lula
Eliane Cantanhêde: Produto de exportação
Condenação de Lula é pelo triplex, mas longe de ser só pelo apartamento
Na missa para Marisa Letícia, que virou comício para Lula, o ex-presidente usou de toda a emoção e de todo vigor retórico para clamar que seu grande crime foi dar comida, escola e universidade para pobre. Porém, assim como o impeachment de Dilma Rousseff foi pelas pedaladas, mas não só por elas, a prisão de Lula foi pelo triplex no Guarujá, mas não só por ele. Tanto as pedaladas como o triplex estão inseridos num contexto muito mais amplo, são peças de um todo.
O que as investigações desvendaram, e as fotos no triplex confirmam, é a íntima relação de Lula não apenas com uma empreiteira, a OAS de Léo Pinheiro, mas com as grandes empreiteiras, conhecidas compradoras de políticos. No topo, a Odebrecht.
Os depoimentos de Emílio e Marcelo Odebrecht sobre as contas secretas mantidas para o ex-presidente e geridas por Antonio Palocci, antes e depois da Fazenda, são uma aula de como Lula foi afundando nos braços pródigos, mas gulosos, das empreiteiras.
E foi nessa simbiose entre Lula e elas que o Brasil virou um exportador de corrupção para América Latina, Caribe, África e Europa. Começou na Venezuela de Hugo Chávez e se expandiu para Peru, Colômbia, Equador, Angola... com régios financiamentos do nosso BNDES e uma cereja do bolo: os marqueteiros de Lula incluídos no pacote.
Para Fernando Gabeira, há uma estratégia nas investidas do triângulo Lula-Odebrecht-BNDES em tantos países: a mistificação de Lula, sua transformação em líder mundial de massas. Mas o revertério pega de jeito não só ele, mas também os aliados que entraram no esquema internacional. Ou seria pura coincidência que Lula esteja às voltas com a Justiça ao mesmo tempo que outros ex-presidentes, como o do Peru.
Lula desceu a rampa do Planalto com 80% de popularidade e ficou ainda mais à vontade nas suas relações com as empreiteiras, mantendo o controle do BNDES com Dilma na Presidência e viajando pelo mundo nos aviões da Odebrecht.
Por trás da desgraça da nossa Petrobrás estão as grandes empreiteiras e seus controladores agora presos. E, por trás dos processos contra Lula, estão as mesmas empreiteiras e seus controladores: o do triplex, o do sítio de Atibaia, o do Instituto Lula... logo, há profunda conexão entre Lula e elas, uma clara relação de causa e efeito, um jogo em que todos ganhavam. E, como ganhavam, agora perdem juntos. Ou vão para a cadeia juntos.
No seu discurso de ontem, Lula se colocou como um novo “pai dos pobres”, a eterna “vítima das elites”, mas, se os ganhos sociais são inegáveis, quem mais lucrou na sua era foram o sistema financeiro e as empreiteiras, enquanto estatais, bancos públicos e fundos de pensão eram devorados. E ele atiçou a militância contra Moro e a mídia, jogando álcool na fogueira e isolando ainda mais o PT e as esquerdas. A baixa adesão à manifestação pró-Lula num dia histórico, e no berço do PT, já diz tudo.
Quanto a Dilma: ela efetivamente cometeu crime de responsabilidade com as pedaladas, além de governar com a velha e perigosa avaliação de que “um pouco de inflação não faz mal a ninguém” e gastar desbragadamente é “bom para povo” (que, obviamente, é quem depois paga a conta com juros e lágrimas). E vivia de canetadas: na quebra de contratos no setor elétrico, na exploração do pré-sal, na queda artificial dos juros.
Enfim, Dilma caiu porque o Brasil não aguentaria mais dois anos de Dilma, assim com Lula foi preso por ambição, cobiça e uma promiscuidade com empreiteiras (para ficar só nelas) incompatível com a Presidência da República e com a sua emocionante biografia e seu vibrante carisma.
Foi, além de tudo, uma traição à origem do PT, que nasceu para lutar por um País mais justo e mais ético – não para Lula chegar ao pódio e dali mergulhar alegremente nos tentáculos da Odebrecht e da OAS e nadar de braçada nas piores práticas do velho Brasil.
El País: A caótica prisão de Lula hipnotiza o Brasil
Após 50hs de expectativa, ex-presidente começa a cumprir pena em meio a tensão entre manifestantes
Por Regiane Oliveira, Gil Alessi e Marina Rossi, do El País
Um dia dramático, caótico e histórico. Todos os adjetivos cabem para falar da saga do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste sábado, 7, que começou logo cedo com uma ato religioso no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, e terminou numa cela de 15 metros quadrados na superintendência da Polícia Federal em Curitiba. O Brasil assistiu ao longo do sábado, em tempo real, ao ex-presidente mais popular da democracia recente chegar à prisão. Popular, claramente, para o bem e para o mal. Lula saiu literalmente carregado nos braços do povo em São Bernardo, e amargou uma recepção hostil com incontáveis fogos de artifício quando o bimotor que o levou de São Paulo à capital paranaense pousou no aeroporto Afonso Pena. Para finalizar, na chegada à sede da PF o petista pôde ver, da janela do helicóptero que o conduzia a seu destino final, sua militância ser massacrada por bombas de gás disparadas pela polícia. Um capítulo melancólico de um personagem que ganhou projeção mundial.
Foi uma jornada de sobressaltos, com uma militância arisca e indignada, que chegou a cercar o portão do sindicato para evitar a saída do ex-presidente e derrubar as grades num movimento furioso impedindo a saída de Lula. As lideranças petistas precisaram intervir avisando que o tempo acordado com a PF estava se esgotando. "A PF deu meia hora para nós resolvermos. Ou Lula será responsabilizado", alertou a senadora Gleisi Hoffmann de cima do caminhão de som. Chegou-se a cogitar que a parede humana que impedia a saída de Lula fazia parte da estratégia do ex-presidente para evitar ser preso. Hoffmann explicava à militância que se Lula não saísse ele poderia receber uma ordem de prisão preventiva e ser prejudicado em sua batalha jurídica para tentar reverter a prisão.
Diante de uma multidão enfurecida, e correndo contra o relógio para se entregar, Lula protagonizou uma cena antológica: deixou o prédio emblemático para sua carreira política a pé por volta das 18h40, para chegar a um carro da Polícia Federal. Abriu caminho entre a militância que, momentos antes, tinha impedido seu carro de deixar o local. Em meio ao tumulto, o petista se entregou para cumprir, embora com atraso de 26 horas, a ordem de prisão decretada pelo juiz federal Sérgio Moro, por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá.
