lula
Merval Pereira: Pingo é letra
Eliane Cantanhêde: Corretivo no elemento?
Merval Pereira: Defesa autofágica
A defesa de Lula, disposta a explorar todas as brechas, está sendo autofágica. A defesa do ex-presidente Lula, disposta a explorar todas as brechas possíveis na legislação penal para levá-lo o mais longe possível no simulacro de candidatura à Presidência da República, está sendo autofágica. Está no seu pleno direito, mas é uma demonstração cabal de que quem pode pagar grandes advogados provavelmente jamais será preso no sistema antigo, quando se exigia o trânsito em julgado para alguém ir para a cadeia.
Mais uma demonstração, portanto, de que a jurisprudência que possibilita a prisão após condenação em segunda instância não deveria ser alterada se queremos uma Justiça eficaz. A postura do advogado José Roberto Batochio, que ontem compareceu ao julgamento do TRF-4 para verificar, segundo suas próprias palavras, que não seria expedida qualquer ordem de prisão contra o ex-presidente Lula, mostra bem a falta de cerimônia que tomou conta das velhas raposas jurídicas que assumiram a defesa do ex-presidente.
Ele já havia acusado no Supremo o juiz Sergio Moro, o próprio TRF-4 e o STJ de autoritários e criticado “juízes que legislam”, sem que fosse desautorizado. Segundo sua definição, Lula não pode ser considerado “ficha-suja” porque “o processo ainda não terminou, não houve o trânsito em julgado”. Anunciam-se assim os chamados “embargos dos embargos”, uma atitude protelatória que o TRF-4 recusa sistematicamente por ser uma manobra jurídica para adiar uma decisão que já está tomada. Os advogados terão 12 dias, a partir da publicação do acórdão, para entrar com recurso sobre os próprios embargos de declaração, alegando que ainda existem obscuridades.
A Lei da Ficha Limpa não fala em recursos, considerando que a segunda condenação é suficiente para impedir uma candidatura. Um de seus autores, Márlon Reis, que na época era juiz, diz que houve inclusão da possibilidade de recurso com prioridade através do artigo 26C da Lei das Inelegibilidades, a fim de que não alegassem que o direito a uma medida liminar para suspender os efeitos da lei fora retirado dos condenados.
O artigo foi escrito com a intenção de, ao mesmo tempo em que garante o direito ao recurso, não permitir ações protelatórias. Diz lá que o órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso (no caso de Lula, o Superior Tribunal de Justiça) poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
A lei prevê que “conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)”. Mantida a condenação da qual derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010). Isso quer dizer que, quando os advogados de Lula entrarem com um recurso no STJ contra a decisão do TRF-4, terão também de pedir a suspensão da inelegibilidade. Se não o fizerem, para esperar até agosto, depois da convenção partidária, terão perdido o prazo para anular a inelegibilidade.
Prevalecendo essa interpretação, o STJ decidirá simultaneamente o recurso contra a condenação e, também, sobre a inelegibilidade de Lula, afastando a possibilidade de que o recurso se prolongue até as convenções partidárias, que começam a 20 de julho, para definir os candidatos.
Muito antes de 5 de agosto, data final, a situação de Lula deveria estar definida e, confirmada a sentença condenatória, seu nome não poderia nem mesmo ser apresentado na convenção do PT. É por isso que o ministro Luiz Fux quer tirar do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) uma decisão que impeça a inscrição de candidatos já definidos como “ficha-suja” depois do recurso no STJ.
Mas há quem defenda que todos podem inscrever-se, cabendo ao TSE rejeitar as candidaturas que estiverem fora da lei. A defesa de Lula poderá entrar então com um recurso no STF, tentando a suspensão da inelegibilidade até que o recurso seja julgado. Se o Supremo conceder mais essa benesse a Lula, estará alterando pela segunda vez uma lei para beneficiar o ex-presidente da República.
Fernando Gabeira: A jabuticaba mecânica
A decisão que o STF vai tomar pode manter de pé um edifício moralmente arruinado, mas difícil de ser batido
Semana de trabalho no Rio: chuva, bloqueios de algumas vias. Comecei na GloboNews com uma reportagem sobre o desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha. Trabalho agora fazendo perguntas sobre um crime mais complexo e de repercussão internacional: Marielle Franco. Ele deve envolver, pelo menos é o prometido, o que há de melhor na investigação nacional.
Porém, é um momento também de avaliar como esse desafio está sendo vencido. Em outras palavras, avaliar as nossas chances.
