando Henrique está ciente da falta de preparo do apresentador para enfrentar as artimanhas e ardis dos políticos profissionais do Congresso. "Gosto do Luciano, sou amigo da família, mas ele é muito cru para ser presidente da República", salientou. "Não acho que ele seja a maior possibilidade". O ex-presidente, no entanto, avalia que se a candidatura de Alckmin não se firmar abre-se espaço para o apresentador de TV concorrer.
O fato é que, para FHC, após o resultado do julgamento de Lula, ontem, "as forças políticas vão se acomodar à nova realidade". Até então, não havia certeza sobre qual seria a decisão dos três desembargadores da 8ª Turma do TRF da Região Sul.
Para além das implicações no cenário eleitoral deste ano, porém, Fernando Henrique enxerga em todo o processo que culminou com a condenação de Lula a possibilidade de engendrar mudanças, levando o país a alterações mais profundas nas regras políticas que permitem, por exemplo, a existência de mais de trinta partidos políticos. "Não há como governar com essa quantidade de partidos", atesta ele, com a experiência de quem governou por oito anos e também se incomodou com denúncias de compra de votos no Congresso.
Há uma crise de representação no mundo ocidental. As economias vão bem, mas a tecnologia não gera, ao contrário, destrói empregos e cria um grande e complicado problema distributivo. "Os políticos fecham os olhos" para essas questões, disse FHC. No Brasil são 5.700 municípios sem dinheiro, o Rio de Janeiro está se desmilinguindo. "Pode ser otimismo meu, mas a crise que vivemos sem muita comoção social vai deixar resultados", disse ele.
Matias Spektor: No exterior, julgamento de Lula atrai idiotas úteis
Vladimir Lênin (1870-1924) chamava de "idiota útil" o cidadão de uma democracia liberal que se deixava enganar pela propaganda do regime soviético. Comprando os argumentos do Kremlin, o idiota útil dava à Moscou um verniz de legitimidade.
Em pleno século 21, o fenômeno do idiota útil continua vivo. No Brasil, sua expressão à direita é o "bolsominion", cuja simpatia pelo deputado o faz ignorar o uso indevido do auxílio-moradia. No centro e à esquerda, é o cidadão impermeável às evidências sobre os abusos cometidos por PT e PSDB durante 20 anos no poder.
A cabala de idiotas úteis sempre teve tração no exterior. À esquerda, seu expoente mais sofisticado é Perry Anderson, liderança intelectual há muitas décadas. Em dois longos artigos publicados na respeitável "London Review of Books", em 2011 e 2016, Anderson embalou as teses petistas a respeito do mensalão e da Lava Jato para um leitorado estrangeiro. Segundo a versão dos fatos ali apresentada, Luiz Inácio Lula da Silva teria despertado a raiva das elites arcaicas do Brasil devido à sua agenda reformista. Os representantes do atraso, assustados, teriam lançado uma ofensiva jurídica injusta contra o ex-presidente. A ilegalidade verdadeira não teria sido cometida pelo grupo do poder, mas pelos supostos "justiceiros" da linhagem do juiz Sergio Moro.
Essa linha ganhou força nos últimos dias. Geoffrey Robertson, jurista renomado, assistiu ao voto do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) e sentenciou: "Lula está sendo perseguido e não processado". O problema, afirmou, está com Moro, um "egomaníaco". Em Washington, 12 deputados democratas assinaram um texto denunciando um suposto complô para tirar Lula da corrida presidencial por meio de um tribunal de exceção.
Nas páginas do jornal "New York Times", Mark Weisbrot ensaiou um argumento similar. Segundo ele, a verdadeira ameaça à democracia brasileira não viria de uma classe política viciada em ilegalidade, mas de Sergio Moro e caterva. Uma eleição sem Lula, conclui, seria fraude.
As denúncias que existem contra Lula sobre tráfico de influência e outros crimes não devem ser descartadas de antemão. O ex-presidente ainda precisa dar respostas às questões apresentadas e terá a chance de fazê-lo com todas as garantias de defesa no processo do tríplex e nos outros que virão. Você pode ter um compromisso moral e político com os ideais de esquerda e, ao mesmo tempo, defender a tese segundo a qual Lula e seu grupo devem explicações à Justiça.