O ex-presidente seguiu assim, sob custódia policial, em um carro que o levaria à sede da PF para fazer exames de praxe, antes que ele fosse encaminhado a Curitiba. As TVs cobriam o trajeto com imagens aéreas, numa transmissão ao vivo, vista por milhões de brasileiros. Metade deles celebrava, a outra, se entristecia. Ninguém indiferente. A saga que durou quase 50 horas — Lula chegou ao sindicato na quinta-feira por volta das 20h após a inesperadamente rápida determinação de Moro — teve espaço ainda para um discurso derradeiro, no qual Lula admitia sua ‘morte política’, ao menos por enquanto.
Após uma longa expectativa desde que chegara ao sindicato na noite de quinta-feira, ele falou ao público presente, depois da missa celebrada no próprio sindicato em homenagem a sua mulher, Marisa Letícia, que completaria 68 anos neste sábado. Com o mesmo estilo que marcou sua trajetória de mais de 40 anos de vida pública, Lula permitiu-se um último ato catártico, em que desafiou os que ele considera seus algozes: o Judiciário, a mídia e aqueles que não queriam que ele fosse candidato a presidente.
Inflamado e com a voz rouca, fez do procurador Deltan Dallagnol um de seus principais alvos. “Eu não posso admitir um procurador que fez um powerpoint e foi pra televisão dizer que o PT é uma organização criminosa que nasceu para roubar o Brasil e que o Lula, por ser a figura mais importante desse partido, o Lula é o chefe, e portanto, se o Lula é o chefe, diz o procurador, ‘eu não preciso de provas, eu tenho convicção”, disse ele, ironizando uma frase que na verdade Dallagnol nunca verbalizou. “Eu quero que ele guarde a convicção deles para os comparsas deles, para os asseclas deles e não para mim”, discursou ele.
Em outro momento, criticou a imprensa pelo excesso de ataques que recebe. “Tenho mais de 70 horas de Jornal Nacional me triturando. Eu tenho mais de 70 capas de revista me atacando. Eu tenho mais de milhares de páginas de jornais e matérias me atacando. Eu tenho mais a Record me atacando. Eu tenho mais a Bandeirantes me atacando, eu tenho a rádio do interior me atacando. E o que eles não se dão conta é que quanto mais eles me atacam mais cresce a minha relação com o povo brasileiro”, ironizou.
Foram 55 minutos de discurso para o público presente, que ouvia entusiasmado e gritou em coro “Lula, guerreiro do povo brasileiro”. A descarga de adrenalina, no entanto, acabou contagiando militantes que protagonizaram cenas de hostilização de jornalistas que faziam a cobertura do último dia de liberdade de Lula, tanto no sindicato de São Bernardo, como no aeroporto de Congonhas e em frente à sede da Polícia Federal de Curitiba. Entidades como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) se manifestaram sobre os relatos de agressão aos profissionais de comunicação. “Conclamamos políticos e líderes de movimentos a colaborar para garantir a integridade física de quem participa da cobertura dos atos de hoje”, divulgou a Abraji.
“Não quero ser foragido”
Até o discurso de Lula, havia dúvidas se ele de fato se entregaria à Polícia ou se estenderia a corda, inclusive sob o risco de receber a ordem de prisão preventiva, o que lhe tiraria o direito de pedir um novo habeas corpus para sair da prisão. A dúvida foi dissipada durante seu discurso, quando ele admitiu que atenderia o mandado de prisão. “Se dependesse da minha vontade eu não ia, mas eu vou porque eles vão dizer a partir de amanhã que o Lula está foragido, que o Lula tá escondido, e não! Eu não estou escondido, eu vou lá na barba deles pra eles saberem que eu não tenho medo, que eu não vou correr, e para eles saberem que eu vou provar minha inocência”, disse ele para alívio do Brasil.
O tom de desafio do ato em São Bernardo, porém, viria a se dissipar assim que ele entrou no carro da Polícia Federal que o esperava perto do sindicato. De lá, ele se viu perseguido pelas mesma imprensa que atacara quando passou no prédio da PF em São Paulo para exame de corpo delito, até chegar ao aeroporto de Congonhas. Lula saiu de bimotor para Curitiba, onde chegou por volta das 22h20. O ex-presidente foi transportado de helicóptero para a superintendência da PF, onde vai cumprir a pena de 12 anos e um mês por ter recebido um apartamento triplex no valor de 2,4 milhões de reais da empreiteira OAS por favorecê-la em contratos da Petrobras, segundo a Justiça. Lula sempre rebateu que o apartamento não era dele, uma vez que não estava em seu nome. Mas ele nunca convenceu o Judiciário.
Chuva de bombas
A chegada à República de Curitiba, apelido ironicamente dado por Lula, foi como ele deveria esperar: hostil. Nos arredores do aeroporto Afonso Pena, e em vários bairros da cidade, fogos de artifício comemoravam a chegada do maior troféu de Sérgio Moro, ou, nas palavras de Lula “o sonho de consumo” do juiz. De lá ele embarcou em um helicóptero rumo à sede da PF onde iria começar a cumprir pena. As imagens de TV mostravam Curitiba com um caos no trânsito devido a protestos na chegada da persona non grata para a capital que se orgulha de liderar a Lava Jato.
Ainda assim, uma manifestação de apoiadores do ex-presidente aguardava, desde as 14h, sua chegada em volta do prédio da PF. Os vermelhos estavam separados por dois cordões policiais e cerca de 100 metros dos verde-amarelos, estes em número bem reduzido. Apesar do momento dramático para a maior liderança do PT, a militância tentava se manter animada ao longo do dia, cantando músicas de Geraldo Vandré e velhos sambas de Clara Nunes. Dezenas de estudantes secundaristas participaram do ato - muitos deles veteranos da onda de ocupações escolares que varreu o Estado em 2016.
Assim que o helicóptero do ex-presidente tocou o heliponto do prédio da PF, vieram as bombas: ao menos 10, disparadas do estacionamento do edifício em direção ao ato de apoio a Lula. Segundo os bombeiros, oito pessoas ficaram feridas sem gravidade por estilhaços. A reportagem não presenciou nenhum ato dos manifestantes que justificasse a medida repressiva, e a Polícia Federal não se manifestou até o momento sobre o episódio. Depois do tumulto, os senadores petistas Lindbergh Farias e Gleisi Hoffmann, que seguiram do ato de São Bernardo para Curitiba, se uniram ao que restou do protesto para anunciar que a cidade da Lava Jato vai ser também “a capital da resistência".
