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Eliane Brum: Lula, o inconciliável

Qual é a relação entre o ódio de uma parcela dos brasileiros contra o maior líder popular da história recente e a fratura do projeto de conciliação que ele representou nos anos que ocupou o poder?

Lembro duas cenas da conciliação que Lula promoveu no Brasil da primeira década do século.

Na primeira, ocorrida durante a campanha presidencial de 2002, só há três testemunhas. Uma delas sou eu. É uma cena pequena, mas ela sempre teve uma enormidade para mim, porque não acredito nem em deus nem em diabo, mas acredito que ambos vivem nos detalhes.

Eu entrevistava uma mulher da elite paulistana que namorava um dos principais industriais de São Paulo. Juntos, eles foram decisivos para que Lula conversasse com uma parte da elite, a que era conversável, e costurasse um apoio fundamental para a vitória do PT em 2002, depois de três derrotas consecutivas. Apoio que se concretizou na “Carta Ao Povo Brasileiro”, na qual Lula se comprometeu não com o povo, mas com o mercado, a manter as principais linhas da política econômica.

É preciso lembrar que, naquela eleição, Lula vestiu Ricardo Almeida e circulou pelos salões da elite de São Paulo, uma porta dourada aberta por Marta Suplicy, hoje no (P)MDB. Não apenas circulou, como encantou. Lula tornou-se pop para milionários que acreditavam ser esclarecidos, empreendedores, modernos e cosmopolitas. Havia algo de muito sedutor num operário, num líder sindical, que gostava deles.

E havia uma pressão social crescente no Brasil. Após o deslumbramento com a volta da democracia, o país vivera o impeachment de Fernando Collor, com os carapintadas nas ruas, e vivia um final de segundo mandato bastante penoso de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Cidade de Deus, o filme de Fernando Meirelles e Katia Lund, era a expressão do Brasil de 2002.

Uma parcela da elite econômica de São Paulo desfilou Lula pelos salões para provar aos pares que ele era tão palatável quanto seu caviar

Uma parcela da elite econômica do país compreendeu a delicadeza do momento e costurou apoios e acordos, desfilando Lula pelos salões para provar aos pares que ele era tão palatável quanto seu caviar. E Lula, inteligente como é, desempenhou seu papel com brilhantismo.

Eu estava numa dessas mansões do Jardim Europa, onde só vivem os ricos muito ricos de São Paulo, e os ricos muito ricos de São Paulo são muito ricos em qualquer lugar do mundo. Entrevistava uma das principais anfitriãs de Lula. E ela me dizia o quanto Lula era fascinante e o quanto o Brasil precisava mudar.

De repente, interrompeu a fala. E chamou alguém. Num tom elegante, mas imperativo. A empregada doméstica estava no andar de cima, mas foi instada a descer para fechar a cortina da sala onde nós duas estávamos. Percebi que de fato não ocorrera à dona da casa que ela mesma poderia se levantar do sofá e andar alguns passos. Era a vida dela, sempre tinha sido. Não poderia haver outra.

Ali estava posta a mágica de Lula. Essa mulher podia circular pelos salões com o candidato do PT vestido em ternos de grife e ao mesmo tempo chamar a empregada para fechar a cortina. Pelo toque alquímico de Lula, as contradições por um momento apagavam-se.

Salto para 2006.

rapper MV Bill, um dos criadores da Central Única das Favelas (CUFA), está na Villa Daslu, que então era chamada de “templo do luxo” ou “meca dos estilistas”. Uma construção de 20 mil metros quadrados e colunas neoclássicas na Marginal Pinheiros, que vendia de roupas de grifes internacionais a helicópteros. Na época, Eliane Tranchesi, a proprietária, já estava às voltas com denúncias de sonegação de impostos, mas apostava alto na conciliação com o outro lado dos muros.

Se, em 2002, a expressão cultural do Brasil era Cidade de Deus, o filme, em 2006 a expressão cultural foi Falcão, meninos do tráfico, o documentário de MV Bill e Celso AthaydeA obra havia sido exibida três semanas antes no programa Fantástico, da TV Globo, em horário nobre do domingo. Ao mostrar a vida – e a morte – dos “soldados” do tráfico em favelas pelo Brasil, Falcão causou enorme impacto em pessoas que não costumavam se impactar com o genocídio dos meninos negros e pobres das comunidades e periferias: dos 17 entrevistados, todos muito jovens, apenas um havia sobrevivido para assistir ao programa naquela noite de domingo.

Lula estava há quase quatro anos no poder, era candidato à reeleição e o PT já enfrentava as denúncias do mensalão, esquema de compra de votos de parlamentares que Lula afirmava desconhecer. A “conciliação” era ainda uma tese em vigor, com um presidente que não só havia cumprido rigorosamente o acordado na Carta ao Povo Brasileiro, ao não mexer na condução da economia, como ainda mantinha muito da sua mística apesar das primeiras denúncias de corrupção do PT no poder.

“Não estamos aqui para encontrar culpados pela tragédia em que vivem essas crianças (mortas pelo tráfico). Estamos aqui para juntar ricos e pobres”, disse a dona da Daslu

Para lançar o livro Falcão, meninos do tráfico na Villa Daslu, MV Bill subiu ao quarto andar com 30 moradores de favelas. A loiríssima Eliana Tranchesiresumiu, com clareza poucas vezes vista, o tom da conciliação costurada no Brasil de Lula: “Não estamos aqui para encontrar culpados pela tragédia em que vivem essas crianças. Estamos aqui para juntar todo mundo, ricos e pobres, as forças de todo mundo”.

Essa era a mágica. Juntos, o rapper negro da Cidade de Deus, no Rio, e a loira empresária paulistana que fraudava o fisco celebravam a possibilidade da conciliação de dois países apartados. O Brasil, um dos lugares mais desiguais do mundo, deveria se conciliar sem olhar para o que causava a desigualdade. Ou, o tema mais sensível, sem tocar na renda dos mais ricos nem fazer mudanças estruturais que atingissem seus privilégios.

Estavam, como anunciou Eliana Tranchesi, “todos juntos, ricos e pobres”. E cada um no seu lugar. Na Villa Daslu, os negros eram trabalhadores uniformizados e os o moradores de favelas que ali entraram naquele dia voltariam em seguida para suas casas sem saneamento básico e jamais poderiam comprar sequer um botão no “templo do luxo”. Mas, deslocados por um momento do seu lugar apenas para reafirmá-lo, eram bem-vindos e até amados. A imagem produzida era vendida como se realidade fosse. Era uma cena poderosa e é possível que muitos acreditassem nela. O Brasil vivia um momento muito particular.

Diante da mistificação, uma voz se levantou na plateia: “O consumismo é uma das causas dessa tragédia. Estamos no templo do consumo. Isso aqui é o responsável. Se eu lembrar do país e da desigualdade em que vivemos, esse local é uma violência”.

O mal-estar se instalou. O idílio acabara de partir-se. “Para satisfazer o sonho de consumo de comprar um tênis, quem está na favela às vezes tem que matar. Mas não para comprar um tênis da Daslu, porque aí tem que matar muito mais”, somou outra voz. Farpas verbais foram trocadas, a plateia branca fez sinal para cortarem o microfone.

A líder da favela Coliseu, uma mulher negra e desempregada, levantou-se então para defender a anfitriã: “Ela é rica porque trabalhou muito para ser rica”.

Apoteose. Gritos e palmas. A conciliação estava salva no Brasil de Lula. Mais tarde, Eliana Tranchesi seria presa por sonegação fiscal e outros crimes, condenada a 94 anos de prisão, e a Villa Daslu deixaria de existir. Outros “templos de consumo” tão seletos quanto, mas mais discretos, foram erguidos em São Paulo. Inclusive no próprio local da então gloriosa Villa Daslu.

A mística da conciliação sobreviveria por mais tempo.

O Brasil governado por Lula teve aumento real de salário mínimo, teve redução significativa da miséria, teve ampliação do acesso à universidade, teve melhorias importantes no Sistema Único de Saúde (SUS), teve Estatuto da Igualdade Racial, teve garantia de crédito para os mais pobres. Isso não é pouco e fez enorme diferença na vida de quem nem sempre podia comer.

Em parte só foi possível melhorar a renda dos mais pobres, sem tocar na renda dos mais ricos, pela exportação de matérias-primas para a China: e quem pagou por isso foi a Amazônia

Em grande parte, a melhoria da renda dos mais pobres, sem tocar na renda dos mais ricos, foi possível pela exportação de matérias-primas para a China, que vivia anos de crescimento acelerado. Mas esse tipo de desenvolvimento teve um custo alto para a Amazônia, um tipo de custo que não é recuperável – e num momento em que o planeta vive a mudança climática causada por ação humana. É o custo-natureza, aquele que alguns autores definem como “o trabalho não pago da natureza”.

É por essa razão que as contradições apareceram primeiro na Amazônia, na construção das grandes hidrelétricas e, com mais impacto, na maior de todas elas: Belo Monte. Em Altamira e região do Xingu todo o ovo da serpente já estava desenhado há muitos anos, mas era convenientemente longe demais. Lula e depois Dilma, assim como o PMDB, poderiam sempre contar com a desconexão do centro-sul urbano com relação à floresta. E o centro-sul não decepcionou também desta vez. Nem a parte da esquerda ligada ao PT, que mostrou a seletividade de sua preocupação com os direitos humanos e sua ignorância com relação à mudança climática e ao meio ambiente. Há uma parcela do PT e da esquerda que está cimentada no século 20. Sequer chegou a maio de 1968.

Era nas regiões amazônicas atingidas pelas grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que os povos seriam sacrificados em nome de algo supostamente maior, o desenvolvimento. A conciliação tinha sangue, suor e lágrimas, mas bem longe das capitais.

Os brasileiros que se importam de fato com a Amazônia, para além dos ufanismos de ocasião, são uma minoria. E um número menor ainda consegue fazer a relação entre o mal-estar cotidiano nas cidades e a destruição da floresta e de outros ecossistemas. Os brasileiros, assim como a maioria dos habitantes do planeta, vivem a catástrofe ambiental mas dão outros nomes a ela.

Se a água não presta ou se a água falta, acham que basta ter aumento de salário, para poder comprar água no supermercado, ou o governo do momento fazer uma obra, para que a água volte para as torneiras. Ainda não compreenderam que a água será a maior preocupação de seus filhos e netos.

