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Ricardo Noblat: Moro, de servidor a serviçal

Passo em falso

Dê-se de barato, quando nada só para argumentar, que havia prova de sobra no processo do tríplex do Guarujá para condenar o ex-presidente Lula como o fez o juiz Sérgio Moro. Não é o que dizem centenas de juristas, mas tudo bem. É jogo jogado. Sobre o sítio de Atibaia, caso a ser julgado em breve, até petistas coroados admitem que o processo esteja estufado de provas e que Lula não escapará a outra condenação.

Mesmo assim, convenhamos: ao aceitar ser ministro da Justiça do futuro governo de Jair Bolsonaro, Moro ofereceu de graça aos seus detratores farta munição para que o ataquem, e também à Lava Jato. E para que lancem dúvidas sobre sua isenção. O juiz que removeu Lula do caminho de Bolsonaro acolhe feliz da vida o convite para servir àquele que mais se beneficiou de suas sentenças. Esquisito, não? Para dizer o mínimo.

Moro havia jurado mais de uma vez nos últimos anos que jamais entraria para a política e que sua vocação era de magistrado. Deu o dito pelo não dito, mas até aí problema dele. Cada um emporcalha ou lustra ao seu gosto a própria imagem. Acontece que Moro de há muito deixara de ser apenas um juiz destemido que teve a coragem de bater de frente com a corrupção. Por seus méritos, fora alçado à condição de uma ideia.

A saber: ideia de que a força de vontade, se amparada em bons propósitos, pode vencer o mal; ideia de que a justiça, por mais que subordinada a interesses poderosos, preserva a capacidade de se impor em momentos exemplares; por fim, ideia de que apesar da vergonha e da frustração com seus líderes, o povo conserva a força de varrê-los e de promover mudanças na hora que quiser.

É cedo para concluir que tais ideias foram ou irão pelo ralo. Mas não é cedo para supor que elas possam ter sofrido um forte abalo. Um dos atributos da magistratura é sua independência. Outra, o apartidarismo. O juiz que se descobre mais afinado com a política do que com a toga tem o direito de trocar de lado. Mas para que faça isso sem ferir a sensibilidade coletiva há que se dar algum tempo. Moro não se deu, e nem a ninguém.

O juiz que outro dia deu as costas no aeroporto de Brasília ao capitão faminto por notoriedade que lhe batia continência foi o mesmo que voou apressado ao encontro do capitão eleito presidente para lhe bater continência como um soldado raso diante de um superior. Conceda-se que não o fez encantado com o posto que lhe ocupará por dois anos, mas sim com a vaga de ministro a ser aberta no Supremo Tribunal Federal.

E daí? Só jogador de futebol muda de camisa da noite para o dia à primeira proposta de subir na carreira. A Lava Jato, por artes e manhas do próprio Moro, ganhou uma dimensão histórica que não deveria ter sido maculada por qualquer ação do seu principal responsável. Ela vai muito além da roubalheira que descobriu, da dinheirama que recuperou e dos criminosos de alto quilate que puniu recolhendo-os ao xilindró.

Gerações de juízes em formação, e as futuras, ouvirão falar muito do momento em que um grupo de servidores da lei ousou escancarar os vícios de um sistema político em acelerado processo de degradação. Infelizmente, também ouvirão falar do momento em que o esforço tão admirável de passar o país a limpo levou um tranco formidável por conta do ato de um servidor que decidiu se servir e foi promovido a serviçal.


Bernardo Mello Franco: O juiz e o capitão

Na campanha, o juiz da Lava-Jato tomou três decisões que facilitaram a eleição de Bolsonaro. Agora ele se diz ‘honrado’ com o convite para servir ao governo do capitão

Sergio Moro não disfarça. O juiz da Lava-Jato está animado com o convite para virar ministro de Jair Bolsonaro. Em nota, ele se declarou “honrado com a lembrança” do presidente eleito. Em conversas informais, foi além. Disse que sua presença no governo dissiparia temores em relação ao capitão.

O magistrado foi um personagem chave na corrida presidencial. A seis meses do primeiro turno, ele prendeu o candidato que liderava as pesquisas. Três meses depois, suspendeu as férias para contestar a decisão de um desembargador que mandou soltá-lo.

A liminar era exótica, mas um juiz de primeira instância não tinha poderes para derrubá-la. Moro não se limitou a afrontar a hierarquia judicial. Ainda orientou a polícia a descumprir a ordem que o contrariava.

Na semana da eleição, o juiz voltou a interferir na político. Ele divulgou trechos de uma delação antiga, mas com potencial para atingir um dos lados da disputa. Mais uma vez, o lado que oferecia risco a Bolsonaro.

As três decisões facilitaram a chegada do capitão ao poder. Em todos os casos, os petistas acusaram Moro de parcialidade. Se ele aceitar o convite para servir ao novo regime, ficará muito difícil discordar.

O jurista Wálter Maierovitch, que apoiou o juiz na batalha de liminares, diz que ele cometerá um erro grave se virar ministro de Bolsonaro. “Seria muito estranho e eticamente reprovável. Estamos vivendo uma época de patifarias, mas isso não dá”, critica.

O professor lembra que um ministro da Justiça “não tem autoridade própria”. “Ele é subordinado ao presidente e pode ser demitido com um balançar de cabeça. Como diz a sabedoria portuguesa, não se deve passar de cavalo a burro”, conclui.