Colaborou Afonso Benites
El País: MPF pediu pressa na prisão de Lula para “estancar sensação de onipotência”
Documento obtido pelo EL PAÍS foi publicado, sob sigilo, antes de Moro decretar prisão
Um documento obtido pelo jornal EL PAÍS mostra que partiu do Ministério Público Federal a iniciativa de pressionar pela rápida execução da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pegou de surpresa o país e contrariou o que vinha dizendo o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre sobre o prazo ainda disponível para a defesa do petista. Segundo o procurador da República Mauricio Gotardo Gerum, que assina eletronicamente a peça, a pena deveria começar a ser cumprida de forma imediata “para estancar a sensação de onipotência” de Lula, que não estaria se submetendo às decisões judiciais.
A petição do procurador conclui com um pedido expresso para que o TRF-4 oficie “com urgência ao juízo de primeira instância para o imediato cumprimento da ordem de prisão”. Ela foi registrada no sistema do MPF às 12h17 minutos da quinta-feira, 05 de abril. Segundo a assessoria de imprensa do MPF, o sigilo solicitado era necessário para que o tribunal gaúcho pudesse organizar uma logística especial de prisão, se assim entendesse necessário.
O sigilo foi levantado no final da tarde, às 17h49, minutos depois de o TRF4 expedir ofício notificando Sérgio Moro para que emitisse o mandado de prisão, o que ocorreu às 17h31. De qualquer maneira, o documento só está disponível a quem possui uma senha especial para ingressar no sistema de processo eletrônico da Justiça Federal, normalmente restrito às partes e advogados.
Antes das 18h já se conhecia publicamente o teor do mandado de prisão emitido pela Vara de Curitiba, uma decisão que não estava prevista. Minutos antes de ser admitida a ordem de prisão, o advogado de Lula Cristiano Zanin comentava com jornalistas no Instituto Lula que “a defesa não trabalhava com a hipótese de prisão imediata”. Mesmo o presidente do TRF-4, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores, havia afastado essa opção pela manhã, em entrevista à rádio Jovem Pan: “Anuncia-se que talvez a defesa interponha novos embargos de declaração. Após o julgamento desses novos embargos, se forem interpostos, o relator do processo, o desembargador Gebran, aí sim está autorizado a comunicar o juiz Moro para eventual cumprimento da decisão do Tribunal que foi tomada no dia 24 de janeiro desse ano”. Thompson Flores completou: “Acredito que isso aí deve ser examinado no máximo em 30 dias como foram os embargos anteriores”.
“Manipulatório de massas”
Gerum menciona os atos públicos protagonizados pelo ex-presidente, que considera “movimentos manipulatórios das massas” e sugere que o tempo transcorrido poderia auxiliar na organização de uma resistência popular em defesa do ex-presidente. “Assume especial importância a presteza no início do cumprimento da pena, não só para estancar essa sensação de onipotência, mas também para evitar que esses movimentos manipulatórios das massas atinjam níveis que tragam dificuldades extremas para fazer valer a lei penal”, defende o procurador.
O procurador da República parte da premissa de que o processo movido contra Lula “é absolutamente singular”: “Em razão de sua exitosa trajetória de vida, de seu carisma pessoal incomparável e do exercício de dois mandatos na Presidência da República, com diversos avanços na sociedade brasileira, o processo e o julgamento do réu Luiz Inácio canalizou a atenção de um número muito expressivo de pessoas, acirrando paixões e ódios”.
Entretanto, na sua avaliação, o ex-presidente tem utilizado a comoção popular em seu benefício político, o que justificaria inclusive uma prisão preventiva. “O réu Luiz Inácio tem invariavelmente utilizado sua grande capacidade de articulação política para enfrentar, de forma ostensiva e acintosa, a ação penal e as condenações que sofreu. Não se critica o inconformismo natural a qualquer réu que não aceita a pena que lhe é imposta, mas sim a utilização de uma estrutura partidária para dar vazão, com ampla repercussão na imprensa, a palavras de efeito que nada mais fazem do que semear o descrédito no Poder Judiciário, com o único propósito de garantir a impunidade dos crimes pelos quais foi condenado”, assinala o procurador.
Em seu texto, Gerun menciona reportagens publicadas em jornais brasileiros nas quais o ex-presidente ataca o Ministério Público Federal e desafia a Justiça a prendê-lo. Também sublinha trechos da nota emitida pelo Partido dos Trabalhadores após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de negar um pedido de habeas corpus preventivo à Lula, que ele afirma tê-lo impressionado “especialmente” por haver declarado que “‘Nossa Constituição foi rasgada por quem deveria defendê-la e a maioria do STF sancionou mais uma violência contra o maior líder popular do país, Lula’, dizendo ainda que ‘a maioria do STF ajoelhou-se ante a pressão escandalosamente orquestrada pela Rede Globo’”, grifa.
Ricardo Noblat: Meu personagem inesquecível
Que magnífica biografia, a de Lula. De preso político a político preso
Lula virou, mexeu, mas não saiu do lugar. Sérgio Moro, o mais exímio enxadrista da sua geração de juízes, aplicou-lhe um xeque e 40 horas depois, Lula continua em xeque. Ganhou tempo para pensar se o xeque o deixou sem saída ou se há alguma. Não parece haver.
Na prática, Lula está preso desde que se refugiou na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo na noite da última quinta-feira. Com a diferença de que ali sua cela é mais ampla do que será a de Curitiba. E visitas são permitidas a qualquer hora.
Ter que dormir numa cama improvisada, sem frigobar por perto, sem a tv de 50 polegadas e de alta definição a qual estava acostumado, sem poder levantar de madrugada e desfilar nu pela casa, enfim sem o conforto de estar em um lugar que é seu, é um tremendo incômodo.
E ter que ouvir o ex-senador Eduardo Suplicy a dissertar sobre as vantagens do programa de renda mínima? E a ter que ouvir amiúde a vozinha irritante da senadora Gleisy Hoffman, presidente do PT? E à algaravia infernal de conselheiros, admiradores e até desconhecidos?
Em uma de suas primeiras reuniões com ministros no Palácio do Planalto, em 2003, Lula comentou irritado depois de ouvir uma sugestão estúpida: “Toda vez que segui os conselhos da esquerda, me dei mal”. Não disse que se dera mal. Usou um dos seus palavrões preferidos. Mas deixemos assim.
