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Foto: Khaled Elfiqi/EFE

Lula na COP-27: ‘Nunca o Brasil teve uma posição como a que está sendo anunciada’, avalia professor

Ítalo Lo Re* Estadão

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursou nesta quarta-feira, 16, na Cúpula do Clima (COP-27), em Sharm El-Sheik, no Egito. O pronunciamento foi feito na área da Organização das Nações (ONU) e durou quase 30 minutos. Entre outros pontos, ele afirmou que o “Brasil está de volta” ao debate climático global e falou no desafio de enfrentar o aquecimento global.

Para Eduardo Viola, professor da Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), a posição anunciada pelo Brasil é inédita. “A mitigação da mudança climática, a transição energética e o controle do desmatamento são colocados como centrais na política pública brasileira e na política externa”, destaca. Leia os principais trechos da entrevista:

Qual foi o destaque principal do discurso do presidente eleito?
Hoje foi tornado público, diretamente pela voz dele, o compromisso que ele assumiu quando fez o acordo com Marina (Silva) e aceitou a plataforma socioambiental apresentada por ela no dia 12 de setembro. Isso levou Marina a apoiar Lula no primeiro turno e a engajar-se muito na campanha eleitoral. O discurso reafirma todo esse compromisso. Nunca o Brasil teve uma posição como a que está sendo anunciada neste momento. A mitigação da mudança climática, a transição energética e o controle do desmatamento são colocados como centrais na política pública brasileira e na política externa.

Sobre política externa, Lula indicou que quer colaborar com outras nações, mas cobrou investimento de países ricos. Como o senhor avalia?
Isso foi um destaque, mas não é necessariamente uma novidade. Lula deu ênfase aos países desenvolvidos darem assistência aos países em desenvolvimento mais pobres. Não se trata de assistência financeira para países como o Brasil, que são de renda média alta, mas para países de renda média baixa. Grande parte da África, da Ásia e alguns da América Latina se enquadram nisso. Não o Brasil e a China, por exemplo. O importante é que ele está chamando (atenção) para isso. Falou de cooperação técnica, de assistência tecnológica para a África Subsaariana, por exemplo. Vale lembrar que, em Copenhagen, em 2009, na COP-15, Lula falou que até o Brasil poderia contribuir para assistência aos países mais pobres. É uma posição muito diferente da política de Bolsonaro, que dizia ‘a gente protege a floresta e vocês nos pagam’, digamos assim. Não tem nada disso.

Muito importante também, paralelamente, é o desejo de eliminar todo o desmatamento até 2030 em todos os biomas brasileiros. Uma coisa seria falar em eliminar o desmatamento ilegal, ou mesmo eliminar o desmatamento na Amazônia, mas ele falou de todos os biomas brasileiros. É um compromisso forte. Ele propôs também uma cúpula amazônica para discutir a integração da Amazônia. O Tratado de Cooperação Amazônica não funciona, mas, com a liderança do Brasil, esse tratado pode se tornar mais efetivo para a integração da Amazônia. A oferta do Brasil para sediar a COP-30, que é em 2025, também é um destaque. O País nunca teve uma COP, só teve a própria conferência do Rio, em 1992, que é a fundação de tudo isso.

O discurso também foi marcado pela valorização de povos originários. Isso indica priorização desses grupos no governo Lula?
É um destaque que nunca houve antes na história do Brasil. O destaque, inclusive a fala de que vai criar um Ministério dos Povos Originários, é algo que não teve no primeiro governo Lula, não nesse nível de intensidade. É um nível de intensidade muito maior de reconhecer os direitos e as contribuições dos povos originários, que é uma tendência em todo o mundo.

O senhor citou o discurso de Lula na COP-15, em 2019. A fala de hoje remonta àquela época, de somar esforços para ajudar países mais pobres?
O que foi, eu diria, radical de Lula naquele momento é que, no discurso na COP, em 2009, ele falou que o Brasil contribuiria com a assistência financeira para países pobres. E ele não falou exatamente isso hoje. Mas falou da cooperação tecnológica com a África Subsaariana.

Então, ele não colocou o Brasil nem como país que recebe recursos nem como que investe, mas como o que conduz mudanças?
E nem vai colocar. Embora exista uma demanda para países de renda média alta, como China, Brasil ou México, para colocar algum dinheiro de assistência, de doação, países pobres. Não quer dizer que não pode ser feito, mas ele não falou estritamente hoje.

Os pontos abordados no discurso, de modo geral, são aderentes ao que tem sido discutido em outros países? As nações desenvolvidas estão abertas a fazer mais investimentos?
Não. Uma coisa é propor o que tem que ser feito, um componente normativo, a norma do que é correto. Outra coisa é a realidade. Nós estamos este ano, por causa da crise inflacionária e pela crise do preço ser da energia, além de uma tendência para recessão em países desenvolvidos, nós estamos em uma situação mais difícil que há um ano, na COP de Glasgow. Na realidade, a tendência é que não há avanços nem houve avanços efetivos em aumentar os recursos para o fundo verde global. Nesse sentido, é correto o que Lula falou, mas não quer dizer que isso vai acontecer no futuro próximo.

Como resumiria a análise sobre o discurso de Lula?
É um ponto de virada do Brasil. Ele não retoma à política ambiental climática no nível do primeiro governo. É um patamar mais alto do que no primeiro governo Lula. O primeiro governo Lula foi o mais consistente na política climática e ambiental. Depois, começou um retrocesso no governo Dilma, que continuou no governo Temer e se super aprofundou com Bolsonaro. Agora, a política climática ambiental tem uma posição muito mais central da que tinha até no primeiro governo Lula. É um outro patamar. Praticamente Brasil se iguala agora à vanguarda do mundo, à liderança do mundo, que é a União Europeia, em termos de política de climática. E se coloca, pelo menos no plano do discurso, pelo menos no mesmo nível da União Europeia. O destaque aos povos originários também parece ser maior do que se tinha no primeiro governo.

Texto publicado originalmente no Estadão.


O Brasil precisa definir políticas sociais e de crescimento econômico que atendam às necessidades básicas da população | Imagem: rafastockbr/Shutterstock

Cristovam Buarque: Pisos e tetos

Cidadania23*

Lula tem razão quando lembra que muitos defendem o teto de gastos para evitar a volta da inflação, sem defesa de piso social, para assegurar todo brasileiro com alimentação satisfatória, escola de qualidade, atendimento de saúde, moradia com saneamento, garantia de emprego e renda com moeda estável. Tanto quanto a desigualdade como a educação de base é oferecida, a maior causa da pobreza é a desvalorização da moeda que rouba o valor dos salários pagos aos trabalhadores. Há décadas a inflação faz parte da arquitetura de concentração de renda, que os economistas, empresários e políticos impõem ao povo brasileiro. Mas a estabilidade da moeda é insuficiente se os governos não fizerem os investimentos sociais necessários.

O Brasil precisa definir políticas sociais e de crescimento econômico que atendam às necessidades básicas da população e promovam emprego. Lula lembra que um gasto que salva vida ou constrói infraestrutura é investimento. Para tanto, o Estado precisa investir o que for necessário, tendo consciência de que esses investimentos exigem gastos no momento que são realizados e que não devem ser financiados pelos próprios pobres ao receberem salários e bolsas com moeda desvalorizada e sofrerem as consequências do endividamento, juros elevados, preços inflacionados e consequente recessão e desemprego.

Além do piso social, é preciso haver teto em gastos desnecessários, mordomias, desperdícios e privilégios: ineficiência, ostentação, prioridades e política fiscal que concentram. O Brasil precisa também definir um limite ao uso de seus recursos naturais, para evitar a depredação que sacrifica as gerações futuras. Os dois governos Lula praticaram essa ideia de pisos e tetos: criaram programas sociais, foram responsáveis fiscalmente e comprometidos com o meio ambiente. Precisa-se de uma reforma fiscal que permita financiar as necessidades dos pobres, eliminando desperdícios e ineficiências, para manter a estabilidade da moeda em benefício do povo e do país.

Em vez do nervosismo por uma fala improvisada de Lula enfatizando mais o piso social do que o teto de gastos, os agentes econômicos — compradores e investidores — deveriam observar os atos de Lula, nos seus oito anos de governo e sugerir formas para financiar os gastos sociais com uma política fiscal responsável, capaz de barrar excessos de gastos e de subsídios dirigidos à parcela rica e à indústria ineficiente. Para assegurar o piso social que atenda às necessidades e retome o crescimento, é preciso impor tetos aos privilégios. Romper o teto de gastos com os pobres e impor teto de benefícios aos privilegiados.

