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Hamilton Garcia: A Justiça por um voto
Em pleno séc. XXI, decorridos quase 200 anos da independência do Brasil, o supremo tribunal ainda discute o fim da impunidade no país. Sim, a egrégia corte se divide entre os que querem o fim do (virtual) foro especial por prerrogativa de meios, votando pela prisão do condenado esgotada a segunda instância forense, e os que defendem o conceito abstrato de presunção de inocência mesmo diante de um arcabouço legal que combina, astuciosamente, recorrências judiciais excessivas com prazos de prescrição penal generosos, tornando esses condenados inimputáveis, de fato, e “inocentes”, de direito.
A prisão de Lula — na esteira da detenção de Odebrecht, Cunha, e outros expoentes do sistema neopatrimonial — não passa de apenas mais um capítulo na longa batalha para pôr fim à justiça seletiva instituída entre nós ao longo dos séculos. O revolucionário veredicto sobre o Mensalão petista (2012) — esquema inspirado no Mensalão tucano de MG —, que, sintomaticamente, transformou o relator do caso, Joaquim Barbosa, em herói nacional, foi o primeiro sinal de que a democratização das estruturas de Estado poderia ter, enfim, um desfecho melhor no Poder Judiciário do que aquele verificado no Legislativo e no Executivo desde 1985.
Todavia, estamos longe de poder cantar vitória, basta ver a frente ampla articulada no Congresso Nacional, que vai do PT ao PP, passando pelo MDB e parcelas do PSDB, assim como no STF, que abrange de Toffoli&Lewandowski a M.A.Mello, passando por Mendes e um embaraçado (e hesitante) decano, todos a advogar do “estancamento da sangria” à impunidade possível — ou seja, prisão após terceira instância (STJ) com vagas promessas de reversão da chicana institucionalizada. O apertado placar (6×5) que negou acolhimento ao pedido de libertação de Lula, no STF, dá a dimensão do risco de retrocesso.
Iludem-se os que acham que estamos diante de mero conflito conjuntural, marcado pela polarização política. Antes, se trata de uma virada histórica em potência: de uma Justiça nascida sob o signo do colonialismo e do escravismo — que se adaptou, lenta e imperfeitamente, ao capitalismo sem as devidas rupturas —, à outra democrático-republicana, impulsionada pela redemocratização recente, que logrou alcançar os setores sociais marginalizados, através dos juizados especiais (pequenas causas, 1984) e da Defensoria Pública (acolhida na Constituição de 1988).
O que, na verdade, está em jogo, depois de muitas mutações acomodatícias, é uma ruptura com o DNA da Justiça brasileira, formado no encontro do direito costumeiro engendrado pelo latifundismo colonial dos donatários, e seu sistema de exploração escravista e despótica do trabalho nas plantations — onde o senhor de terras (e pessoas) exercia poderes de magistratura e de administração local, inclusive cobrando tributos[1] —, com a emulação do direito jurídico liberal-burguês sob a égide dessa dominação. A variante liberal do nosso código de leis foi, para além do marginalismo intelectual de nossas elites, denunciado por Oliveira Vianna[2], um emolduramento para a problemática emergência da sociedade civil (burguesa) no Brasil, com poucas mudanças reais na vida material de trabalhadores rurais e urbanos.
Assim, não só a institucionalização da Justiça, no Império, esteve na dependência das relações econômico-sociais mercantilistas, como, em seu desenvolvimento ulterior capitalista (República), o sistema político alicerçado sobre esta dominação vetou mudanças democráticas, traduzindo em sentido reacionário, nas leis, a máxima conservadora hobbesiana da “justiça como a distribuição a cada um do que é seu”[3], cabendo, como de hábito, à grande maioria da população quase nada em termos de garantias (caso da pequena-burguesia e dos trabalhadores urbanos) ou efetivamente nada (caso dos trabalhadores rurais).
Enquanto no Brasil do séc. XIX o Estado se desenvolvia sob a égide monopolista do exclusivismo agrário-mercantil, nos EUA do séc. XVIII o capitalismo do Nordeste dava mostras do poder da livre-iniciativa nativa ao vincular Justiça e bem comum na Constituição da nação (1787), deixando aos escravistas a jurisdição regional (Sul), abrindo, assim, as portas para a modernização sem inviabilizar a economia e a unidade do país — adiando o conflito radical (guerra civil) por quase um século. Entre nós, ao contrário, o “Norte” — que aqui era SP — se viu cercado por um “Sul” — que aqui era o Nordeste — generalizado, que impôs ao país a pax oligárquica da qual estamos tentando nos livrar até hoje, baseada em princípios gerais de igualdade e justiça, sustentados nas constituições, porém, desmentidos por leis específicas de exceção ao princípio basilar — como o foro privilegiado para autoridades que praticam crimes comuns — e por normativas processuais que engendram mecanismos reais de fuga da sentença para ricos e empoderados.
Tudo isso, hoje, está em cheque, mas, politicamente falando, é possível que a virada paradigmática em curso não encontre sua melhor expressão, nas eleições que se aproximam, em candidaturas democráticas antineopatrimonialistas, dada a inclinação das esquerdas, de variados matizes, e do centro, à conciliação de coisas inconciliáveis. Se esta impressão se confirmar, infelizmente, a mudança virá por meio dos intempestivos movimentos jacobinos de sempre, que, amiúde, acabam, por falta de discernimento e excesso de convicções, provocando efeitos colaterais imprevisíveis e indesejáveis, sem, necessariamente, entregar o que promete.
[1] Vide Karina B. Pinheiro, O Poder Judiciário através da história, in. <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17685&revista_caderno=9#_ftnref4>.
[2] Instituições Políticas Brasileiras (vol. II), ed. Itatiaia-USP-UFF/BH-SP-Niterói, 1987, cap. I.
[3] Apud Renato J. Ribeiro, in. F.Weffort, Os Clássicos da Política (Vol. 1), ed. Ática/SP, 1989, pp. 72-73.