O problema com o idiota útil é que seu preconceito precede a dúvida e as evidências. Isso sempre foi –e continua sendo –uma ameaça de esquerda ou de direita à democracia.
* Matias Spektor é doutor pela Universidade de Oxford e ensina relações internacionais na FGV. Escreve às quintas.
Merval Pereira: Tentativas vãs
A última tentativa da defesa é pedir, alternativamente à absolvição, a prescrição dos crimes, que teriam acontecido em 2009. No entanto, na sentença condenatória, o juiz Sergio Moro argumentou expressamente, nos itens 877 e 888, que parte dos benefícios materiais foi disponibilizada em 2009, quando a OAS assumiu o empreendimento imobiliário, e parte em 2014, quando das reformas e igualmente, quando em meados daquele ano, foi ultimada a definição de que o preço do imóvel e os custos das reformas seriam abatidos da conta-corrente geral da propina, segundo José Adelmário Pinheiro Filho. Foi, portanto, escreveu Moro, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente.
Nessa linha, o crime só teria se consumado em meados de 2014, e não há começo de prazo de prescrição antes da consumação do crime. A tentativa de sustar o julgamento do recurso contra a condenação do ex-presidente Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro devido à penhora do tríplex do Guarujá, determinada por uma juíza de Brasília, é exemplo da forma como o caso está sendo politizado pela defesa.
A juíza Luciana Corrêa Tôrres de Oliveira, da 2ª Vara de Execuções de Títulos Extrajudiciais do Distrito Federal, apresentada pelos blogs petistas como apoiadora nas mídias sociais do PSDB e, portanto, isenta na decisão que supostamente dava uma prova inconteste de que o tríplex não era de Lula, e sim da OAS, teve que divulgar uma nota oficial para colocar as coisas em seus devidos lugares.
Começou esclarecendo que “a penhora do imóvel tríplex, cuja propriedade é atribuída ao ex-presidente da República na Operação Lava-Jato, atendeu a pedidos dos credores em ação de execução proposta contra a OAS Empreendimentos SA e outros devedores”.
Ela ressalta em sua nota “(...) que cabe ao credor, e não ao Judiciário, a indicação do débito e bens do devedor que serão penhorados e responderão pelo pagamento da dívida, conforme o atual Código de Processo Civil.”
Esse procedimento, evidentemente, não pode ser desconhecido pelos advogados de Lula, que mesmo assim decidiram levar adiante a farsa como se a juíza tivesse escolhido, entre os imóveis da construtora OAS, aqueles que seriam penhorados.
A juíza explicou em sua nota que “tal decisão não emitiu qualquer juízo de valor a respeito da propriedade, e nem poderia fazê-lo, não possuindo qualquer natureza declaratória ou constitutiva de domínio. Trata-se de ato judicial corriqueiro dentro do processo de execução cível, incapaz de produzir qualquer efeito na esfera criminal”.
Esse também é um esclarecimento que não precisaria ser dado a advogados minimamente competentes. Além de tudo, o imóvel não é nem mais da OAS, pois foi confiscado na sentença de condenação do expresidente pelo juiz Sergio Moro, está sequestrado criminalmente, sequer poderia ter sido penhorado. Por isso, já foi retirado da lista de imóveis passíveis de penhora.
Como se sabe, a acusação contra o ex-presidente não é de que a propriedade formal do tríplex seja dele, e sim que, ao contrário, ele seria o proprietário de fato, com situação encoberta por artifícios justamente para esconder o produto de um crime. Daí a condenação por lavagem de dinheiro.
Mesmo assim, os advogados do ex-presidente apresentaram o termo de penhora e a matrícula atualizada do Cartório de Registro de Imóveis do Guarujá, onde consta certidão sobre o empenho, como se esses documentos reforçassem a tese de que a “propriedade do imóvel não apenas pertence à OAS Empreendimentos — e não ao ex-presidente Lula —, como também que ele responde por dívidas dessa empresa na Justiça”.
Outra prova (sem trocadilho) de que os apoiadores de Lula estão tontos, em busca de uma saída contra a condenação, é a mudança do mantra que vinham repetindo há meses. Agora, em vez de “cadê as provas?”, histericamente brandido como argumento irrefutável, afirmam simplesmente que “não há crime”.