Tudo indica que Lula vai manter seu compromisso social e repetir a responsabilidade fiscal de seus dois governos, com orçamentos equilibrados. Ele tem manifestado a importância do fator confiança e da previsibilidade como condição ao bom desempenho da economia e já demonstrou saber que a responsabilidade fiscal é determinante para que os agentes econômicos tomem decisões corretas. Por isso, a necessidade de piso social e de limites em gastos supérfluos.

Ao longo de décadas, economistas e políticos optaram pela ideia de que a pobreza decorre da falta de crescimento e justificaram ostentação, gastos supérfluos, desperdícios e ineficiências como ferramentas para superar a pobreza. Iludiram os pobres cujo trabalho era pago com a falsa moeda da inflação. Usaram a inflação para que os pobres financiassem o progresso para os ricos, agravando a pobreza enquanto o país crescia. Foi graças à maldade da inflação que o Brasil conseguiu estar entre os países mais ricos e aqueles com maior concentração de renda e número de pobres e de famintos.

Nossos economistas, empresários e políticos precisam perceber que a permanência da pobreza é um dos maiores entraves ao progresso nacional e sua superação promove o crescimento e o desenvolvimento. O mercado deve entender que os investimentos sociais impactam positivamente sobre a economia e levar em conta que parte do bom desempenho da economia nos anos de Lula veio dos resultados do que se investiu em educação, saúde, Bolsa Família. E muitos ao redor do Lula esquecem que isso foi possível graças à estabilidade monetária. Sem os investimentos sociais o crescimento fica limitado, sem a estabilidade monetária os benefícios sociais são corroídos.

Lula precisa aumentar gastos sociais e manter equilíbrio fiscal, reduzindo privilégios, desperdícios, ineficiências: piso para os necessitados e teto para os privilegiados. (Correio Braziliense – 15/11/2022)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação

Texto publicado originalmente no portal Cidadania23.


Nas entrelinhas: Lula propõe aliança estratégica com o agronegócio

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A reforma agrária, a velha bandeira da esquerda brasileira, que remonta ao debate sobre a industrialização na década de 1930, partia da premissa de que monocultura agrícola, inclusive a agromanufatura açucareira, era uma das causas do nosso subdesenvolvimento. Havia até então a concepção de que somente a eliminação dos grandes latifúndios poderia desenvolver o capitalismo no campo, o que na verdade já existia desde o fim da escravidão. Achava-se que éramos um país de agricultura feudal.

Essa compreensão, por exemplo, ignorava o fato de que o Convênio de Taubaté havia mudado completamente a relação do Brasil com o mercado mundial de café, sendo um fator decisivo para a própria industrialização, principalmente em São Paulo, cujos cafeicultores acumularam muito capital e priorizaram os investimentos em atividades produtivas, em vez do patrimonialismo que predominou em outras regiões do país.

Fruto de um pacto entre os governadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, respectivamente Jorge Tibiriça, Francisco Sales e Nilo Peçanha, o Convênio de Taubaté fora assinado em 6 de fevereiro de 1906, garantindo a compra do café por um preço mínimo e a regulagem dos estoques para controlar os preços internacionais, mais ou menos como fazem hoje os países produtores de petróleo. Na ocasião, o presidente Rodrigues Alves não se dispôs a assumir o ônus desta política, porém, os estados assumiram a compra do café excedente.

Com a eleição de Afonso Pena, essa situação finalmente iria mudar, cabendo ao governo federal manter a política de valorização do café. Os resultados foram positivos. Na década seguinte, o lucro conseguido pelos cafeicultores iria aumentar consideravelmente devido ao crescimento da compra do produto no mercado internacional. A modernização das principais cidades do país, principalmente o Rio de Janeiro, tem tudo a ver com o êxito dessa política.

Nada disso, porém, abalou o dogma da esquerda de que o país não poderia se desenvolver sem reforma agrária e nacionalização das empresas estrangeiras, o chamado caminho da “revolução brasileira” (a democracia estaria em segundo plano). No começo da década de 1960, enquanto Francisco Julião e suas ligas camponeses defendiam a reforma agrária “na lei ou na marra”, o presidente João Goulart prometia realizar as reformas de base por decreto, à revelia do Congresso, o que foram fatores decisivos para o êxito do golpe militar de 1964.

Por pura ironia, o Estatuto da Terra, aprovado no governo Castelo Branco, viria a ser o instrumento da reforma agrária no ciclo de modernização conservadora da década de 1970. O governo Fernando Henrique Cardoso, tendo Raul Jungmann como ministro da Reforma Agrária, foi aquele que mais desapropriou terras, distribuiu títulos de propriedade e assentou trabalhadores rurais da história republicana, além de ter criado o Pronaf, o muito eficiente programa de financiamento de agricultura familiar do país.

Créditos de carbono

Desculpem-me esse longo parêntesis. O fato é que o Brasil se tornou o maior produtor de proteína animal do mundo e é um dos maiores produtores agrícolas do planeta. Com monocultura e grandes propriedades agrícolas, fez uma verdadeira revolução agrícola no campo, que hoje lidera a economia do país em termos de inovação e tecnologia embarcada. Não depende mais da expansão da área cultivada e dos pastos para aumentar a produção de alimentos, porém, precisa se preocupar com a questão ambiental. As atividades rurais predatórias, principalmente na Amazônia, são um anacronismo, que compromete o futuro de nossa integração à economia mundial, devido às retaliações que poderiam advir em razão da política mundial de combate aos gases do efeito estufa e ao desenvolvimento de uma economia de baixo carbono.

Assim como existe institucionalidade financeira na globalização, emerge da COP27 uma nova institucionalidade ambiental, que ditará os rumos das relações comerciais e das cadeias globais de produção. Por isso tudo, faz todo sentido a aliança estratégica com o agronegócio para combater o desmatamento e promover a nova economia proposta pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, em seu pronunciamento na COP27, no Egito.

Um grande passo seria regulamentar a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA), que pode beneficiar grandes e pequenos produtores, ao remunerar ou recompensar quem protege a natureza (créditos de carbono) e mantém os serviços ambientais funcionando em prol do bem comum. De iniciativa dos deputados federais Rubens Bueno e Arnaldo Jordy, com as diversas alterações realizadas no Senado Federal e aperfeiçoamentos das duas casas legislativas, a Lei 14.119 definiu conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação do programa.

Em países como Costa Rica, Colômbia, EUA, Holanda, Canadá, China, Equador, Zimbábue, Bolívia, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Venezuela, República Dominicana e Austrália já existem disposições normativas que regulam a gestão do PSA. Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, e diversos municípios brasileiros, dispõem de normas jurídicas específicas para implementar uma nova política ambiental e financiar o desenvolvimento sustentável, em parceria com o agronegócio. É mais uma ferramenta de combate às iniquidades e injustiças sociais no campo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-propoe-alianca-estrategica-com-o-agronegocio/

Frente, transição, futuro governo e a política: Lula segura as rédeas

Paulo Fábio Dantas Neto*, Esquerda democrática

Durante essas semanas seguintes às eleições, quem realmente gosta de democracia e entende a importância da política na vida pública está matando saudades. Desfruta imagens e falas que vão além do alívio – algo já em si importante – e trazem esperança de que possamos voltar a ter no Brasil espaço para argumentos, diálogos e embates políticos civilizados em lugar de dogmas, berros e violência. Fantasmas que apavoravam a sociedade, ou se dissiparam (caso do perigo de golpe) ou migram para as margens das estradas e do noticiário político, caso das manifestações de inconformismo politicamente ativo em relação ao resultado eleitoral. Nuvens descarregam e o descarrego torna o ar menos abafado.

Há quem chame isso de volta à normalidade. Apesar da sensação real de que matamos saudades, tenho dúvidas sobre se de fato estamos diante de algum tipo de retorno. Tendo mais a compreender esse momento como saída de um beco enlameado, pantanoso e como entrada numa avenida desconhecida. À medida em que, ao caminhar por ela, o país finque os pés no chão, poderá avaliar a qualidade do piso, sua textura em cada trecho, percebendo a firmeza e o alcance de cada passo. Enquanto vencedores podem arriscar saltos para desfrutar bônus da vitória, a realidade aconselha, a quem ganhou e a quem perdeu as eleições, pisar devagarinho, pois a nova avenida não é reta nem está toda pavimentada. Para os componentes do que se autodesignou “frente ampla”, os desafios são manter em dia os músculos e articulações dos pés e prestar atenção a curvas sinuosas, túneis e elevados, que modulam a velocidade.