Mas os ventos de Brasília bateram pesado esta semana. Tudo indica que não só Lula não cumprirá a sentença do TRF de Porto Alegre como a tendência mais forte no STF é de acabar com a prisão em segunda instância.
O sistema de corrupção no Brasil tem sido apresentado como um mecanismo: envolve políticos que fraudam licitações, empresas que superfaturam, e devolve uma parte aos partidos políticos.
A decisão que o Supremo vai tomar pode agregar um novo elemento ao mecanismo. É possível desviar dinheiro público, por exemplo, e seguir em liberdade com a esperança mais do que justificada da prescrição da pena. Isso mantém de pé um edifício moralmente arruinado, mas difícil de ser batido.
Uma outra engrenagem do mecanismo foi acionada com a reforma política, em que os partidos garantem sua continuidade, através de farto dinheiro público. É um muro contra as mudanças.
Li que a impossibilidade de prender após segunda instância existe apenas no Brasil. É uma jabuticaba, revestida de um discurso de proteção da liberdade do indivíduo.
O mecanismo, cujas rodas deslizam sobre a imensa jabuticaba, tornou-se um aparato de poder singular que sobrevive apesar das evidências de que a sociedade o rejeita.
Com o muro construído em torno de mudanças é impossível que saia alguma coisa do Congresso, pois grande parte dele depende de longos recursos judiciais para seguir em liberdade.
Aparentemente, a roda rodou. Mas ainda há algumas instituições funcionando, e o poder que a sociedade pode exercer por meio da transparência.
Do ponto de vista de um mecanismo que se desloca solidariamente, o sistema segue o mesmo. No entanto, a sociedade não é a mesma depois da Lava-Jato: cresceu a consciência de que a lei deve valer para todos.
Ainda preciso de um pouco de tempo para refletir sobre as consequências do que me parece um novo momento. Uma delas é uma possível radicalização, com frutos para os extremos.
Isso prenuncia eleições tensas, soluções simples. O Brasil teve 60 mil assassinatos em um ano. É um tema que deveria nos unir ou, pelo menos, nos aproximar. Infelizmente, não temos sabido achar um caminho de acordo sobre como reduzir essas mortes ou mesmo como puni-las adequadamente.
Tudo isso pensado numa semana chuvosa, trabalhando num caso tão triste para um programa seminal, talvez tenha dado a impressão de tristeza. Mas ficar apenas triste é render-se ao imenso mecanismo que, na minha opinião, atrasa o Brasil.
Sobreviver para combater a engrenagem é uma forma de viver, embora não a única. O abismo que separa o sistema da sociedade, e de algumas instituições que a respeitam, será rompido um dia, mesmo que não se saiba precisamente como nem quando vai se romper.
É uma necessidade histórica que acaba abrindo seu caminho. De qualquer forma, os anos difíceis que pareciam longos parecem ganhar agora um novo fôlego.
Demétrio Magnoli: Suprema insegurança
Depois de inutilizarem a bússola da Constituição, os juízes legisladores movem-se em terra desconhecida
José Roberto Batochio criticou, perante o STF, o “Judiciário que legisla”. Nesse ponto, o advogado de Lula tem razão. Na quinta (22), a Corte Suprema patinou na lama de seus próprios excessos.
A decisão prévia, de admitir a análise do habeas corpus (HC) de Lula, evidenciou que os ministros em minoria (Fachin, Barroso, Cármen Lúcia e Fux) atingiram um paroxismo populista: na prática, a posição deles equivale à abolição do instituto do HC, o pilar central do moderno direito ocidental.
Já a decisão liminar, de impedir a prisão do condenado até o julgamento do HC, adotada por 6 a 5, revela (por vias tortas) que inverteu-se a maioria favorável ao cumprimento de sentença de segunda instância. Depois de inutilizarem a bússola da Constituição, os juízes legisladores movem-se sem rumo em terra desconhecida.
Faz tempo que o STF rasga a Constituição para ser fiel à “voz das ruas” –ou, de fato, a correntes de opinião influentes que gritam em nome do “povo”. Lá atrás, os ministros ignoraram os artigos sobre a igualdade perante a lei e o mérito no acesso ao ensino superior para “legalizar” as cotas raciais.