Nas primícias do PT, a esquerda imaginou cavalgar Lula para com ele arrombar as portas do poder. Arrombou de fato na quarta tentativa. Mas como Lula nunca foi de esquerda e nem quis ser, foi ele que a cavalgou. Cavalga até hoje. Faz o que quer com ela. Continuará a fazer, por ora.
Lula sempre foi primeiro ele, segundo ele, terceiro, quarto, e suas circunstâncias. Uma vez, deram-lhe uma apostilha com uma espécie de Raio-X da esquerda. Para que ele a entendesse melhor. Páginas da apostilha que Lula jamais leu forraram o chão da casa do cachorro dele.
O líder das gigantescas greves do ABC paulista no início dos anos 80 foi também, e na mesma época, o analista informal da Odebrecht para assuntos sindicais. Está no depoimento a Moro do ex-presidente da construtora, Emílio Odebrecht. Já gostava de viver de obséquios.
O retirante da seca nordestina, que diz ter passado fome em São Paulo, transformou-se em sócio da Odebrecht ao se eleger presidente da República. Enriqueceu-a ainda mais, e enriqueceu, porque afinal ninguém é de ferro, nem mesmo ele, o filho de dona Lindu, nascida analfabeta.
De Garanhuns para o mundo, de acanhado língua presa para “este é o cara” como o saudou certa vez o presidente Barack Obama, Lula está a caminho de Curitiba. Questão de horas. Ou de um dia a mais, quem sabe mais um. E somente os fados impedirão que isso aconteça.
Enfim, de preso político nos idos de 80 do século passado, que driblava greve de fome chupando balinhas, a político preso, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, à espera do julgamento de mais oito processos. É o epílogo notável de uma biografia igualmente notável.
Demétrio Magnoli: O dia da prisão de Lula
O suicídio de Vargas eternizou o varguismo. A prisão de Lula emoldura o lulismo para a posteridade
As duas afirmações seguintes não são idênticas: 1) Pobre do país que envia à prisão o candidato presidencial favorito; 2) Pobre do país cujo candidato presidencial favorito é enviado à prisão. A primeira concentra uma narrativa filopetista na qual a vontade popular é fraudada pelo Estado. A segunda, uma narrativa antipetista, na qual a ordem legal protege a nação do populismo.
Ambas, porém, concordam no qualificativo empregado como lamento: numa versão ou na outra, a prisão de Lula revela a dimensão da crise nacional brasileira.
Já se falou demais sobre a "história de vida" de Lula. Conta-se que, para preservar um simbolismo político valioso, FHC dissuadiu os tucanos de apresentarem um pedido de impeachment após as confissões de Duda Mendonça, em 2005, auge do escândalo do mensalão, quando um Lula alquebrado segurava-se nas cordas. O romance épico do retirante nordestino famélico que conquistou o Planalto seria, segundo o sociólogo tucano, um mito político insubstituível: a coroa de louros de nossa jovem democracia. O que fazer com isso, no dia da prisão de Lula?
O Lula descrito por Lula nunca foi menos que a metáfora de forças sociais irresistíveis. Nas assembleias da Vila Euclides, em 1980, ele disse que corporificava a classe trabalhadora. Nos dias de glória do Palácio, desde 2003, e depois, sob o assédio dos tribunais, passou a dizer que corporifica o próprio povo brasileiro. A derrota de Lula equivaleria, então, à derrota da nação.
Você tem o direito de divergir dessa narrativa arrogante, de evidentes raízes autoritárias. Mas, tirando os cínicos incuráveis, ninguém discordará de que a democracia brasileira perde algo muito relevante: a oportunidade de julgar, nas urnas, o legado dos governos de Lula e Dilma. O lulismo condenado pelos juízes escapa ao tribunal da cidadania. Isso tem consequências.
Na "era Lula", a Petrobras foi colonizada por um cartel de partidos políticos —PT, PMDB, PP— e extorquida pelo cartel de empreiteiras associadas ao lulismo. Sob o comando de Lula, o BNDES transferiu fortunas ao empresariado que orbitava em torno da lâmpada do Estado.
O "pai dos pobres" gabava-se de ser, ao mesmo tempo, o "pai dos ricos". Mas o Lula que ruma para uma cela da PF não é o camarada dos Odebrecht, o brother de Eike Batista, o patrono do metrô de Caracas ou o mecenas do ditador angolano José Eduardo dos Santos, mas apenas o presumido proprietário de um tríplex vagabundo numa praia urbana decadente.
No fim, a obra da Justiça é um tapume que oculta a obra do lulismo —e, nesse passo, evita o escrutínio público dos capítulos decisivos de nossa história recente.
O dia da prisão de Lula deve ser anotado no calendário como o zênite de um fracasso nacional: nossa persistente incapacidade de extrair as lições da falência do lulismo. A nação polarizada entre fanáticos lulistas e fanáticos antilulistas desistiu de examinar os fundamentos da política econômica que provocou a mais profunda depressão de nossa história recente.
O país hipnotizado pela novela vulgar do processo de Lula abdicou de refletir sobre a natureza das políticas sociais voltadas para estimular o consumo privado. A crítica política do lulismo deu lugar à histeria regressiva do bolsonarismo. É como se, a caminho da cadeia, Lula tivesse lançado um feitiço idiotizante, condenando-nos a uma guerra fratricida sobre seu destino pessoal.
O suicídio de Vargas eternizou o varguismo. A prisão de Lula não abole o lulismo, mas o emoldura para a posteridade. Numa ponta, oferece alento à narrativa exterminista de uma direita em rebelião contra o princípio do pluralismo. Na outra, remete às calendas a hora do acerto de contas da esquerda brasileira com o populismo lulista.
Não chore. Não comemore. No dia de sua prisão, Lula ganhou a liberdade de iludir um pouco mais.
Míriam Leitão: O dia mais longo
O ex-presidente Lula fez ontem um último e desesperado gesto para demonstrar força. Deixou passar o prazo e cercou-se de militantes, enquanto nos bastidores negociava com a PF. Cada minuto corria contra os dois lados. Para a Justiça, porque estava sendo desrespeitada, e para ele, porque enfrentou riscos de piorar sua situação. Mas duas coisas estão certas sobre Lula: ficou inelegível e vai para a prisão.