O tema da corrupção foi sequestrado pela direita, e a esquerda ligada ao PT se omitiu diante da violação de direitos humanos em Belo Monte e outras grandes obras do PAC e da Copa de 2014

Também por isso Belo Monte e outras grandes obras tornaram-se possíveis e raramente são citadas como um passivo de Lula e de Dilma, mesmo por seus odiadores. Exceto quando aparecem ligadas ao propinoduto denunciado pela Operação Lava Jato. O tema da corrupção foi sequestrado pela direita – e a esquerda ligada ao PT preferiu se omitir diante das violações de direitos humanos nas grandes obras do PAC, como Belo Monte, e também da Copa de 2014.

A conciliação de Lula só podia ser provisória. Num país tão desigual como o Brasil, não é possível fazer justiça social sem mudanças estruturais – ou sem pelo menos mexer na renda dos mais ricos, redistribuindo a riqueza existente.

Há uma pergunta, sempre repetida, e que após a prisão de Lula se torna ainda mais ruidosa: “por que odeiam tanto Lula?”

É uma pergunta legítima. E tem sido respondida com frequência pelo preconceitodas elites com o que Lula representa: o nordestino, o trabalhador braçal, o pobre. Faz sentido. Mas acredito existir mais do que isso. Por várias razões e também porque, se essa fosse toda a explicação, Lula não teria terminado o segundo mandato – oito anos no poder e o escândalo do mensalão em curso – com quase 90% de aprovação.

Suspeito que mesmo os mais ricos se incomodam com a miséria. A não ser que você seja um psicopata, é duro ver pessoas destruídas nas ruas. Ou, sendo mais cínica, a imagem da miséria pode ser perturbadora porque contamina o cenário dos dias, nos faróis e nas calçadas. E pode ser perturbadora porque, por mais seguranças que se bote na porta, por mais vidros blindados nos carros, a miséria acaba transpondo os muros e ameaçando a paz armada do Brasil.

Ainda que os brasileiros, e aí não só os mais ricos, tenham alcançado uma desconexão espantosa com relação à vida torturante dos mais pobres, em especial à dos negros, não me parece que alguém goste que o Brasil tenha tanta miséria e desespero. E também me parece que mesmo os mais ricos gozaram com a popularidade internacional do Brasil de Lula, visto como o país que tinha superado o passado e se transformava numa potência do presente. Sem contar que os mais ricos ficaram mais ricos neste mesmo Brasil.

Se a conciliação vendida por Lula era provisória, isso só ficou claro no governo de Dilma Rousseff: a perda dessa ilusão teve grande impacto subjetivo sobre o país

Se a conciliação vendida por Lula era provisória, isso só ficou claro no governo de Dilma Rousseff. E talvez seja essa perda da ilusão que os mais ricos e setores da classe média não perdoem em Lula, acentuada pela piora na economia quando se acreditava que o Brasil já não poderia retroceder. Os protestos que irromperam em 2013 tiveram muitos sentidos, muitos deles contraditórios. Um dos sentidos – e só um deles – pode ter sido esse, o da perda da ilusão, que se materializou nessa rua polifônica, onde só o que ficava claro era uma furiosa e confusa insatisfação.

A ilusão de que é possível reduzir a pobreza sem perder privilégios, que vigorou na primeira década deste século e foi amplamente propagandeada pelo maior líder popular da história recente, é muito, mas muito sedutora. É necessário incluir na análise deste momento histórico o peso subjetivo que essa ideia de conciliação exerceu nesses anos de magia, em que o que era impossibilidade foi vendido como possibilidade em exercício. E o quanto essa subjetividade impactou nos fatos objetivos que fizeram do Brasil um país aos espasmos.

Uma imagem-síntese desse momento ocorreu em 2010, no último ano do segundo mandato de Lula. O então bilionário Eike Batista, símbolo da pujança do Brasil da primeira década, comprou o terno que Lula usou na posse, em 2003, com um lance de meio milhão de reais. O dinheiro foi destinado a um projeto de alfabetização na favela de Paraisópolis, em São Paulo. E o terno foi doado pelo bilionário ao acervo de Lula.

O leilão, na Daslu, foi promovido por Wanderley Nunes, cabeleireiro da então primeira-dama Marisa Letícia. Ela e Eike dividiram uma mesa. Estas são também imagens que fazem parte dos oito anos de governo de Lula, tanto quanto as dele com o povo do semiárido nordestino. Uma parte não fica completa sem a outra.

O poder dessa conciliação provisória sobre a subjetividade da vida brasileira não pode ser subestimado. A subjetividade é seguidamente esquecida nas análises dos contextos históricos, mas em geral ela é tão ou mais importante que os acontecimentos objetivos – e os determina.

É possível que parte do ódio destinado a Lula pelas elites que em 2015 desceram à Paulista para protestar com a camisa da seleção, acompanhando centenas de milhares de brasileiros, pode ser atribuído à suspensão dessa ilusão. Afinal, não seria possível conciliação sem perda de privilégios. E privilégios, dos mais evidentes a ter uma empregada que aceite descer para fechar a cortina da sala, a elite brasileira – econômica, política, intelectual – não está disposta a perder. A corrupção era a justificativa perfeita, porque elevava moralmente o portador da crítica e o salvava de perguntas cujas respostas lhe devolveriam uma imagem menos límpida.

A reação à maior presença dos negros nos espaços de poder marcou o momento em que as fissuras do projeto de conciliação se tornaram explícitas

Nos últimos anos de Lula e nos primeiros de Dilma Rousseff, os efeitos de algumas medidas sociais começaram a se fazer sentir. A ampliação do acesso dos negros às universidades talvez tenha sido o momento em que os privilégios foram colocados em xeque. Tratava-se ali de mexer em algo estrutural no Brasil, o racismo. E naquele momento a tensão tornou-se explícita, sinalizando que havia fissuras no projeto de conciliação.

Os lucros eram ótimos quando o Estatuto da Igualdade Racial, ainda em fase de elaboração, foi combatido com fúria por setores da elite. Os negros, cada vez mais presentes nos espaços de poder, avançavam sobre lugares simbólicos muito caros também para parte da classe média. Haveria que perder: objetivamente, vagas para brancos nas universidades e em concursos públicos; subjetivamente, muito mais. As reações foram imediatas.

Nos últimos anos, o avanço do protagonismo negro tem mostrado o quanto mexer nos privilégios mais subjetivos, como o de falar sozinho nos espaços de poder, é um tema explosivo no Brasil. Mesmo pessoas que se consideram de esquerda reagem mal, em especial quando o privilégio a ser perdido é o de se considerar um branco bacana.

A ampliação das ações afirmativas contra o racismo, assim como o Bolsa Famíliapriorizando as mulheres como titulares do programa, colocaram algo muito potente em movimento no Brasil, algo que seguirá se movendo para muito além dos fatos do momento. Isso pertence aos governos do PT. Neste sentido, se Lula mantinha os bolsos das oligarquias e dos rentistas cheios, por um lado, por outro solapava algumas bases pelas beiradas.

Ao mesmo tempo, não é permitido esquecer, seu partido se corrompia. A corrupção não é um dado a mais, na medida em que ela define escolhas de desenvolvimento. Não há nada mais eficiente para gerar propinas e caixa dois do que obras, em especial se elas forem grandes. Como Belo Monte.

A questão mais profunda do Brasil continua a ser a mesma: para ter conciliação de fato será preciso perder privilégios

Os programas sociais e as ações afirmativas dos governos do PT acabaram por colocar em risco a conciliação vendida por Lula. Essa fissura entre tantas expôs o óbvio. Não havia mágica. A questão mais profunda do Brasil continuava a ser a mesma: para ter conciliação de fato é preciso que uma parcela da população perca privilégios. E isso, para as elites e também para setores da classe média, era – e continua sendo – inaceitável.

Não me refiro aqui a qualquer privilégio. Aquilo que não custa perder não é privilégio. Privilégio custa. E mesmo quem tem bem poucos se agarra aos seus, o que explica um tanto de ódio mesmo entre pobres urbanos. Há sempre algo a perder, mesmo que seja uma pequena superioridade sobre o vizinho.

Assim, Lula tem alguma razão quando diz que o perseguem por ter colocado “negro dentro da universidade”. Mas o que ele precisa dizer também é que esta foi a conciliação que ele vendeu ao Brasil e na qual se lambuzou por vários anos. Esta foi a conciliação que o elegeu e o reelegeu mesmo após o mensalão, uma conciliação que tem sua expressão bem acabada na arquitetura político-financeira construída no segundo mandato, aquela que o PT chamou de “governabilidade”. Esta foi a “paz” pela qual possivelmente ele também tenha se deixado seduzir. E que nos trouxe até aqui.

O mágico precisa saber que sua mágica é truque, não realidade.

Não é possível saber qual é o tamanho do Lula que foi para a prisão. A memória é construída depois, a memória é dada pelo futuro tanto quanto pelo passado. Ainda vivemos o agora. E ele é furioso.

Para compreender o legado de Lula, o conciliador, é preciso enfrentar o inconciliável em Lula.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Brasil, um gigante abatido

A prisão do ex-presidente Lula chega num dos momentos mais frágeis da economia e da democracia do país que há poucos anos inspirava o mundo

“Em que momento o Brasil se ferrou? Em 1500, quando os portugueses chegaram.” A ironia de Clóvis Rossi, um dos mais respeitados jornalistas brasileiros, poderia ser ecoada por milhões de compatriotas. É uma sensação muito comum, como se algo estivesse dado errado desde o princípio, como se seus problemas estivessem tão arraigados na história que dificilmente terão uma solução. O saque colonial, um sangrento regime escravista que chegou até quase o século XX, uma independência sem heróis proclamada pelo herdeiro de um rei português... Com uma bagagem assim, são muitos os que pensam que seu país já nasceu ferrado e que a desigualdade social, a violência e a corrupção fazem parte de sua natureza.