Depois, num crescendo, jogaram no lixo a lei do impeachment para conservar os direitos políticos de Dilma Rousseff; entregaram-se ao puro arbítrio, suspendendo mandatos parlamentares; associaram-se à operação suja de Janot na homologação do acordo de imunidade judicial para Joesley; cassaram a prerrogativa presidencial de indultar presos. No percurso, operando como sindicalistas, eternizam os ultrajantes privilégios corporativos dos companheiros juízes.
Há uma ironia notável na circunstância de que Lula esteja na alça de mira da prisão após sentença de segunda instância. O “Supremo popular” nasce do espírito de um tempo marcado pelo lulismo, que cultua a “vontade do povo” e despreza a letra da lei.
A minoria disposta a qualquer exotismo, inclusive extinguir o HC, compõe-se de ideólogos do ativismo judicial desenfreado (Barroso, Fachin) e figuras fascinadas pela luz dos holofotes (Cármen Lúcia, Fux). Mas a liberdade absoluta de legislar por meio da toga também atrai o interesse de ministros propensos a fazer agrados político-partidários (Lewandowski, Mendes). Na falta da baliza constitucional, vale tudo.
O vale-tudo judicial, porém, exigiria um Estado autoritário. Como temos uma democracia, o STF desmoraliza-se de recuo em recuo. Os ministros desistiram de suspender mandatos sem autorização parlamentar, picotaram as folhas do acordo Janot/Joesley e, um tanto ruborizados, ensaiam a valsa do arrependimento no tema da prisão após segunda instância.
“Prender Lula agora é mostrar que a lei é para todos”, escreveu o agitador de Facebook e, nas horas vagas, procurador regional Carlos Fernando Lima. Ninguém deve ser preso exemplarmente (“mostrar que a lei é para todos”). Indivíduos devem ser presos como punição por atos criminosos –e segundo a lei, que não é idêntica à vontade de petistas fanáticos, antipetistas maníacos ou procuradores missionários.
Dois anos atrás, o Supremo violou o texto explícito da Constituição para permitir a prisão antes dos recursos derradeiros. Fácil e legal seria criar varas especiais, vinculadas ao STF e ao STJ, para acelerar a análise de recursos de condenados por corrupção.
Mas uma tênue maioria de ministros preferiu ceder à “voz das ruas” –isto é, dos Carlos Fernandos que sonham com a redenção pela via do Tribunal Revolucionário jacobino. Agora, na curva sinuosa do arrependimento, por uma manobra vulgar de Cármen Lúcia, reformam a decisão original fingindo apreciar o HC de Lula.
O STF existe para, resguardando a Constituição, oferecer segurança jurídica à sociedade. Nosso STF, contudo, acostumou-se a escrever constituições informais, até se tornar uma linha de produção de insegurança. O show continua, no 4 de abril.
* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.
Sérgio Fausto: A velha 'nova esquerda'
Cresce no País apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Esse filme não tem final feliz
Guilherme Boulos teve sua candidatura à Presidência recentemente lançada pelo PSOL. Quem o apoia diz que ele representa a “nova esquerda”. Só se o critério for etário. Boulos de fato ainda não chegou aos 40 anos e tem adeptos na juventude. Mas seu pensamento é velho. Basta dar uma olhada no que diz e escreve. A quem se dispuser recomendo a entrevista publicada no livro A Crise das Esquerdas (Civilização Brasileira, 2017).
Ali ele faz o elogio das experiências bolivarianas Na sua visão, teriam promovido grandes avanços para as massas populares, em contraste com o reformismo aguado dos governos petistas no Brasil. A explicação para a imensa crise que se abate há anos sobre as mesmas massas populares na Venezuela estaria na perda da liderança política de Hugo Chávez e na consequente falta de condição política para o país avançar na trilha das expropriações de propriedades privadas e controle total da economia pelo Estado, aberta sob o comando do falecido líder. Só uma “ruptura revolucionária” permitiria à Venezuela superar a dependência do petróleo e construir o socialismo do século 21.
Nem lhe passa pela cabeça que a tragédia do país vizinho possa ter alguma relação com a destruição produtiva acarretada justamente pelas medidas que ele elogia. Na Venezuela grande parte da população passa fome porque os governos chavistas dizimaram a agricultura do país e mataram a galinha dos ovos de ouro, a PDVSA, estatal do petróleo, que hoje produz bem menos do que ao início do ciclo “revolucionário”. Não há oferta doméstica de alimentos nem dólares para importá-los em quantidade suficiente. Sobre a repressão crescente aos opositores do regime? Nem uma palavra de Boulos. Quanto à Bolívia, nada a declarar sobre a submissão das instituições do Estado à vontade de Evo Morales. A propósito, o presidente boliviano um mês atrás obteve da dócil Suprema Corte o direito que lhe havia sido negado no ano passado por um referendo popular em que a maioria disse não à pretensão de Morales de concorrer a um quarto mandato. Mais um líder bolivariano obcecado por eternizar-se no poder.