O juiz Sergio Moro decidiu aguardar a negociação, mas nas suas mãos estava a possibilidade de decretar a prisão preventiva por descumprimento de ordem judicial. O primeiro efeito disso seria Lula não ser mais alcançável por benefício, nem por uma hipotética mudança de entendimento do Supremo sobre execução da pena. Outro seria perder o que havia conseguido, como a cela especial. Moro preferiu esperar uma saída negociada pela PF. Tecnicamente, Lula evitou o pior, porque seus advogados procuraram a Polícia Federal antes do prazo final e assim conseguiu-se evitar a caracterização de foragido.
Contudo, um ministro do STF me disse que Moro tem que tomar “decisões drásticas” para não desmoralizar a Justiça, caso o ex-presidente continue desrespeitando a ordem. Ao mesmo tempo, a Polícia Federal, que desde a manhã fizera o seu planejamento estratégico para a prisão, sabia que ir ao Sindicato dos Metalúrgicos seria cair numa armadilha e colocar terceiros em risco, por isso preferia negociar.
Lula está em situação pior do que parece. Essa é apenas a primeira das ações que responde. No fim de maio, começo de junho, o ex-presidente pode enfrentar nova condenação, desta vez no processo sobre a suposta propina da Odebrecht para a compra da sede do Instituto Lula e o uso do apartamento ao lado do dele, em São Bernardo. Serão ouvidos novamente, no dia 11, o empresário Marcelo Odebrecht e o executivo da empreiteira, Paulo Mello. Após a audiência, será aberto o prazo para as alegações finais. A sentença poderá sair em dois meses e ser dada até o fim de maio ou começo de junho, segundo fontes judiciais que acompanham o processo. Essa nova sentença não é a única que ronda o ex-presidente. Outros processos estão em andamento na Justiça de Brasília e no Paraná. A ação penal, na 13ª Vara, sobre o sítio de Atibaia, está em etapa muito inicial e as testemunhas da defesa ainda nem foram ouvidas.
O ex-presidente fez dessa longa espera de ontem o que ele sempre soube e gosta de fazer, transformar tudo em mobilização e comício. O simbolismo de esperar no Sindicato dos Metalúrgicos de onde saiu para a sua vida política, os apoiadores na rua, e os discursos que se sucediam são parte da natureza política do ex-presidente. Nada disso, no entanto, o salva da prisão.
O que levou o ex-presidente Lula à situação vivida ontem foi a soma de suas próprias escolhas. Suas relações com as empreiteiras, ao serem investigadas, geraram várias ações penais. Ao ser processado, ele optou por uma defesa inepta que confrontava o juiz Sergio Moro, como se ele fosse o inimigo. Isso foi desmontado quando a sentença de Moro foi confirmada no TRF-4. E, em seguida, a defesa não conseguiu reverte-la nos tribunais superiores.
Depois da fanfarra de ontem, virá a realidade: começará o amargo período do cárcere, que independentemente de ser em cela especial ou não, impõe a quem o vive a sensação de isolamento e de que o tempo não passa. Sua defesa busca todos os caminhos para tirá-lo dessa situação, mas eles estão cheios de obstáculos. Os advogados podem pedir habeas corpus ao STJ e ao STF. Cada corte já recebeu dois. O ministro Marco Aurélio recebeu um e o encaminhou à ministra Cármen Lúcia. Mas avisou que tentará apresentar, na quarta-feira, no plenário a liminar de ação declaratória de constitucionalidade. Isso se conseguir tempo, porque a pauta já tem dois habeas corpus. O de Antonio Palocci tem precedência porque é réu preso. O outro, não tem tanta urgência, porque é o de Paulo Maluf que já está em casa.
O país tem vivido dias de grande estresse da sua vida institucional. Por trás desse momento de tensão, é sempre bom lembrar, está um avanço da sociedade brasileira no combate ao difícil e persistente problema da corrupção.
Merval Pereira: Beirando a irresponsabilidade
Nas análises dos especialistas em mediação de conflitos da Polícia Federal, o PT usou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC como um bunker para proteger o ex-presidente Lula, e militantes como barreiras humanas para impedir uma ação policial sem incidentes graves.
Na verdade, há a avaliação de que, ao se recusar a apresentar-se em Curitiba às 17h de ontem, e dizer num primeiro momento que Lula não se entregaria, a estratégia do PT beirou a irresponsabilidade, buscando uma ação violenta, possivelmente um conflito grave que pudesse ser utilizado como base para uma acusação de ação desproporcional do Estado repressor.
Um cadáver produzido por um conflito de tal gravidade seria o detonador de uma crise institucional dificilmente superável. Essa estratégia de teor insurgente foi esvaziada pela atitude tolerante da Polícia Federal, que tinha o mandado para operacionalizar a prisão vencido o prazo concedido.
Para conseguir tal objetivo, a Polícia Federal e o próprio juiz Sérgio Moro, que autorizou o início do cumprimento da pena, correram o risco de passar à sociedade uma imagem de fraqueza diante do ex-presidente condenado, para evitar uma tragédia que talvez fosse ansiada por uma militância mais radical, que acabou ganhando aparentemente a queda de braço. Moro chegou a pensar em decretar a prisão preventiva de Lula, o que impediria o ex-presidente de se beneficiar caso o STF mude a jurisprudência, proibindo a prisão em segunda instância. Dependendo do desenrolar da situação hoje, não está descartada a possibilidade.
Aparentemente porque, na verdade, o que acontecia nos bastidores era uma frenética negociação entre emissários do PT e da Polícia Federal, o que descaracteriza a possibilidade de confronto e estabelece a aceitação, por parte dos representantes legais de Lula, das regras do jogo democrático. Ao mesmo tempo, os advogados do expresidente usavam os instrumentos de nosso sistema judicial para tentar recursos nos tribunais superiores, o que também confirma que, embora denunciem aos quatro ventos ilegalidades, cumprem as regras democráticas na defesa do condenado.
Foi dada a Lula a possibilidade de fazer uma figuração de resistência para os militantes petistas, ao mesmo tempo em que a Polícia Federal evitava sabiamente alimentar a radicalização dessa mesma militância com uma ação mais violenta.
O retorno ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, de onde surgiu sua liderança sindical que gerou o Partido dos Trabalhadores na década de 1980, proporcionou a Lula a chance de repetir as técnicas que fizeram sua fama de negociador como líder sindical.
São frequentes os relatos de Lula negociando soluções com empresários para greves em reuniões regadas a uísque que resultavam muitas vezes em acordos combinados com os patrões que pareciam ter sido tirados a muito custo e pressão do líder popular.