Há apenas uma década, tudo era muito diferente. Em 2008, enquanto a Europa e os Estados Unidos mergulhavam numa crise econômica, o Brasil batia recordes de crescimento – 7,5% ao ano. O velho mito do país do futuro parecia a ponto de se tornar realidade. Aquilo era uma potência que despontava, um gigante com uma população de 200 milhões de pessoas que aspirava a desempenhar um papel crucial à frente da coalizão de nações emergentes. O mundo confiava tanto no Brasil, e os brasileiros estavam tão seguros de si mesmos, que de uma só tacada organizaram a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos. E no comando, um herói popular, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cortejado pela elite da política mundial.

Como se tudo aquilo tivesse acontecido em 1500, e não anteontem, o Brasil é hoje um país arrasado pela crise política e moral. Nem sequer o anúncio da retomada da economia, após três anos desastrosos, conseguiu aliviar os ânimos. O Brasil tem um presidente, Michel Temer, rejeitado por mais de 90% dos cidadãos. Tem um Congresso com dezenas de parlamentares, incluindo os líderes dos principais partidos, investigados por corrupção. Registra 60.000 homicídios por ano, com uma guerra cotidiana nas favelas e 725.000 presos amontoados nas cadeias – a terceira maior população carcerária do mundo. Até mesmo Lula, agora preso, condenado por corrupção e deixando para trás a imagem de um país devastado, entre a raiva de seus seguidores e a euforia dos que comemoram sua desgraça. Tudo isso em meio a um dos momentos mais frágeis da democracia e com uma atividade econômica que ainda não entrou no círculo virtuoso que um dia este país experimentou.

O Brasil afundou tanto que, pela primeira vez desde a volta à democracia, em 1985, os comandantes do Exército se permitem fazer pronunciamentos políticos e lançar ameaças veladas. Agora descobre-se que muitos brasileiros “perderam a vergonha” de defender a ditadura, como diz Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo. São os que colocaram em segundo lugar nas pesquisas para a eleição de outubro o ultradireitista Jair Bolsonaro, um sujeito que se negou a condenar o assassinato da vereadora e ativista Marielle Franco, no Rio de Janeiro, outra recente comoção no país.

Mas, sem voltarmos a 1500, quando foi que realmente tudo começou a dar errado? Há uma data fundamental: 2013. Já com Dilma no poder, a estratégia do PT de se proteger da crise mundial injetando dinheiro público na economia dava sinais de cansaço. E, de repente, o mal-estar explodiu. A fagulha foi algo que parecia insignificante: o aumento da tarifa do transporte público. Mas aquilo acendeu um pavio que se espalhou pelo país inteiro, com mobilizações protagonizadas por jovens de esquerda. Dilma ainda venceu as eleições do ano seguinte com a diferença de votos mais apertada da História, mas a situação piorou rapidamente. O Brasil mergulhou na pior crise econômica em 100 anos. Para completar o que Rossi chama de “combinação letal”, as investigações dos contratos da Petrobras revelaram que o sistema político se alimentava de um gigantesco esquema de corrupção.

“Nos anos anteriores o consumo havia se ampliado, e surgia uma nova mentalidade de exigência da qualidade dos produtos”, explica a socióloga Fátima Pacheco. “Essa ideia se trasladou à política. O antigo ditado “rouba, mas faz” se transformou em “se rouba, não faz”. A tensão ganhou as ruas entre 2015 e 2016. Agora os manifestantes eram outros: a classe média, que sofria a crise e se indignava com os escândalos.

Os até então sócios de centro-direita do PT reagiram destituindo Dilma. Para a esquerda, foi o equivalente a um golpe de Estado, golpe este que seria completado agora, segundo Lula, com a sua prisão. A presidenta foi substituída por alguém tão impopular quanto ela, seu vice, Michel Temer. “E a perda de credibilidade se estendeu por todo o sistema político”, afirma Pacheco.

Clóvis Rossi tem 75 anos e, pela primeira vez na vida, assistirá em outubro a uma eleição direta sem Lula. Com a ausência daquele que apesar de tudo continuava sendo favorito, ninguém tem a menor ideia do que pode acontecer. Com um debate público cada vez mais violento e a ameaça de Bolsonaro, muitos brasileiros temem que o pior ainda está por vir.


Merval Pereira: Sem razão para mudanças

Tendo o ministro Marco Aurélio Mello aceitado o pedido de adiamento feito pelos novos advogados do Partido Ecológico Nacional (PEN), a questão da prisão em segunda instância provavelmente voltará à estaca zero.

Mesmo que a ação não possa ser sustada, a liminar pode, e, ao pedir esclarecimentos ao seu impetrante, o ministro Marco Aurélio demonstra que está preocupado em conhecer as razões do partido que, ao desistir da liminar, criou um fato novo neste processo.

O ministro, mesmo claramente empenhado em rever a decisão de permitir a prisão em segunda instância, está agindo com total imparcialidade ao lidar com essa questão excepcional. Quer se informar melhor para tomar a decisão de levar ou não à mesa a liminar que pede a suspensão de todas as prisões após condenação em segunda instância, até que as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) sejam votadas.

As manobras dos advogados originais do PEN, capitaneados por Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, não surtiram efeito, pois a segunda liminar, em nome de um instituto de advogados que era parceiro na ação original, não foi admitida pelo ministro Marco Aurélio, em mais uma demonstração de que age rigorosamente dentro da lei, sem beneficiar nenhum dos lados.

Do jeito que as coisas vão, fica muito difícil votar uma liminar cujo impetrante nega ter tido a intenção de fazê-lo, mesmo que legalmente a ação seja indisponível, quer dizer, tenha que prosseguir ativa. A vontade do impetrante principal de retirar o pedido fere a credibilidade da liminar e enfraquece seu poder de convencimento dos ministros, inclusive o próprio Marco Aurélio, que não tem nada a ver com a confusão montada pelo Partido Ecológico Nacional (PEN), mas provavelmente sente-se constrangido pela situação criada.

O Supremo Tribunal Federal (STF), que já estava em situação delicada ao ser instado a tratar do mesmo tema que, seis dias antes, decidira em favor da manutenção da jurisprudência atual negando o habeas corpus a Lula, ficará mais constrangido ainda caso mantenha a análise de uma liminar rejeitada pelo próprio impetrante, sejam quais razões forem para que tenha mudado de posição.

Deu-se nesse caso um estranho desentendimento entre o advogado original e o impetrante, um a favor da mudança da jurisprudência em qualquer situação, acusado de favorecer Lula, o outro querendo suspender a discussão do tema por não desejar que interpretem seu ato como um benefício ao ex-presidente.

Pior ainda: os novos advogados do PEN agora anunciam que o partido está a favor da prisão em segunda instância, e renega a própria ADC impetrada. A base do pedido de liminar que está na berlinda é uma suposta nova maioria que já estaria formada no plenário do STF, pela anunciada mudança de posição do ministro Gilmar Mendes, que em 2016 votou pela prisão em segunda instância e declara-se já há algum tempo disposto a adotar a tese do ministro Dias Toffoli de que a prisão possa ser decretada após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A procuradora-geral, Raquel Dodge, defendeu junto ao Supremo que não seja feita nenhuma mudança na jurisprudência, muito menos baseada em uma presunção que pode não ser confirmada. Ao mesmo tempo, na esteira da ministra Rosa Weber, parece haver um movimento no Supremo para manter a jurisprudência atual por mais tempo.

Para se ter uma ideia, quando ela foi mudada em 2009, a composição do plenário havia sido alterada radicalmente, com a nomeação de oito novos ministros entre 2002 a 2006. Mesmo assim, somente em 2009 é que o assunto foi tratado em plenário, mudando o entendimento que vigorava há muitos anos.

Agora, a única alteração que aconteceu na composição do plenário desde 2016, quando a jurisprudência voltou a permitir a prisão em segunda instância, foi a substituição por morte de Teori Zavascki pelo ministro Alexandre de Moraes, que manteve a posição a favor da prisão em segunda instância.

Depreende-se do voto da ministra Rosa Weber que, se na opinião dela e de muitos juristas, a mudança de composição não justifica a mudança de jurisprudência, muito menos uma alteração de voto anunciada por um ministro.

Correção - O eventual fim da possibilidade de prisão em segunda instância não atinge os réus que estão em prisão preventiva.


Luiz Carlos Azedo: Seguro morreu de velho

A estratégia da cúpula petista agora mira as eleições proporcionais, ninguém acredita em projeto de poder sem Lula. A narrativa de candidato preso por razões políticas fragiliza sua defesa

As mudanças mais significativas da reforma ministerial do governo Temer foram a ida de Moreira Franco para o Ministério de Minas e Energia e a efetivação do general Joaquim Silva e Luna no Ministério da Defesa. O primeiro sinaliza para os investidores a intenção de levar adiante o programa de concessões do governo no setor mineral, a privatização da Eletrobras e a continuidade dos leilões de exploração de petróleo da camada pré-sal; o segundo, o ostensivo protagonismo dos militares numa conjuntura politicamente complicada, na qual o mais importante é a manutenção do calendário eleitoral, a realização de eleições sem violência e a garantia da lei e da ordem durante a campanha. As demais mudanças foram seis por meia dúzia, ou seja, na maioria dos casos, acabaram efetivados homens de confiança dos antigos ministros. Temer não agregou massa crítica na reforma.

Os investimentos estrangeiros e a tranquilidade nos quartéis são tudo o que o presidente Michel Temer precisa garantir até o fim do mandato, com a saída de Henrique Meirelles do Ministério da Fazenda (e o esgotamento do programa de reformas do governo no Congresso, por falta de base de sustentação). A economia está condenada ao “mais do mesmo”, apesar da inflação abaixo da meta e dos juros em seu menor patamar histórico, com a Selic em 6,5%. Embora não sejam conquistas nada desprezíveis, o governo perdeu substância na reforma ministerial, a ponto de o MDB ter sido o partido que mais defecções sofreu no troca-troca partidário: 10 deputados. A opção daqui para a frente será se preparar para a eventualidade de uma terceira denúncia contra Temer, que arrasta as correntes da Operação Lava-Jato.