Na pista da política institucional, o piso é amigável. Atitude cooperativa predomina para além dos necessários acordos e negociações, próprios do jogo político. Há no ambiente uma consciência coletiva da elite política de que lhe foi dada nova oportunidade de agir como tal. O instinto sobrevivente, após quatro anos de incerteza radical, sugere aos atores políticos que a parte atual do jogo pode ser jogada de modo a beneficiar, inicialmente, a todos os que se dispuserem ao jogo dentro das regras, inclusive se forem da turma do capitão. Remete-se ao futuro as disputas decisivas. Se a futuro breve ou distante não se sabe (a política dirá), mas ao menos tem-se um prazo fixado pela democracia, isto é, no próximo encontro com as urnas tudo será reexaminado. Por ora, não convém a ninguém antecipar, para não travar a acumulação de capital político acessível a todos, enquanto dure a cooperação. Nessa, portanto, nada há de altruísmo. É interesse que, ao que parece, começa a ser mais bem compreendido. Desse modo, a visita do presidente eleito às cúpulas dos outros dois poderes da República apenas selou uma atitude antecedente de compromisso. Com os ministros do STF e com os presidentes do Senado e da Câmara Lula não precisou oferecer mais do que uma disposição de laissez-faire. Menos judicialização da política e abstenção em relação às disputas internas ao Legislativo bastam para assegurar bom tráfego.

Quadro distinto há no túnel onde circula um eleitorado cindido quase ao meio, parte dele interditando a pista sem pavimento pela qual a frente ampla pede passagem. Suas motivações não são desejo de golpe, mas um imenso ceticismo em relação ao presidente eleito e ao seu ainda futuro governo. Ceticismo também em relação ao processo eleitoral findo, modo de repudiar o sistema político ao qual Bolsonaro, contra leis da lógica, ainda conseguiu aparecer como contraponto, depois de ter patrocinado, em favor da sua tentativa de reeleição, uma radical mobilização de recursos públicos por dentro desse sistema. Conforme pesquisa do Instituto Atlas (trago aqui informação da jornalista Raquel Landim, da CNN, ao entrevistar o responsável pelo instituto), entre os dias 4 e 8 de novembro 43% dos eleitores entrevistados disseram que Bolsonaro foi injustiçado na eleição e 38% que Lula não teve mais votos que Bolsonaro. Mesmo mantendo a devida distância desses números exatos, inclusive por não conhecer bem a metodologia empregada, creio ser impossível não prestar atenção na ordem de grandeza. Ela dá ideia sobre o tamanho do caminho a percorrer pelo campo democrático (não só pelo governo, como lembrou ontem a jornalista Maria Cristina Fernandes em sua coluna no jornal Valor Econômico) entre a vitória eleitoral da frente ampla, a montagem e atuação do novo governo e a fixação de um padrão de competição confiável entre ele e uma oposição democrática. Nenhuma das três condições é dispensável para afastar do nosso horizonte, ao menos a médio prazo, o protagonismo político de uma extrema-direita subversiva e agonística. Das três, por enquanto alcançou-se a primeira, a 30 de outubro. As duas outras (governo de frente ampla e oposição democrática) ainda são temas mais para prospecção.

Mas o presidente eleito é uma personalidade política marcante e incontrolavelmente ostensiva. Por mais que tenha seus segredos imperscrutáveis e faça deles uso, como qualquer político, sua persona pública não abre mão de fazer revelações inesperadas, elas também armas para exercer protagonismo. A sua presença nos palcos procura por vezes neutralizar a obra da paciente dialética articulatória dos bastidores, caso essa obra ameace, de algum modo, a sua condição de vértice. E no cumprimento das ordens do instinto de sua pessoa termina fornecendo material a análises que, sem ele, seriam precoces.

Foi exatamente o que ele fez nessa última semana, ao final de dois dias de alta exposição. Na quarta-feira cumpriu, como se governante já fosse, o importante ritual da separação harmônica dos poderes, colhendo os merecidos frutos do contraste gritante com o seu antecessor que ainda vaga pelo palácio. Nesse dia Lula guardou para si seus sentimentos, desejos e planos, respeitando a primazia das instituições sobre as pessoas. Depois fez do dia seguinte uma quinta-feira com ares de um pastiche da Lavagem do Bonfim. Sem confrontar o ritual sagrado cumprido na véspera, assumiu o apetite profano de políticos outsiders em romaria e se esbaldou em desabafos ao povo, inclusive com direito a lágrimas. Ao seu lado, fiéis escudeiros e/ou parceiros de primeiro turno e aliados chegados já no segundo. Esses últimos e parte dos primeiros foram levados de roldão ao encontro da patuscada, no embalo da retórica populista, como se fossem turistas desavisados, perplexos e receosos, mas também encantados com o sincretismo da festa. Na Bahia o rumo é uma basílica e a festa é em honra de um redentor. Mas no caso em tela, o que são a motivação e o rumo é discussão mundana, que vai longe e desautoriza a analogia.

O eleitor médio adora tudo isso, daí a popularidade de Lula. A militância retira dessa performance o combustível do seu fervor. Já a dinâmica institucionalmente plural e laica da política democrática sofre com isso, daí a dificuldade de Lula adquirir, nesse âmbito, uma confiabilidade sustentável, o que o obriga a permanente exercício de seduções a granel. Por mais que sua retórica populista assopre, depois de morder, seus pares no mundo da elite política sabem que não estão livres de, na próxima esquina, receberem do hipnotizador de massas a pecha de picareta ou golpista. Acordos políticos com Lula tendem a ser intensos, para mostrar que envolvem cérebro e coração. E efêmeros, a não ser que os aliados, mesmo céticos, metabolizem seus interesses em forma de devoção e profissão de fé no líder.

Fiz uma interpretação sumária, que não resistiria ao teste do que foi a performance um tanto frustrante de um líder populista meio fora de forma, que Lula exibiu na mais recente campanha. Para quem esperava dele o arrebatamento das massas num resgate de sua trajetória, é pedagógico resignar-se ao fato de que deve sua eleição à formação de uma frente ampla de última hora, formada por forças políticas, lideranças, pessoas e grupos movidos pelo medo da reeleição do seu oponente. Esse choque de realidade não impede, contudo, que se leve em conta outro fato incontestável, o de que ninguém, na política brasileira atual, senão ele, poderia reunir condições necessárias - embora não suficientes, como mencionei acima - para enfrentar e derrotar um incumbente que, por sua vez. reunia três condições que faziam dele o espectro de uma tempestade perfeita: mística antissistêmica, arsenal (legal e ilegal) de recursos materiais derivados da ocupação do cargo e disposição pessoal de não se deter diante de escrúpulos de qualquer natureza. Esse segundo fato, de ter sido a única alternativa ao caos, sinaliza um futuro ao protagonismo de Lula. Um futuro de consolidador da vitória do sistema contra a subversão.

Esse é o preço que, em tese, Lula deve pagar por ter obtido o apoio eleitoral de uma minoria política e social decisiva, que lhe rendeu os votos que faltavam. Votos que sozinho com seus apoiadores primeiros ele não pôde obter, ao contrário do que previa sua tática original de frente de esquerda acenando ao centro. A dialética articulatória, fundada no entendimento e em concessões mútuas, com ânimo de conciliação, é a única gramática disponível a Lula, antes que ele tenha em mãos, efetivamente, os cordéis do poder governamental. Pode ser que a mantenha, por meses ou até o fim do mandato, em atenção aos condicionantes objetivos de sua apertada eleição. Pode ser que não. Até aqui há pistas de uma coisa, de outra e também de combinação ignorada entre a gramática da articulação e a de cooptação fisiológica.

A frente ampla, por ter sido improvisada e não fruto de uma convergência programática dentro de uma estratégia política, implica, agora, em processos complexos de realinhamento ainda muito opacos. Enquanto dinâmica de partidos e lideranças que pretendem influir sobre o futuro governo, o rumo ou a falta de rumo dessa frente ainda é um quebra-cabeças de resolução ignorada. Certamente será tema em pauta na sequência dos artigos semanais. Hoje só arrisco, para concluir, uma hipótese, a partir do que transparece a mim sobre desígnios, provavelmente provisórios, do ator principal. A transparência relativa desses desígnios provém, como já dito, do fato de Lula, embora sendo mestre na dissimulação, ser, também, perito em oratória incontinente. Nunca esquecendo que ambas são recursos conscientes do ator, é possível interpretar, a partir do que não pode ser dissimulado, o que tem sido a sua tática.