Foi o que aconteceu ontem. Lá dentro do seu bunker, Lula negociava com a Polícia Federal, mas passava a ideia à militância do lado de fora de que resistiria. Muitas idas e vindas, como as ameaças de enfrentamentos, eram divulgadas para consumo da plateia dos convertidos, sem que fossem endereçadas diretamente à Polícia Federal.
O problema maior dessa situação é que o ex-presidente Lula passou inicialmente a ideia de que a lei não é para ele, uma sensação de onipotência que quer transmitir a seus militantes, como ressaltou o procurador Mauricio Gotardo Gerum no documento em que pede a prisão imediata de Lula ao TRF-4. Embora sob sigilo, sabe-se que o documento entregue da quinta-feira justificava a urgência para a publicação da ordem de prisão dizendo que o condenado tem uma “sensação de onipotência” e que não prendê-lo com urgência semearia o “descrédito no Poder Judiciário”.
Esse é o risco que a Polícia Federal e o juiz Sérgio Moro correram ontem com a atitude benevolente diante de um condenado que se negou a cumprir uma ordem de prisão sob o manto de negociações. Na verdade, Lula e seus advogados nunca afirmaram que se recusariam a aceitar a decisão do juiz Sérgio Moro, embora essa fosse a palavra de ordem de seus militantes.
Sob a alegação de que preferia ficar em São Paulo, ou que precisava ir à missa em memória de Dona Marisa, Lula explicitou para seu público externo uma força que ele já não tem, pois nunca esteve em dúvida que se entregaria. Queria apenas forjar imagens para futuras narrativas épicas que devem rechear a propaganda eleitoral de seu avatar eleitoral.
Resta saber se a arrogância do ex-presidente será rejeitada pelos não convertidos, resultando, caso isso aconteça, em mais um desgaste para o líder político Lula.
Fernando Gabeira: Embargo do embargo
Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, o fato mais previsível do mundo é alguém condenado pela Justiça ser preso
Gostaria de estar à altura do nível dramático desta semana no Brasil. No entanto, aconteceu algo que me deixou frio e calmo.
Viajávamos para Serafina Correa (RS) e, na altura de um lugar que se chama Encantado, um carro perdeu a direção, cruzou a estrada e bateu violentamente no nosso. Em meio à fumaça, lembro-me de ter dito apenas: sobrevivemos.
Quando se vê a morte tão de perto e se escapa dela, pelo menos no primeiro momento tudo fica mais simples.
Horas depois conseguimos um novo carro, o outro teve perda total, e voltamos a ouvir os longos votos dos ministros do Supremo sobre o habeas corpus de Lula. Sinceramente, talvez influenciado pela alegria de sobreviver, não via o fim de tudo se o STF derrubasse a prisão em segunda instância.
O velho mecanismo de corrupção seria de novo azeitado e, para nos impressionar, de vez em quando prenderiam um ancião e criariam um vaivém de cadeiras de rodas no presídio. Como somos sentimentais, aceitaríamos que os anciões fossem libertados logo para cumprir prisão domiciliar.
O único problema dessa opção: a Justiça no Brasil deixaria de funcionar em nome do belo princípio de presunção da inocência. As vítimas dos crimes continuariam desemparadas.
Mas a recusa do habeas corpus também não me parece um drama. É apenas a continuidade do bem-sucedido processo da Lava-Jato e da política do STF desde 2015.
Quando Lula foi condenado na segunda instância, não entendia os repórteres que diziam: o destino de Lula é incerto. Destino incerto é o meu e de todos que estão em liberdade. Lula será preso.
Infelizmente, com a calma dos sobreviventes, não consigo entender a agitação da imprensa. Há sempre alguém falando de um recurso, de um embargo do embargo, dando a falsa impressão de que as coisas vão mudar. Uma pessoa que vê a imprensa à distância pode supor que produzir tantas tramas artificiais é algo feito para ajudar Lula. Mas não é o caso. As pessoas precisam de emoção, de criar tramas que mantenham o interesse. Nesse filme, o ator não pode morrer no princípio, pois seria um anticlímax.
Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, pouco me importam as pancadas, mas devo dizer que o fato mais previsível do mundo quando alguém é condenado pela Justiça, caso não fuja, é ser preso.
Todo esse miolo dramático, todas essas tramas que se criam entre a definição da Justiça e o momento da prisão são apenas tentativa de alongar o interesse pelo caso. Somos novelistas, criando enredos secundários.
Naturalmente, para o PT e seus aliados, as manobras e as constantes dúvidas mantêm a chama e podem ser de interesse político. Mesmo nesse caso, duvido da eficácia do cálculo. Se estivessem de olho no futuro, talvez escolhessem outra tática.
Toda essa interpretação talvez seja resultado da visão esquisita que tomou conta de mim desde o acidente em Encantado. Nada mais tedioso de quem supõe que conhece todo o enredo e subestima os lances emocionantes das tramas que eletrizam a imprensa.
Espero me curar disso, na próxima semana. Ou então deixar de escrever, pois, realmente, eu me sinto numa outra galáxia. Num lugar onde a lei vale para todos, as pessoas são condenadas e o fato mais banal é sua prisão.
A cidade onde nos acidentamos chama-se Encantado. Ao contrário do que seu nome sugere, foi ali que o Brasil finalmente se desencantou para mim.
Precisaria voltar a viver todas essas emoções, como um ateu que recupera sua fé. E voltar a acreditar em embargos dos embargos e em toda essa conversa.
Eliane Cantanhêde: Republiqueta de banana?
A prisão de Lula é um aviso: quem comete crimes que ponha as barbas de molho
Muitos comemoram, muitos choram, mas não há o que comemorar nem chorar na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, homem com biografia vibrante, que saiu do horror da miséria, sacudiu num pau de arara, virou o maior líder sindical da história recente, chegou à Presidência e saiu dela com 80% de aprovação. Mas fez tudo o que fez ao chegar ao poder.
Para o ministro Gilmar Mendes, a prisão de Lula “mancha a imagem do País”. Para a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, transforma o Brasil numa “republiqueta de bananas” aos olhos do mundo. É verdade que há grande mobilização das esquerdas brasileiras em defesa de Lula junto a governos, líderes e sociedades. Mas não é verdade que Lula seja uma “vítima das elites”, “um perseguido político”.
Assim como não se pode classificar de “golpe” o impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, não se pode chamar de “golpe” as sucessivas decisões que condenaram Lula a 12 anos e 1 mês de prisão.