Nelson Mota: Aos amigos petistas
Petistas inteligentes sabem que o sonho acabou, ‘game over’, zé fini, pelo baixo nível e alta voracidade dos seus quadros
Nunca perdi um amigo por causa de política. Tenho vários amigos petistas que merecem meu afeto e respeito, alguns até minha admiração, e convivemos bem porque quase nunca falamos de política, talvez por termos assuntos mais interessantes a conversar. Mas agora o assunto é inevitável. E eles estão mais decepcionados do que eu.
Também tenho amigos tucanos, comunistas, conservadores, não meço a qualidade das pessoas pelo seu time, religião ou suas crenças políticas, em que sonhos, idealismo e equívocos se misturam com ambição, desonestidade e incompetência para provocar monstruosas perdas de vidas, dignidade e dinheiro ao coitado do povo que todos eles dizem amar.
O PT está caindo aos pedaços, depois de 13 anos no poder, com grandes conquistas e imensos desastres, mas a perspectiva de ser governado pelo PMDB ou pelo PSDB não é animadora. Claro que há gente decente e competente nos dois partidos, mas a maioria de seus quadros e dirigentes não é melhor do que os piores petistas, e vice-versa.
Chegamos finalmente ao “nós contra eles” que Lula tanto queria ... quando era maioria ... e agora se volta contra ele, perseguido como os judeus pelos nazistas e os cristãos pelos romanos ... rsrs.
Se não fosse tão arrogante e autoritária, Dilma mereceria pena, porque não é desonesta, mas é mentirosa e sua incompetência nos dá mais prejuízos do que a corrupção. Suas falas tortuosas são a expressão da sua confusão mental.
E se Lula não fosse tão vaidoso e ambicioso, tão irresponsável e inescrupuloso, não teria jogado a sua história na lama por achar que está acima do bem e do mal e que nunca descobririam que ele sempre soube de tudo.
Petistas inteligentes e informados sabem que o sonho acabou, game over, zé fini, não por uma conspiração da CIA, dos coxinhas ou da imprensa golpista, mas pelos seus próprios erros, pelo baixo nível e alta voracidade dos seus quadros, pela ganância e incompetência que nos levaram ao lodaçal onde chafurdamos.
É triste, amigos petistas, o sonho virou pesadelo, mas não foi a direita que venceu, foi o partido que se perdeu. O medo está dando de 7 a 1 na esperança.
Mario Vargas Llosa (El País): Lula atrás das grades
Graças à coragem de juízes e promotores está se perseguindo o grande inimigo latino: a corrupção
A entrada de Lula, ex-presidente do Brasil, em uma prisão de Curitiba para cumprir uma pena de doze anos de cadeia por corrupção deu origem a grandes protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela e da Nicarágua, o que era previsível. Mas menos do que o fato de muita gente honesta, socialistas, social-democratas e até liberais considerarem que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que se preocupou muito em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, ao que parece, aproximadamente 30 milhões de brasileiros da miséria quando esteve no poder.
Os que pensam assim estão convencidos, pelo visto, de que ser um bom governante tem a ver somente com realizar políticas sociais avançadas e que isso o exonera de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi preso pelas boas coisas que fez durante seu governo, mas pelas ruins, e entre essas se encontra, por exemplo, a gigantesca corrupção na empresa estatal Petrobras e suas empreiteiras que custou à sofrida população brasileira nada menos do que dez bilhões de reais (desses, 7 bilhões em propinas).
Quem pensa tão bem de Lula, aliás, se esquece do feio papel de leva e traz que ele representou como emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes e ministros para que favorecessem a transnacional com bilionários contratos de obras públicas.
É por essa razão e outros casos que Lula tem não só um, mas sete processos por corrupção em andamento e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari Neto e José Dirceu, seu chefe de Gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, esquemas ilícitos e outras operações criminosas. Entre as últimas acusações que pendem sobre sua cabeça está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em Guarujá.
Os protestos pela prisão de Lula não levam em consideração que, desde que ocorreu a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava asfixiar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários e banqueiros foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e várias dezenas deles o serão em um futuro próximo.
Jamais algo parecido havia ocorrido na história da América Latina: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais que, partindo de São Paulo, se estendeu depois por todo o país, não contra uma empresa, um político, mas contra a desonestidade, a enganação, os roubos, as propinas, toda a enorme corrupção que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a atividade política, em todo o país. Um movimento popular cuja meta não era a revolução socialista e derrubar um governo, mas a regeneração da democracia, que as leis deixassem de ser coisa sem importância e fossem verdadeiramente aplicadas, a todos por igual, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.
O extraordinário é que esse movimento plural encontrou juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, lhe deram uma via judicial, investigando, denunciando, enviando à prisão diversos executivos, comerciantes, industriais, políticos, autoridades, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é realizável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo se existe a vontade e o apoio popular para isso. Cito sempre Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nesses últimos anos vimos no Brasil como seu exemplo foi seguido por incontáveis juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e na liberdade que quase havia perdido.
O ex-presidente teve acesso a todos os direitos de defesa que existem em um país democrático
Há muitos brasileiros admiráveis; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de uma ação digna de punição; e atletas e esportistas cujos nomes correram o mundo. Mas, se eu precisasse escolher um deles como modelo exemplar ao restante do planeta, não hesitaria um segundo em eleger Sérgio Moro, esse modesto advogado natural do Paraná que, após se formar em advocacia, entrou na magistratura na oposição em 1996. Como já confessou, o que aconteceu na Itália nos anos noventa, a famosa Operação Mãos Limpas, lhe deu as ideias e o entusiasmo necessário para combater a corrupção em seu país, utilizando instrumentos parecidos aos dos juízes italianos da época, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada em troca da redução da pena e a colaboração da imprensa. Tentaram corrompê-lo, obviamente, e sem dúvida é um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos infelizmente não são uma exceção. Mas lá está, fazendo parte do que vem sendo uma verdadeira, apesar de ninguém ainda a ter nomeado assim, revolução silenciosa: o retorno da legalidade, o império da lei, em uma sociedade que a corrupção generalizada estava desintegrando e impedindo-o de passar de ser o “grande país do futuro” que sempre foi a ser o grande país do presente.
A decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo
O grande inimigo do progresso latino-americano é a corrupção. Ela faz estragos nos governos de direita e esquerda e um enorme número de latino-americanos chegou a se convencer de que ela é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não há defesa: os terremotos, as tempestades, os raios. Mas a verdade é que a defesa existe e justamente o Brasil está demonstrando que é possível combater a corrupção, se existirem juízes e promotores corajosos e responsáveis e, claro, uma opinião pública e imprensa que os apoiem.
Por isso é bom, para a América Latina, que homens como Marcelo Odebrecht e Lula tenham sido presos após ser processados, recebendo todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a Justiça é igual para todos, os pobres diabos do povo que são a imensa maioria, e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro e seus cargos. E são justamente esses últimos que têm maior obrigação moral de obedecer às leis e mostrar, em sua vida diária, que não é preciso transgredi-las para ocupar as posições de prestígio e poder que obtiveram, que elas são possíveis dentro da legalidade. É a única forma de uma sociedade acreditar nas instituições, repelir o apocalipse e as fantasias utópicas, sustentar a democracia e viver com a sensação de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la cada dia mais.
Murillo de Aragão: Democracia e instituições no Brasil
Pari passu com o processo de democratização no Brasil temos um processo de institucionalização que corre lentamente, com idas e vindas. A democratização sempre conta com o apoio da mídia e da academia, o que não acontece com a institucionalização. E esse descompasso no tratamento dessas duas questões não tem sido percebido de forma adequada.
A democratização sempre foi vista como um objetivo inexorável e erga omnes a ser atingido pelo País. Já a institucionalização, nem tanto. Qual a razão? Devemos olhar para o nosso passado, tempo em que as relações pessoais eram sempre mais importantes que as relações institucionais.
Mas, ao largo do interesse pontual de se relacionar com os Poderes por meio de conexões pessoais, a fragilidade das instituições no País decorre também da visão esquerdista, uma espécie de software residente da academia e de setores da imprensa para interpretar o Brasil.
O processo de “desinstitucionalizar” o Brasil se dá pelo enfraquecimento das instituições, por sua desmoralização e, também, pelo aplauso ao conflito institucional. Por exemplo, a criação de matérias acadêmicas sobre o “golpe” contra Dilma mostra o viés “desinstitucionalizante” de setores da academia.
Poderiam estudar, por exemplo, a desistitucionalização no governo Dilma, em que ministros eram bypassados por secretários e a hierarquia e o federalismo, repetidamente desvalorizados.
Para os esquerdistas mais obtusos, as instituições estão a serviço das classes dominantes. E quando não estão a serviço do seu projeto de poder (das esquerdas), devem ser fragilizadas. Pois, fortalecidas, favorecem o establishment.
Fazendo um exercício básico: a intervenção federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro é uma expressão do governo; o governo é inimigo das esquerdas por ter “derrubado a presidente Dilma Rousseff”; portanto, a intervenção deve ser fragilizada.
O fato de a imensa maioria da imprensa e da academia acreditar que os políticos são corruptos e a política é corrompida favorece a tese de que nada que venha do mundo político pode ser considerado legítimo. Mesmo que tenha amplo apoio popular.
Por isso qualquer iniciativa que fortaleça o establishment não interessa. Pois trabalha contra duas teses em voga: a total – e utópica – renovação da política e a volta do mundo esquerdista ao poder.
A desmoralização das instituições é amplificada por um vício de destacar o veneno e não a cura. Não cultivamos a reflexão a ponto de destacar que o governo e as instituições não são necessariamente e o tempo todo “do mal”. O que reflete um grave desconhecimento da sociedade sobre a necessidade da política.
Para tristeza dos marxistas, as teorias são frequentemente desmoralizadas neste recanto tropical. As instituições no Brasil não estão a serviço dos poderosos nem das classes dominantes.
As instituições, numa sociedade fraca como a nossa, estão a serviço dos próprios interesses daqueles que as controlam. E como o Estado é mais poderoso do que a sociedade, as classes dominantes são as corporações de burocratas. Cuja narrativa de fortalecimento do Estado visa, acima de tudo, fortalecer o domínio dessas corporações sobre o Estado e, por conseguinte, sobre a sociedade.
Daí vivermos sob o jugo do corporativismo de auxílios-moradia, seguros odontológicos, férias e recessos prolongados, aposentadorias precoces, sistemas diferenciados de aposentadoria, auxílio-paletó, burocracia excessiva, precariedade de serviços públicos e sistema tributário caótico, entre outros desvios.
A desmoralização das instituições também ocorre quando, no afã de atender a pressões midiáticas, se tomam decisões “não institucionais”, vulnerando a lei, violando a Constituição, estimulados pelo ativismo judicial. No processo de desmoralização das instituições, consideram-se aceitáveis os excessos do ativismo judicial e as frequentes soluções pela via da judicialização.
O establishment político não é apenas vítima de uma perversa conspiração para enfraquecê-lo e daqueles que submetem as instituições aos interesses das corporações. O comportamento dos políticos e as regras da política também são claramente desinstitucionais ao não combaterem a supremacia do Estado sobre a sociedade e terem promovido relações espúrias do capitalismo tupiniquim com empresas estatais, por meio de doações e propinas. Entre muitos outros desvios.
No Brasil, a Presidência da República também é, por excelência, um elemento de desinstitucionalização, por acumular poderes que desequilibram o federalismo e a relação com os outros Poderes.
Da mesma forma, a excessiva autonomia do Ministério Público Federal é um elemento que, sob a justificativa do bem comum, enfraquece as instituições, ao fomentar decisões não apenas transversais, mas com verticalidades que desmontam a hierarquia dentro e entre os Poderes.