Para resumir, penso que se trata para ele, agora, de segurar as rédeas da política em suas mãos, como vértice indisputado. É possível que consiga. Votos, mesmo sem goleada, revigoram o animal político. Mas a fila da política anda e pode fugir ao seu controle, na eventualidade de um condicionamento da formação do governo pela transição coordenada por Geraldo Alckmin. As coisas, no meio político e empresarial, também na sociedade civil e na imprensa, começavam a parecer andar “bem demais”. Era tal o clima de busca de consenso que, de repente, se poderia chegar a ele sem a intervenção decisiva do protagonista. As virtudes do método dialético da articulação poderiam fazer com que ele, o método, relativizasse as diferenças substantivas sobre, por exemplo, política econômica, dando lugar a um script irrecusável pelo presidente. Até porque a percepção da gravidade da crise social e o profissionalismo da articulação política sobre economia jamais permitiriam à coordenação da transição o luxo de nublar a máxima prioridade presidencial para suas promessas explícitas de campanha, quase todas remetidas ao social. Em todas as arenas visitadas pela comissão respirava-se ar de conciliação entre responsabilidade social e responsabilidade fiscal. A adversativa “ou” caminhava para o armário. Mas eis que, numa quinta apoteótica, a mão visível do ator principal instala um contencioso em cima de uma não questão. Volta-se à reta final do primeiro turno e o que estava irresolvido, mas andando, parece voltar à estaca zero.

Vozes petistas menos moderadas, viajando na maionese, exultaram quando souberam que Henrique Meireles teria dito que Lula dilmou. Será? As seguidas indicações de pessoas do governo Dilma para diversos núcleos temáticos da comissão de transição; o aval, ainda que contido, da presidente do PT à carta institucionalmente aloprada de Guido Mantega ao BID para reverter uma indicação do atual governo como se já houvesse um novo; as especulações em torno do nome de Fernando Haddad para o ministério da Fazenda, tudo isso e outras narrativas mais pareciam encontrar guarida e sentido nas palavras aguerridas do presidente eleito num discurso dito histórico, por essas correias de transmissão.

Por outro lado, reações políticas em contrário assumiram variadas formas. No plano partidário poucos exemplos. Profissionais da política em geral seguram-se numa hora dessas, quando há muito em jogo. Mas é digna de nota a clareza quanto ao mérito da discussão usada por Gilbert Kassab para, em entrevista à CNN, condenar polidamente a fala. E de curiosidade a ausência do MDB à primeira reunião dos partidos da base ampliada da transição, que o partido integra a convite direto da presidente do PT. Entre os chamados “economistas liberais” (profissionais ou intelectuais públicos que a turma das correias de transmissão ironiza como vozes do “mercado”, o inimigo secular, evocado pela fala de Lula) as reações variaram entre a crítica assertiva, sem meias palavras, de Elena Landau – a assessora do programa econômico de Simone Tebet – e a ironia moderada de Arminio Fraga simulando responder com paciência às indagações retóricas da fala de Lula. Por fim, no próprio PT houve leituras bombeiras de que “não foi bem assim” e palavras moderadoras consistentes, como a do senador Welington Dias.

Essas manifestações de incômodo parecem longe de um caminho sem volta em relação ao governo Lula, mas refletem, em comum, a consciência sobre a falta de futuro da dicotomia falaciosa entre responsabilidade fiscal e responsabilidade social no atual contexto de revisão conceitual desse tema em todo o mundo pós-pandemia e de convergência política democrática no Brasil. E expressam, de um ponto de vista racional, variados graus de apreensão quanto às palavras do presidente eleito, de quem esperam atitudes de um dirigente do sistema democrático e da política sólida das instituições.

Penso que os temores de um lado e as celebrações do outro não se sustentam ainda em suficientes fatos. O mais que provável é que Lula volte do Egito carregado de acordos e promessas internacionais, antidistônicos para resolver a distonia que provocou. O discurso deverá ser ambíguo, como sempre. Aos críticos que quiser afagar dirá “não disse que não havia motivos para preocupação?” Aos que quiser manter à distância dirá que são provincianos, enquanto ele, Lula, está antenado com a ordem mundial.

Lidar bem com a ambiguidade do mundo real e saber cultivá-la é, sem dúvida, uma virtude política. Pode ser praticada tanto na direção de construir consensos sempre parciais e nunca absolutos, fazendo da política um artesanato de várias mãos, construindo um centro diretor vertical a partir de circuitos horizontais; ou pode ser praticada na direção de ativar conflitos até o limiar da divisão, fazendo da ambiguidade do líder o único ponto de equilíbrio possível e consagrando a política como atividade dependente de estímulos que podem e até devem vir de baixo, desde que sejam triados pelo vértice. Essa última é a via da ambiguidade virtuosa de Lula e um mandamento que talvez deva ser observado por todos os brasileiros que ajudaram a elegê-lo é lembrar que não se pode eleger Lula e querer que ele seja outro. É assim e assim será. Qualquer projeto democrático que o inclua não deve incluir a hipótese de que um dia ele desça do palanque. Jamais descerá. Se descesse seria menos marcante que um chuchu.

Se alguém, como esse colunista, se inquietar ou contrariar com isso, deve observar, durante os próximos quatro anos, um segundo mandamento das urnas, que é imaginar como estaríamos se o eleito tivesse sido o outro. O espirito de quem é democrata sincero ficará mais apaziguado. Mas ao mesmo tempo deve ficar atento a outro ponto da fala do presidente eleito naquela memorável quinta-feira: ele não só exumou o inimigo “mercado”, como o inimigo Bolsonaro, esse de carne e osso, repetindo, em palanque tardio, a pauta de uma campanha que deve dar por encerrada se quiser, de fato, agregar o país. Por mais apaziguados que estejamos com a ambiguidade de Lula, é insólito ouvir o eleito despolarizador do país tirar o capitão do atual ostracismo para convidá-lo a se preparar melhor para a “próxima”. Bolsonaro pode virar, a médio prazo, assunto do Poder Judiciário e pé de página na política institucional. Sua irrelevância sistêmica é indispensável para desobstruir o túnel de insatisfeitos, onde ele atua e tem peso. Para pavimentar o túnel e integrar os transeuntes à política da nova avenida Brasil, pelo novo governo e pela nova oposição. E deixar Bolsonaro entregue aos juízes e a André Janones.

* Paulo Fábio Dantas Neto é cientista político e professor da UFBa.

Texto publicado originalmente no Facebook da Esquerda Democrática.


Foto: reprodução | Arthur Menescal / Especial Metrópoles

Governador bolsonarista: Lula não é de direita ou esquerda, é do povo

Tácio Lorran | Metrópoles

Enviado especial à Sharm El-Sheikh – Governadores da Amazônia que declararam apoio à reeleição de Jair Bolsonaro (PL) indicaram estar dispostos a trabalhar junto ao novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para reduzir o desmatamento ilegal na região. Eles ponderam, contudo, que políticas do agronegócio não podem ser deixadas de lado.

governador do Acre, Gladson Cameli (PP), afirmou que Lula não é presidente de esquerda ou de direita, mas, sim, do povo brasileiro.

“A eleição acabou. Desci do palanque e estou pronto para ajudar no que for necessário. Temos as políticas ambientais e as políticas do agronegócio”, afirmou Cameli, nesta segunda-feira (14/11), durante a 27º edição da Conferência das Partes das Nações Unidas (COP27), realizada em Sharm el-Sheikh, no Egito.

Por sua vez, o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes (União), pontuou que quando alguém se elege para um cargo público, a Constituição e a legalidade passam a ser a grande baliza.

“A eleição terminou. Quando eu ganhei a eleição, 15 prefeitos me apoiaram. Nesta reeleição, eu tive apoio de 140 prefeitos. Espero que daqui a um tempo o presidente Lula possa ter o apoio de todos – vai ser um sinal de que ele vai governar para todos e não somente para aqueles que o elegeram”, acrescentou Mendes.

Ambos os governadores declaram apoio a Bolsonaro nas últimas eleições.

O consórcio interestadual da Amazônia Legal tem um hub próprio na COP27. Nesta quarta-feira (16/11) o espaço terá a presença do Lula, que receberá uma carta dos governadores da região. O documento está em fase de finalização.

“Essa carta vai trazer, em linhas gerais, uma proposta de uma visão que possa representar esse novo momento que o Brasil vai viver, mas, acima de tudo, que possa garantir o respeito à Amazônia e a todos nós que vivemos naquela parte do país. Preservar nós queremos, mas queremos também que o povo da Amazônia possa tero direito de continuar crescento e se desenvolvendo”, disse o governador do Mato Grosso.