Ao anunciar que o novo governo terá 15 ministérios, Onyx Lorenzoni disse que Bolsonaro promoverá um “enxugamento como nunca aconteceu no Brasil”. O deputado se esqueceu de outro presidente que prometeu renovar a política e reduziu a Esplanada a 12 pastas. Chamava-se Fernando Collor.


José Nêumanne: Bolsonaro, o 'mito', derrotou a 'ideia' Lula

Os quase 60 milhões de eleitores que votaram no capitão só queriam se livrar do ladrão

Desde 2013 que o demos (povo, em grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), grande parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter a força.

Na dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antes – Serra, Alckmin e novamente Serra – e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas. Mas jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado na própria lama.

Foi aí que o demos resolveu exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.

Em janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir. O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do preso.

Na cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância apregoada pela arrogância.

Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o que o povo exigia ouvir.

A apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.

O nostálgico da ditadura, que votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público após a vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de Churchill, o maior estadista do século 20.

Não lhe será fácil cumprir as promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à renúncia e o outro ao impeachment.

Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também quer se livrar em favor da desejável igualdade.

*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor


Portal PPS: PT e o ex-presidente Lula foram os “grandes derrotados” da eleição, diz Roberto Freire

Freire disse que o PPS fará "oposição democrática" ao novo governo

O presidente nacional do PPS, Roberto Freire, disse por meio de sua conta no Twitter (abaixo), nesta terça-feira (30), que os “grandes derrotados” da eleição presidencial vencida pelo candidato do PSL, Jair Bolsonaro, foram o PT e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril, em Curitiba.

O post de Freire é uma reação à carta do coordenador da campanha de Fernando Haddad (PT), José Sérgio Gabrielli, citada em matéria do jornal “O Estado de S. Paulo” (veja aqui), na qual o ex-presidente da Petrobras recomenda a Lula a manutenção do candidato do PT derrotado nas urnas no último domingo (28) como “líder de uma oposição que deve incluir outras forças que se uniram contra o risco à democracia.”

“Não perdem o arrogante hegemonismo e pretendem determinar o líder das oposições no País. Não entenderam que seu tempo está passando”, escreveu Freire.

Para o presidente do PPS, a derrota do ex-presidente e do PT seria ainda maior “se o centro não fosse dizimado no primeiro turno pelo bolsonarismo”.

PPS na oposição
Ao comentar o resultado da eleição no domingo (28), Freire disse que o PPS fará “oposição democrática” ao novo governo. “Que tenham certeza que receberá do PPS uma oposição democrática. Terá sempre a certeza do PPS o compromisso de apoiar tudo aquilo que for de interesse público e para o bem da sociedade.” afirmou o dirigente.

Roberto Freire – @freire_roberto
PT/Lula os grandes derrotados dessa eleição – e seriam ainda mais se ocentro não fosse dizimado no primeiro turno pelo bolsonarismo- não perdem o arrogante hegemonismo e pretendem determinar o líder das oposições no país. Não entenderam que seu tempo está passando…


Vera Magalhães: No mano a mano, presidente eleito supera Lula

Preso desde abril, petista achou que ditaria, da carceragem da Polícia Federal em Curitiba, o resultado da eleição

Luiz Inácio Lula da Silva foi suplantado por Jair Bolsonaro neste domingo. Esta é a grande fotografia que fica do resultado do segundo turno. Fernando Haddad sempre foi um dublê de corpo numa eleição que desde cedo se tornou plebiscitária entre o lulismo e o antilulismo.

Condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, preso desde abril, Lula achou que ditaria, da carceragem da Polícia Federal em Curitiba, o resultado da eleição. Seu peso na política brasileira foi suficiente para levar Haddad ao segundo turno, contra o adversário que ele escolheu lá atrás e que achou que era inelegível, dada a alta rejeição que tinha.

Bolsonaro fez aposta semelhante, com sinal trocado. Enxergou o fastio com o PT ainda antes do impeachment de Dilma Rousseff, e soube semear este campo com discurso radical que escanteou o PSDB e tirou do partido o papel de polo opositor ao petismo, que ocupava havia mais de duas décadas.

A maioria do eleitorado brasileiro comprou o discurso de Bolsonaro, o mesmo que choca a outra quase metade que não o sufragou. O resultado dessa guinada é a eleição do primeiro presidente assumidamente de direita desde Fernando Collor – que, embora tenha feito campanha prometendo abertura econômica, não tinha cores tão acentuadas de conservadorismo nos costumes, nem uma contraposição ideológica tão nítida.

A guinada é mais ampla que a eleição de Bolsonaro: o novo Congresso e o comando dos principais Estados também penderam para a direita. Isso terá reflexos nas principais decisões econômicas e na pauta de segurança e dos costumes que o futuro presidente vai endereçar.

Por fim, se coloca a dúvida quanto ao respeito do eleito à democracia e às instituições. Em seu primeiro discurso escrito depois de eleito, Bolsonaro fez um aceno à conciliação ao dizer que governará para todos os brasileiros, mencionou inúmeras vezes a palavra “liberdade” e falou com todas as letras que fará reformas para recuperar a grave situação fiscal que encontrará. É um começo auspicioso, pois o candidato, ao longo da campanha, deu margem para dúvida quanto a esses compromissos – que ele categorizou como “promessa”.


Ricardo Noblat: À espera da fumaça branca

O PT já está no lucro

Existem chances, sim, de uma virada que por gigantesca e surpreendente seria chamada de histórica. Mas o mais provável ainda é que ela não aconteça, e que Jair Bolsonaro (PSL) vá dormir esta noite na condição de eleito presidente da República do Brasil.