Dilma se mostrou incompetente para gerir a política, a economia e as contas do País e efetivamente fez as “pedaladas” – deixou de transferir recursos do Tesouro para os bancos públicos pagarem os programas sociais. Por quê? Para mascarar o rombo das contas públicas e, pior, continuar gastando em ano eleitoral. É crime.
Quanto a Lula: a primeira condenação é pelo seu caso mais simples, o do triplex do Guarujá, mas isso está inserido num contexto muito mais complexo, que envolve várias outras ações, pelo sítio em Atibaia, pela Operação Zelotes, pelo Instituto Lula... E, principalmente, pela evidência (até pela fala do ex-ministro Antonio Palocci) de que Lula institucionalizou a corrupção. Corrupção sempre houve, mas articulada e operacionalizada a partir do Planalto e do Ministério da Fazenda?
O impeachment de Dilma seguiu todos os trâmites legais: o Supremo definiu o rito, a Câmara votou em dois turnos, o Senado também, a sessão final foi presidida pelo então presidente do Supremo. Tudo foi transmitido ao vivo para a população, sem uma só restrição às liberdades individuais.
E a prisão de Lula, por mais triste que seja, e é, seguiu todos os trâmites legais: investigação da Polícia Federal, do Ministério Público, da Receita, com julgamento em primeira instância, confirmada pelo TRF-4 e após tanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto o próprio Supremo Tribunal Federal negarem o pedido de habeas corpus apresentado por advogados de grande respeitabilidade.
Golpe? Que golpe? Lula apenas se tornou o foco e a síntese de um intenso debate que divide o Supremo, o Planalto, o Congresso, os partidos, os formadores de opinião e toda a sociedade brasileira. Deixar Lula livre em nome de sua biografia e de seu prestígio internacional, ou prosseguir firmemente num processo histórico de combate a uma corrupção estratosférica? Deixar Lula livre em nome de não se criminalizar todo o sistema político, ou manter o processo de depuração das instituições e dos quadros políticos? É disso que se trata.
Essas questões remetem para o voto do ministro Luís Roberto Barroso durante o julgamento no Supremo: um país não é justo quando garotos pobres com um baseado de maconha são jogados nas prisões, mas ricos, poderosos e famosos matam, roubam, corrompem e são corrompidos e nada acontece com eles.
A presidente do PT defende o regime Maduro e acusa o Brasil de “republiqueta de banana”, mas é exatamente o oposto. O que se pretende é justamente que a justiça valha para todos e que o Brasil deixe de ser uma republiqueta que massacra os pobres e endeusa os poderosos.
A prisão de Lula, aliás, é um aviso: quem comete crimes que ponha as barbas de molho. Fim da farra.
Fernando Gabeira: Mais que uma quarta-feira
Foi uma semana de muita tensão. Teremos virado uma página? Não creio...
O que estava em jogo na quarta-feira era uma questão central para o País: romper ou não com um sistema de corrupção que se alimenta da lentidão da Justiça. O Brasil estava se tornando um país bizarro, com um vaivém de cadeiras de rodas nas cadeias. Era tão difícil prender alguém, no labirinto de agravos e recursos, que já chegava bem velho.
Como somos sentimentais, depois de algumas semanas todos acabam em prisão domiciliar. E essa seria a tendência dominante se prevalecesse a tese de impedimento da prisão após sentença de segunda instância.
A ideia básica da presunção de inocência é muito poderosa, até por sua beleza filosófica. No entanto, depois de duas condenações é razoável que sofra um abalo. Além disso, há outra ideia forte em jogo: a eficácia da Justiça. Se via recursos e caros advogados os réus podem prolongar sua liberdade, as vítimas não recebem o que merecem: justiça.
A proposta de Gilmar Mendes era obscena, pois previa uma votação contrária à expectativa popular e, logo em seguida, uma acomodação da opinião pública. Mas ninguém se vai acomodar. Nem os petistas, agora que Lula se aproxima da prisão. No meu entender, isso os levará a gastar menos energia com Lula e a pensar nos caminhos do País. A condenação do Lula e sua grande capacidade de mobilizar acabaram ofuscando o debate sobre os rumos da reconstrução.
O PT passou por diversas palavras de ordem, quase todas defensivas: não ao golpe, eleição sem Lula é fraude, liberdade para Lula... Mas tudo indica que as eleições serão sem Lula candidato – apesar de sua capacidade de transferência de votos. Nada impede que um partido boicote as eleições, mas a experiência mostra que se ganha muito mais participando do que boicotando.
Teremos virado uma página? Não creio. O debate sobre o tema não envolve apenas Lula. Ele só encarnou um drama que para alguns, como Eduardo Cunha e outros presos, precisava de um símbolo mais poderoso.
Ao longo destes anos, o sistema político sempre buscou uma fórmula de neutralizar a Lava Jato. A resistência de Lula é antiga, desde que definiu a “república de Curitiba”. Ele se colocou na linha de frente e os grampos mostram isso. Num momento questionava a covardia do Supremo ante o processo, noutro lamentava a passividade dos políticos, que pareciam ignorar a tragédia que se abateria sobre eles.
O MDB também se importava com isso. A célebre frase de Romero Jucá “é preciso estancar a sangria” revela a ansiedade diante do avanço da Lava Jato. No Congresso foram muitas as tentativas de retaliar as investigações. Era mesmo impensável que um esquema tão complexo de dominação fosse render-se sem peripécias.
O último dos combatentes é Temer. Coube-lhe fazer alguma coisa. Ele tentou. Até escolheu um diretor da Polícia Federal tão fiel que acabou caindo por excesso de fidelidade.
Temer tem uma tática própria: não bate de frente com a Lava Jato, como Lula, ele diz publicamente que a apoia. Suas intervenções são mais no sentido de defender direitos individuais, respeito ao processo legal. Apesar de tudo, consegue pequenas vitórias. Esse coronel Lima, por exemplo, é apontado como seu operador, mas nunca depôs na Polícia Federal. Todas as convocações foram negadas, sob o argumento de que sua saúde não permitia. O coronel foi preso apenas para depor e, mesmo assim, não falou nada.
Com forte base de apoio no Supremo, a resistência à Lava Jato e suas consequências não estão esgotadas. A operação mesmo está na fase final. O que está em jogo é o futuro. De um lado, como montar um esquema de corrupção tão sólido e durável como esse que se está dissolvendo? De outro, como reduzir a corrupção a níveis mínimos?