Ao analisar a situação do Brasil, Boulos repete surrada ladainha sobre as causas da grave crise fiscal que o País enfrenta. A solução consistiria em aumentar a carga tributária e fazer a auditoria da dívida pública sob a suposição de que parte dela se formou por conluio entre o governo e o mercado financeiro e não deveria, portanto, ser paga. Acertar-se-iam assim (perdão pela mesóclise) dois coelhos com uma só cajadada: o problema do desequilíbrio fiscal e da má distribuição da riqueza no Brasil. É um velho engano, que nenhuma liderança política ou economista de esquerda ou de direita, se minimamente preparado, subscreveria.
A carga tributária total no Brasil já é alta (precisa ser mais bem distribuída, para que os ricos paguem mais tributos, mas aumentá-la teria efeitos negativos sobre o potencial de crescimento do País, que deve ser elevado, e não diminuído). Já a dívida pública, cujo tamanho como proporção do PIB está em níveis perigosamente altos, não tem origem espúria. Ela expressa a acumulação de déficits, exercício fiscal após exercício fiscal. Essa tendência deriva em larga medida do aumento recorrente das despesas públicas, em particular da Previdência Social, nos últimos mais de 20 anos. Sim, os gastos públicos devem ser dirigidos prioritariamente às necessidades básicas da maioria da população, mas é embolorada ilusão desconsiderar os limites ao seu crescimento ou supor que dar o calote na dívida pública resolva o problema fiscal. Serviria apenas para desorganizar a economia e reativar a inflação, em prejuízo dos mais pobres.
Boulos é líder de um movimento social expressivo que luta por uma causa justa: o acesso à moradia digna para todos os brasileiros. Os fins, porém, não legitimam quaisquer meios para alcançá-los. Ele justifica as invasões com base na função social da propriedade, conceito presente na Constituição brasileira. A questão é quem define se esta ou aquela propriedade está a cumprir sua função social ou não.
Apoiado na Constituição, o líder do MTST poderia usar sua capacidade de mobilização para demandar ao Ministério Público, ao Judiciário, a parlamentares e governantes ações e programas de reforma urbana que atacassem os mecanismos de produção e reprodução da desigualdade social nas cidades. Ele, porém, optou por outro caminho, e não é ocasional que o tenha feito. A arregimentação de pessoas pobres em torno do objetivo de invadir para conquistar o direito à moradia é instrumental à sua estratégia de “construção de um poder popular” que, por acumulação de forças com outros movimentos, levará, acredita, à ruptura revolucionária em algum momento futuro. Pela mesma razão, Boulos sustenta a importância de ações de bloqueio de vias públicas. Ao inebriado revolucionário pouco se lhe dá a consequência dessas ações para a vida das pessoas comuns.
Na perspectiva da acumulação de forças rumo à ruptura revolucionária, a violência é uma necessidade histórica que se impõe cedo ou tarde. Essa ideia tem mais de um século e está no cerne do marxismo-leninismo. Na América Latina, ela se expressou ao longo dos últimos anos na formação de milícias bolivarianas armadas pelo governo chavista. Hoje seus grupos mais truculentos, os chamados “coletivos”, se dedicam a intimidar, espancar e, não raro, matar os opositores do regime, em nome da “revolução”.
O Brasil não é e não será a Venezuela. O perigo aqui é outro. Ante o fantasma da desordem social, que grupos de direita sabem explorar, com a ajuda involuntária de discursos irresponsáveis de parte da esquerda, cresce na sociedade o apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Quem já leu ou viveu o suficiente conhece o fim desse filme. E ele não é feliz. Importa evitar que se repita.
* Sérgio Fausto é Superintendente da Fundação FHC
Marco Aurélio Nogueira: O Leviatã em coma
Basta a ameaça a um interesse poderoso para que o STF trema e passe a flertar com o casuísmo
Sociedades são arranjos complexos e dinâmicos. Têm suas contradições, suas diferenças, suas forças internas. Movem-se em função delas. São, como diz uma máxima, o “mundos dos homens” e mulheres.