Se o segundo turno não fosse hoje, talvez daqui a uma semana – quem sabe? Ou se Lula tivesse liberado mais cedo Fernando Haddad (PT) para concorrer no seu lugar… Se o louco de Juiz de Fora não tivesse esfaqueado Bolsonaro… Ou se, se, se…

O país sairá rachado desta eleição, mas isso não será nenhuma novidade, ora. Saiu rachado da eleição presidencial de 2014 quando Dilma Rousseff, que se negou a abdicar em favor de Lula, por pouco não foi derrotada por Aécio Neves (PSDB).

Não foi por isso que ela caiu. O racha poderá ser bom ou ruim a depender do comportamento futuro do vencedor. Em 2002, depois de três derrotas consecutivas, Lua ganhou com 62% dos votos. Ninguém superou a marca desde então.

Poderia ter se valido da expressiva vitória para tentar impor todas as suas vontades, mas não o fez. Jogou o jogo, até mesmo no que o jogo sempre teve de mais sórdido e reprovável. Reelegeu-se. Elegeu Dilma e a ajudou a se reeleger.

O temor, que a essa altura parece dissipado, era de Bolsonaro se eleger com grande folga, estabelecer um novo recorde de votos e imaginar que o país acabara lhe dando um cheque em branco para pôr em prática todas as loucuras com as quais acenara.

Por natureza, formação e retórica autoritárias, Bolsonaro assusta, assusta muito o país que o rejeita e que continuará a rejeitá-lo. Ganhar de menos não fará dele um cordeiro. Nem operará o milagre de transformá-lo em um estadista. Mas poderá pôr freios nele.

Dada as circunstâncias adversas, Haddad já foi longe demais, e perigosamente longe para o próprio PT que jamais acreditou em sua vitória e nem a desejou. A levar-se em conta que seu candidato de fato está preso, o desempenho do PT superou as expectativas.

Por 5 milhões de votos
O tamanho da virada

A levar-se em conta as pesquisas Ibope e Datafolha divulgadas ontem à noite, Fernando Haddad (PT) precisará tomar de Jair Bolsonaro (PSL) ao longo do dia de hoje algo como 5 milhões de votos para se eleger presidente. Que tal?

Tudo indica que Bolsonaro já atingiu seu teto, e Haddad não. Mas um só poderá crescer se o outro cair. De todo modo, uma eleição que parecia terminada ainda não terminou.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, o novo Lula

Se perder, o PT amanhece na oposição contra um ‘novo Lula’ com dogmas e multidões

Enfim, chegamos ao final dessa eleição que teve de tudo, até candidato presidiário e facada no líder das pesquisas. Se houve algo estável em toda a campanha, desde o primeiro turno, foi a dianteira firme e segura do candidato Jair Bolsonaro, do PSL, um capitão reformado que está há 28 anos na Câmara e meteu os filhos na política, mas surge como “o novo”, para fazer “tudo diferente”. Acaba a eleição, vem aí a prova dos 9.

O grande marco de 2018 foi o fim da disputa PT versus PSDB, que atravessou décadas desde 1994, e o início da polarização PT versus Bolsonaro, mas com fortes mudanças no velho petismo e o surgimento de um “novo Lula”, só que pela direita.

A estrela do PT já tinha sido jogada pela janela em outros carnavais, ou eleições, e nesta até o vermelho foi deixado de lado, mas o maior ausente não foram os símbolos, foram os atores. A famosa militância petista ficou em casa, a nova militância bolsonarista é que ocupou as ruas e a guerra eleitoral migrou para as redes sociais. Para o bem, principalmente para o mal.

Assim como tudo o que Lula diz é dogma para os petistas, tudo o que o capitão Bolsonaro diz passou a mover multidões pelo País afora, por mais barbaridades que tenha dito, sobre ditadura, tortura, mulheres, gays e por menos que tenha falado de pobres e do principal problema brasileiro: a desigualdade social.

Bolsonaro é um novo Lula, mas às avessas. Enquanto Lula garantia a fidelidade cega de artistas, intelectuais e da Igreja Católica cativando um eleitorado inabalável no Nordeste e entre os de baixa renda e escolaridade, Bolsonaro domina a classe média e se enraizou por todos os segmentos alavancado pelos ricos com diploma que emergiram como força política em junho de 2013. Mas a adoração a ambos tem muita semelhança, com uma realidade virtual em que tudo o que eles dizem vira verdade.

São esses dois polos que estarão se enfrentando nas urnas de hoje, de onde surgirá o futuro presidente do País e automaticamente a maior e mais aguerrida oposição que jamais se viu. Se Fernando Haddad (PT) vencer, terá contra ele um exército bolsonarista que bate o PT tanto nas ruas quanto nas redes, em número e em agressividade.

Se for Bolsonaro, como todas as pesquisas indicam, o que sobra de esquerda organizada para reagir e se contrapor é o PT. Esmagado nas eleições de 2016, com Lula preso, seus demais líderes também presos e até Dilma derrotada, mesmo assim o PT foi para o segundo turno. Ferido, não morto.

Logo, o que as pesquisas indicam que estará saindo das urnas hoje é um Bolsonaro eleito presidente e aprendendo o beabá da negociação política, da construção de maiorias parlamentares, da importância do equilíbrio fiscal, da dificílima tarefa de dizer “não”, muito especial para aliados, e tendo de conviver com algo inerente à democracia: a oposição. Confrontado, o general Ernesto Geisel fechou o Congresso. O capitão Bolsonaro não terá essa opção.