Deram-se conta tardiamente de que argumentar que não há provas implicitamente é uma admissão da possibilidade de que Lula não seja inocente, apenas não se consegue apanhá-lo por falta de provas.
Rubens Barbosa: A candidatura Lula
Vencido politicamente, o espectro petista que ronda o Brasil poderá ficar afastado de vez
A decisão do tribunal de Porto Alegre (TRF-4) sobre a manutenção ou não da condenação do ex-presidente Lula, a ser conhecida amanhã, não põe um ponto final numa das incertezas políticas do quadro eleitoral. Ao contrário, começa um longo processo de judicialização que não deverá terminar antes das eleições de outubro. Segundo vozes experientes e abalizadas nas tecnicalidades processuais, apesar da confirmação da condenação, Lula – sempre amparado por decisões judiciais – poderá ser indicado como candidato na convenção do PT, ser registrado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em agosto e estar com seu nome nas urnas eletrônicas. Comitês populares que se atribuem a defesa da democracia e o direito de Lula ser candidato, criados pelo PT, somados às declarações radicais de lideranças petistas poderão estimular um clima de insegurança e violência no País.
A partir do resultado do julgamento, o Brasil viveria uma situação paradoxal. Um candidato condenado pela Justiça, com registro eleitoral obtido por decisões judiciais, poderá ser votado e eventualmente eleito, não podendo, contudo, ser empossado, por força da lei das inelegibilidades (Lei da Ficha Limpa), a menos que haja decisão do STF em contrário.
Sempre fui favorável a que Lula pudesse ser candidato este ano, de modo a evitar que o líder petista tenha sua imagem de mito reforçada e continue com seu discurso de vítima de um golpe e impedido de disputar a eleição presidencial pelas forças de direita. E possa repetir o mantra da ilegitimidade do novo governo eleito, porque este teria ganho “no tapetão”, por pressão das elites rentistas contra os pobres e oprimidos, abrindo espaço para mais quatro anos de paralisia do governo e do Congresso Nacional.
Nesse contexto, a entrevista concedida por Lula no dia 20 de dezembro, apesar da grande repercussão na mídia escrita, passou sem uma análise mais detida. Em duas horas de conversa com a imprensa, dizendo-se não radical, criticou fortemente ex-aliados que votaram pelo impedimento de Dilma Rousseff e, em especial, as novas políticas do governo Temer. Populista, Lula defendeu a valorização do salário mínimo, o forte papel do Estado investidor e indutor do crescimento, a expansão do crédito, a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos e a federalização do ensino médio, como se sua política econômica não fosse novamente quebrar o País. Acusou o programa de privatização de venda irresponsável do patrimônio público, condenou duramente a reforma trabalhista e não apoiou as da Previdência e a tributária, como estão sendo discutidas agora. Criticou sem muita convicção o combate à corrupção, dizendo que o dinheiro no exterior não foi recuperado, foi apenas legalizado, e defendeu a tese bolivariana do referendo revocatório. Na política externa, propôs retomar todas as “iniciativas altivas e ativas” que isolaram o Brasil e fizeram com que a voz do País deixasse de ser ouvida nos organismos internacionais. Em linhas gerais, defendeu de forma enfática as políticas dos 15 anos dos governos petistas e apresentou-se mais uma vez como o salvador da Pátria, com uma prometida carta aos brasileiros com as mesmas políticas dos últimos anos.
Minha convicção de que Lula deve ser candidato foi reforçada por essa entrevista, verdadeira plataforma e programa de governo. Alguns viram em tais declarações, muito radicais para uma eleição presidencial, o reconhecimento de que sua candidatura deverá ser impedida e que se trataria de plataforma política para eleger uma bancada petista no Congresso. Não creio que suas declarações tenham sido uma jogada tática, sinalizando ter jogado a toalha para a eleição presidencial. Minha percepção é a de que quis, mais uma vez, delimitar seu campo de ação, confiando na estratégia do “nós contra eles” e mostrando aos seguidores que, apesar das acusações de corrupção, ele e o PT mantêm todas as políticas que, na visão do partido e do candidato, deram certo.