Sociedades conhecem altos e baixos, crises, fases de bem-estar e felicidade e fases de fracasso e incerteza, em que o futuro parece solto no ar. Há períodos em que o arranjo desanda de tal jeito que se generaliza a sensação de que a tarefa de aprumá-lo não poderá ser cumprida. Esses são períodos de confusão e turbulência, de desânimo cívico, indignação e revolta.
É onde está hoje o Brasil. Numa estrada repleta de curvas, depois das quais não se antevê nenhum belvedere.
A Lava Jato encurralou a corrupção instalada no Estado. Tem prendido e condenado políticos, empresários e intermediários poderosos, fato que acende muitas esperanças. Mas há ao mesmo tempo judicialização excessiva e a elite togada não se mostra qualificada para dar conta do recado.
O assassinato da vereadora Marielle Franco foi um atentado contra a democracia e contra os direitos humanos. Mas causou uma indignação social tão grande que pode ter inaugurado uma nova situação. Não há escalada autoritária no País, em que pese a violência se reproduzir.
O problema é o que se vê e sente. Os cidadãos só conseguem vislumbrar escombros, que recobrem conquistas políticas e sociais duramente alcançadas nos anos mais “heroicos”, em que a maioria caminhava numa mesma direção e acreditava nas mesmas coisas.
Olham para o Estado, esse guardião da comunidade, e ficam ainda mais ressabiados e inseguros. O Leviatã simplesmente parece em coma. Da Presidência da República ao Legislativo, passando pelo Judiciário, sucede-se o mesmo quadro: cabeças batendo entre si, mediocridade generalizada, reações adaptativas e defensivas, uma recorrente demonstração de que ninguém sabe bem que direção tomar.
A crise do Supremo Tribunal Federal (STF) é o indicador mais recente do quanto a comunidade política nacional está em condição de sofrimento. Não é preciso analisar as minúcias do problema para ver a gravidade da situação. Afinal, estão ali sentadas 11 sumidades jurídicas, intérpretes autorizados da Constituição. Esse panteão de figuras consideradas superiores, porém, não consegue entender-se. Dissonâncias ultrapassam o razoável, o individual sobrepõe-se ao institucional, as decisões são erráticas, a tal ponto que a sociedade fica a se perguntar se os magistrados não seriam somente personagens de um drama que não conseguem decifrar. Em vez de paz e consenso, o STF produz atrito, fogo e fumaça. Basta a ameaça a um interesse poderoso para que a Corte trema de cima a baixo e passe a flertar com o casuísmo, ameaçando modificar jurisprudências e entendimentos procedimentais ainda frescos de tinta, como é o caso da prisão em segunda instância. A oscilação de alguns ministros deixa transparecer que alguma força externa pesa nas avaliações.
Os cidadãos afastam-se, assim, dos juízes. Assistem a bate-bocas pesadíssimos, cheios de ofensas verbais e agressões. O ministro Luís Roberto Barroso disse a Gilmar Mendes: “Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Vossa excelência é uma desonra para todos nós, um temperamento agressivo, grosseiro, rude. Sozinho desmoraliza o tribunal”. E se Barroso estiver certo?
Agindo nos bastidores, ministros forçaram a presidente da Corte, Cármen Lúcia, a levar a plenário o julgamento de um habeas corpus (HC) preventivo para livrar Lula da prisão após decisão em segunda instância. Na quinta-feira, 22, o Tribunal decidiu aceitar o HC, mas não conseguiu apreciar seu mérito, transferindo a decisão para 4 de abril e aprovando uma liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfiança e sensação de parcialidade.
Assustados, os cidadãos procuram os partidos, que deveriam dedicar-se à valorização da política, mas apenas conseguem encontrar entes desnervados, que só fazem lustrar os próprios sapatos. Pensam em recorrer aos políticos e se deparam com pessoas que preferem semear ventos para colher tempestades, na vã ilusão de que depois delas a bonança prevalecerá.
Chegam, então, à sociedade civil, esse setor que carreia tantas esperanças, mas, com o tempo, foi sendo estressada pelos particularismos – partidários, ideológicos, identitários – e pela guerra de “narrativas”. Impulsionada por redes sociais destemperadas, não consegue articular-se e tem pouca incidência consistente na vida dos cidadãos, da cultura, da política, do País.
Atingido esse ponto, os cidadãos perguntam: o que fazer?