*O repórter viajou a convite do Instituto Clima e Sociedade (ICS)

Matéria publicada originalmente no Metrópoles


O QG lulista contra as fake news

Folha UOL*

Ao assumir a assessoria jurídica da campanha do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, este ano, o advogado Cristiano Zanin, que também defendeu Lula nos processos da Lava Jato, tinha uma preocupação: como enfrentar e brecar os ataques das redes digitais do presidente Jair Bolsonaro contra o candidato petista. A experiência de 2018 deixara clara a eficiência das redes bolsonaristas. Zanin, portanto, não tinha dúvida de que as redes seriam uma grande ameaça a Lula, pois era claro que os adversários usariam perfis espalhados por várias plataformas para propagar notícias falsas, criar terror entre os eleitores e, principalmente, reforçar o fato de o ex-presidente ter sido condenado e preso, embora o advogado tivesse conseguido reverter todas as 26 condenações.

Zanin estava convicto de que somente o trabalho jurídico não daria conta de vencer o ataque digital. Para enfrentar a guerra em condições de igualdade era preciso mais: montar um contra-ataque mais eficiente do que a ação do adversário.

Discretamente, como é do seu feitio, o advogado foi buscar para essa tarefa aquele que não apenas tinha um grande conhecimento em estratégia de redes sociais mas, ainda por cima, conhecia o modus operandi do adversário, por ter trabalhado com ele na eleição anterior. Tratava-se de Marcos Carvalho, estrategista em marketing digital e presidente da agência AM4, responsável pela bem-sucedida campanha digital de Bolsonaro em 2018. Logo após a eleição, contudo, Carvalho foi defenestrado pelo então presidente que ajudara a eleger em razão do ciúme que Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, tinha do profissional.

Carvalho entrou para a campanha de Lula logo no começo de agosto. Após conversas com Zanin, os dois decidiram montar uma sala de monitoramento de redes sociais. Zanin e Carvalho passaram a trabalhar em permanente parceria. O advogado sabia que, para poder agir, entrando com ações rápidas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra os ataques digitais das redes bolsonaristas, teria que estar muito bem amparado por informações que comprovassem a disseminação de conteúdos falsos – algo que já vinha ocorrendo antes mesmo do início da campanha.

O quartel-general petista contra fake news foi instalado numa sala no terceiro andar de um prédio na Rua Padre João Manuel, nos Jardins, em São Paulo, onde, coincidentemente, funcionam tanto o escritório do advogado quanto o do marqueteiro. Na sala havia apenas uma grande mesa retangular ao centro e cinquenta monitores cobrindo uma parede inteira. Por meio deles, dez analistas da empresa de Carvalho acompanhavam, minuto a minuto, o que era disseminado em páginas e perfis de seguidores do presidente na internet. “Essa tela fazia o raio X das redes para entender o que estava acontecendo”, contou Zanin, por telefone, no dia 28 de outubro, enquanto seguia de carro para o estúdio da Globo, no Rio de Janeiro, onde se daria o último debate entre Bolsonaro e Lula.

Zanin acabara de chegar de Brasília para acompanhar o debate, após passar a madrugada e a manhã daquele dia entrando com os últimos recursos no TSE para barrar nova leva de postagens de notícias falsas contra Lula. E contou, entusiasmado, como se deu o trabalho para enfrentar o exército digital do adversário.

 “Montamos uma sala de altíssima tecnologia com expertise de quem tinha passado pela eleição de 2018”, disse. “Toda essa experiência se somou a outros profissionais que também nos deram suporte relevante.” E detalhou: “Foi um conjunto de advogados e experts na área de estratégia digital que nos permitiu ter a compreensão de como funcionava esse sistema e contra-atacá-lo na sua essência, notadamente na produção de material falso.”

Monitorando o que estava bombando nas redes adversárias, os advogados entravam com pedido de liminar junto ao TSE e com ações junto às plataformas denunciando a disseminação de fake news. Com base nas liminares concedidas pelo TSE, a equipe jurídica conseguia a desmonetização nas plataformas, como Twitter, YouTube, TikTok e Instagram – ou seja, cortavam os recursos financeiros –, das páginas que distribuíam conteúdo falso. “Ao se desmonetizar esses canais, cortou-se na raiz boa parte da produção de fake news”, disse Zanin. “Elas não deixaram de existir, mas foi uma providência muito importante que teve um impacto significativo nesse ecossistema de desinformação.” 

Proibidos de receber remuneração pela reprodução de material falso, para serem difundidos por vários perfis, os produtores desse tipo de conteúdo viram seu financiamento secar, principalmente no YouTube. Financeiramente, já não compensava seguir adiante com as fake news.

Os escritórios de Cristiano Zanin e de Eugênio Aragão entraram com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral contra propagadores de informações falsas. A decisão do TSE puniu perfis como os de Carlos, Eduardo e Flávio Bolsonaro, filhos do presidente; Kim Paim, youtuber bolsonarista; Nikolas Ferreira, vereador por Belo Horizonte e deputado federal eleito; Alexandre Ramagem, diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e candidato a deputado federal; o influenciador Leandro Ruschel; o youtuber Bernardo Küster; o jornal Gazeta do Povo; Filipe Martins, assessor internacional do presidente; Terra Brasil Notícias; o perfil @Patriotas; as deputadas Carla Zambelli e Bia Kicis. De acordo com a ação, esses perfis acumulavam milhões de seguidores apenas no Twitter, sem considerar as demais plataformas. O monitoramento mostrou que só em julho esses perfis publicaram 434 tuítes associando o PT ao PCC e à morte de Celso Daniel. Em agosto foram 103; em setembro 101, caindo para 34 em outubro graças às ações dos analistas e advogados da campanha de Lula.

O quartel-general petista antifake news foi instalado em São Paulo. Dez analistas acompanhavam, minuto a minuto, o que era disseminado em páginas e perfis de seguidores de Lula na internet

De acordo com Zanin, a narrativa de associar Lula ao crime não nasceu organicamente, mas fez parte da estratégia final da campanha de Bolsonaro. Entre o dia do debate e a véspera do primeiro turno, segundo apurou o site de checagem Aos Fatos, Bolsonaro atribuiu a Lula a pecha de criminoso em ao menos 34 ocasiões. Antes dos conteúdos serem retirados, a desinformação já havia chegado a 1,7 milhão de pessoas apenas no YouTube da Jovem Pan e alcançado 38 grupos de WhatsApp e Telegram monitorados.

Zanin explicou que o trabalho conjunto do seu escritório – que trabalhou na defesa de Lula desde o início da Lava Jato – e o de Aragão, que já tinha tido experiência com o enfrentamento de fake news nas eleições de 2018, ajudou muito no contra-ataque deste ano. “Essa visão multidisciplinar que usamos na defesa de Lula na Lava Jato foi levada para essa equipe conjunta”, disse. “Um dos aspectos que sempre nos intrigou foi como fazer um combate às fake news, que foi um problema em 2018 e que seria também nestas eleições.” O TSE, disse ele, já tinha sinalizado que essa era uma grande preocupação para a campanha de 2022.

O que mudou em relação a 2018 foi que os advogados perceberam que, além da parte jurídica, precisariam de suporte da parte digital, o que não ocorreu na eleição passada. Era necessário que tivessem com eles uma expertise em redes sociais. “Conversando com o Marcos Carvalho, surgiu esse trabalho comum”, disse Zanin. “Ele nos subsidiou com muitos dados das redes que foram importantes para ganharmos essa guerra.” A equipe de Carvalho, segundo Zanin, acompanhava com precisão não só o que circulava de notícias falsas e desinformação. Mas permitiu traçar um caminho de como essas fake news estavam se reproduzindo e quais os perfis que estavam sendo relevantes na produção e disseminação da desinformação. “A gente tinha ali movimento permanente, desde o início da campanha. Era um trabalho multidisciplinar para se acompanhar o caminho de circulação das fake news e, dessa forma, nortear uma atuação estratégica para combatê-las.”

Explicou que esse norteamento era importante porque não adiantava levar ao tribunal qualquer assunto e qualquer perfil. Precisava estar tudo muito comprovado. “Na reta final, o resultado desse trabalho com o Marcos e outros profissionais nos permitiu mapear a cadeia organizada de perfis que produzem e disseminam fake news montando, assim, o ecossistema de desinformação que serviu para a ação de investigação eleitoral.” Com esse mapa da desinformação, o TSE mandou desmonetizar vários sites que atuavam na produção de conteúdo falso.