Em suma, vivemos um quadro de grande desordem institucional que não é conjuntural. Decorre, como vimos aqui de forma sintética, de vários fatores históricos e estruturais de nosso sistema político.
Porém, ao final de tudo, o que mais espanta é o fato de não existirem grandes questionamentos sobre o tema. Predominam visões que sancionam ou descredenciam os movimentos a partir de interesses, e não de princípios.
No entanto, a construção de uma democracia de verdade impõe instituições fortes que operem dentro de marcos constitucionais e legais claros. Devemos, o quanto antes, retomar o caminho do fortalecimento de nossas instituições.
* Murillo de Aragão é consultor, advogado e cientista político, doutor em sociologia (UNB), é professor adjunto da Columbia University (Nova York)
Luiz Sérgio Henriques: Populismos e democracia bloqueada
Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.
Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.
O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.
A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.
O sistema, assim, passou a funcionar simultaneamente sem transparência, limite ou controle da parte dos cidadãos. Alguém poderá argumentar, e terá razão, que se trata de práticas herdadas do passado, em geral tacitamente admitidas, e que o maior partido oposicionista, entrincheirado em dois dos principais Estados da Federação, teria sido responsável por criar e manter azeitados mecanismos de poder. No entanto, sem negar essa pesada responsabilidade, pode-se retrucar que o esquema petista exacerbou as irregularidades em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Não estávamos aqui diante de empreendimentos locais ou regionais, mas de um fenômeno que, pela primeira vez, chegava a ultrapassar as fronteiras do País.
Este último ponto merece atenção. Recursos financeiros e estratégias políticas se misturaram de modo explosivo por toda a América Latina, num tempo em que se passou a afirmar a hipótese problemática – para ser cauteloso – de certo “socialismo do século 21”. Bem pesadas as coisas, tratava-se menos de socialismo que de um ataque populista de esquerda à democracia representativa, de conteúdo diverso, mas formalmente não muito diferente dos ataques populistas de direita que assolam a Europa e a América do Norte e, infelizmente, também já não nos poupam.
Longe da melhor tradição comunista, evocada na figura de Berlinguer, o recurso expressivo típico desses populismos, na variedade de suas manifestações, é a retórica e a prática divisiva e confrontacional. Pretenderam cancelar o passado e refundar as nações, mas os resultados, uma vez no poder, foram medíocres ou catastróficos, como no caso venezuelano – veia aberta no continente. A técnica de construção de blocos de poder supostamente inamovíveis, exportada para os parceiros latino-americanos do petismo, tornou-se, contra a intenção de seus promotores, um verdadeiro teste de solidez das instituições democráticas, desafiadas a enfrentar subornos, escândalos e até crises de impeachment numa dezena de países.
Uma esquerda forte e plural é condição necessária, ainda que não suficiente, para a efetivação de uma agenda social digna do nome, bem como de um regime de liberdades que garanta essa agenda e seja por ela nutrido. Uma coisa nunca vai sem a outra: não há progresso social sem voto e democracia “formal”. Entre nós e esse caminho virtuoso ainda se interpõem os populismos de esquerda e de direita, que deveriam ser, mas não são, fato marginal ou lembrança do passado.
Demétrio Magnoli: Lula não é um preso político
PT e PSOL não se opõem à subordinação da Justiça ao governo, com a condição de que seja o seu governo
11 de julho de 2017. Na entrada do teatro Bolshoi, os espectadores foram informados do cancelamento da estreia do balé Nureyev, substituído de última hora pela peça de repertório “Dom Quixote”. Segundo a justificativa oficial, os ensaios tinham sido insatisfatórios.
No mês seguinte, o premiado diretor da peça, Kirill Serebrennikov, um crítico contumaz de Putin, compareceu a um tribunal de Moscou, que o sentenciou a um ano de prisão por corrupção.
Nureyev não estreou porque o Kremlin vetou a celebração de um gay —e, ainda por cima, emigrado– pela icônica companhia teatral. Serebrennikov foi condenado por razões políticas, não por corrupção. Lula não é um preso político, independentemente do que se pense sobre a sentença de Moro.
Na Espanha, autoridades do antigo governo da Catalunha respondem, em prisão cautelar, a acusações de rebelião. Os partidos nacionalistas catalães e o esquerdista Podemos classificam os encarcerados como presos políticos.
Os processos, porém, não mencionam ideias, mas ações: a convocação, em outubro passado, de concentrações populares para impedir que agentes policiais fechassem os locais de votação do plebiscito separatista, declarado ilegal pelo Tribunal Supremo. Discute-se, nos processos, se o grau de violência usado contra os policiais é suficiente para caracterizar rebelião contra a unidade espanhola.
Todo o contexto é político, mas os réus não são presos políticos. A Espanha distingue-se da Rússia pela independência do Judiciário. O Brasil figura ao lado da Espanha —e, por isso, Lula não é um preso político.
Preso político, ou preso de consciência, é o indivíduo encarcerado por suas ideias, mesmo quando a sentença descreva crimes comuns.
Na Turquia, desde o fracassado golpe de Estado de 2016, os tribunais condenaram centenas de jornalistas, professores e funcionários públicos por conluio com os golpistas. Os céleres processos turcos dispensaram provas firmes. Na Venezuela, o líder opositor Leopoldo López foi condenado a quase 14 anos de prisão por incitamento à violência nos protestos de rua de 2014.
A promotora-geral, responsável pelo caso, partiu para o exílio em 2017 e denunciou a fraude judicial da qual participou. Na Turquia e na Venezuela, há presos políticos; no Brasil, não. É que, aqui, os tribunais não são tentáculos do governo.
A prisão política é um ato de origem política, nunca de raiz judicial. Na Espanha, a propaganda secessionista é livre —tanto que partidos separatistas disputam eleições e, na Catalunha, exerceram o governo regional.