Será importante que Lula possa concorrer para que a sociedade brasileira se manifeste sobre seu programa de forma definitiva. São inegáveis alguns avanços, nos governos petistas, na área social. Mas, sobretudo no segundo mandato de Lula e no governo Dilma, políticas econômicas equivocadas foram responsáveis pela profunda crise econômica e social em que o Brasil foi lançado. Não se podem ignorar os 14 milhões de desempregados, a grave crise fiscal e a maior recessão da História. Derrotadas politicamente, as propostas e atitudes divisivas de Lula ficarão superadas de forma legítima e não abrirão nenhuma possibilidade de contestação. O espectro petista que ronda o País poderá ficar afastado de vez.
Se Lula ganhar, poderemos ter uma nova e excitante experiência petista de governo e o Brasil estará comprando uma passagem direta para a Grécia (aonde, aliás, já chegou o Estado do Rio de Janeiro).
Ganhando um candidato de centro com uma agenda de reformas, o Brasil poderá voltar a olhar para a frente, com uma agenda de modernização que passe pelo aprofundamento das reformas e da revisão do papel do Estado, e com o enfrentamento das desigualdades e dos privilégios para tornar o País mais justo, mais democrático e mais sustentável, ou seja, justamente melhor e de forma mais permanente para os desfavorecidos. Com isso o País se tornará mais bem preparado para enfrentar as rápidas transformações em todos os campos do cenário internacional, que desafiam as instituições, os trabalhadores e os empresários.
As eleições de outubro de 2018 serão um divisor de águas para as futuras gerações. O voto definirá a volta às políticas do lulopetismo ou a visão do futuro. O Brasil terá de optar entre dois caminhos bastante distintos. Esse é o dilema que deve ser enfrentado para que o Brasil possa definir um rumo claro a ser seguido.
*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e de Comércio Exterior (Irice)
Denis Lerrer Rosenfield: A batalha de Porto Alegre
O divórcio entre o PT e a democracia representativa se revela na imagem da ‘morte’
Longínqua é a época em que o PT se vestia de defensor de outra forma de participação política, procurando seduzir não somente os incautos do Brasil, mas também os do mundo. A soberba já naquele então desconhecia limites, mas apresentava-se com as sandálias da humildade.
Era o mundo da dita “democracia participativa” e da mensagem, no Fórum Social Mundial, de que um “outro mundo era possível”. Porto Alegre tornou-se o símbolo que irradiava para todo o País, e para além dele, transmitindo a imagem de uma grande solidariedade, de uma paz que o partido encarnaria.
Para todo observador atento, contudo, a farsa era visível. Porém foi eficaz: levou o partido a conquistar três vezes a Presidência da República. Mas deixando um rastro de destruição, com queda acentuada do PIB, inflação acima de dois dígitos, mais de 12 milhões de desempregados e corrupção generalizada. Dirigentes partidários foram condenados e presos a partir do “mensalão” e do “petrolão”. Antes, o partido tinha um currículo baseado na ética na política; hoje, uma folha corrida.
No dito orçamento participativo das administrações petistas de Porto Alegre já se apresentavam o engodo, a enganação e, sobretudo, o desrespeito à democracia representativa, tão ao gosto dos petistas atuais. Reuniões de 500 pessoas em bairros da cidade, nas quais um terço dos participantes era constituído por militantes, decidiam por regiões inteiras de mais de 150 mil ou mesmo 200 mil habitantes. Impunham uma representação inexistente, numa espécie de autodelegação de poder. O partido tudo instrumentava, arvorando-se em detentor do bem, o bem partidário confundido com o público.
Num Fórum Social Mundial, os narcoterroristas das Farc foram recepcionados no Palácio Piratini, sob o governo petista de Olívio Dutra. Lá, numa das sacadas do prédio, em outra ocasião, discursou, com sua arenga esquerdizante, Hugo Chávez, líder do processo que está levando a Venezuela a um verdadeiro banho de sangue, com a miséria e a desnutrição vicejando como uma praga – a praga, na verdade, do socialismo do século 21.
Eis o “outro mundo possível”, louvado pelos atuais dirigentes do PT. A vantagem hoje é a de que a máscara caiu. O partido, pelo menos, tem o benefício da coerência.
A máscara caindo mostra com mais nitidez que a democracia representativa nada vale e que a violência é o seu significante. A mensagem de paz tornou-se mensagem de sangue. A presidente do partido não hesitou em afirmar que a prisão de Lula levaria a “prender” e a “matar gente”. A tentativa de conserto posterior nada mais foi do que um arremedo.