Diz-se que é nos piores momentos que aparecem as melhores ideias. Foi assim durante os anos da ditadura, quando, por volta de 1975, ao abrir-se a “transição lenta, gradual e segura”, as nuvens se carregaram a ponto de ameaçar o País com uma tormenta bíblica. Foi assim na luta para conter a inflação, introduzir maior racionalidade na administração pública e adotar programas de transferência de renda e assistência social, durante os governos de FHC e Lula. Nesses momentos, o País como que se re-uniu e avançou.
Não dá para dizer que o mesmo acontecerá hoje. Faltam-nos alguns ingredientes básicos – lideranças, ideias, um pacto de convivência, unidade democrática. E não há aquela fagulha mágica que incendeia mentes e corações.
É preciso, porém, resistir. Buscar um eixo, viver a hora da verdade. O coma do Leviatã não pode calcificar as esperanças. Com boa vontade e empenho, os democratas – liberais, de centro, socialistas, de esquerda – têm como atuar de forma “anticíclica” e promover uma articulação que pavimente outro caminho. As instituições estão aí, prontas para ser recuperadas. E a política, acima de tudo, é uma atividade vocacionada para inventar saídas. Mesmo quando tudo parece conspirar contra.
Luiz Carlos Azedo: Supremo vexame
O caso Lula está gerando muita tensão no STF, cuja sessão de ontem foi suspensa por causa de um bate-boca entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso
Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Cármen Lúcia marcou para hoje o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de fortes pressões de seus pares para colocar a matéria em votação. Estão em jogo não apenas a iminente prisão de Lula, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), mas também a jurisprudência da Corte que determina a execução imediata da pena para condenados em segunda instância de toda ordem, do político corrupto ao estuprador. Como o julgamento do embargo de declaração da condenação da defesa de Lula pelos desembargadores federais de Porto Alegre foi marcado para segunda-feira, a ministra Cármem Lúcia decidiu pautar o habeas corpus.
O caso Lula está gerando muita tensão na Corte, cuja sessão de ontem foi suspensa por causa de um bate-boca entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Os dois ministros já andavam se estranhando. Gilmar Mendes criticava decisões intempestivas do Supremo, sobretudo a proibição de doações eleitorais de empresas, quando fez referência à decisão da Primeira Turma de 2016 que revogou a prisão preventiva de cinco médicos e funcionários de uma clínica de aborto. O voto de Barroso orientou a decisão. Gilmar aproveitou para insinuar que o colega havia manobrado para pôr em votação a questão do aborto: “Ah, agora, eu vou dar uma de esperto e vou conseguir a decisão do aborto, de preferência na turma com três ministros. E aí a gente faz um 2 a 1”, disse o ministro.
Barroso levou o comentário para o lado pessoal. Reagiu duramente: “Me deixa de fora desse seu mal sentimento, você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo vossa excelência vir aqui fazer um comício cheio de ofensas, grosserias. Vossa excelência não consegue articular um argumento, fica procurando, já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para vossa excelência é ofender as pessoas, não tem nenhuma ideia, nenhuma, nenhuma, só ofende as pessoas”, disse.
Diante do confronto, Cármen Lúcia suspendeu a sessão. Mesmo assim, Gilmar retrucou: “Presidente, eu estou com a palavra e continuo, presidente. Continuo com a palavra, presidente, eu continuo com a palavra. Presidente, eu vou recomendar ao ministro Barroso que feche seu escritório, feche seu escritório de advocacia”. A sessão acabou aí. Foi o maior vexame. Gilmar e Barroso estão em polos opostos na questão do habeas corpus de Lula. O primeiro era a favor da execução da pena após condenação em segunda instância, mas mudou de entendimento. Com isso, a possibilidade de a jurisprudência ser alterada no julgamento de hoje parece predominante, uma questão a conferir logo mais.
Sob pressão
O Supremo está sob forte pressão dos políticos enrolados na Lava-Jato, não somente Lula. Os demais envolvidos não querem que o petista seja preso, temem que isso ocorra com eles também. Há mais de 400 políticos com foro privilegiado denunciados no Supremo, aguardando julgamento. Os políticos que estão sem mandato, porém, estão sendo julgados e condenados, alguns já estão cumprindo pena na cadeia. Com a proximidade das eleições, o risco de não serem reeleitos assombra os políticos e acirra as contradições no Supremo. Gera também uma cadeia de solidariedade em relação ao ex-presidente Lula.