Na Rússia, na Turquia e na Venezuela, os governos limitam as liberdades civis, perseguindo opositores por meios judiciais. Na Espanha, como no Brasil, políticos governistas estão presos por corrupção. Na Rússia, na Turquia e na Venezuela, ao contrário do Brasil, a proximidade do poder é garantia de impunidade.
De Delúbio a Lula, passando por Dirceu e Palocci, todos os condenados petistas foram declarados presos políticos pelo PT –e, no caso de Lula, o PSOL aderiu à prática. Mas PT e PSOL não inscrevem Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Geddel ou Maluf no mesmo círculo. A razão para a duplicidade nos conduz à Venezuela: os dois partidos não se opõem à subordinação da Justiça ao governo, com a condição de que seja o seu governo.
Juízes erram, cedem a preconceitos, engajam-se em cruzadismos, sofrem pressões legítimas ou escandalosas (como a do comandante do Exército). Por isso, é tão importante o debate sobre a revisão judicial.
Mas, no Brasil, o governo não controla os tribunais, algo que Temer e seus aliados sabem por experiência própria. Decorre daí que nem a crença na tese delirante de uma conspiração universal dos juízes autoriza tratar Lula como preso político. O PT e o PSOL declaram-no preso político pelo mesmo motivo que tratam Leopoldo López como preso comum.
* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.
Merval Pereira: Uma disputa infindável
A disputa que está em processo dentro do Supremo Tribunal Federal terá mais um capítulo na próxima semana quando o plenário analisará o habeas corpus ao deputado Paulo Maluf. Esse caso tem importância crucial no desenrolar dos acontecimentos em curso porque discute dois pontos que podem interferir em outras ações.
O primeiro é a possibilidade de um ministro do Supremo desautorizar uma decisão de outro ministro, o que é proibido por uma súmula e nunca havia acontecido antes. Foi o que fez o ministro Dias Toffoli ao receber um recurso da defesa do deputado paulista e conceder o habeas corpus que havia sido negado monocraticamente pelo ministro Edson Fachin. Como se trata de matéria controvertida, o próprio Toffoli pediu que o caso fosse levado ao plenário. Ele alega que tomou essa decisão pelo estado de saúde do preso, que se deteriorava a cada dia. Uma gesto humanitário, justifica.
O plenário vai ter que decidir se esta prática passará a ser corrente no Supremo, ou se foi um caso especial que não dá margem a outros. Ou mesmo se Maluf deve voltar para a cadeia. Esta anomalia já está produzindo frutos, pois vários advogados já entraram com ações no STF pedindo para que a decisão de Fachin de negar o habeas corpus a Lula seja revista por outro ministro.
Não parece ter sentido neste caso, pois o habeas corpus de Lula foi negado pelo plenário, e já não é uma decisão monocrática do relator da Lava-Jato. Mas se ficar assentado que um ministro pode desautorizar outro, a guerra aberta estará declarada entre os componentes do STF.
A ação de Maluf tem outro ponto importantíssimo. É que o recurso da defesa de Maluf foi feito com base num embargo infringente, pois o deputado teve na Turma que o condenou um voto favorável. O ministro Fachin disse que não são cabíveis embargos infringentes nas Turmas e vetou a pretensão, ao contrário de Toffoli, que, sempre alegando razões humanitárias, aceitou o recurso. Se essa novidade for chancelada pelo plenário do Supremo, teremos nas Turmas julgamento embargos infringentes, embargos de declaração, embargos dos embargos, todos os instrumentos usados para procrastinar o resultado final de um julgamento.
Não há uma explicação formal para a não previsão dos embargos nas Turmas no regimento interno do Supremo. O caso foi discutido no julgamento do mensalão, quando o presidente do Supremo na época, Joaquim Barbosa, defendeu que os embargos infringentes deixaram de existir nas ações originárias dos tribunais superiores depois da edição da Lei 8.038/90, que regulamentou os processos naqueles tribunais de acordo com a Constituição de 1988, sem prevê-los.
Quem vai ter uma decisão difícil será o ministro Luís Roberto Barroso, que, no julgamento do mensalão, foi a favor dos embargos infringentes e acabou ajudando a rever as penas de réus importantes, como José Dirceu, que escapou do crime de quadrilha. Ele havia dito, na sabatina do Congresso, que em teoria os embargos não existiam mais, mas, ao tratar do caso concreto, os aceitou. Na decisão de agora, terá que assumir uma posição sobre o mesmo assunto com repercussão no trâmite dos processos, que ele luta para serem objetivos e não darem margem à procrastinação das penas. O STJ, que foi criado depois da Constituição de 1988, não prevê esses embargos.
Esses são os desdobramentos do choque de visões dentro do Supremo Tribunal Federal, já tratado aqui na coluna nos últimos dias. O que está havendo é uma disputa, de um lado filosófica sobre o que é o Estado de Direito, a defesa dos direitos individuais, um grupo, que hoje é minoritário, considera que a operação Lava-Jato, os procuradores de Curitiba e o juiz Moro estão se excedendo com as prisões provisórias alongadas, obrigando os presos a fazerem delação premiada; e alegam que está sendo decretado o fim do habeas corpus, um instrumento básico da democracia. E do outro lado, o grupo hoje majoritário acha que a Justiça tem que ter efetividade, que a manutenção do status quo vai fazer com que continue a impunidade a pessoas que tenham poder político, prestígio social ou dinheiro para pagar bons advogados.
A luta pela prisão em segunda instância pode também ter um desdobramento esta semana dependendo da decisão do ministro Marco Aurélio de encaminhar ou não à votação a liminar rejeitada pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) para exame de uma ação que propõe que cessem as prisões em segunda instância até que sejam votadas as ações que tentam acabar com a possibilidade dessa prática.