Ali na espreita estarão as instituições, a própria sociedade, os partidos e movimentos organizados e... o PT. Se perder a eleição hoje, o PT já amanhece amanhã como o grande vitorioso para liderar a oposição ao próximo governo. No início, devagar, auscultando, tateando. Pelo óbvio, quanto mais o governo errar, mais a oposição vai crescer.

E é assim que a terrível polarização da eleição vai ser transportada para o novo governo. Aí, é torcer e rezar pelo bom senso e o equilíbrio porque, para além das ideologias, dos partidos e das diferenças, há uma turminha que tem muita pressa: os 13 milhões de desempregados na rua da amargura. É por eles, pelo Brasil e pelo futuro que fica aqui o meu voto: sucesso, presidente, seja você quem for!


Míriam Leitão: Haddad em busca da identidade

Haddad se distancia de Lula e chega até a elogiar o sistema americano em que ex-presidentes se afastam da política

O candidato do PT, Fernando Haddad, chega nos dias finais da campanha mais Haddad e menos Lula. Na sabatina, ele elogiou o sistema americano em que o presidente ao fim do mandato sai da política para contribuir de outra forma. Essa não foi a escolha feita por Lula. Haddad fez gestos em direção aos adversários que não chegaram ao segundo turno, demonstrou segurança na sua linha de raciocínio que desenha um PT mais aberto na política. Na economia, contudo, ainda falta um longo caminho.

Haddad cometeu o erro de repetir a informação que recebera, sem fazer uma conta simples: em 1969, o general Hamilton Mourão era um adolescente, não podia, portanto, ser torturador. Para criticar Mourão, bastaria a Haddad lembrar a fala do próprio general, vice de Bolsonaro, que defendeu em entrevista à Globonews o coronel Brilhante Ustra, definido como seu herói, mesmo diante do fato de que 47 pessoas foram mortas dentro do DOI-Codi no período em que o coronel o comandava. “Heróis matam”, disse. Com essas palavras de Mourão, Haddad poderia ter defendido seu ponto de vista de que a chapa do seu oponente representa “o rebotalho da ditadura”, “os porões”. Usou adjetivos fortes para definir Jair Bolsonaro: “bárbaro”, “um bicho", “um tolo”, “uma pessoa vazia”, “soldadinho de araque”, “fascista”.

Na entrevista ao GLOBO, o candidato do PT disse que preparou pessoalmente a proposta da segurança. Ele propõe dobrar o efetivo da Polícia Federal, ampliar seu poder no combate ao crime, dar mais foco às polícias, liberar os estados de algumas funções e combater a violência usando dados:

— É a inteligência que vai vencer o crime. Tentar reduzir a violência armando as pessoas só vai aumentar as mortes.

Haddad disse que a proposta de Jair Bolsonaro para a violência é vazia, é ele dizendo que “vai endurecer”, sem explicar o que seja isso. Lembrou que em 27 anos como deputado não fez nada pela segurança.

Na sua visão dos fatos, o fenômeno Bolsonaro é como uma queda de avião, acontece por várias causas. Na relação que faz estão as fakenews, a transformação de púlpitos em palanques e o “Bispo Macedo usando uma concessão pública para promover um candidato”.

Haddad se definiu como o petista mais bem relacionado com os tucanos. “Eu já fui a público para defender tucano”. E ali na entrevista defendeu Geraldo Alckmin. Em determinados momentos, ele soa professoral como certos tucanos, parecendo mais fazer análise dos fatos que política.

A explicação que ele dá para a trajetória do PT, ou os acontecimentos recentes, deixa muitos espaços em branco. Ele disse que as elites reagiram à criação do PT por ele ser um partido de massa de esquerda que nasceu contra o autoritarismo da direita e da esquerda. Isso não conversa, por exemplo, com o aumento do subsídio e das transferências para as grandes empresas que aconteceu nos governos do PT. Ele diz que está fazendo autocrítica, e passa superficialmente sobre alguns erros do governo Dilma. Diz que sua crítica à Lava-Jato é apenas a alguns erros cometidos contra Lula, mas o partido ainda ontem postou no site da campanha: “Lula, preso político há 200 dias”. Ora, se for isso, não temos democracia.

Haddad explorou bem, na entrevista, a contraposição entre ele, que se define como “pessoa do diálogo”, e a defesa do autoritarismo feita pelo seu adversário, estabelecendo a clivagem democracia contra ditadura. Explicou pouco a agenda social que tem apoio para além do petismo. Hoje, Haddad recebe voto de não petistas que rejeitam a defesa que Bolsonaro faz do regime militar ou que têm afinidade com a pauta de combate às injustiças sociais e de proteção ao meio ambiente. “Me causa repulsa a desigualdade desse país”, disse, mas não desenvolveu o tema, no qual ele tem argumentos de sobra.

O que falta a Haddad entender é que não se combate desigualdades sem equilíbrio fiscal. O erro maior do PT não foi Dilma ter tomado “medidas não consistentes”, como ele definiu, seja lá o que for isso. Mas ter aberto um rombo nas finanças do país, ter elevado a inflação a 10%, ter provocado a recessão. Isso desfez parte do trabalho de inclusão do próprio PT. O partido ainda não entendeu que só em solo firme se constrói um país mais justo.