As viagens de Temer, Rodrigo Maia e Eunício Oliveira na sexta-feira e no sábado, porém, são sinais de normalidade política. O presidente da República estará na Cúpula das Américas; o presidente da Câmara viajará ao Panamá e o presidente do Senado, ao Japão. Com isso, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, terceira na linha de sucessão, assumirá a Presidência da República, interinamente. As condições em que isso ocorrerá, de certa forma, dependerão da ministra. Na quarta-feira, o STF terá que lidar com a rebordosa da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois o ministro Marco Aurélio Mello pretende pôr “em mesa” para votar um novo pedido de habeas corpus em favor de Lula, na esperança de que a prisão seja revista com o voto da ministra Rosa Weber. Cármen Lúcia decidirá se o plenário apreciará ou não. Como diria Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

Desde a intimação para se apresentar voluntariamente à Polícia Federal, na sexta-feira passada, por determinação do juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal, de Curitiba, o “jus esperneandi” do petista se tornou o maior espetáculo da Terra. Lula transformou a prisão numa produção midiática, com criação de imagens para a campanha do PT, nas quais divide a cena com candidatos do partido e seus aliados às eleições deste ano. A presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), que também está enrolada na Lava-Jato e deve se candidatar a deputada federal, comanda a “resistência” petista. Ontem, à frente dos manifestantes que protestam contra a prisão de Lula nas imediações da Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, onde ele está detido, anunciou que a sede do PT será transferida para a capital paranaense enquanto o ex-presidente estiver na cadeia.

Escracho
Um balanço das manifestações mostra o isolamento político do PT e a baixa capacidade de mobilização social. O ato de São Bernardo, defronte ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, nem de longe lembrou as históricas assembleias metalúrgicas da greve de 1978, no emblemático Estádio da Vila Euclides, nas quais Lula emergiu para a história como sindicalista. Antigos aliados deram as costas ao ex-presidente, que contou com a solidariedade de corpo presente de apenas dois presidenciáveis, Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (PSol), ambos de olho nos votos dos órfãos eleitorais de Lula. Apesar da agressividade dos protestos e da repercussão internacional, a escala de solidariedade a Lula foi baixa, reforçando a tese de que é a competência dos advogados que deve orientar a defesa, e não o fervor ideológico petista.

A estratégia da cúpula petista agora mira as eleições proporcionais, ninguém acredita em projeto majoritário sem Lula. Essa posição é reforçada pela preocupação de construir a imagem de ex-presidente injustiçado por razões políticas. Do ponto de vista jurídico, porém, essa postura vem colecionando fracassos, pois afronta todo o Judiciário. A sessão do Supremo de amanhã pode ser a última chance de libertar Lula antes do fim do prazo de registro de candidaturas, porém, o constrangimento criado para o STF pode pôr tudo a perder.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-seguro-morreu-de-velho/


Carlos Alberto Torres: O "tipping point" do quadro político

No dia 7/04/18, sábado, o quadro político mudou. A prisão de Lula, como gostam de referir-se alguns cientistas sociais, foi um ponto de inflexão ou de virada, também conhecido como um “tipping point” (*).

Doravante, nada permanecerá igual: nem o quadro político eleitoral, nem o posicionamento dos protagonistas nos três poderes. A sociedade se movimentará em busca de uma alternativa do campo democrático para eleger o novo presidente da república.

Será na justiça, particularmente no STF, que se verificarão as mudanças de posição mais evidentes. Provável que pelo menos mais um juiz mude o seu entendimento para apoiar a atual jurisprudência determinando o cumprimento da pena imediatamente após a condenação em 2ª instância, somando-se aos que já a defendem. Não cabe especular quem será nem como isso se dará.

Até o PT poderá vir a fazer uma inflexão radical em sua política - uma "autocrítica" - para encampar a luta contra a impunidade. Alguns argumentam que, com isso, o PT estaria voltando à sua origem, quando defendiam a ética na política; essa é a sua melhor alternativa se olham para a história. Mas a maioria dos petistas ainda insiste em defender que o PT sequer existiria sem Lula, e apostam no “volta Lula”. Suas principais lideranças históricas já estavam presas; agora foi a vez de Lula. Se Lula não for libertado não terão mais nada a perder; a realidade os obrigará a mudar de estratégia para disputar as eleições. Pela lei da sobrevivência, poderão abandonar os seus heróis de ontem e passar a exigir a punição de todos os bandidos. Cuidem-se, desde Renan e Jucá até o Sarney, o Temer, o Aécio e até a própria Gleisi. Em se tratando do PT, nada surpreenderá!

A sociedade brasileira como que estava emparedada por uma barreira invisível, política, simbólica. Esta barreira impedia que, simplesmente, realizássemos uma premissa da justiça e da democracia: punir a todos os poderosos envolvidos em ilícitos, porque não podíamos punir a Lula.

Lula, ao usar todo o seu prestígio e popularidade, inclusive internacional, para escapar da justiça e da devida punição, tornou-se a grande esperança de todo um mundo de conhecidos e reconhecidos criminosos escondidos atrás de diferentes mecanismos viciosos de nosso aparato legal, como o “foro privilegiado”, do fajuto cumprimento da pena somente após o “trânsito em julgado”, e de inúmeros outros vieses judiciais historicamente inseridos na legislação penal para manter impunes aos poderosos.

Esgotou-se o tempo de Lula. O seu discurso nos momentos que antecederam à sua prisão, sem respeitar a dignidade dos cargos que ocupou, foi lamentável. Incentivou à ocupação de lotes urbanos, terras rurais, queima de pneus...; ameaçou os meios de comunicação livres, clamou por revolução, proclamou-se como sendo uma ideia...; atacou a justiça, os seus jovens profissionais concursados, os policiais federais, os procuradores e os juízes que o levaram à condenação. Proclamou-se dezenas de vezes inocente e perseguido! O ato foi apenas o que foi: uma catarse e um ritual de passagem. Lula respondeu com uma débil desobediência, teatralmente, para montar o espetáculo cinematográfico que culminou com a sua prisão inevitável!

Os méritos de Lula, entretanto, ninguém lhe retirará! Duas vezes presidente da república, a história saberá lhe fazer justiça. Os brasileiros, ao apoiarem majoritariamente que ele pague suas dívidas com a justiça e a sociedade, o fazem sem ódio, mas como um gesto fundamental, para que o Brasil supere a sua crise e recupere a esperança!

Como chegaram ou chegamos, socialmente, a este ponto? Como deixaram ou deixamos isso acontecer? Deixemos apenas o lixo rolar ladeira abaixo! Permaneçamos, todos, no alto da montanha! A tarefa da reconstrução democrática terá que ser de todos nós, desta vez sem essa coisa do "nós vezes eles"!

O nosso rumo é a democracia e o Estado Democrático de Direito! Mas, sejamos claros, os brasileiros querem acabar com a impunidade dos poderosos e querem esvaziar as cadeias, com menos pobres e pretos e mais criminosos de colarinho branco nelas, porque estes são, exatamente, os mais perigosos.

 


El País: Pressão política de militares no HC de Lula revela como Exército ganha espaço com Temer

Para historiador, militares "não se reconhecem como funcionários, mas sim tutores da nação”. Especialistas divergem sobre legalidade de mensagens do comandante Villas Boas

Por Felipe Betim, do El País

O general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército brasileiro, está habituado a se manifestar para seus mais de 176.000 seguidores no Twitter sobre diversos temas e a, vez ou outra, se posicionar sobre temas espinhosos, como o indesejado corte orçamentário das Forças Armadas ou suas visões sobre segurança pública. Mas sabe-se que algo vai além quando, com um semblante sério, William Bonner puxa um punhado de folhas e anuncia uma "última informação" no Jornal Nacional desta terça-feira: "Sem citar o julgamento do Habeas Corpus de Lula pelo Supremo amanhã, Vilas Boas fez um comentário em repúdio à impunidade numa rede social". Em seguida, o jornalista do principal telejornal da TV Globo lê em tom solene, como se fosse um pronunciamento, os dois tuítes do comandante. Ao invés do habitual tom moderado, suas palavras tinham um forte e intencional tom político dirigido "à Nação".

No contexto de polarização política, e às vésperas de um julgamento que poderia determinar o destino de Lula, o general colocou o Exército ao lado dos "cidadãos de bem" que repudiam "a impunidade" e garantiu que a instituição se mantém atenta "às suas missões institucionais" — sem detalhar quais são elas. Palavras que reverberaram em todo o país. Trata-se de uma ameaça de intervenção militar caso o ex-presidente Lula fique livre e seja eleito? O general extrapolou suas funções legais ao se posicionar sobre um tema sobre um assunto que diz respeito à Justiça? Durante todo o seu mandato, o presidente Michel Temer (MDB) buscou agradar os setores militares seja através de declarações ou nomeações, colocando-os de volta no núcleo decisório do país — sobretudo após a intervenção federal no Rio de Janeiro. Pouco a pouco, foram ganhando espaço e voz política. Estaria o Brasil voltando aos tempos em que a opinião e os comunicados dos altos comandos militares merecem destaque no noticiário?

Pelo sim pelo não, tanto o comandante como os principais generais que incensaram o incendiário tuíte de Villas Bôas à véspera do julgamento no STF, silenciaram nos dias seguintes sobre questões nacionais, inclusive durante a decreto de prisão do ex-presidente Lula e os dias seguintes em que negociou sua entrega à PF. A única exceção foi o general de reserva Paulo Chagas que manteve seu estilo 'sem papas na língua', com críticas a Lula, mas sem palavras que pudessem soar a ameaça.“O PT, para conquistar e manter-se no poder, escamoteou a verdade, iludiu incautos, agradou bandidos e praticou, sem pudor, todas as formas de imoralidade. Por gosto e incompetência, criou uma crise generalizada e gerou um caos cuja paternidade não assume”, diz um dos tuítes dele, do dia 8. Chagas é pré-candidato ao governo do Distrito Federal.

Desde que assumiu o poder, Temer vem governando de braços dados com os militares. Nomeou o general linha-dura Sérgio Etchegoyen como ministro do Gabinete de Segurança Institucional e lhe conferiu influência dentro do Governo; indicou o general da reserva Sebastião Roberto Peternelli Júnior, defensor da ditadura militar, para a FUNAI — e depois recuou diante das reações negativas. Também escolheu o comandante militar do leste, o general Walter Braga Netto, como interventor federal no Rio. Mantém, também, na pasta de Defesa o general da reserva Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar desde o Governo FHC a ocupar a pasta. Em março deste ano, disse que o povo brasileiro "se regozijou" com a "centralização absoluta do poder" após o golpe militar de 1964. A mensagem de Villas Bôas era uma extensão desse espaço dado por Temer.