O presidente Michel Temer também pressiona os ministros diretamente envolvidos nos processos nos quais está sendo investigado, principalmente o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, de quem cobra acesso às investigações. Suas pressões se dão por meio dos advogados, nos termos do devido processo legal, mas também ocorrem nas articulações de bastidores do tribunal. A discussão de ontem começou por causa da atual legislação de financiamento de campanha, uma vitória inequívoca de Barroso no Supremo. Voto vencido no caso, Gilmar criticou duramente o fim das contribuições de empresas para candidatos com o argumento de que a nova legislação terá efeito contrário e estimula o uso de caixa dois.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-supremo-vexame/
José Nêumanne: Um tapetão para Lula
STF criará insegurança jurídica nociva à democracia se proibir prisão de Lula
Luiz Carlos Azedo: À sombra da Lava-Jato
É impressionante a presença da Operação Lava-Jato como vetor do processo político, a oito meses das eleições. Toda movimentação em curso, seja no Executivo seja no Legislativo, e até mesmo no Judiciário, tem como pano de fundo as investigações sobre os elos escusos entre políticos e empreiteiras para desvio de recursos públicos e financiamento ilegal de campanha. Nem mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) escapa do redemoinho, por causa da iminente prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ontem mesmo, a Corte foi palco de uma batalha de Itararé, aquela que foi muito anunciada e não ocorreu, nas proximidades da divisa entre São Paulo e Paraná, durante a revolução de 1930.
No começo da próxima semana, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) deverá julgar o embargo de declaração da defesa de Lula contra a condenação de 12 anos e 1 mês de prisão, com execução imediata da pena. A confirmação da sentença pelos desembargadores federais de Porto Alegre resultará na decretação da prisão do ex-presidente da República por determinação do juiz federal Sérgio Moro, em razão de jurisprudência do Supremo que determina a execução da pena após condenação em segunda instância. É assunto de repercussão internacional.
Fora da disputa eleitoral de 2018, por causa da Lei da Ficha Limpa, que somente pode ser revogada por emenda constitucional, Lula concentra os esforços no sentido de evitar a própria prisão. Seus advogados pleiteiam no Supremo que o ex-presidente não seja encarcerado antes de o processo transitar em julgado em todas as instâncias da Justiça. Para isso, precisa modificar a jurisprudência, forçando um novo julgamento que coloque em xeque o entendimento de que a pena comece a ser cumprida após decisão em segunda instância.
A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, em entrevistas quase diárias, tem afirmado que não colocará em votação no plenário da Corte a revisão da jurisprudência. Mesmo assim, não é levada a sério por alguns de seus pares, que começaram a acolher pleitos de advogados que podem servir de paralelo para revisão do entendimento também em relação a Lula. Nas conversas de bastidor, a aparência frágil da presidente do Supremo alimenta especulações de que acabaria por ceder às pressões.
Políticos enrolados na Lava-Jato, de todos os matizes, intensificaram as articulações junto a ministros do Supremo de suas relações para pôr a mudança em votação. Todos querem Lula fora da disputa eleitoral, mas não desejam que o petista seja preso, pois todos correrão o mesmo risco quando forem julgados. É o chamado efeito Orloff, aquele da propaganda de vodca: “Eu sou você amanhã!” Urdiu-se a manobra perfeita: acabar também com o foro privilegiado para crimes cometidos antes do mandato. Assim, ao mesmo tempo em que Lula não seria preso, com a mudança de jurisprudência, os que aguardam julgamento no Supremo ganhariam logo fôlego para prescrição de pena, voltando a ser julgados a partir da primeira instância.
Fora de pauta
Não se falava outra coisa em Brasília na manhã de ontem, com a expectativa de que o ministro Celso de Mello, decano da Corte, convencesse Cármen Lúcia a pôr o assunto em pauta, depois de uma reunião reservada com seus pares. A reunião foi anunciada aos quatro ventos, mas não aconteceu. Supostamente, a ministra é tão mineira quanto os políticos de sua terra. Consultada pelo decano da Corte sobre uma reunião informal para tratar do assunto, aquiesceu, mas não chamou ninguém pra conversar. Noticiado nos jornais, o encontro não aconteceu porque ninguém foi convidado.