Conta o fato de ter ela expressado uma longa tradição marxista-leninista de utilização da violência, da morte, acompanhada, segundo essa mesma tradição, de menosprezo pelas instituições democráticas e representativas, na ocorrência atual, sob a forma de desrespeito aos tribunais. A democracia, para eles, só tem valor quando os favorece. Desfavorecendo-os, deve ser liminarmente deixada de lado. Mesmo que seja sob a forma jurídica de pedidos de liminares, para que a luta continue.
Não sem razão, contudo, o PT e seus ditos movimentos sociais consideram este dia 24 como decisivo, o de seu julgamento. Para eles, tal confronto se exibe como uma espécie de luta de vida e morte. Nela, ao jogar-se a candidatura de Lula à Presidência da República e caindo, em sua condenação, o ex-presidente na Lei da Ficha Lima, está em questão a “vida” do candidato e do seu partido. Este, aliás, escolheu identificar-se completamente com seu demiurgo, selando com ele o seu próprio destino. O resultado é uma batalha encarniçada, o seu desenlace constituindo-se numa questão propriamente existencial.
A imagem da “morte”, segundo a qual os militantes fariam sacrifício por seu líder, por não suportarem a prisão dele, nada mais faz do que revelar o profundo divórcio entre o partido e a democracia representativa, com as leis e suas instituições republicanas. Pretendem sujar a Lei da Ficha Limpa com o sangue de seus seguidores.
Assim foi na tradição leninista: os líderes mandavam os seguidores para o combate e a morte, permanecendo eles vivos; e depois, uma vez conquistado o poder, usufruindo suas benesses. O sangue do ataque ao Palácio de Inverno e a vitória da revolução bolchevique levaram aos privilégios da Nomenklatura, dominando com terror um povo que veio a ser assim subjugado.
Segundo essa mesma lógica “política”, sob a égide da violência, Lula e os seus dividem apoiadores e críticos nomeando os primeiros como “amigos” e os segundos, “inimigos”. Sua versão coloquial é a luta do “nós” contra “eles”, dos “bons” contra os “maus”, dos “virtuosos” do socialismo contra os “viciados” pelo capitalismo. Ora, tal distinção, elaborada por um teórico do nazismo, Carl Schmitt, é retomada por esse setor majoritário da esquerda, expondo uma faceta propriamente totalitária. Lá também a morte, o sangue e a violência eram os seus significantes.
O desfecho do julgamento do dia 24, estruturante da narrativa petista, será vital para o destino do partido. Em caso de condenação, o que é o mais provável, o partido continuará correndo contra o tempo, numa corrida desenfreada por meio de recursos jurídicos, procurando esgotar os meios à sua disposição do Estado Democrático de Direito.
Assim fazendo, tem como objetivo produzir uma instabilidade institucional que venha a propiciar-lhe a reconquista do poder, produzindo um fato consumado numa eventual eleição sub judice. Seria consumar a morte da democracia representativa, solapando seus próprios fundamentos.
Resta saber se o partido conseguirá, para a concretização de seu projeto, realizar grandes manifestações de rua. Se lograr, a democracia representativa correrá sério risco. Se malograr, o partido estará fadado a divorciar-se ainda mais da sociedade. A narrativa soçobraria na falta de eco.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS
Merval Pereira: Sem protelações
Se condenado, Lula não pode protelar recurso. O ex-presidente Lula pode não ter tanto tempo para recorrer contra a inelegibilidade, caso sua condenação seja confirmada pelo TRF-4, quanto sugere a legislação eleitoral. A Lei da Ficha Limpa não fala em recursos, considerando que a segunda condenação é suficiente para impedir uma candidatura. Um de seus autores, Marlon Reis, que na época era juiz, diz que houve inclusão da possibilidade de recurso com prioridade através do artigo 26C da Lei das Inelegibilidades a fim de que não alegassem que o direito a uma medida liminar para suspender os efeitos da lei fora retirado dos condenados.