No dia 6 de abril, o comandante disse ao jornal O Globo, por meio de seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros, do Centro de Comunicação do Exército, que a polêmica com o tuíte, era “assunto ultrapassado”. Nem ele, nem a maioria dos generais

General Villas Boas

@Gen_VillasBoas

Das ações similares no combate à insegurança pública depreendidas do estudo comparativo em outros países, destaco como 3º ponto que: A sociedade deve ser estimulada a reagir à ideia de que “o criminoso é vítima da mesquinheza social”. Vítima é a sociedade. Criminoso é criminoso!

General Villas Boas

@Gen_VillasBoas

Conduzo seguidas reuniões sobre a gestão dos cortes orçamentários impostos ao @exercitooficial. Fazemos nosso dever de casa, mas há limites

 

 Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), classifica a manifestação de Villas Bôas como “intempestiva e completamente indevida”. Para ele, que foi guerrilheiro durante a ditadura militar, o Brasil possui "uma tradição histórica" de sofrer "com a ingerência das Forças Armadas". Algo que "remonta à proclamação da República, fruto de um golpe militar". Isso porque "os militares não se reconhecem nem querem ser reconhecidos como funcionários públicos uniformizados, mas como tutores da nação, uma espécie de 'anjos da guarda' da República", explica ao EL PAÍS.

Autor de livros como Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos(Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti em 2015) e Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar), Aarão Reis também cita as "intervenções golpistas" que instauraram a ditadura do Estado Novo (1937-45) ou a última ditadura civil-militar (1964-85). Mas também fala de uma série de "ameaças, veladas ou explícitas", ao longo do século XX. Com a redemocratização, ele diz, "os constituintes de 1988 capitularam face ao lobby das Forças Armadas e mantiveram na Carta Magna artigos que autorizam a intervenção militar para 'garantir a lei e a ordem' (GLO)". Depois, entre os governos FHC e Dilma, as Forças Armadas viram o Ministério da Defesa ser ocupado por civis, a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da ditadura militar e, posteriormente, a constituição da Comissão Nacional da Verdade. Submeteram-se ao poder civil e se voltaram para os quartéis, perdendo relevância na vida política do país.

No entanto, Aarão Reis lembra que, paralelamente a esse processo, todos os presidentes civis recorreram repetidas vezes ao Exército, a partir de decretos de GLO, para a área de segurança pública. "Não tiveram a coragem de propor que se alterasse esta situação, de sorte que os militares permanecem como uma espécie de 'estado dentro do estado', com justiça própria, educação própria, previdência própria. E com este vezo de intervir como se fossem tutores da nação. Assim, nesta perspectiva, o general Vilas Boas reiterou esta tradição [ao se manifestar no Twitter]".

Durante o julgamento do habeas corpus de Lula, o ministro do STF Celso de Mello, chamou a atenção de Villas Bôas de maneira indireta, ao falar sobre movimentos que "parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir". Por ser decano no tribunal, isto é, seu membro mais antigo, ele costuma seguir a tradição de puxar para si a defesa institucional da Corte durante sessões plenárias. "Intervenções castrenses quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem a diminuir, quando não a eliminar, o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania, com danos à democracia".

Em nota pública, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, foi mais explícita: "Ameaças explícitas ou veladas de violação à autonomia do Supremo Tribunal Federal por parte do Poder Executivo são inadmissíveis em quaisquer hipóteses. Mais grave se partem da cúpula de instituições que detém o monopólio do uso da Força Armada no país". Ressaltou ainda que "um ato de ameaça ao Supremo Tribunal Federal é da mais alta gravidade constitucional e pode caracterizar, em tese, crime de responsabilidade (Lei nº 1079/50, art. 6º, 6: São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício)".

Decreto regula o comportamento dos militares

Em meio a aplausos de setores conservadores (militares da ativa e da reserva, movimentos de direita, entre outros) e ao repúdio daqueles que enxergam um viés golpista nas afirmações (políticos de esquerda, Anistia Internacional, acadêmicos, entre outros), especialistas divergem a respeito da legalidade do posicionamento do general. No centro do debate está um decreto assinado em 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que regula o comportamento das tropas. No anexo 1, considera-se uma transgressão os seguintes itens:

  • 56. Tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa;
  • 57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;
  • 58. Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária;
  • 59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado.

As normas são dirigidas a todos os militares, mas Villas Bôas não é qualquer soldado: é o comandante do Exército e fala pela instituição. Ao se manifestar, possuía respaldo de seus comandantes superiores, no caso o Ministério da Defesa e o presidente Michel Temer, segundo afirmou o professor da USP Dircêo Torrecillas Ramos, especialista em direito constitucional militar, ao jornal Nexo. “Villas Bôas manifestou uma posição dele e da instituição. É uma questão de liberdade de expressão. Ele tem o direito. Ele está respaldado por seus superiores. Não há quebra de hierarquia. É diferente de um subordinado opinar sobre algo que não lhe compete. Ele é o comandante do Exército e tem autorização das autoridades políticas para dizer o que disse”, explicou. O general de fato não recebeu represálias. Em nota para a imprensa, o Ministério da Defesa — comandando pelo general da reserva Joaquim Silva e Luna — afirmou que Villas Bôas "mantém a coerência e o equilíbrio demonstrados em toda sua gestão, reafirmando o compromisso da Força Terrestre com os preceitos constitucionais, sem jamais esquecer a origem de seus quadros que é o povo brasileiro". Temer não se pronunciou, mas na última quarta-feira, fora da agenda oficial, esteve na casa de Villas Bôas para um encontro reservado. Segundo a Folha de S. Paulo, ambos teriam tratado sobre a intervenção no Rio.

Por sua vez, Vinicius Mariano de Carvalho, professor do Brazil Institute do King's College, em Londres, argumentou à BBC Brasil que a mensagem do general reforçava a posição de que "o Exército não interferirá em nada". Para ele, o tuíte se dirigia sobretudo à própria tropa, com o objetivo de se "posicionar internamente para evitar rachaduras da coesão". As mensagens na rede social foi precedida, horas antes, no meio da tarde, por telefonemas a generais quatro estrelas. Eles foram avisados sobre o pronunciamento que faria às 20h39 no Twitter. Suas declarações destoam do perfil moderado pelo qual Villas Bôas é conhecido e admirado no meio político. Uma possível interpretação, levantada pelo jornal O Globo, é a de que sua mensagem serviu para aplacar a pressão de generais linha-dura, insatisfeitos com o que consideram uma apropriação política do Exército pelo Governo Temer, sobretudo com a intervenção no Rio. Assim, teria adotado um tom mais duro que o habitual para manter o controle e o restante da tropa unida em torno de si. "Eu li o Twitter várias vezes e me pareceu que ele apenas resguarda a Força, evita vozes aventureiras e outra vez mostra que a responsabilidade sobre a crise não está nas mãos das Forças Armadas", afirma Carvalho.

Mas para Aarão Reis, o general, "a rigor, cometeu uma ilegalidade". E "deveria ser chamado às falas". "Mas quem o faria? O presidente Temer é uma figura política patética, inteiramente desmoralizada. O Congresso Nacional é um cadáver que apodrece a céu abeto. O STF tornou-se um palco de disputa de vaidades. Quanto ao ministro da Defesa, é um colega do general Villas Bôas, superior apenas formalmente", argumenta.

O historiador da UFF vê como urgente a defesa da democracia, a qual "está balançando e só não vê isto quem não quer". E conclui: "Não precisamos de tutores ou de anjos da guarda, uniformizados ou não, tampouco de líderes carismáticos, precisamos é que o povo se organize autonomamente no contexto de uma frente social e política plural, de entidades, movimentos sociais e lideranças políticas para defender a permanência, e o aperfeiçoamento, da democracia no Brasil".


Jorge Oliveira: O Brasil não se comoveu com a prisão do Lula

Depois de renunciar em agosto de 1961, movido por forças ocultas, o ex-presidente Jânio Quadros, voltou para São Paulo e sobrevoou a cidade demoradamente até o avião descer no aeroporto. No saguão estava a esperá-lo o governador Carvalho Pinto (1959/1963) e mais alguns gatos pingados. Frustrado, Jânio perguntou, surpreso:

- Governador, onde está o povo?

- Que povo, presidente, está de porre? - respondeu o governador diante da irritação de Jânio.

O ex-presidente, “que se deu um golpe”, esperava voltar a presidência nos braços do povo depois de deixar o poder. O diálogo é lembrado pelo jornalista Mauro Ribeiro, autor do livro “Diário de um confinado”, que conta a história do retiro de Jânio Quadros em Corumbá, em 1968, por ordem dos militares, que ele cobriu para a Tribuna da Imprensa.

Esse episódio guarda semelhança com o que aconteceu no último fim de semana, quando o ex-presidente Lula desobedeceu a ordem de prisão do juiz Sérgio Moro e ficou confinado durante 26 horas no prédio do sindicato esperando que o povo aparecesse nas ruas para protestar contra a sua prisão. O que se viu, na verdade, foi a repetição da cena de Jânio. Lá, na porta no Sindicato dos Metalúrgicos, a plateia vermelha era tão manjada de outros carnavais que muitos foram cumprimentados com beijinhos do alto do palanque pelos personagens da ribalta.

Inconformado com a ausência do povo, Lula ainda tentou inflamar seus figurantes vermelhos horas antes da prisão: entrou e saiu do carro para mostrar as televisões que a multidão o impedia de deixar o prédio para acompanhar os agentes da Polícia Federal. No resto do país, os recrutas do Exército Vermelho do Stédeli ainda tentaram uma solidariedade ao ex-presidente à maneira antiga fechando as rodovias com pneus em chama. É uma forma tão velha de protestar que os policiais desinterditam os locais em pouco tempo com pá mecânica. O PT envelheceu nos métodos de fazer protestos. E o seu líder foi esquecido pelo povo, que no domingo, aqui no Rio, encheu às ruas para acompanhar o Botafogo ser campeão.