Depois de tantos anos da Lava Jato, tudo parecia ir bem nesse campo. O papel da política seria interpretar esse sucesso e produzir um conjunto de leis que a completasse. Mas, de repente, uma discussão sobre o destino de Lula no STF põe o rumo em xeque. Voltaríamos ao velho poderoso esquema de corrupção com a impunidade garantida por um sistema judicial?
Tanto um lado como o outro acharam que tudo estaria perdido caso os juízes apontassem em direção contrária à sua expectativa. A verdade é que vitória e derrota nesse julgamento não significam um dado absoluto. O processo continua, deságua nas eleições e está sujeito a recaídas.
O problema central nesse confronto é saber que posição tem mais viabilidade histórica. Controle maior da corrupção, processos mais rápidos e eficazes, a ideia de que a lei vale para todos são elementos de uma tendência mais promissora. É a que aponta para o que existe em países mais avançados, mas isso não significa garantia de vitória. Depende de muito esforço, mas, felizmente, esta semana muitos compreenderam isso.
Foi uma semana de muita tensão. Cármen Lúcia pediu serenidade. Comandantes do Exército e da Aeronáutica se pronunciaram. Houve quem visse nisso tudo um clima de 1964, que precede a intervenção militar. Na verdade, houve uma boa discussão, talvez um pouco longa, talvez um pouco complicada, mas, de qualquer maneira, ficou claro para todos o que estava em jogo.
Alguns juízes que rejeitam o populismo insistem em que não votam pela pressão das ruas. Estão certos. Mas à medida que as discussões se tornam um pouco mais compreensíveis e são transmitidas ao vivo, é inevitável que maior número de pessoas opine, e com argumentos. Ainda que não sejam argumentos rebuscados como os dos juízes, são um forte indício de que as pessoas comuns querem tomar nas suas mãos o destino do País.
Potencialmente, o processo de politização dos últimos anos pode levar a um interesse maior pelas eleições e a uma demanda mais firme por projetos de governo. Quem comemora vitórias nesse caso precisa ser discreto, pois novos e difíceis momentos podem surgir para sustentar o velho esquema de corrupção.
Da mesma forma, quem amarga a derrota deve levar em conta que o campo da esquerda segue forte, apesar de seus erros táticos e estratégicos. Que venha mais uma campanha presidencial. Em outros países, a esta altura ela já seria o centro do debate.
Míriam Leitão: O passo seguinte
Com a iminente prisão do ex-presidente Lula fica mais dramático o dilema em que o país está. Há uma jurisprudência que está levando Lula à prisão, mas que depois pode vir a ser alterada. Líderes de outros partidos também enfrentam processos. Neste caso, como ficará o país, as leis e a Justiça se na hora dos outros estiver em vigor entendimento diferente?
Esse dilema fortalece a manutenção da prisão após a segunda instância e não o contrário. A jurisprudência atual deve ser mantida não para resolver esse impasse criado pelas circunstâncias difíceis vividas pelo país. O principal motivo de se confirmar a segunda instância é que essa é a forma de lutar contra a longa história de impunidade e desigualdade judicial do país. Isso ficou claro na pesada sessão do STF. Os dois lados no Supremo esgrimaram durante 11 horas. Mas foram mais convincentes os que defendiam a manutenção da regra de que a pena se cumpre após as duas instâncias que julgam o mérito, analisam as provas e a autoria do crime. A primeira e a segunda instâncias são as únicas que têm “cognição plena de matéria jurídica e fática”, como disse o ministro Alexandre de Moraes. Os outros níveis da Justiça discutirão pontos específicos e questões processuais.
As estatísticas apresentadas pelo ministro Luís Roberto Barroso são impressionantes. Preparadas pela Assessoria de Gestão Estratégica, mostram que de janeiro de 2009 a meados de 2016 foram apresentados 25.707 recursos extraordinários ou agravos. Foram acolhidos apenas 2,93%, e só 1,12% foram a favor do réu. Houve somente 9 absolvições, ou 0,035%. A Coordenadoria de Gestão de Informação do STJ informou que, de setembro de 2015 a agosto de 2017, foram 68.944 recursos interpostos. Apenas 0,62% obtiveram absolvição. “Não se pode moldar o sistema em função da exceção”, concluiu o ministro. Os números e os fatos lhe dão razão.
Os que têm a visão de que só esgotados todos os recursos é que se pode iniciar o cumprimento da pena não conseguem responder a várias questões. Como evitar as inúmeras manobras protelatórias? Como ignorar a realidade brasileira, em que a tramitação é lenta, em que os tribunais superiores não conseguem entregar com agilidade suas decisões? Como evitar que os que conseguem bons advogados possam dilatar o tempo do cumprimento da pena ao ponto da prescrição? Em que país a visão de presunção de inocência é assim tão fundamentalista? O ministro Celso de Mello falou em Itália e Portugal. Parecem exceções em um vasto número de países que têm outro entendimento.
Números, fatos e, principalmente, a realidade brasileira mostram que fazem mais sentido os argumentos pelo início da execução da pena após o encerramento do julgamento de segundo grau. Não é razoável o tempo de anos entre o crime e o início do cumprimento da condenação. A tese de que há no Brasil uma “onda de punitivismo” não se sustenta minimamente. O que existe no Brasil é a impunidade dos que são mais fortes. Sempre foi assim.
Mas o que está claro é que essa regra de prender após a condenação em segundo grau pode ser mudada em breve. Quando? Não se sabe. Mas se for alterada em curto prazo, Lula terá vivido o constrangimento do qual outros podem ser poupados. Quando estiver em pauta, a ministra Rosa Weber estará de novo, involuntariamente, nos holofotes. Ela deixou no ar que pode voltar ao seu entendimento se a questão de fundo for apreciada. Enquanto não for oficialmente mudada, ela continuará negando os habeas corpus.
Então, no país das divisões, haverá mais uma: a dos que foram julgados e, eventualmente, presos, no entendimento de 2016, e os que podem vir a ser beneficiados se o STF restabelecer a jurisprudência que vigorou por apenas sete anos no país, entre 2009 e 2016.
O ex-presidente Lula está no primeiro grupo e sua cela já foi preparada. Onde estarão os outros políticos que futuramente podem ser condenados? Onde estará, por exemplo, o senador Aécio Neves, que foi alvo de denúncia da Procuradoria-Geral da República por ter pedido R$ 2 milhões a Joesley Batista, em conversa gravada pelo próprio empresário? São inúmeros os casos. É grave o momento que o país vive. Não pode haver uma jurisprudência presente, e outra ameaçando o futuro.