É exemplar dessa disputa, que em uma visão mais crua opõe os que querem a manutenção do status quo àqueles que querem dar mais efetividade às decisões da Justiça, o grupo minoritário querer acabar com ela, voltando ao trânsito em julgado, e agora incluindo os embargos infringentes no julgamento das Turmas, dando uma margem de recursos imensa e que quase sempre favorece a prescrição da pena.
Sérgio C. Buarque: O populismo e nova seita no Brasil
No palanque armado no pátio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, uma nova seita emergiu no sábado, através da fala do profeta Luís Inácio Lula da Silva, com seu carisma e gestual sedutor e mobilizador da militância. O excepcional orador, tanto pelo jogo de palavras do seu discurso quanto, principalmente, pela encenação, produziu um grande espetáculo teatral, com movimento no palco, alteração do tom de voz e dos gestos, dramatização que emociona as massas.
Lula abusou da encenação, caminhava, virava para os lados, abaixava-se para enfatizar a afirmação, complementada pelo movimento das mãos e destaque dos dedos. Um artista que domina o palco e mobiliza as emoções e impulsos dos seus liderados, despertando ódio aos que ameaçam com a prisão do grande líder.
A história mundial tem exemplos notáveis de líderes com o carisma e a encenação populista de Lula, que, combinando o espetáculo com o ataque às instituições, provocaram grandes desastres políticos e sociais.
O populismo sempre encontra terreno fértil para se desenvolver em situações de crise social e política, descrédito da sociedade e desmoralização das instituições, precisamente o que experimentamos atualmente no Brasil. Nestas condições, mais valem a retórica e a identificação com o líder carismático que as ideologias, as propostas políticas e as análises e escolhas racionais.
Considerando a formação política de Lula e as diferentes circunstâncias históricas, seria uma desproporção comparar o ex-presidente com Hitler ou Mussolini, dois dos maiores populistas da história que levaram seus países ao totalitarismo. Mas o discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos foi uma preciosa aula de populismo e de encenação dramática, em tudo semelhante ao Führer e ao Duce. Com uma grande vantagem tecnológica para o ex-presidente: os poderosos meios de comunicação de massa de que dispõe o ex-presidente do Brasil, inclusive da imprensa, atacada duramente por ele no seu pronunciamento.
A Globonews transmitiu todo o discurso ao vivo, os noticiários divulgaram longos trechos da sua arenga quase histérica, alcançando, desta forma, milhões de brasileiros em todo o território. Ao mesmo tempo em que mobilizou os seus simpatizantes, a fala de Lula, já com ordem de prisão, despertou a indignação dos seus desafetos, ampliando o clima de intolerância e fragmentação política no Brasil.
Se os movimentos e gestos dramáticos de Lula lembram as manifestações exaltadas de populistas de triste memória, a sua mensagem central contém a mesma forma direta de ligação das massas ao grande líder, situado por cima das instituições.
A sua crítica ácida à imprensa e, mais ainda, às instituições jurídicas, Ministério Público e juízes das diversas instâncias (incluindo STF), reforçam esta relação do ídolo com o povo, por cima e ao arrepio da República. “Eu não sou mais um ser humano. Sou uma ideia”, afirmou o ex-presidente Lula num momento supremo de megalomania. Embora ninguém saiba dizer qual é mesmo a ideia da “metamorfose ambulante”, como se classificou em algum momento, os milhões de simpatizantes exultam e se identificam com o populista. Na verdade, o que emerge desse discurso é uma religião, perigosa religião, carregada de fanatismo pelo profeta, que gera o ódio contra as instituições republicanas.
* Sérgio C. Buarque é economista e consultor
Cristovam Buarque: A locomotiva e o trilho
Esquerda perde sintonia com o espírito do tempo
A autodenominada esquerda continuou amarrada a ideias superadas pela realidade e ficou defensora de interesses arraigados em setores privilegiados, tanto de capitalistas quanto de trabalhadores. As surpreendentes e imprevisíveis transformações na realidade construíram um mundo diferente daquele que servia de base às formulações da esquerda tradicional. A globalização desestruturou a lógica do nacionalismo; a automatização e a inteligência artificial retiraram o protagonismo revolucionário da classe de trabalhadores; o esgotamento de recursos naturais eliminou a utopia do consumismo para todos.
A crise consequente, de entendimentos e de propostas, deixou de ser apenas do capitalismo e passou a ser da civilização industrial por inteiro. Essa nova realidade exige uma nova percepção e postura no papel do Estado na economia. Ao perder a sintonia com o avanço das ideias e compromissos com as reformas necessárias, a esquerda ficou reacionária.
A partir de agora, os que defendem o progresso social e econômico deverão entender que ao Estado cabe definir e construir o trilho para o futuro, mas a locomotiva deve estar nas mãos da sociedade: seus trabalhadores, empresários, organizações sociais. Ao Estado cabe estabelecer regras e fazer investimentos que permitam a estabilidade política e jurídica; a construção de um sistema educacional que ofereça o máximo aproveitamento de todos os cérebros da população e garanta a mesma chance para cada indivíduo desenvolver seu talento pessoal e, com isso, construir uma sociedade eficiente, rica e justa, com a renda bem distribuída.
Além disso, administrar serviços públicos e de assistência social com qualidade e eficiência; garantir o respeito ao equilíbrio, tanto ecológico quanto monetário, para dar sustentabilidade ao progresso e ao bem-estar social; adotar firme compromisso com as regras necessárias para que a economia funcione eficientemente, de maneira a gerar os recursos necessários à construção de uma sociedade justa; entender que a justiça social não pode ser construída sobre uma economia ineficiente. A esquerda precisa compreender que eficiência no uso dos recursos não é um conceito burguês, mas uma condição necessária ao progresso.