Os brasileiros não deram muita bola para o circo armado na porta do sindicato. Prova disso é que a Cinelândia e Copacabana, locais simbólicos de manifestações políticas, no Rio, estavam vazios. Em São Paulo, a Avenida Paulista também fechou os olhos para as firulas petistas, enquanto os carros da Polícia Federal desfilavam pelas ruas da cidade conduzindo Lula para cumprir pena em Curitiba. Se Lula queria comoção dos brasileiros, frustrou-se. Contentou-se mesmo com a proteção de antigos companheiros de sindicato e os figurantes do Boulos que deixaram o local horas depois da prisão do líder. Nem mesmo dois expoentes petistas apareceram por lá: Jacques Wagner e o governador petista do Ceará, Camilo Santana. Nenhum outro político de expressão esteve ao lado de Lula.

Acostumado a entourage que o cerca, Lula agora está sozinho, isolado, fechado entre quatro paredes. Os oito seguranças, os carros de apoio, o cartão corporativo ilimitado e outras mordomias a que tem direito como ex-presidente, por enquanto, ficam congelados. Para se ter uma ideia, Lula já gastou 7 milhões de reais do contribuinte desde que deixou o governo. A Dilma, outra privilegiada, só em 2017 torrou R$ 1 milhão e 400 mil reais em passagens para ela e assessores. A soma de despesas dos ex-presidentes, de 1999 para cá, já chega a R$ 36 milhões.

A exemplo de Jânio, Lula também perde a cabeça quando bebe e é capaz de qualquer ato intempestivo. Antes do discurso na porta do prédio do sindicato estava agarrado a uma garrafinha que resistiu largar, contrariando alguns assessores que insistiam em impedir que ele bebesse mais alguns goles antes de se apresentar aos militantes. Portanto, deve-se relevar as agressões dele a Justiça, a mídia, aos procuradores e o incentivo a invasão e a bandalheira que propôs no seu pronunciamento. O Lula sóbrio não é afeito a insultos nem tampouco de instigar atos de violência.

Lula desobedeceu a ordem judicial porque precisava fazer campanha política. Vitimizou-se para se mostrar perseguido e inocente das acusações. E ao se atrasar para se entregar estava consciente de que o seu ato criaria um certo suspense. Indiscutivelmente, a sua reação gerou uma das mais maiores audiências de TV no país. Ora, em um ano eleitoral, Lula soube tirar proveito de uma situação adversa para consolidar seus votos nas camadas mais populares contando a sua história de vida e fazendo um discurso populista para os mais humildes.

Esses mitos populistas, a história registra, não morrem politicamente, pois crava no inconsciente do povão que só ele, somente ele, é o messias salvador. E a bebida, ao contrário do que se pensa, é um instrumento de aproximação com o povão. Então, não se engane, a imagem que mostra o Lula resistindo em largar a garrafinha é também, para ele, um instrumento de campanha.

Então, só para lembrar: mesmo depois de renunciar a presidência da república, depois de um porre, Jânio ainda foi o que quis na política brasileira. Lula, portanto, ainda tem um grande caminho pela frente. E a sua prisão, não se engane, ele vai saber tirar proveito dela lá na frente.

O povão é carente de líder, infelizmente.

 


Punto Continenti: Prisão de Lula? Inevitável, diz Alberto Aggio

Em entrevista ao jornalista Rainero Schembri, do portal de notícias Punto Continenti (http://puntocontinenti.it/), da Itália, o professor e historiador Alberto Aggio comenta a prisão do ex-presidente Lula, no último sábado (7). Lula foi condenado a 12 anos e um mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro.  Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Professor Alberto Aggio, o que se pode dizer da prisão de Lula?
Alberto Aggio - A prisão do Lula é o resultado normal de um país que quer ver preservada a justiça, que quer ver o Brasil como, de fato, um país republicano no qual a lei é igual para todos. É evidente que trata-se de um caso muito particular. Pela primeira vez na história um ex-presidente é julgado, condenado e preso por um crime comum. Lula não é um preso político. Essa é uma narrativa que não se sustenta. Ele negociou ativos de todos os brasileiros, quando era presidente, para benefício próprio. E, esse processo pelo que foi condenado é apenas um deles, há mais processos nesse sentido contra o ex-presidente.

Muitos dizem que a prisão de Lula tem como finalidade evitar que ele participe das próximas eleições presidenciais de outubro próximo, uma vez que Lula aparece na frente das pesquisas. O que o senhor pensa disso?
De fato, há essa coincidência. Lula aparece na frente nas pesquisas. Mas a questão é que os processos contra ele são de crime comum. Não seria possível a justiça brasileira não levar adiante as denúncias que foram feitas contra ele. E não são poucas é pior: são gravíssimas. Os processos não são de crime político e sim de crime comum, que não podem deixar de ser executados. São os chamado crimes de “colarinho branco”. Lula é hoje um ex-operário e ex-dirigente sindical milionário. Seu envolvimento com empreiteiras e outros setores do capital são comprovados é bastante nocivos ao país. Lula não será impedido de disputar as eleições por conta da prisão e sim da lei da ficha limpa, que nasceu de uma emenda popular e o próprio PT ajudou a aprovar no Parlamento. Ele diz que não pode ser candidato que for condenado em segunda instância pela justiça. Lula é o o PT sabem disso, mas politizam os processos para tentar recuperar o terreno político perdido depois do impeachment e das eleições municipais de 2016, quando perderam mais da metade das prefeituras que governavam.

Se a popularidade de Lula é tão grande é porque a população pensa que os seus governos foram positivos para ela, sobretudo no plano social. A sua prisão não poderia gerar muito sérios problemas?
A popularidade de Lula é indiscutível. No entanto, ele não é uma unanimidade. Deve ter um eleitorado que gira entre 20 e 30 por cento. É isso é uma força importante na medida em que o quadro político está inteiramente fragmentado, como nunca se viu antes. Lula é enfim um mito político. Conjuga a ideia do herói dos pobres, do Robim Wood, mas foi também muito amigo dos ricos. Nos últimos anos se tornou um lobbysta da Oldebrecht. Ontem, se comparou a Jesus Cristo dizendo aos populares “eu vivo em ti”, um sinal para a nova campanha do Lula Livre: “eu sou Lula”. Trata-se de uma visão de elites, típica do discurso que se convencionou chamar de populista.

O senhor não teme que Lula indo à prisão fique ainda mais forte, se transforme num mito, numa verdadeira lenda nacional e internacional?
Lula já é um mito. E com todo mito, se não quisermos aderir à ele, temos que saber ser críticos, pensar e sermos capazes de analisá-lo. Não creio que se fortaleça com a prisão. Ao contrário. O que se viu na sua prisão é que Lula está isolado politicamente no campo de uma esquerda já anacrônica, com discurso anacrônico, incapaz de abordar o mundo de hoje. Lula faz hoje um discurso bolivariano, com recordações saudosistas da época do sindicalismo, há quase 40 anos atrás, sem nenhuma projeção para o futuro de forma séria. E pior, sem reconhecer que seu segundo governo e os dois sucessivos de Dilma é que levaram o país a maior crise econômica da sua história, com desemprego recorde e crescimento da polarização política nuca visto no país. Creio que será bom para o Brasil que se ultrapasse o mito Lula é seu período, para que possamos nos reintegrar ao mundo, fazermos as reformas para isso, e olharmos para frente. Lula continuará com alguma força, mas hoje já é passado.


Sem Lula, esquerda ou se une ou estará fora do 2º turno, diz Lessa

'Neutralização da esquerda' começa com impeachment e acaba com prisão, diz professor

Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fecha o ciclo de neutralização da esquerda no Brasil.

"Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula", diz Renato Lessa, professor de filosofia política da PUC do Rio e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Para Lessa, se os pré-candidatos da esquerda não compuserem uma frente, há o sério risco de a eleição de 2018 ser disputada entre um candidato de centro-direita e outro de extrema direita.

"Sei que vai predominar a discussão sobre a cabeça de chapa, mas essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar a uma conversa estratégica, ou teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia".

Folha - Qual é o significado da prisão do ex-presidente Lula?
Renato Lessa - Trata-se de algo gravíssimo, de consequências imprevisíveis. E é um processo que se completa. Cada vez mais perde materialidade o fato inicial que teria levado ao impeachment de Dilma Rousseff, as pedaladas, que eram práticas triviais, embora juridicamente condenáveis, nos governos anteriores.

No contexto de perda de maioria parlamentar de Dilma, isso levou ao impeachment. No entanto, achava-se que esse processo se esgotaria com o impeachment e a virada de governo, a substituição pelo poder do outro grupo. Mas essa manobra para trocar o grupo no poder se completa é com a prisão de Lula.

Pensando historicamente: o governo de Getúlio em 1945 termina não porque Getúlio era um ditador. Ele tinha deixado de ser um ditador, os militares que o apoiaram enquanto ditador o depõem quando ele começa a democratizar o regime. O governo João Goulart acaba do jeito que acabou. E não o governo Lula, mas Lula como personagem político que poderia voltar também sai de cena. É algo para se pensar: como terminam os governos de extração popular no Brasil?
O que se produziu nos últimos dois ou três anos foi um processo de neutralização de um segmento importante da política brasileira, a esquerda.

Em que sentido a esquerda está neutralizada hoje?
Houve um deslocamento do governo de uma maneira heterodoxa e depois a neutralização política do provável sucessor, Lula. São dois impeachments. Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula. Quebrou o vínculo da esquerda com sua base eleitoral, popular, tirando o principal líder de cena, Lula.

Um aspecto importante desse processo é o eixo Curitiba-Porto Alegre, com um grau impressionante de coordenação. Ao mesmo tempo, do lado do Supremo Tribunal Federal, uma negação de habeas corpus por 6 a 5. É inusitada a mudança da pauta não tratar do caso genérico em primeiro lugar para depois tratar dos casos particulares. Se fosse outra pauta, o resultado era outro, Lula não seria preso, o jogo continuaria.

É um processo obscuro, que produz consequências graves. O país está sendo governado pelo sindicato dos deputados. Os representantes se representam no governo, não representam ninguém por trás deles.

Essa ideia de que justiça se faz com a punição, esses comentários panglossianos de que com a prisão de Lula está garantido o Estado de Direito. É a hegemonia do discurso da limpeza, de prender todo mundo. O brasileiro quer ter um preso para chamar de seu. Ficamos com essa concepção de justiça. Pode continuar com fome, desigualdade, pessoas seis horas por dia no ônibus para trabalhar. Tudo pode. Mas tem que haver lisura.