O dia a dia da caça às fake news era tenso. Os escritórios recebiam as informações dos analistas e entravam imediatamente com representação no tribunal para derrubar o material falso. Descobriram que vários perfis tinham os mesmos atores envolvidos, e isso chamava a atenção. Perceberam, assim, que não era algo casual e circunstancial. Era, na verdade, um modelo de operação, produção e divulgação de notícias falsas, que resultou na Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) movida pelos escritórios de advocacia contra a campanha de Bolsonaro. De acordo com Zanin, a campanha de Lula ganhou dezenas de ações que derrubaram um número infindável de links e perfis do presidente, de seus filhos e apoiadores. Levantou-se um conjunto de teses bolsonaristas que foram declaradas falsas pelo TSE, tais como ligações com o crime organizado, aborto, banheiro unissex. Todas elas eram replicadas da mesma forma por uma rede de apoio a Bolsonaro.

Essa estratégia por parte da campanha petista falhou em 2018 porque havia dificuldade de se fazer uma cadeia probatória. Havia uma certa limitação tecnológica para se compreender o modelo e atacá-lo com uma ação mais potente, que é essa AIJE. “A somatória de análises jurídicas junto com análise de estratégia digital ajudou na compreensão plena e na elaboração dessa ação que culminou na desmonetização dos perfis e das páginas.”

Zanin diz que é fundamental a modernização da advocacia. “Para ter ações na justiça com resultados é preciso uma cadeia probatória robusta. Se na parte digital não houver experts que deem um suporte para advocacia é muito difícil fazer frente e descobrir os ilícitos no mundo digital.” Para ele, cada vez mais a advocacia precisará ter uma visão multidisciplinar, contemplando vários ramos de direito, além de buscar suporte tecnológico.

O advogado está seguro de que o trabalho de rastrear o ecossistema das fake news, que teve a colaboração da pesquisadora Fernanda Sarkis, foi fundamental para desarmar Bolsonaro. Disse que houve uma reação grande da campanha adversária em razão da vitória que a campanha de Lula obteve nesse universo digital e que serviu para derrubar muito material espalhado pela rede que sustentava essas teses bolsonaristas baseadas na desinformação. “Eu não tenho dúvida de que as ações abalaram bastante a estrutura dessa rede de notícias falsas que sustentaram a campanha bolsonarista em 2018.”

O marqueteiro e estrategista digital Marcos Carvalho não esconde seu entusiasmo com o resultado da campanha. Não apenas por ter desmontado, em parte, a estrutura bolsonarista nas redes. Mas também por entender que, com isso, fez justiça de alguma forma ao amigo Gustavo Bebianno – personagem chave da campanha de Bolsonaro em 2018 que, após “ter dado o sangue” para eleger o capitão, foi escorraçado pelo presidente menos de dois meses após a eleição. Carvalho não esconde sua decepção: “Bolsonaro não é líder de nada. Para mim, ele é um mistério. Eu até entendo que uma pessoa com pouca instrução e baixa escolaridade virasse massa de manobra dele nas redes. Mas ver médicos, advogados, liderados por esse sujeito, isso é incompreensível para mim.”

Carvalho estava exultante também com o fato de ter trabalhado em duas campanhas vitoriosas seguidas: a de Bolsonaro em 2018, e a de Lula agora. Diz que a eleição de 2022 foi ganha no detalhe e cita alguns exemplos. “Os adversários não conseguiram emplacar nada muito forte nas redes porque nós conseguimos desarmar antes. A história da perseguição às igrejas foi forte. Mas não se sabe se em função das redes ou das igrejas evangélicas, que trabalharam dentro dos templos”, disse. “Eles não tiveram grande êxito porque desarmamos muitas bombas.”

Outro exemplo citado por ele foi a prisão de Roberto Jefferson, ponto de desgaste para Bolsonaro. Para tirar a notícia do foco, a campanha bolsonarista tentou criar um fato novo, o das rádios que não veiculam a propaganda eleitoral gratuita bolsonarista, mas cuja tese não se sustentou.

Outra iniciativa das redes bolsonaristas – que foi percebida e imediatamente comunicada a Zanin – foi a visita de Lula ao Complexo do Alemão, conjunto de favelas na Zona Norte carioca. Logo as telas da sala de “situação”, como ele se refere à sala de monitoramento de rede, captaram a mentira que vinha sendo espalhada nas redes: a de que Lula tinha tido apoio de traficantes para organizar o evento. Os advogados imediatamente entraram com ação no TSE. “Nós monitorávamos todo o tempo o que estava sendo mais difundido. Identificávamos a falsidade do material e avisávamos o Cristiano, que logo tomava uma medida judicial. Era assim que funcionávamos. Operamos de forma conjunta e muito ágil”, conta.

Outro caso captado pelo sistema de monitoramento foi o dos padres expulsos da Nicarágua – notícia utilizada pelas redes bolsonaristas para dizer que Lula faria o mesmo no Brasil. “Eles queriam induzir o eleitor ao erro. Percebemos o impulsionamento nas redes e nos perfis bolsonaristas, e os advogados trataram de desmontar judicialmente.” Junto a isso, as plataformas eram notificadas pela Justiça e orientadas a desmonetizar essas redes. Assim, elas perdiam a força na produção de conteúdo falso. Um momento tenso na sala de monitoramento foi a entrevista de Lula no Jornal Nacional chamando parte do agronegócio de fascista. “Os bolsonaristas se aproveitaram demais dessa fala. Foi muito ruim para a campanha petista”.

As cinquenta telas da sala de situação, de acordo com Carvalho, monitoravam várias personalidades políticas por estado e por região – tanto aliados e eleitores de Lula como os do campo adversário. Os influenciadores de direita, políticos e youtubers bolsonaristas eram permanentemente analisados. Na sala havia cinco sistemas diferentes combinados e, com essas plataformas, os analistas catalogavam os influenciadores e verificavam o peso e a influência social de cada um para saber quais precisavam ser mais acompanhados. Também monitoravam os vários influenciadores que estavam abaixo desses, mas que ajudavam a difundir a informação mais rapidamente.

Através dos monitores, eles também classificavam os assuntos mais difundidos nas redes bolsonaristas dentro de alguns campos temáticos e regionais, como os influenciadores de educação, economia, meio ambiente, religião. A internet não tem fronteiras, mas tem um tipo de impacto diferente se o influenciador está no Centro-Oeste, no Sul, no Nordeste. “A direita faz isso muito bem. Ela sabe como utilizar o assunto que interessa mais a cada região”, explicou. Além disso, asseverou, toda vez que havia alguém da família Bolsonaro republicando algo que o influenciador falava, a proporção da mensagem e seu alcance cresciam exponencialmente, além de ratificar a informação. Assim, era fundamental agir imediatamente para bloquear a disseminação do conteúdo.

Carvalho contou que a campanha deste ano foi muito mais desafiadora que a de 2018, quando ele atuou ao lado de Bolsonaro. “Diferente de 2018, não havia TikTok nem Kwai. O Kwai, inclusive, tem um perfil de consumo curioso: 70% do público dessas plataformas está no Nordeste.” Com isso, a campanha bolsonarista tentou, através delas, furar a bolha petista na região. “Talvez o trabalho mais importante foi criar um muro de contenção para evitar que furassem nossa bolha.” Mas o trabalho foi árduo. De acordo com Carvalho, o Auxílio Brasil ajudou muito a furar bolha petista no Nordeste porque havia muito conteúdo circulando por essas duas plataformas. O Kwai, explicou o marqueteiro, é semelhante ao TikTok, só que com um público mais popular. Por isso, o poder de penetração dessa plataforma na bolha petista era muito forte.

Através do Kwai, os bolsonaristas traziam para a realidade dessa população, basicamente preocupada com economia popular, temas como a ameaça de o Brasil virar uma Venezuela, comunismo, fechamento de igrejas e o clássico tema ideologia de gênero de Bolsonaro. “Eles passaram a circular essas informações falsas numa rede popular com penetração enorme nas classes menos favorecidas”, informou.

De acordo com Carvalho, a ação do Judiciário em conjunto com o trabalho dos especialistas em rede e mais a desmonetização dos sites que produzem conteúdo falso foram um importante antídoto contra a difusão das fake news. “A internet não é um mundo sem lei, um mundo do anonimato, embora as pessoas acreditem nisso”, afirmou. “O erro das campanhas em 2018 foi achar que só poderiam combater a desinformação na própria rede. Mas não é assim. Somos regidos pela Constituição do mesmo jeito que todos os outros serviços.” O pulo do gato do Cristiano Zanin, afirma Carvalho, foi juntar inteligência, monitoramento de rede e ação jurídica veloz. “Foi com esse tripé que ele derrotou o exército digital de Bolsonaro.”

Texto publicado originalmente na Folha UOL.