O artigo foi escrito com a intenção de, ao mesmo tempo em que garante o direito ao recurso, não permitir ações protelatórias. Diz lá que o órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso (no caso de Lula, o Superior Tribunal de Justiça) poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
Segundo o Código de Processo Civil, preclusão é a perda de direito de se manifestar, por não ter feito atos processuais na oportunidade devida ou na forma prevista. A lei prevê que “conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)”.
Mantida a condenação da qual derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010). A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
Isso quer dizer que, quando os advogados de Lula entrarem com um recurso no STJ contra a decisão do TRF-4, terão também que pedir a suspensão da inelegibilidade. Se não o fizerem, para esperar até agosto, depois da convenção partidária, terão perdido o prazo para anular a inelegibilidade. Prevalecendo essa interpretação, o STJ decidirá simultaneamente o recurso contra a condenação e também sobre a inelegibilidade de Lula, afastando a possibilidade de que o recurso se prolongue até a convenção partidária. Muito antes de 5 de agosto, portanto, a situação de Lula estará definida e, confirmada a sentença condenatória, seu nome não poderá nem mesmo ser apresentado na convenção do PT.
O presidente Michel Temer foi mais um político a dizer que prefere que Lula seja derrotado nas urnas a impedido de se candidatar à Presidência da República este ano. O raciocínio, que aparenta ser uma defesa da democracia, peca pela base e segue a mesma linha do mantra petista de que “eleição sem Lula é golpe”.
Se o ex-presidente for impedido de se candidatar, terá sido em decorrência de uma lei, e não há possibilidade de uma legislação em vigor valer para uns e não para outro, mesmo que esse outro seja um líder popular e ex-presidente da República. Ao contrário, esses atributos só fazem aumentar sua responsabilidade diante da sociedade e, consequentemente, a gravidade de sua culpa.
Condenado em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro, os petistas e Lula resolveram denunciar não apenas uma suposta parcialidade do juiz de Curitba, como também dos desembargadores do TRF-4, que julgarão seu recurso na próxima semana. Se para Lula não há juízes isentos, ou se apenas sua absolvição demonstrará que no Brasil a Justiça é independente, estaríamos diante de um impasse institucional grave. É o mesmo que dizer que somente as urnas podem condená-lo, como sugere o presidente Michel Temer.
Como se sabe, as urnas não absolvem ninguém, pois se assim fosse diversos deputados hoje envolvidos na Operação Lava-Jato, alguns condenados como Eduardo Cunha, teriam um salvo-conduto como vencedores de eleições.
A Lei da Ficha Limpa, projeto de lei de iniciativa popular que reuniu cerca de 1,6 milhão de assinaturas, teve o objetivo de impedir que candidatos já condenados por um colegiado de juízes (segunda instância) pudessem disputar a eleição, adequando as regras de elegibilidade à necessidade de moralidade dos agentes públicos.
Não é uma legislação autoritária. Foi concebida pela sociedade, apoiada por parlamentares que assumiram a autoria da proposta, aprovada pela Câmara e Senado e sancionada pelo então presidente Lula.
Luiz Sérgio Henriques: A difícil identidade do petismo
Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo
Mesmo sem nunca ter tido a carga antissistêmica dos antigos partidos comunistas, o petismo, surgido essencialmente de um núcleo sindical moderno, vocacionado simultaneamente para o confronto e para a negociação trabalhista, continua a responder por boa parte das turbulências da vida brasileira nestes 30 anos de País redemocratizado. Por isso, constitui para intérpretes e comentaristas um desafio que se torna ainda mais agudo em momentos de espesso nevoeiro, como este que temos atravessado, com os fatos relativos a seu maior dirigente, novamente candidato presidencial contra todo e qualquer empecilho legal que lhe possa ser oposto, segundo a vontade reiterada dos organismos partidários e de sua “sociedade civil”.
Em vão procuramos a identidade daquele partido, pouco nítida mesmo após os sucessivos períodos à frente do Poder Executivo, interrompidos por um impeachment traumático. O controle de inúmeros governos municipais e estaduais, bem como as amplas bancadas legislativas, para não falar no lastro eleitoral consistente, parecem não ter trazido aquele mínimo de cultura de governo que caracteriza os agrupamentos conscientes de sua própria força e capazes, por esse motivo, de dirigir todo um país, cumprindo uma função nacional que só se alcança com a superação de vícios de origem, limites programáticos e sarampos ideológicos. Traços, em suma, que os leninistas de antes, com todo o pathos revolucionário que os abrasava, chamavam de doença infantil, cuja irrupção os isolava e criava, à direita, um virulento espírito reacionário de massas.