Fernando Gabeira: As prisões mentais

Bolsonaro terá de moderar retórica. E oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra

Lula está preso, meu caro. Repito a frase de Cid Gomes que ecoou na rede, suprimindo a palavra babaca. Não por correção política. A palavra iguala a estupidez à vagina. Apenas para lembrar, com humildade, como certos sentimentos estão arraigados em nossa cultura e emergem de nosso subconsciente.

A líder da direita francesa, Marine Le Pen, afirmou que algumas frases de Bolsonaro são inaceitáveis na França. Mas não o foram no Brasil.

Humildade aqui significa reconhecer que mudanças culturais levam tempo para se consumar. Não são como uma ponte destruída pela chuva que se reergue rapidamente. Nem mesmo uma nova capital que pôde ser construída no Planalto. Às vezes, atravessam gerações.

Lula está preso. É natural que o PT não aceite isso. Mas a forma de recusar foi chocar-se diretamente com a Justiça, tentar dobrá-la com manifestações, apoio externo e uma inesgotável guerra de recursos legais.

Compreendo que isso era visto como uma forma de acumulação de forças. Mas, na verdade, também acumulou rejeição.

Quando Haddad foi lançado, cresceu rapidamente exibindo a máscara de Lula. No segundo turno, a máscara envelheceu como o célebre retrato de Dorian Gray.

Mas o período que se abre agora será de tanto trabalho, que talvez não tenhamos mais tempo para nos patrulharmos. São tempos complexos, que demandam mais humildade ainda.

Num debate em São Paulo, depois do primeiro turno, confessei como o processo me surpreendeu. As pesquisas indicavam uma grande vontade de renovação. Quando os partidos se destinaram quase R$ 2 bilhões para a campanha, concluí que a renovação seria mínima.

Apesar de ter feito algumas campanhas no território digital, minha reflexão ainda se dava no quadro analógico. A renovação, cuja qualidade ainda é discutível, aconteceu. Com R$ 53 milhões, Meirelles teve menos votos do que o Cabo Daciolo, um exemplo de como os velhos parâmetros foram para o espaço.

As próprias pesquisas que tanto critiquei no passado porque achava que favoreciam Sérgio Cabral, hoje as vejo com nostalgia. Existe informação na pergunta clássica em quem você vai votar.

Mas, para detectar tendências, é preciso um oceano de dados e capacidade de análise. As pesquisas envelheceram, sem que muitos se dessem conta. Mas não apenas elas envelhecem, num mundo em que a inteligência artificial avança implacavelmente.

E é nesse mundo que teremos de navegar. A situação econômica internacional não é favorável como no passado. Nos artigos em que trato de alguns de seus aspectos, começo sempre com o paradoxo: os Estados Unidos, que lideraram uma ordem multilateral, decidiram abandoná-la. Será preciso mais do que nunca acertar os passos aqui dentro. Isso significa gastar menos, fazer reformas.

Quando estava na Rússia, os primeiros protestos contra a reforma da Previdência foram abafados pelo oba-oba da Copa do Mundo. Soube que agora a popularidade de Putin caiu 20 pontos precisamente por causa dela. Em outras palavras, a vida não é nada fácil para quem precisa reformar o Estado e fazer um ajuste fiscal.

Nesse futuro tão nebuloso que nos espera, a tese do quanto pior melhor é atraente, no entanto, pode ser também um novo erro de avaliação.

Quando ficamos muito concentrados nos problemas internos, perdemos um pouco de vista nossa inserção internacional. A imagem do Brasil lá fora mudou. O próprio Bolsonaro começará seu mandato como um dos presidentes mais rejeitados pela imprensa planetária. Ele terá de moderar sua retórica. E quem faz oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra.

A sobrevivência da democracia não está ameaçada. Mas algumas escoriações podem empurrá-la para o viés autoritário que hoje cresce no mundo.

As fake news, por exemplo, sempre existiram, mas hoje têm um peso maior, pelo alcance e velocidade. Utilizá-las sem escrúpulos e denunciá-las no adversário apenas confirma o pesadelo moderno da decadência da verdade.

É muito difícil chamar à razão a quem se considera o dono dela. Os intelectuais condenam as escolhas populares, mas, às vezes, não percebem a sede de sinceridade que há por baixo delas. Pena.


William Waack: O abismo é outro

Diante do que vem aí, vencer as eleições foi só o mais fácil

Pergunta que começa com “se” não tem resposta. Por isso pode parecer inútil perguntar como teria sido a corrida eleitoral de 2018 se não tivesse ocorrido o atentado contra Jair Bolsonaro, se Lula não tivesse destruído a possibilidade de uma união inicial das esquerdas, se as forças ao “centro” do espectro político tivessem identificado lá atrás qual o eixo em torno do qual se alinhou a grande maioria do eleitorado (o repúdio ao sistema e o antipetismo).

Ocorre que o exercício do contrafactual (“o que teria sido se”) é útil, sim. Antes de mais nada, serve para demonstrar que não existe o “inevitável”. Que a política é, por definição, o terreno do imponderável e do acaso. E que escolhas feitas por agentes políticos – por Lula, Bolsonaro, Fernando Henrique, Ciro, ou quem você quiser – têm a condição de alterar o rumo das coisas dentro dos grandes limites impostos, por exemplo, pela herança do passado.