Sandro Caron, em imagem sem data; policial é cotado para a direção-geral da Polícia Federal no novo governo Lula | Foto: Divulgação/Governo do Ceará

Aliados de Lula tentam emplacar lava-jatista na direção-geral da PF; nome gera polêmica

Andréia Sadi, Julia Duailibi e Octavio Guedes,*g1

A atuação de aliados do presidente eleito Lula (PT) a favor do delegado Sandro Caron para dirigir a Polícia Federal levantou discussão interna e polêmica no grupo de transição. Isso porque Caron foi responsável pela Diretoria de Inteligência Policial (DIP) da Polícia Federal durante a Lava Jato, operação que levou à prisão Lula em 2018.

Caron atuou junto com o então diretor-geral da PF, Leandro Daiello, durante as fases de maior repercussão da operação, quando o ex-juiz Sergio Moro gozava de prestígio inclusive perante a corporação – depois foi considerado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) parcial no julgamento de Lula e teve mensagens com procuradores da operação divulgadas pela Lava Jato.

Nos últimos dias, no entanto, segundo o blog apurou, Caron passou a ser citado como um dos nomes cotados para a vaga. Outro nome cotado é o de Andrei Passos, que foi chefe de segurança da campanha de Lula.

Dentro da PF, delegados ouvidos pelo blog confirmam que passou a circular como cotado o nome de Caron, que tem a simpatia do ex-governador do Ceará Camilo Santana (PT) – de quem foi secretário de Segurança Pública e Defesa Social –, que é próximo de Lula e cotado para um ministério. Advogados próximos a Daiello também trabalham por ele.

Na transição, no entanto, o nome é visto com resistência uma vez que seria pouco provável que Caron não soubesse dos métodos da operação que sempre foram questionados pela defesa de Lula e pelo PT em geral.

Caron já foi superintendente da PF no Ceará e no Rio Grande do Sul.

Texto publicado originalmente no portal do g1.


Protesto em Embu das Artes, na Grande São Paulo. Foro: reprodução DW Brasil | Andre Penner/AP/picture alliance

Tranquilidade após vitória de Lula é traiçoeira

Philipp Lichterbeck -ColunaCartas do Rio | DW Brasil

Joe Biden disse a seguinte frase: "A democracia não pode sobreviver quando um dos lados acredita que há apenas dois resultados para uma eleição: ou eles vencem ou foram enganados." Ele falava sobre os Estados Unidos, mas poderia facilmente estar se referindo ao Brasil.

A boa notícia é que até agora a democracia brasileira sobreviveu à ameaça bolsonarista. As instituições do país estão funcionando. Os militares não estão interessados em aventuras. Grande parte da elite política tem mais interesse na estabilidade e na continuidade do que em tumultos e ruptura. O que também tem a ver com o fato de que muitos políticos esperam receber cargos e vantagens em um novo governo. É o velho "toma lá dá cá", que deveria acabar, mas que continuará fazendo parte da realidade enquanto não houver uma reforma do sistema político.

Até mesmo Jair Bolsonaro parece ter se resignado amargamente à derrota. Isso depois de, aparentemente, esperar em vão durante dois dias por uma revolta popular (armada?) e relatos de fraude eleitoral que ele poderia ter explorado. Foi impressionante a rapidez com que ele foi abandonado por aliados como Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Arthur Lira, que rapidamente perceberam que esta batalha estava perdida.

Discute-se orçamento em vez de "mamadeiras de piroca"

A maior parte da mídia noticiou os bloqueios em rodovias e protestos em frente a quarteis do Exército corretamente como "antidemocráticos". Apenas a Jovem Pan, com suas aspirações de virar a "Fox News do Brasil", afirmou que "o povo" rejeita Lula e agora estava levando "sua vontade" para as ruas. Como se o povo não tivesse acabado de expressar sua vontade nas urnas.

Agora, certa normalidade política retorna ao Brasil. Um sinal claro disso é a discussão sobre o orçamento para 2023, e não sobre "mamadeiras de piroca", "golden showers" ou "uma cara de homossexual terrível". Nesse processo torna-se claro quem realmente roubou do Estado brasileiro. Para garantir seu poder, Bolsonaro deixou um rombo de R$ 400 bilhões no orçamento e desmoralizou instituições construídas ao longo de muitos anos.

Os setores da educação, saúde e proteção ambiental estão em pior estado do que há quatro anos. O patriotismo de Bolsonaro, assim como a sua afirmação de fé cristã, nunca foram substanciais, mas meramente retóricos. A verdadeira bandeira de Bolsonaro não é a brasileira, mas a de seu clã.

Exemplo do trumpismo

Muitos brasileiros estão aliviados com o fim do pesadelo dos constantes tumultos, insultos e escândalos. Mas essa tranquilidade é uma ilusão.

Está de volta uma rotina que os bolsonaristas não querem de modo algum. Eles se veem como um movimento revolucionário e disruptivo contra um establishment de esquerda, que domina as instituições, o Judiciário, a mídia e as universidades. A Jovem Pan, portanto, está certa sobre uma coisa: este movimento fanático nunca aceitará Lula, e sim afirmará para sempre que Lula é o maior ladrão da história e que não deveria ter recebido permissão para concorrer novamente à Presidência.

Tão inteligente e eloquente quanto pouco escrupuloso e perigoso, uma figura como o deputado federal eleito Nikolas Ferreira já anunciou que seu principal objetivo será causar problemas e atrapalhar. O novo governo deve ser obstruído da forma mais brutal possível.

O modelo  vem dos EUA, onde o trumpismo sequestrou o Partido Republicano e o transformou em um instrumento de fanatismo religioso, separatismo e irracionalidade. O trumpismo não é patriótico, como alega, mas uma ameaça à democracia e à unidade dos Estados Unidos, que correm o risco de se desintegrar se Trump continuar a ter sucesso.

A narrativa da fraude eleitoral já circula no Brasil: Bolsonaro se tornou vítima de uma conspiração que ninguém pode provar, mas da qual os bolsonaristas estão firmemente convencidos. A narrativa de ser vítima é central para todos os movimentos de extrema direita ao redor do mundo. Por quê? Porque se você é vítima, você tem o direito e até mesmo a obrigação de se defender.

Pode-se notar a profunda frustração por meio das postagens repletas de ódio contra moradores de favelas, nordestinos, negros e outros eleitores de Lula. Como se tivesse ocorrido uma grande injustiça que precisa ser revertida.

Lula pode pedir unidade, paz e reconciliação o quanto ele quiser. Ele e sua coalizão podem tentar voltar à política normal. Mas com estes extremistas não haverá unidade, paz, reconciliação e política normal.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Matéria reproduzida do portal DW Brasil


Foto: Elaine Menke/Câmara dos Deputados

Alta infidelidade

Wilson Lima*, UOL

Apesar de o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, ter dito ontem que a sigla será oposição ao governo Lula, integrantes da Câmara já admitem que pelo menos 50 parlamentares dos principais partidos que compõem a base bolsonarista na Casa vão votar de acordo com os interesses de Lula a partir de janeiro do ano que vem.

Nos cálculos de quatro lideranças partidárias ouvidas por este site, pelo menos 30 deputados do PL serão infiéis ao futuro presidente de honra da sigla – Jair Bolsonaro; no caso do PP, a defecção será de pelo menos 18 congressistas, conforme cálculos de lideranças partidárias. Esse movimento, ainda incipiente, foi antecipado na semana passada por O Antagonista.

Graças ao bolsonarismo, o PL elegeu 99 deputados federais que vão assumir seus respectivos mandatos em fevereiro do ano que vem. Destes, 40 são considerados extremamente fiéis ao presidente da República e os restantes (29) são tidos como “nem-nem” – nem Lula, nem Bolsonaro.

Na avaliação de parlamentares, essas defecções não tendem a gerar processos por infidelidade partidária. O Antagonista apurou que Valdemar Costa Neto deve adotar uma postura mais maleável em relação a esses congressistas.

Contando com esses números, o PT acredita que Lula pode iniciar seu mandato com uma base parlamentar mínima de 264 parlamentares, contando, além dos infiéis de PP e PL, com as futuras bancadas de MDB, PSD e dos partidos que já compõe a base petista: PDT, PSB, PV, PCdoB, Solidariedade e PROS.

Esse número de votos seria suficiente para, por exemplo, aprovar projetos de lei e livrar Lula de eventuais processos de impeachment.

Agora, o PT também busca apoio da União Brasil. Assim, caso os petistas consigam costurar acordos com os 59 deputados da sigla, o governo Lula poderia ter o apoio de até 323 parlamentares – o suficiente até para fazer mudanças de caráter constitucional.

Texto publicado originalmente no UOL.


Presidente Nacional do Cidadania23, Roberto Freire

Nota oficial: Cidadania defende transição democrática e condena movimentos golpistas

Cidadania23*

Reunida nesta terça-feira (8), a Executiva Nacional do Cidadania manifestou total apoio ao processo de transição democrática entre os governos Bolsonaro e Lula, coordenado pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin.