Quão eficiente foi a manobra de neutralização da esquerda?
Idealmente, configurada a impossibilidade prática da candidatura de Lula e, para mim, já está configurada, é preciso trabalhar com o modelo que os uruguaios têm há bastante tempo, uma Frente Ampla de recomposição da democracia.

Mas o PT aceitaria uma Frente Ampla sem ocupar a cabeça da chapa?
Por isso comecei o raciocínio dizendo idealmente. Seria interessante que o Ciro Gomes conversasse com o Fernando Haddad, a Manuela D'Ávila, e alguém um pouco mais para o centro. A criação de uma frente ampla voltada para a recuperação do ambiente democrático e sinalizando pautas de igualdade social. E Lula deveria deixar uma mensagem de convergência.

Os candidatos desse campo terão de convergir para que algum deles chegue com chance de vitória no segundo turno. Há o risco real de haver um segundo turno entre a centro direita e o inominável, a extrema direita. Na prática, sei que vai predominar a discussão sobre quem vai estar na cabeça de chapa, mas, em algum momento, essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar para uma conversa estratégica, ou então teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia.

A prisão do Lula sinaliza que todos os políticos podem ser presos, ou há duas velocidades e duas medidas?
Mesmo que continuem a prender políticos, vão ser dois pesos e duas medidas, porque não vão conseguir prender, do outro lado, alguém com a estatura do Lula. Não existe um equivalente que desmonte o campo da centro direita brasileira, que represente um desafio brutal como a neutralização do Lula significa para o campo da esquerda.

Mesmo que a Lava Jato continue, ela vai pegar personagens periféricos, ou governadores como Sergio Cabral, que destruiu o próprio estado. O Aécio Neves não corresponde ao Lula em termos de estatura na organização e ele foi protegido. O próprio presidente Temer, até certo ponto, não é processado porque tem o sindicato dos deputados que garante a sua proteção. E mesmo que vier a perder o foro, sem mandato, o seu processo vai começar na primeira instância e sendo o presidente um especialista jurídico, vai transitar em julgado daqui 50 anos, mesmo se mantiverem a decisão de segunda instância.

Como fica a esquerda com Lula fora do jogo?
A esquerda tem um desafio enorme. Os nomes estão postos "“ Ciro Gomes, talvez Fernando Haddad e, com menor expressão eleitoral, mas com expressão política, a Manuela Dávila. Guilherme Boulos, pelo PSOL, vai numa linha completamente autonomista.

O PSOL tem a perspectiva de colher os despojos, não de cooperar numa frente comum.

Faria sentido esses três nomes conversarem e incluírem elementos de centro mais progressistas. Não sei se todos os tucanos estão satisfeitos com o que está acontecendo, talvez também o campo da Rede. É necessária uma conversa para a recomposição de um campo de centro-esquerda reformista moderno, capaz de dar segurança para a economia, mas, ao mesmo tempo, repor a perspectiva social.
Uma das questões é a dificuldade de encontrar o candidato de centro. Toda vez que se cita o candidato que seria de centro, em qualquer país do mundo, ele seria considerado de direita. Geraldo Alckmin (PSDB) não é de centro, tem valores conservadores. Não é um xingamento, e só uma topografia. Rodrigo Maia (DEM) também.

Qual é o impacto da comoção em torno da prisão do Lula? Qual é a força e durabilidade desse movimento?
Ela vai permanecer durante algum tempo. Mas vai depender muito de como a prisão vai ser feita, quanto tempo Lula vai ficar preso e qual é a capacidade que ele vai ter de falar da prisão, sua relação com o mundo aqui fora. A prisão produz efeitos, mas eles vão aos poucos se incorporando na rotina das pessoas, a menos que ele tenha um operador político aí ativando isso de alguma maneira.

O país hoje tem uma extrema direita aberta, com visibilidade, que representa o resíduo de boçalidade presente no Brasil, mas entrou no sistema político e tem um candidato competitivo. Não acredito que esse candidato vá perder votos porque o Lula vai sair. Esse candidato expressa demônios que estavam no fundo da garrafa e foram destampados a partir do processo de impeachment. Algo que mesmo os líderes do impeachment não imaginavam que pudesse acontecer. Os caciques do PMDB e PSDB não imaginavam que essa subcultura protofascista se disseminasse tanto.

Enquanto isso, não há discussão de uma agenda que precisaria ser discutida na eleição. Ninguém pode negar que a questão da Previdência precisa ser discutida, embora eu discorde da forma como o governo Temer fez isso. Uma boa hora para discutir é uma campanha eleitoral, com conteúdo, não só com marketing político.

Essa discussão não foi levada ao cidadão, tentou se passar essa agenda através de uma mudança heterodoxa no ciclo político.

Apesar de dizerem que Temer mantinha ótimo trânsito com o Parlamento, a mãe de todas as reformas, da Previdência, não vingou, a reforma trabalhista é uma medida provisória que vai vencer daqui a pouco. A única reforma que passou foi o teto de gastos, que fica prejudicado se a da previdência não passar.


O Estado de S. Paulo: ‘Sem Lula, esquerda não tem candidato’, diz historiador

Para o pesquisador José Murilo de Carvalho, o PT terá que se aproximar do centro se quiser ser competitivo em 2018

Wilson Tosta, do O Estado de S.Paulo

Mesmo com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva condenado e preso na Operação Lava Jato e, a partir de 2019, com um novo presidente eleito, o Brasil seguirá dividido e longe da normalidade, avalia o historiador José Murilo de Carvalho. Estudioso das mudanças que marcaram a política nacional, o pesquisador diz, porém, que mesmo na prisão Lula poderá ser um ator político importante. Já o PT não vai – “nem deve”, pondera – desaparecer, mas precisará se refundar.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Há quem compare Lula ao caso de Juscelino na ditadura. São situações análogas?
Não muito. O ódio contra JK era devido à sua aproximação com o varguismo, vinculado, segundo militares e líderes udenistas, ao comunismo, embora tivesse sido acusado também de corrupção, coisa nunca provada. (JK) Foi preso, humilhado, sujeito ao arbítrio dos inquéritos policiais-militares. A natureza política da ação contra ele era inegável. Agora há também alegações de viés político na condenação de Lula, mas sem a obviedade do caso de JK. E não há IPMs (Inquéritos Policial Militar).

O que se abre agora, para a campanha de 2018, com a prisão do ex-presidente?
Se Lula de fato não puder concorrer – tudo é possível neste país – e dada a rejeição pelos grandes partidos, o maior beneficiário será o candidato de extrema-direita, segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto. Um panorama preocupante, pois lembra a vitória de (Fernando) Collor (presidente de 1990 a 1992, quando foi derrubado por impeachment). Sem Lula, a esquerda não tem candidato viável. Se quiser competir para valer terá que fazer alianças ao centro. No centro, também não há candidato convincente. Enfim, mais instabilidade, menos concentração na tarefa de retomar o crescimento.

A prisão de Lula encerra uma era na política brasileira?
Prisão de ex-presidente por crime comum é fato inédito em nossa história. Mas não sei se irá encerrar o ciclo iniciado em 1985. Será mais um tropeço, como o foram os dois processos de impeachment.

Mesmo preso, Lula poderá influenciar o processo eleitoral?
Sem dúvida. (Eurico Gaspar) Dutra, depois de depor (Getúlio) Vargas em 1945, embora fosse um “poste” eleitoral, ganhou as eleições em função do anúncio do endosso de Vargas: “Ele disse!”. O PT não tem candidato viável sem Lula, mas o apoio dele a outro candidato pode fazer diferença. Há uma diferença entre o PT de hoje e o PTB de Vargas. O último sobreviveu e cresceu mesmo sem o carisma do chefe. O PT ainda depende demais do carisma de Lula.

Com a prisão do ex-presidente, o petismo e o lulismo tendem a desaparecer ou a se reduzir?
O PT não vai, e não deve, desaparecer. Precisamos de um forte partido de esquerda para a saúde de nossa democracia. Mas ele terá que por os pés no chão e começar um processo de refundação, inclusive para reduzir a dependência de Lula.

As pressões sobre o Supremo tiveram peso na decisão dos ministros de liberar a prisão de Lula?
Sem dúvida. Refiro-me, sobretudo, à declaração do comandante do Exército feita na véspera. Nenhuma corte está isenta de pressões externas, por mais que alguns juízes queiram acreditar nisso.

Como analisar a manifestação do comandante do Exército?
A declaração foi infeliz e intempestiva. A Constituição diz que as Forças Armadas se destinam à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais. A intervenção no Rio para garantia da lei e da ordem, ordenada pelo Executivo, foi perfeitamente constitucional. A declaração do comandante, sem que houvesse ameaça aos poderes constitucionais, foi política e inadequada.

Isso não evoca o passado do regime militar?
Nas décadas de 1950 e de 1960, declarações de chefes militares, individuais ou coletivas, eram frequentes e culminaram nas quedas de Vargas e de Goulart. Não creio que haja ameaça de intervenção militar na fala do comandante, mas suas declarações revivem velhos fantasmas.

Os militares podem voltar a ter peso na política?
Um dos pontos positivos das crises da República iniciada em 1985 foi a neutralidade política mantida pelas Forças Armadas. Seria um enorme retrocesso democrático se essa neutralidade fosse rompida. Resta saber se os comandos da Marinha e da Aeronáutica compartilham a posição do comandante do Exército.

A crise política chegou ao STF?
Até pouco tempo, o STF era o poder da República menos atingido pela descrença dos cidadãos. Não é mais. Suas hesitações e contradições, os conflitos e bate-bocas entre ministros, a loquacidade de seus membros fora dos autos, tudo isso tem contribuído para o desgaste da instituição. Muito ruim para a saúde da República.

Esse processo de politização tem volta?
A judicialização da política não é fenômeno apenas brasileiro. Mas aqui ela tem adquirido dimensões preocupantes. Juízes e promotores não são eleitos, não são representantes dos cidadãos. O vácuo de poder gerado pelo descrédito dos outros poderes e dos partidos políticos é que tem incentivado o ativismo judicial. Só a extinção do vácuo poderá sanar o mal.

A eleição de 2018 pode levar o Brasil de volta à normalidade?
Com ou sem Lula, as eleições não trarão de volta a normalidade. O próximo presidente, seja quem for, terá que construir sua base parlamentar, fazer os velhos acordos de sempre e não terá forças, ou vontade, de fazer as reformas de que o País necessita para retomar o crescimento e para atacar o problema máximo do País que é a redução da desigualdade.