Sendo enorme a probabilidade de que o tsunami político que empurrou Bolsonaro o elegerá presidente, essa onda, “inevitavelmente”, nos conduzirá até onde? Parece evidente que esse fenômeno social e cultural (o embate político tem as características da “guerra cultural” de valores, não importa se a gente aplaude ou repudia o que Bolsonaro e o PT dizem) alterou fundamentalmente nossa paisagem política, dando cara e voz a um nutrido eleitorado antes disperso e desorganizado (estou evitando colocar rótulos).

É um eleitorado que desconfia da imprensa, da Justiça, da política e que tem medo, sente-se órfão das instituições, acha que seu esforço individual é torpedeado pelo Estado, pelos impostos, pela burocracia e por “eles” em Brasília, e encontrou uma resposta (se você gosta ou não, é outra conversa) na figura de Bolsonaro. O que eu algumas semanas atrás chamava de “choque de placas tectônicas” entre o desejo de mudança e a velha política parece ter produzido o rompimento de um dique político e abriu uma enorme avenida de oportunidade ao mesmo tempo em que levanta um ponto de interrogação igualmente enorme.

Pois sendo coerente com os princípios acima, nem está “garantido” que essa onda produza os resultados que Bolsonaro simboliza neste momento e nem sabemos que capacidade de articulação e liderança políticas ele será capaz de demonstrar – diante dos desafios e das encruzilhadas nos quais o País se encontra, vencer as eleições terá sido apenas a mais fácil de todas as tarefas.

Derrotar o petismo como agremiação política não significa derrotar as ideias que o partido defende e que, na minha opinião, estão na raiz do fato de o Brasil se encontrar perigosamente preso na armadilha dos países de renda média, ter sido complacente com corrupção, atraso e taxas horrendas de criminalidade. Essas características de mentalidade não foram inventadas pelo PT, que deve grande parte de seus sucessos eleitorais justamente por representá-las tão bem.

Essa mentalidade é o que chamei no fim do segundo parágrafo deste texto de limites impostos pela herança do passado. É neste ponto – na capacidade de rebelar-se contra os limites reconhecidos – que se destacam os verdadeiros agentes políticos da mudança e das transformações capazes de alterar o rumo de acontecimentos.

Do jeito que as coisas estão, o Brasil está à beira do perigosíssimo abismo da estagnação, paralisia e mediocridade.

Não é inevitável cair nesse abismo. Depende de escolhas humanas além daquelas que já parecem ter sido feitas pelos eleitores.


Juan del Alcàzar: Brasil, entre catástrofe e desastre ou a percepção contraditória da realidade

No primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras, venceu Jair Bolsonaro, ex-neofascista, racista, sexista, xenófobo, homofóbico e nostálgico militar da guerra suja e das violações maciças dos direitos humanos praticadas pelas ditaduras de segurança nacional do século passado. A notícia chocou os democratas do mundo, e um clamor foi levantado em favor de uma frente democrática que fecha o caminho para os militares e, assim, salva a democracia brasileira. Surpreendentemente, esse grito não é tão unânime no Brasil e há muitos democratas credenciados que se recusam a fazer parte de qualquer coisa com o PT de Haddad e Lula da Silva. Nem mesmo para impedir a ascensão de Bolsonaro.

Apesar de seus histriónicos violentos, mais de 49 milhões de brasileiros deram seu apoio; 18 milhões a mais do que Fernando Haddad, o candidato que substituiu aquele venerado por alguns e odiado por outros, Lula da Silva - preso por corrupção - à frente da candidatura do Partido dos Trabalhadores. Trinta dos 147 milhões de eleitores convocados para as eleições optaram pela abstenção, embora a participação eleitoral seja obrigatória no país, sob pena de multa. No dia seguinte 28, essa imensa massa eleitoral do gigantesco país sul-americano terá de voltar às urnas para tornar o presidente Bolsonaro, muito provavelmente; ou Haddad, algo que hoje em dia é quase impossível.

De fato, parece que a maioria dos brasileiros está determinada a colocar na mais alta magistratura da República um homem mais próximo de Donald Trump ou, ainda pior, se possível, do filipino Rodrigo Duterte, ou de um líder ocidental comparável.

Na Europa, a atual situação brasileira está sendo vivenciada com uma mistura de estupefação, descrença e, também, medo. Que a América possa ter em janeiro de 2019 um homem como Trump na Casa Branca e outro como Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto literalmente coloca o cabelo em é na metade do mundo. Já há algum tempo, os processos eleitorais na Europa têm oferecido resultados preocupantes: o britânico Brexit; Orban na Hungria, Salvini na Itália, ou o avanço da extrema direita na Áustria, Alemanha e Suécia.

A situação brasileira trouxe paralelos com a Alemanha de 1933 ou, de posições mais otimistas, com a França de 2002, quando a extrema-direita de Le Pen foi derrotada na segunda rodada por Jacques Chirac, que saiu do modesto 19,88% dos votos na primeira rodada para pegar um magnífico 82,21% no segundo turno, graças a uma resposta da França democrática unida contra o neofascismo da Frente Nacional de Jean Marie Le Pen. Parece improvável que algo semelhante aconteça no Brasil em algumas semanas.

Como é possível que a democracia no Brasil se encontre em tamanho desafio causado por tantos milhões de brasileiros?

Uma primeira abordagem analítica oferece seis elementos a serem desenvolvidos para compreender a situação: a corrupção, a violência urbana, a situação econômica, o descrédito de políticos e partidos tradicionais, a crescente desconfiança das instituições e a rejeição radical do binômio Lula / PT de um grande número de brasileiros. É uma espécie de tempestade perfeita em que metade dos eleitores provavelmente decidirá apoiar um candidato que promete soluções simples, duras, rápidas e eficazes. Em paralelo, da outra metade dos eleitores, apenas uma parte apoiará Haddad / PT com entusiasmo; outros o farão como um mal menor e um terceiro grupo - que se declara neutro porque considera os dois candidatos horríveis - ou se absterá ou votará em branco.