A sociedade brasileira tem hoje a percepção de que os partidos que se dizem de esquerda não cumpriram o compromisso moral de governar com ética; mas ainda não percebeu a corrupção deles nas ideias, ao abandonarem o compromisso com a verdade e com a formulação de propósitos justos e viáveis para o futuro. A autodenominada esquerda continua com a visão nostálgica de quando a dinâmica econômica e o bem-estar social decorriam da intervenção governamental. Com isso, perde sintonia com o espírito do tempo: não defende a ética na política, não luta pelas reformas necessárias, deixa de ser vetor do progresso, fica de direita.
Daqui para frente, o Estado faz o trilho da história, e a sociedade move a locomotiva por onde o povo e a nação vão ao futuro desejado.
Roberto Freire: Lula preso. Vamos falar de futuro
Após a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, neste fim de semana, condenado na Lava-Jato, não está em jogo somente o destino de um político ou de um partido.
É o quer fazer crer parte de uma militância com sua narrativa de que há uma motivação política para excluir Lula do processo eleitoral.
Assim, o lulopetismo tenta salvar a todo custo e de todas as formas – com as poucas armas que lhe restam, como a espetacularização midiática –, uma esquerda descompromissada com a democracia e sem real interesse em promover reformas no Brasil.
O que vem sendo chamado de política identitária é a identificação pessoal com um candidato, como um valor mais importante do que suas propostas, programas e coerência.
Isso resume o autoritarismo político e a obsessão do lulopetismo em vulnerabilizar, com um discurso coletivo, os indivíduos que, confusos, buscam um salvador para lhes devolver a confiança perdida.
O lulopetismo se apropriou das premissas da defesa do progresso da humanidade, dos direitos humanos e da libertação dos grilhões da pobreza, para reduzir a luta por um mundo mais justo à defesa de um indivíduo apenas.
A transferência simbólica da sede do PT para Curitiba concretiza, enfim e literalmente, a morte anunciada: o PT, está agora encarcerado em Curitiba com Lula.
Sem opções, o PT volta às suas origens, tratando as instituições vigentes e ordens judiciais sob uma lógica de assembleia de sindicato, como nos velhos tempos de São Bernardo do Campo, resultando no isolamento que escancara seu próprio ocaso, enquanto força política expressiva na vida nacional.
Não estamos mais falando de um País dividido.
Reconheço a importância histórica da prisão de Lula diante de um Brasil tão estarrecido quanto esperançoso por respostas.
Tudo indica que o próximo passo deve ser a aceleração das apurações, nos diversos processos e inquéritos em que estão atolados o ex-presidente e seu entorno, especialmente as lideranças de outras agremiações partidárias.
Avançam a aprovação de mudanças na legislação penal e o fim do foro privilegiado, tal como existe hoje, por pressão da sociedade e iniciativas do Supremo Tribunal Federal, que já produziram projetos em tramitação no Congresso (PECs).
Paradoxalmente, o impacto deste fato histórico no cenário político e nos sentimentos de toda população brasileira – emanados dos perfis das plataformas digitais em tempos de profundas transformações –, nos mostram novos caminhos.
Não se passa um País a limpo sem que se coloque o dedo na ferida. O Brasil depende fundamentalmente disso para o seu desenvolvimento em todos os aspectos. Apesar de tudo, não estamos órfãos e, pelo menos, não vimos desabar nossas aspirações pela busca de um futuro melhor.
Tudo isso me faz pensar na temática da identidade nacional.
Sobre este tema, cujas pesquisas têm sido cada vez mais recorrentes nos meios acadêmicos nacionais e internacionais, vale trazer da memória a atualidade de Mário de Andrade.
O autor do romance Macunaíma aposta numa ideia de Brasil como unidade composta de diversidades, levando em consideração a contribuição de diversos setores da sociedade.
Surge a necessidade pungente da volta de uma inteligência nacional, expressa em um projeto que reagrupe em seu seio diversas correntes conexas e que se torne o agente de progresso social que a sociedade brasileira tanto reclama.
Conclui-se que este momento é emblemático: trata-se de uma oportunidade excepcional para a emancipação e, por que não dizer, para o resgate da vida, da alegria e da vontade de mudar as coisas, de alguma esperança para a construção de um futuro melhor. Enfim, de gerar um novo olhar para o mundo, só possível em um ambiente de militância democrática e de pluralismo.
Merval Pereira: Choque de visões
Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal explicitou uma disputa interna entre dois grupos com visões distintas do que seja a aplicação do Direito. Uma divisão quase filosófica. O julgamento do habeas corpus do ex-ministro Antonio Palocci acabou mais uma vez em 6 a 5, com a presidente Cármen Lúcia desempatando, e o que estava em jogo era justamente uma visão chamada garantista, que coloca o instrumento do habeas corpus como símbolo da liberdade individual, e a dos consequencialistas, que, sem desmerecer a importância do habeas corpus, consideram que ele não pode ser utilizado para interromper um processo, ou favorecer um condenado a sair da prisão quando isso pode representar um perigo à ordem pública.
Houve ontem uma discussão que reflete bem essas visões de mundo em conflito. O ministro Marco Aurélio disse que o tempo excessivo da prisão provisória de Palocci, cerca de um ano e meio, já era por si só uma razão para dar-se o habeas corpus.
O relator Edson Fachin rebateu a tese, mostrando que os fatos que basearam a prisão, a complexidade do processo, com inúmeras testemunhas espalhadas pelo país, e uma condenação no meio tempo justificavam plenamente o período que o ministro Gilmar Mendes chama de “alongado” das prisões provisórias da Operação Lava-Jato.
O próprio Gilmar hoje, corroborando com o jargão que o ministro Marco Aurélio cunhou — “tempos estranhos” — disse, às vezes até mesmo emocionado, que se estava criando um novo Direito no país, o “Direito de Curitiba”, que não respeita os direitos dos acusados e favorece o desrespeito ao devido processo legal.
Além de criar condições para práticas corruptas a pretexto de combater a corrupção, citando casos de procuradores envolvidos em acusações de negócios escusos. Outros rebatem que há uma nova ordem querendo surgir no país, e uma velha ordem que resiste com valores e práticas antigas, que não funcionam.