Sabe-se, porém, que toda sorte de manobra já foi pensada para pôr a matéria em pauta no Supremo contra a vontade de Cármen, que não recua. Ministros contrários à mudança da jurisprudência também ameaçam fazer retaliações. À sombra da Lava-Jato, o Supremo vive dias de muito estresse, às vésperas da prisão do ex-presidente Lula. Quem já foi rei não perde a majestade, diz um velho ditado popular. Na contramão das expectativas, porém, o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no STF, ontem rejeitou embargo de declaração contra decisão de 2016 na qual a Corte decidiu pelo cumprimento da pena de prisão após uma condenação em segunda instância. Fachin considerou que uma mudança nesse sentido só será possível em um novo julgamento da ação, de “mérito”, a ser marcado por Cármen Lúcia. Também rejeitou o pedido para que levasse o recurso a julgamento no plenário, diretamente, sem passar pela presidente do Supremo.
Eliane Cantanhêde: Cartada final do STF
Ministros discutem solução engenhosa e complexa contra a prisão de Lula
Avançam as articulações de ministros do Supremo para, em tratativas com a defesa do ex-presidente Lula, acabar com a prisão após condenação em segunda instância e mudar os rumos da Lava Jato. Como a presidente Cármen Lúcia mantém firmemente sua palavra de não colocar a questão em pauta, a solução que emerge é criativa e sofisticada.
Habeas corpus (HC) só pode ser posto “em pauta” pela presidência ou “em mesa” por um deles, o que já não é usual, mas embargos de declaração em liminares podem ir ao plenário e os ministros foram buscar uma liminar de outubro de 2016 para ancorar toda a estratégia: justamente a liminar que permitiu a prisão após a segunda instância, confirmada pelo plenário em dezembro daquele ano por 6 a 5.
A defesa de Lula descobriu, e soprou aos ouvidos de ministros, que o acórdão da liminar nunca tinha sido publicado e isso abria uma brecha para a revisão. Ora, ora, o acórdão acaba de ser publicado agora, em 7 de março, abrindo prazo de cinco dias úteis para a apresentação de recursos. E, ora, ora, o Instituto Ibero Americano de Direito Público entrou com embargo de declaração no último dia do prazo, 14 de março, quarta-feira passada.
Um embargo de declaração numa liminar de um ano e meio atrás, que gerou dois meses depois uma decisão em plenário? Tudo soa muito estranho, muito nebuloso, mas faz um sentido enorme para aqueles que articulam o fim da prisão em segunda instância não apenas para Lula, mas para todos os poderosos que estão ou estarão no mesmo caso.
Lembram que escrevi, neste espaço, que havia um acordão dentro do Supremo para combinar o fim da prisão em segunda instância e do foro privilegiado? A base é uma equação: quem é contra Lula salva a pele dele para salvar a de todos os demais; quem é a favor de Lula salva a pele de todos os demais para salvar a de Lula.
Houve uma sequência de tentativas que acabaram batendo num muro intransponível: a opinião pública, que não consegue digerir a mudança de uma decisão – que já passou por três julgamentos no STF – com o objetivo óbvio, gritante, de evitar que Lula vá para a cadeia.
A primeira tentativa foi convencer Cármen Lúcia de por o habeas corpus preventivo de Lula em pauta, mas ela declarou que mudar uma jurisprudência para beneficiar um réu seria “apequenar” o Supremo. Depois, veio a sugestão de levar ao plenário os HCs de outros condenados, não especificamente Lula, mas ela divulgou a pauta de abril sem incluir a questão.
A terceira tentativa foi escalar um dos outros dez ministros para, driblando a decisão da presidente, colocar a questão em mesa e forçar a revisão. Mas quem? Gilmar Mendes já tinha o seu papel definido no script: inverter o voto e o resultado. O relator da Lava Jato, Edson Fachin, foi categórico ao dizer que não aprovava mais um julgamento sobre o mesmo assunto. Lewandowski, Marco Aurélio e Toffoli avisaram que não entrariam nessa bola dividida.
Criou-se até uma torcida para o decano Celso de Melo assumir o papel e foi aí que surgiu a solução – atribuída a Sepúlveda Pertence, ex-STF e atual advogado de Lula – de publicar a liminar de 2016, gerar um embargo de declaração e levá-lo ao plenário, criando a oportunidade para Gilmar Mendes mudar o seu voto e acabar com a prisão após a segunda instância.
Cármen Lúcia foi chamada para uma reunião na próxima terça-feira, provavelmente para discutir a ideia de, em vez da segunda instância, o plenário autorizar o cumprimento da pena após condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A prisão de Lula seria adiada por muitos meses, caso mantida; os presos após a segunda instância entrariam com HC; os futuros condenados respirariam aliviados. E a Lava Jato? O que fez, fez; o que não fez, só fará em parte.