Corrupção e rejeição de Haddad: considerado um fantoche de Lula, são duas faces da mesma moeda. Embora não só o Partido dos Trabalhadores esteja atolado em corrupção, há anos ele foi deslegitimado pela corrupção perante uma grande parte do público. A violência urbana, endêmica na América Latina, atinge seus números mais insuportáveis ​​no Brasil: 17 das 50 cidades mais violentas do planeta estão no país. Após os primeiros anos brilhantes de Lula, quando a economia brasileira viveu anos de prosperidade, houve uma súbita mudança no mercado internacional de matérias-primas e de 5% de crescimento (2007-2010), passou para 2% (2010-2014) , a moeda depreciou, a inflação aumentou, as empresas estatais perderam valor (notadamente a gigante Petrobras) e os investimentos estrangeiros, especialmente os da China, foram reduzidos significativamente.

O descrédito da política e dos políticos tem sido paralelo ao anterior, e já às vésperas da Copa do Mundo de 2014 e em 2015, antes das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016, as pessoas saíram às ruas para protestar contra os eventos esportivos enquanto o cidadão comum sofria de todos os tipos de deficiências. A tradicional desconfiança das instituições, do Judiciário à Polícia, passando pela administração política - a de Brasília e a dos diversos estados - cresceu exponencialmente desde que o PT e seus porta-vozes começaram a desenvolver a teoria do golpe [de novo tipo] como explicação das ações que terminaram com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão de Lula da Silva.

A tese do petismo é que as classes dominantes, apoiadas por um meio monopolístico de comunicação, e as classes médias reacionárias perpetraram um golpe de estado através de ações de comunicação, legais e parlamentares. O desenvolvimento desse argumento levou a uma desvalorização da ideia de democracia, em um processo no qual o PT argumentou que o que eles entendem como uma conspiração contra Lula e Dilma requer substituir essa democracia por outro regime na imagem do existente na Venezuela Bolivariana. Nesse crescendo, o PT exacerbou a polarização da sociedade brasileira em torno do slogan "Nós contra eles", lançado anos atrás pelo próprio Lula para neutralizar alegações de suborno e corrupção de todos os tipos durante seu governo. De fato, quando o juiz Sergio Moro confirmou o sigilo do processo de julgamento contra o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que concordou com o magistrado de reduzir sua sentença, ficou sabendo que 90% das leis que foram aprovadas durante os governos do PT foram graças a subornos. O início do fim de Lula e seu carisma foi a descoberta de que o chamado Mensalão não era mais do que isso: a compra de votos no Parlamento para realizar os projetos de seu governo.

Quando Lula foi preso e os juízes lhe negaram a possibilidade de ser candidato à presidência, ele nomeou o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, como seu representante. Longe de criar um perfil próprio, o designado mostrou-se submisso e dependente do grande líder, ele o visitou semanalmente na prisão para receber instruções e explicitar seu status provisório enquanto aguardava a liberdade do líder. Isso, agora, torna virtualmente impossível para o eleitorado democrático não-PT apoiá-lo no segundo turno. Como escreveu José Roberto de Toledo, a grande maioria dos eleitores não conhece Haddad o suficiente para odiá-lo ou temê-lo, então a rejeição dele e de sua candidatura é uma manifestação de medo e rejeição do PT de Lula.

Nestes momentos, quando o PT passou de "nós contra eles" para "todos contra ele" [Bolsonaro], parece tarde demais e pouco crível. Josias de Souza escreveu nestes dias que o PT chega ao segundo turno da eleição presidencial um pouco como aquele personagem de uma história que mata seu pai e sua mãe e, no dia do julgamento, pede misericórdia a um órfão pobre. O PT, diz de Souza, quer que o entendimento de todos constitua uma "frente democrática" contra Bolsonaro, personagem que seu próprio partido ajudou a criar com sua cleptomania e seus excessos polarizadores. A diferença entre o PT e o "órfão" da piada é que o PT quer ser perdoado sem pedir perdão.

Apesar de tudo, de fora do Brasil, as coisas são vistas de forma diferente. Além das imagens distorcidas que tem sobre o PT e sobre o próprio Lula, visto de forma simplificada como um partido social-democrata e carismático apoiado por seu povo à presidência da República, o medo do fascismo sugere negociar e concordar em alguns fórmulas que promovem uma opção unitária para a democracia no dia seguinte ao dia 28. É verdade que a fuga ao anti-democrático bolivarianismo e o que se sabe sobre o recente Lula tornam a missão quase impossível, mas devemos tentar com generosidade política para todos partes, especialmente pelo mesmo PT.

Manuel Castells divulgou um texto que gerou inúmeros suportes nas redes sociais. Nele, o sociólogo apela a todos os comprometidos com a democracia e adverte que o Brasil está em perigo e, com o Brasil, o mundo. Em tal situação, continua Castells, nenhum democrata, nenhuma pessoa responsável pelo mundo em que vivemos pode permanecer em uma indiferença generalizada ao sistema político brasileiro, porque se o Brasil, o país decisivo da América Latina, cai nas mãos deste desprezível e perigoso caráter, e os poderes factuais que o apoiam, teremos precipitado ainda mais baixo na desintegração da ordem moral e social do planeta. Também em linha semelhante, o jornal El País editou: "Nesta encruzilhada, aqueles que foram rivais de Haddad no primeiro turno farão bem em abandonar a abordagem exasperante que apresenta o candidato do PT e Bolsonaro como dois extremos comparáveis".