A comparação sempre imperfeita com os comunistas – porque, repetimos, quando falamos de PT, de comunismo não se trata, sem contar que hoje nem sabemos delinear minimamente qualquer ordem anticapitalista – serve ao menos para afirmar que tais distantes antepassados, em certos casos, desenvolveram um certeiro e valioso sentido institucional. Não se conta a história da Itália moderna sem o PCI, permanece digna de respeito a cautela estratégica do PC chileno nos tempos de Allende, deu provas de serenidade o partido espanhol na transição pós-franquista. E o pequeno e clandestino PCB, durante o regime militar, abriu-se para o liberalismo político e a democracia representativa, que alguns de seus setores, em certo momento, passaram a considerar patrimônio de qualquer esquerda que viesse a se firmar a partir daí.
E nem nos aprofundemos na trajetória social-democrata, o outro ramo dos partidos de origem operária que poderia servir como termo de comparação. Aqui, a plena adesão ao programa reformista foi menos acidentada e mais em linha com o Ocidente político, resultando na construção de algumas das mais interessantes sociedades de que até hoje se tem notícia. Mesmo que o primeiro desses ramos da esquerda do passado tenha desaparecido e o segundo atravesse dificuldades cuja extensão não conhecemos, o fato é que se trata de um legado teórico-político a ser cuidadosamente avaliado na nova configuração que o mundo assumiu neste início tumultuado de século.
O petismo não parece ter-se preparado para esta crucial avaliação, que não é só conceitual, mas envolve modos de ser e agir na sociedade, requisitos de lealdade institucional e compromisso firme com a renovação de hábitos e costumes. Bem mais organizado do que os partidos tradicionais, provincianos e com escassa vitalidade interna, pôs essa sua capacidade organizativa a serviço de uma subcultura sectária, voltada para a cisão e o confronto. Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo. Muitos de seus intelectuais se soldam à massa dos militantes nesse mesmo plano, abdicando de qualquer esforço de educação democrática. Ao ver e ler uns e outros, podemos ter o sentimento de estar a bordo de uma máquina do tempo: um intelectual comunista dos anos 1950, treinado no catecismo mais elementar, não faria diferente, com a denúncia repetida contra agentes do imperialismo, oposições antinacionais e traidores da pátria, que certamente não teriam lugar na democracia popular que então se propunha com fé e agora retoricamente se quer atualizar.
O trauma comunista do “culto à personalidade” não está superado. Em vez de grupos dirigentes amplos, capazes de autorrenovação constante e porosos ao surgimento de novas elites partidárias, seguem intactos os mecanismos daquilo que mestre Graciliano, ele mesmo contraditoriamente prisioneiro do culto de Prestes, uma vez chamou de “canonização laica”. E, agora, os problemas judiciais em torno do líder canonizado nada mais seriam do que a continuação do golpe que teria vitimado o governo popular de Dilma Rousseff, ainda que o PT e vários de seus intelectuais “orgânicos” tenham requerido o impedimento de todos os presidentes, de Sarney a Fernando Henrique, sem exceção. Tertium non datur: ou bem o impeachment é golpe, e nesse caso o petismo deve admitir um golpismo renitente, ou bem é um remédio amargo, com danos consideráveis, mas plenamente integrado aos dispositivos legais.
Nesse mesmo sentido, estamos por todos os títulos longe do apregoado “estado de exceção” – cuja denúncia em foros internacionais, falsa e artificial, denota a persistência do desprezo que a parte atrasada da velha esquerda votava às liberdades civis e políticas, sob as quais, depois de árdua travessia, vivemos desde 1988. Como se dizia de Weimar e podemos dizer de nós mesmos, impossível ter uma democracia sem democratas. O legado a ser mantido, inclusive e principalmente pela esquerda, é o assinalado pelos valores de um patriotismo de novo tipo: o patriotismo constitucional. Ele é que nos ensinará a nutrir sempre, de modo imperturbável, nojo e horror por todas as ditaduras, como queria um grande liberal. Mesmo as que, por aí, mal e toscamente se disfarçam de progressistas.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci
Roberto Freire: Lula e a lei
Enquanto o Brasil aguarda pelo julgamento do ex-presidente Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, que analisará o recurso apresentado pelos advogados do petista contra a condenação a 9 anos e 6 meses de prisão, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, proferida pelo juiz Sergio Moro em primeira instância no processo referente ao rumoroso caso do triplex no Guarujá (SP), ficam cada vez mais evidentes o desespero do lulopetismo em relação ao futuro de seu principal líder e as constantes e desmedidas agressões do PT ao Poder Judiciário brasileiro e às instituições democráticas do país.