Ricardo Noblat: Conivência com crime

Sobre nota do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo

Na tarde do sábado, em São Bernardo do Campo, no entorno da sede do Sindicato dos Metalúrgicos aonde Lula se refugiara para escapar à prisão, foram registrados pelo menos sete casos de hostilidade e agressões a repórteres e profissionais da imprensa que estavam por lá a serviço.

Em Fortaleza, manifestantes a favor de Lula quebraram as portas de vidro da sede da TV Verdes Mares, picharam muros e pintaram o prédio com tinta vermelha. Na noite do mesmo dia, equipes de televisão foram destratadas nas proximidades dos aeroportos de São Paulo e Curitiba.

Houve, como de hábito, notas de entidades e de associações de classes que condenaram “por inaceitável” o uso da força contra trabalhadores como quaisquer outros – é o que somos. Mas uma das notas, pelo seu conteúdo enviesado e pérfido, destacou-se das demais.

O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT), repudiou as agressões, como estava obrigado a fazê-lo. Mas disse que “essa situação lamentável” deveu-se também “à política das grandes empresas de comunicação que apoiam o golpe”.

Aproveitou para acusá-las de adotar “uma linha editorial de hostilidade contra as organizações populares”. E frisou: “Para impedir que casos de agressão e tentativas de censura se repitam, é preciso que se retome a democracia, o que só será possível com Lula livre (…)”.

Quer dizer: condenou as agressões e justificou-as ao mesmo tempo. Imputou a culpa por elas a agressores e a agredidos. E condicionou o fim dos ataques à mudança da linha editorial das empresas de comunicação, à retomada da democracia e à libertação de Lula.

Absurdo, extemporâneo, abusivo para dizer o mínimo. Para dizer o que de fato é: conivência com crime. Ou agressão deixou de ser crime, não importa contra quem?


João Gabriel de Lima: Lula irá polarizar um país despolarizado?

A comoção em torno da ordem de prisão contra Lula pode gerar um efeito colateral importante. O de polarizar um cenário que, ao contrário do que diz o senso comum, estava despolarizado. O que existe no Brasil de hoje é um esgarçamento da cultura democrática, que torna difícil o diálogo essencial ao debate público. É a isso que as pessoas costumam se referir quando usam o termo “polarização”. Mas está errado.

A palavra “polarização” se transformou num clichê e numa mistificação. Como todo clichê, simplifica uma realidade complexa. Trata-se de mistificação porque, ao se comparar os cenários das eleições presidenciais de 1994 para cá, deduz-se que o Brasil ficou menos polarizado, e não mais.

A hora da política

Como o nome sugere, ocorre polarização quando dois partidos políticos atraem, a exemplo do norte e do sul magnéticos, eleitores de diversas tendências ideológicas. Dois, não mais que dois – da mesma maneira que a terra tem apenas duas calotas polares. O Brasil esteve polarizado entre PT e PSDB em seis eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Uma polarização curiosa, entre dois partidos que, a rigor, surgiram do mesmo grupo de intelectuais paulistas. Os que se reuniram para ler “O Capital”, de Karl Marx, nos anos 1950, e posteriormente fundaram o “think tank” Cebrap, nos anos 1970, ocasião em que se aproximaram de sindicalistas como Lula. Na quadra democrática, o PSDB ziguezagueou entre esquerda e direita, e o PT entre ideias econômicas liberais e intervencionistas. PT e PSDB alternaram fase e defasagem até medirem forças pela primeira vez, em 1994. Tiveram um momento de grande consonância de ideias (embora fingissem que não) na passagem de bastão de Fernando Henrique a Lula, entre 1998 e 2006. Depois, se afastaram de vez.

A eleição atual, com múltiplas candidaturas e alto grau de imprevisibilidade, pode representar o fim desta polarização. Ela já foi comparada várias vezes à de 1989 – época em que o Brasil, como hoje, estava despolarizado. No primeiro pleito após a redemocratização, o campo da esquerda se dividia entre Lula, Mario Covas e Leonel Brizola. A direita tinha Fernando Collor, Paulo Maluf e Guilherme Afif Domingos (curiosamente, todos esses nomes, em diferentes ocasiões e intensidades, tiveram algum tipo de relacionamento com o PT). O lendário deputado Ulysses Guimarães, o “senhor Constituinte”, candidato que representava a situação – o PMDB do presidente José Sarney – era considerado “de centro”.

Cabe aqui uma pequena digressão sobre os significados dos termos “esquerda” e “direita” no mundo moderno. A principal referência neste campo é o filósofo italiano Norberto Bobbio, que em 1994 atualizou os dois conceitos para o cenário pós-Muro de Berlim. Resumindo o pensamento de Bobbio, esquerda e direita representam duas maneiras diferentes de promover inclusão social. A esquerda se preocupa com a igualdade – obtida através de políticas públicas, que são financiadas com aumento de impostos. Já a proposta de valor da direita é a da prosperidade – menos impostos, mais crescimento econômico, mais oportunidades. Por este critério, note-se, os governos de Lula e de Fernando Henrique são igualmente de esquerda. Ambos aumentaram impostos e financiaram programas sociais.

É simplista, no entanto, falar apenas em “esquerda” e “direita” hoje. O cenário é bem mais variado e interessante. Há várias esquerdas e várias direitas. No mesmo ano de 1994, o sociólogo inglês Anthony Giddens notou que esquerda e direita poderiam se dividir também no campo da economia (mais ou menos nacionalistas, mais ou menos afinadas com o mainstream da globalização) e da cultura (mais ou menos abertos no capítulo das liberdades individuais, em temas como drogas, aborto ou casamento gay). Bobbio e Giddens são as duas principais referências para pensar direita e esquerda nos dias de hoje.

Cruzando os dois critérios e adaptando-os à realidade brasileira, surgem pelo menos três direitas e quatro esquerdas em nosso cenário. Uma direita liberal, globalista na economia e sem opiniões fortes na área cultural. Uma direita conservadora, globalista na economia e restritiva em termos de liberdades individuais. Uma direita nacionalista, defensora de maior intervenção do Estado na economia. À esquerda, teríamos os social-democratas, liberais na economia e defensores de políticas de inclusão fortes. Os nacionalistas, que defendem gastos do Estado não apenas na área social, mas também políticas setoriais de incentivo à economia. Essas duas vertentes pregam a convivência com o “capitalismo” – ao contrário da esquerda tradicional, que se define como “anticapitalista” e crê que “um outro mundo é possível”. Por fim, existe uma esquerda cultural, focada no tema das liberdades individuais (leia quadro). Ambas – esquerda e direita – abrigam também minorias autoritárias, o que subiria o número de posições de sete para nove.

Tal variedade, presente em 1989, pode ser notada hoje também. Uma direita nacionalista, herdeira do estatismo do regime militar, era representada por Paulo Maluf (hoje seria Bolsonaro, apesar de ter escolhido um economista liberal para coordenar seu programa; o saudosismo da ditadura militar faz parte da receita do candidato). Guilherme Afif Domingos, que defendia um vasto programa de privatizações, era a direita liberal em 1989 -- hoje seria João Amoedo. Fernando Collor representava uma terceira vertente, que não se confundia com nenhuma das duas, e derivava de um slogan publicitário – “o caçador de Marajás”. Para as próximas eleições, o governador paulista Geraldo Alckmin tenta se equilibrar na corda-bamba do centro, outrora ocupado por Ulysses Guimarães.

À esquerda, Lula representava os tradicionais, campo para o qual seu partido parece ter voltado hoje – e que já há algum tempo é ocupado por Guilherme Boulos e pelo PSOL, principalmente o do Rio de Janeiro. Próxima a este campo está Manuela D’Ávila, cujas intervenções nas redes sociais remetem aos temas da esquerda cultural. Nas eleições de 2014 Marina Silva ocupou posição tipicamente social-democrata – liberal na economia e com agenda social forte – e se espera que faça o mesmo no próximo pleito. Em 1994, quem ocupava esse posto era Mario Covas com seu “choque de capitalismo”. Ciro Gomes, que se aproximou do grupo desenvolvimentista liderado pelo ex-ministro tucano Luiz Carlos Bresser-Pereira, seria o representante da esquerda nacionalista – campo que, em 1989, era ocupado por Leonel Brizola, a reivindicar a herança de Getúlio Vargas.

O que há de positivo nesse cenário fragmentado é que, no mundo ideal, o debate eleitoral poderia ser bastante rico. O Brasil tem vários problemas concretos a resolver: inclusão social, crescimento econômico, segurança pública e combate à corrupção, para ficar nos itens de agenda que mais aparecem nas pesquisas. Seria interessante se cada uma das várias correntes acima apresentasse suas ideias para atacar tais questões – a rigor, os candidatos e seus times já estão fazendo isso em entrevistas à imprensa. Esse debate essencial, como em 2014, pode ficar em segundo plano se a temperatura emocional subir muito – e se ocorrer, aí sim, algum tipo de polarização, com os “haters” de Lula de um lado e os “lovers” de outro.

Talvez as próximas semanas mostrem, no entanto, que o país não se divide apenas entre “lovers” e “haters” de Lula. Há também posições intermediárias. Os que gostam dele, mas acham que sua prisão se justifica do ponto de vista jurídico. Os que não gostam, mas não veem culpabilidade clara no caso do tríplex. E há ainda – quem sabe a maioria – os que, à esquerda e à direita, gostando ou não gostando de Lula, querem mesmo é que o combate à corrupção não pare por aí, e se estenda aos que escaparam da cadeia por causa do foro privilegiado (caberá ao eleitor decidir, em outubro, se dá ou não uma nova chance a tais políticos). Existem vários tons de cinza entre “lovers” e “haters”, da mesma maneira que existem múltiplas esquerdas e direitas. A realidade costuma ser mais complexa que os clichês e as mistificações.

Talvez, no entanto, as emoções se acirrem. Se isso ocorrer, corremos o risco de perder, mais uma vez, a oportunidade de conversar seriamente sobre o país que queremos ser.

*João Gabriel de Lima é jornalista, ex-diretor de Redação de Época e prepara livro sobre a polarização PT/PSDB