Esta nova ordem corresponderia a uma imensa demanda da sociedade, por integridade, idealismo, patriotismo, uma energia muita explícita nas ruas. A crítica de Gilmar Mendes, mais uma vez, foi também contra o que chama de “imprensa opressiva”, e em todos os votos recentes ele defende que um juiz, especialmente do Supremo, não pode se deixar pressionar pela opinião pública, ou opinião publicada, como gosta de dizer.
Os consequencialistas já veem a questão de outro modo: um juiz não deve decidir de acordo com o clamor público, muito menos em processo criminal, o que não quer dizer que um tribunal constitucional não deva ser capaz de interpretar o sentimento da sociedade e se alinhar a ele sempre que isso seja compatível com a Constituição.
O papel contramajoritário do Supremo, que os garantistas defendem, seria importante nessa outra visão, mas é usado no mundo inteiro muito raramente. O normal é que as decisões da Suprema Corte correspondam aos anseios da sociedade, porque os juízes vêm dessa sociedade e interagem com a população em diversos níveis de contato e incorporam o sentimento do meio social em que vivem.
Nessa perspectiva, o Tribunal se capitaliza porque ele é capaz de interpretar o sentimento da sociedade, e quando tem de ser contramajoritário, tem credibilidade. Na disputa aberta entre esses dois grupos, o ministro Marco Aurélio Mello deu indiretas para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e para o colega Luís Roberto Barroso, lamentando que se vá para o exterior dizer que a Justiça brasileira é seletiva — o que os dois afirmaram em seminários internacionais.
O fato é que plenário está dividido filosoficamente em relação à aplicação do Direito, uma divisão exacerbada pela Operação Lava-Jato. É mais explícita do que em qualquer outro tempo, os consequencialistas, pragmáticos no sentido não pejorativo do termo, querem julgar com base nos fatos, e não em teses idealistas. Não se apegam ferrenhamente a textos literais que podem significar a impunidade, como no caso da disputa entre a prisão em segunda instância e o trânsito em julgado.
William Waack: ‘Uma ideia’
Será que se percebe que a crise em que estamos é resultado do apego a ideias equivocadas?
Lula preso deveria ser página virada na história política do País, mas temo que não seja. É óbvio que a prisão do principal chefe populista brasileiro em mais de meio século virou símbolo de enorme relevância numa esfera, a da política, que vive de símbolos. Não é pouca coisa ver atrás das grades um poderoso e rico, como Lula. Também não se pode ignorar o efeito para a autoestima de enorme parcela da população da noção do fim da impunidade. Um homem que nunca demonstrou grandeza exibiu-se apequenado e raivoso ao ser preso em meio a seguidores da seita que ainda conduz. Contudo, não é o destino do indivíduo aqui o mais relevante.
Ironicamente, Lula foi condenado e inicialmente preso por crime incomparavelmente menor em relação aos que cometeu, e não considero como pior deles o formidável aparato de corrupção que presidiu com a alegre colaboração de elites sindicais, acadêmicas, empresariais e o corporativismo público e privado. Apequenar o Brasil lá fora, diminuindo nosso peso específico, destruir o tecido de instituições (começando pelo da Presidência), fazer a apologia da ignorância e decretar o atraso no desenvolvimento econômico compõem pesada conta que mal começou a ser paga. O Brasil teve o azar de abraçar o lulopetismo na curva de subida de um benéfico superciclo global de commodities que não se repetirá por muito tempo.
Em outras palavras, a pior e imperdoável obra lulista foi ter desperdiçado uma (única?) oportunidade de livrar o País rapidamente de desigualdade e injustiça sociais.
A prisão de Lula, paradoxalmente, não parece estar aprofundando entre nós o debate em torno dos eixos que seriam essenciais para recuperar o País em prazo mais dilatado – digamos, a próxima geração. Será que, além dos erros de conduta do indivíduo Lula, percebe-se que a crise em que estamos (começando pela econômica) é resultado do apego a ideias completamente equivocadas? O ímpeto de punir aumentou e, junto dele, consolida-se a perigosa noção de que vale tudo para pôr rápido na cadeia quem for denunciado – claro, diante da ineficiência da Justiça não chega a ser tão espantosa assim a evolução dessa mentalidade punitiva. Estamos na fase de mandar às favas os princípios (o verbo mais usado é outro, impublicável), contanto que o safado esteja preso. Porém, temo ter de afirmar que já caímos na armadilha, começando pelas elites pensantes, de acreditar ingenuamente que lavando a jato corruptos o sistema político volta a funcionar.
Não parece ter ganhado ainda sentido e direção claros essa onda de descontentamento e indignação que encurralou a política e agora fracionou perigosamente o Judiciário – que de fato manda hoje na política, por meio de figuras populares que não foram eleitas. Primeiras instâncias do Judiciário, por exemplo, pegaram o gosto de sangue e emparedam instâncias superiores pela atuação política em redes sociais e mídia. Por sua vez, as instâncias superiores estão profundamente divididas e renderam-se ao hábito de falar dentro e fora do plenário do STF para o que consideram que sejam suas audiências prediletas. Nesse quadro fluido e volátil não consigo identificar um Estado-Maior ou Central da Conspiração (muito menos das Forças Armadas).
No plano geral da política hoje não há quem puxe, só há empurrados. Por um fluxo que pede “mudança” sem apontar qual (fora o anseio, legítimo e correto, pelo impecável ficha-limpa). Falta algo importante ainda para que o encarceramento do populista sem caráter corresponda a uma página de histórica virada. Meu receio é de que a prisão de Lula acabe surgindo como grande evento que, na percepção do dia a dia, não se revela tão grande assim. Nesse sentido, vale a pena citar o que ele disse ao discursar para integrantes da seita no dia da prisão, quando declarou ser ele mesmo “uma ideia”. É ela que nos atrasou e conduziu à beira do abismo. Precisa ser derrotada, e ainda não foi.