E condenou, de forma veemente, a tentativa de partidários do atual presidente, com apoio oficial e velado de pessoas próximas a ele, de solapar a legitimidade das urnas em protestos de caráter claramente golpista.

A esse movimento que fala abertamente em rompimento democrático, se somam outras manifestações de cunho racista, xenofóbico e segregacionista, com gestos e comportamentos já vistos em outros tempos sombrios da história e que devem ser prontamente repudiados pela sociedade brasileira.

Sufocadas essas bolhas nazifascistas, o Cidadania espera que surja do processo de transição entre as gestões um governo que represente a diversidade de visões de mundo observada na frente ampla que deu a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva e suplantou o fascismo bolsonarista pelo voto livre e universal.

Que as cenas deploráveis a que o Brasil assiste sejam apenas o último suspiro do golpismo de extrema-direita no Brasil, o que depende do êxito do novo governo em endereçar corretamente os problemas que afligem a população, como fome, desemprego, estagnação econômica e destruição do meio ambiente.

O Cidadania seguirá apoiando, como sempre, os projetos e as reformas de interesse do país.

Roberto Freire
Presidente Nacional do Cidadania

Texto publicado originalmente no portal Cidadania23.


Ilustração: Mila Benassi para o Intercept Brasil

Lula precisa fazer o Brasil recuperar o controle sobre o armamento de civis

The Intercept Brasil*

Acabou, mas não chegou ao fim. Após quatro anos da nefasta gestão de Jair Bolsonaro, somos um país com um povo mais radicalizado, à vontade para ser preconceituoso, xingar desafetos e resolver qualquer bate boca no tiro.

Os CACs –  sigla para caçadores, atiradores esportivos e colecionadores – já têm em mãos mais de 1 milhão de armas, mas o Exército falha em sua missão de fiscalizá-las e não sabe exatamente quais são e onde estão. O resultado? CACs estão vendendo e alugando armamento para o PCC, o Comando Vermelhomilicianos e assaltantes de banco. Depois dos decretos de Bolsonaro, criminosos passaram a ter acesso a armas mais modernas, mais potentes e mais baratas.

As armas são o elefante na sala da vez. Muito pouco se falou sobre elas durante a campanha presidencial e há grande expectativa sobre o que vai acontecer. Aliados de Bolsonaro que são CACs ou simpatizantes da política do libera geral já postam nas redes sobre o medo infundado de perder suas armas e seus clubes de tiro. O maior expoente das medidas de afrouxamento do Estatuto do Desarmamento, o presidente do ProArmas Marcos Pollon, eleito deputado federal pelo Mato Grosso do Sul, nem assumiu e já postou sobre o impeachment de Lula. No mesmo vídeo, ressaltou versículos bíblicos, prometendo “não se dobrar”.

É fato que não há clima e aprovação política para um Estatuto do Desarmamento 2. Mas também é fato que não houve ou há, até o momento, movimentações no sentido de desarmar a população. Não podemos, contudo, deixar para depois o problemas da violência armada, o da falta de pulso do Exército nessa fiscalização e o da facilidade com que criminosos estão comprando armas legais, muitas delas mais potentes do que as das polícias.

E não é por falta de propostas para mudar esse cenário que ele se perpetua. Existem leis, decretos e mecanismos referentes a armamentos e munições que nunca saíram do papel e devem ser acionados o quanto antes para mitigar o estrago da gestão armamentista de Jair Bolsonaro.

A medida mais básica é integrar o Sistema Nacional de Armas – o SINARM, operado pela Polícia Federal, que reúne informações sobre concessões feitas à civis – e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas – o SIGMA, que abrange informações de armas de policiais, militares e CACs, gerido pelo Exército. Estipulada há quase 20 anos pela lei 10.826, ela não se concretizou, mesmo após o Ministério Público Federal ajuizar uma ação civil pública em 2008 para obrigar o Exército a cumprir a legislação.

Órgãos importantes para a construção de estratégias de enfrentamento ao tráfico de armas e munições e para a investigação de crimes são prejudicados pela inação das Forças Armadas há muitos anos. Elas nunca cumpriram as leis e decretos sobre o tema e, em 2011, fingiram resolver a falta de integração ao distribuir 60 senhas de acesso ao SIGMA. E só.

O Exército e o Ministério da Justiça e Segurança Pública não avançaram na integração dos sistemas que facilitariam o rastreamento de armas e munições, como o Sistema Nacional de Informação de Segurança Pública, o sistema do Ministério da Justiça que agrega dados de segurança pública e pode ser acessado por policiais estaduais, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal.

O atual sistema – que, absurdamente, é de propriedade da empresa Companhia Brasileira de Cartuchos, a CBC – não permite, por exemplo, a geração de relatórios para subsidiar ações de inteligência e fiscalização, prejudicando a investigação de roubos, desvios e extravios. Uma empresa privada gerindo informações de segurança nacional nos deixa, mais uma vez, vulneráveis do ponto de vista social, econômico e político.

Cabe ao novo presidente eleito cobrar o cumprimento de leis, decretos e normas assinados há tempos para mudar este quadro – ou amanhã não será outro dia.

Texto publicado originalmente no The Intercept Brasil.


Agência de rating S&P prevê continuidade econômica com Lula

DW Brasil

Em nota a seus investidores, a agência de notação financeira Standard & Poor's Global Ratings estima que o presidente eleito do Brasil,Luiz Inácio Lula da Silva, não deverá reverter as principais reformas econômicas que levaram a um aumento do investimento privado nos últimos anos.

"A maior parte das revisões regulamentares e o enquadramento para as concessões não foram emendas constitucionais, mas revertê-las por completo implicaria uma maioria simples no Congresso, de que o Partidos dos Trabalhadores (PT) não dispõe", apontaram os analistas da agência de rating  numa nota sobre o que esperar do próximo governo brasileiro divulgada neste domingo (06/10).

"Devido a sua fraquíssima capacidade para investir, acreditamos que o governo de Lula não terá incentivos para reverter completamente as mudanças promovidas pelo governo de Bolsonaro, que levaram a níveis mais elevados de investimentos do setor privado nos últimos anos."

Medidas anti-inflacionárias comprometem financiamento

Na nota enviada aos investidores, a que a agência de notícias Lusa teve acesso, a S&P salienta que não espera uma aceleração significativa no crescimento da economia brasileira, frisando, pelo contrário, que o desempenho econômico é uma principais fraquezas do ponto de vista da análise da qualidade do crédito.

Recuperação econômica com fome e inflação?

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"Apesar de as âncoras institucionais serem relativamente estáveis, da estrutura econômica diversificada e de um forte setor externo, a tendência de crescimento do Brasil está estimada em 1,8% entre 2022 e 2024", diz a S&P, que reviu a previsão de crescimento do Brasil para este ano, de 0,8% para 2,5%.

"Os esforços das autoridades monetárias para conter a inflação vão resultar em condições mais adversas para o financiamento doméstico e global, o que abrandará o crescimento para 0,6% em 2023."

PIB cresce, mas abaixo da média mundial

Os analistas estimam ainda que, com novas políticas macroeconômicas e condições de financiamento mais favoráveis, o PIB pode acelerar para um crescimento de 2% em 2024 e 2025. Apesar de ser positivo face à expansão média de 0,4% entre 2012 e 2021, o índice está ainda bem abaixo da média dos mercados emergentes no nível mundial.

Em contraste, logo após ser eleito, o petista esboçou metas econômicas ambiciosas para o país, por exemplo em relação ao acordo de livre-comércio Mercosul-União Europeia.

"Queremos um comércio internacional mais justo [...] Não nos interessam acordos comerciais que condenem nosso país ao eterno papel de exportador de commodities e matéria-prima"; em vez disso, o Brasil precisa ser reindustrializado, frisou Lula em seu discurso de vitória.

Em sua coluna para a DW, às vésperas do segundo turno, o jornalista econômico Alexander Busch também se mostrava otimista: "Se o atual ambiente político explosivo voltar a se acalmar depois das eleições, o governo que assumir em 1º de janeiro terá uma boa situação econômica na largada. Só precisará saber aproveitá-la."

Luiz Inácio Lula da Silva ganhou as eleições presidenciais por uma margem estreita, recebendo 50,9% dos votos, contra 49,1% para Jair Bolsonaro, que procurava um novo mandato de quatro anos. Ele assumirá novamente a Presidência do Brasil em 1º de janeiro de 2023, após dois mandatos entre 2003 e 2010.

av (Lusa,DW)

Matéria publicada originalmente no portal DW Brasil