Nas últimas semanas, à medida que se aproxima o julgamento marcado para o dia 24 de janeiro, não foram poucos os próceres lulopetistas que se manifestaram abertamente contra o que vêm chamando de “rito de exceção” contra Lula, como se houvesse um complô com o objetivo de afastar o ex-presidente das eleições e consumar um “golpe” – mesmo termo utilizado de forma desavergonhada no período em que Dilma Rousseff foi afastada por meio do impeachment. São inúmeros os relatos de ameaças e tentativas de intimidação contra os desembargadores do TRF-4, além de palavras de ordem e gritos de guerra que indicam a possibilidade de haver quebra-quebra e atos de vandalismo caso o recurso de Lula seja rechaçado. Os bate-paus do lulopetismo não têm limites, demonstrando uma vez mais total descompromisso com as instituições republicanas e a própria democracia.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma inútil e patética tentativa de mobilizar a militância do PT e seus simpatizantes, desqualificando o processo na hipótese de uma eventual condenação do ex-presidente também em segunda instância – o que parece cada vez mais provável diante da amplitude de seus crimes e das provas apresentadas pelo Ministério Público e corroboradas pelo juiz Moro na sentença. Até parece que Lula é inimputável ou está acima da lei. Nada mais autoritário ou antidemocrático do que essa interpretação.
Em alguns casos, é perceptível que se trata de certo desespero de áulicos do lulopetismo em relação à iminente condenação do grande símbolo do partido. Em outros, no entanto, talvez a grande maioria das lideranças do PT, o que se vê é claramente a intenção de solapar e até mesmo derrubar a ordem democrática vigente no país, o que nos faz recordar do período de tão triste memória da ditadura militar. É uma postura totalmente irresponsável, para dizer o mínimo.
É evidente que se trata do óbvio, mas diante de tamanha desfaçatez e da afronta do PT às instituições é importante reforçar: Lula não tem salvo conduto, assim como nenhum dos cidadãos brasileiros, para praticar crimes. A Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) é cristalina e não deixa margem para qualquer tipo de dúvida: em caso de condenação por um tribunal colegiado, como o TRF-4, o possível candidato se torna “ficha suja” e fica impedido de disputar eleições. Além disso, há um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que um condenado em segunda instância já pode iniciar o cumprimento de sua pena (no caso de Lula, provavelmente em regime fechado, se a sentença de Moro for referendada pelo TRF-4) enquanto apela às instâncias superiores do Judiciário. Vem daí, muito provavelmente, o desespero e o descontrole da militância lulopetista.
Como se não bastasse a mobilização do PT, também os aliados não declarados do partido, como o PSOL, já se manifestaram em uma nota oficial divulgada há alguns dias que faz coro à narrativa delirante e mentirosa de que “eleição sem Lula é fraude”. No texto, a legenda – que se diz oposição ao lulopetismo, mas costuma cerrar fileiras ao lado e Lula e seus liderados em momentos cruciais – defende o direito de o ex-presidente ser candidato mesmo se condenado pelo TRF-4, descumprindo a Lei da Ficha Limpa.
Por mais que o lulopetismo e seus satélites esperneiem sobre o que pode acontecer em Porto Alegre no dia 24, a ordem democrática do país está preservada e as instituições estão em pleno funcionamento. Se condenado, o ex-presidente não poderá participar do processo eleitoral e, mais do que isso, deverá iniciar o cumprimento da sentença na cadeia. É o que esperam os brasileiros de bem, a imensa maioria da população tão ultrajada pela roubalheira perpetrada pelo PT durante mais de 13 anos. Que se cumpra a lei. Lula não está acima dela.