Estou surpreso e preocupado com o que percebo em meus contatos pessoais, que segue em uma direção radicalmente diferente. Das muitas longas conversas desses dias intensos com vários amigos brasileiros, deduzi que nem este nem outros apelos terão êxito. Acho que eles não estão avaliando bem a situação, mas sei que meus interlocutores são pessoas com boa formação, então ficarei feliz se forem eles que, como o admirado ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, estão certos. O ex-presidente disse: "As redes relatam que eu apoiarei Haddad. Mentira: nem o PT nem o Bolsonaro se comprometeram explicitamente com o que eu acredito. Por que eu deveria falar sobre candidaturas que são contra ou não são definidas em questões que eu valorizo ​​para o país e para as pessoas? "

Por outro lado, muitos de nós somos lembrados da Europa dos anos 30 com a "melhor Hitler do que a Frente Popular" ou, mais recentemente, o assédio da Democracia Cristã Chilena contra Salvador Allende em 1973, que se materializaria no golpe de Pinochet..

O Brasil é dividido e transpira ódio, um amigo me escreveu por causa do pessimismo. Outro, ele me explicou que muitos dos eleitores de Bolsonaro têm educação superior, mas também conta com favelas, moradores pobres e negros que são espancados pela violência. Um terceiro insistiu em deixar claro para mim: o candidato é Lula, não é Haddad. Bolsonaro é um idiota. Nenhuma partida forte por trás. Ele ganhou com propostas trovejantes, mas ele não poderá implementá-las. Além disso, meu amigo, historiador de profissão, afirma: engana-se quem transfere para o Brasil do século XXI o que aconteceu na Alemanha dos anos 30. Um último depoimento, um quarto amigo, uma vez em sintonia com o PT, me irritou muito : Aqui há fascismo de ambos os lados. Você não pode esquecer o jogo sujo do PT, arrogância e ataques à nossa Constituição. Eles vão pagar o preço por não criar líderes e apostar apenas no projeto pessoal de Lula. Isso merece uma análise clínica!

Todos eles são colegas universitários e merecem todo o respeito intelectual e político.

Um querido amigo do Nordeste [da única região que Haddad venceu], um ex-partidário do PT, me respondeu perguntando como chegamos aqui: essa é a pergunta que nos fazemos. Bolsonaro apresenta uma agenda antipetista mínima, uma luta contra a corrupção e um compromisso com a segurança. Isso é tudo que o brasileiro quer ouvir. Para uma educação sem ideologias, contra a ideologia de gênero, para a família, contra a escola que ensina que ser gay pode ser normal, que os militares podem trazer a paz ... Isso e o apoio muito efetivo dos evangélicos. As pessoas, meu amigo insiste, estão muito cansadas de Lula e da corrupção, e "o capitão" é como um mito, como o personagem de uma nova série da Netflix. Mas - conclui - eles não percebem as consequências que isso terá para a vida cotidiana.

Outro querido colega e amigo, Alberto Aggio, publicou ontem um artigo no Estado de São Paulo, do qual me emprestei o título desta coluna, em que concluiu dizendo: "Entre a catástrofe e o desastre, nossa frágil democracia terá que resistir a continuar respirando e ganhar sua sobrevivência. É um momento difícil, em que apenas o "pessimismo da razão" nos serve. E o mais trágico é que não existe um locus facilmente reconhecível que expresse qualquer "otimismo da vontade". Atordoados, os brasileiros seguem os sinais de alerta buscando evitar, de alguma forma, uma aproximação à morte da democracia.  Nuvens negras cobrem o futuro próximo do Brasil.


Roberto Dias: Democracia boa não é só a nossa, não

Esquerda jogou fora valores e caiu em armadilhas lógicas

Há enormes razões para não votar em Jair Bolsonaro. O problema é que existem também imensos motivos para não votar no PT.

No bolsonarismo, a agressividade embala a tosquice de sempre. A novidade vem da esquerda, que jogou fora valores, justamente o que diz prezar, e caiu em armadilhas lógicas. ​

A mais evidente é negar a democracia ao afirmar defendê-la. Dizer que votar em Bolsonaro é indefensável acaba sendo, esse sim, um argumento indefensável. Declarar que corrupção não é desculpa para votar no capitão embute premissa absurda: a de que um cidadão precisa de desculpa para exercer um direito.

A esquerda aponta (corretamente) o preconceito contra o Nordeste, que parou Bolsonaro. Mas ridiculariza SP por suas opções legislativas.

O veto à entrevista de Lula para a Folha foi (acertadamente) chamado de censura. Mas quando se anunciou a entrevista de Bolsonaro à Record, a esquerda gritou por censura.

O autoritarismo do elenão começa no nome. Mas há um problema: pela lei brasileira, só a Justiça pode vetar alguém. Segundo ela, Bolsonaro pode se candidatar, e ele, Lula, não. Aliás, é possível encontrar vídeos com inúmeras barbaridades ditas por Lula. A diferença? Para Lula tudo virava piada de salão —e para ele, Bolsonaro, não (nem deveria).

A banalização do termo fascismo mostra que ignorância histórica não é monopólio da direita. A seguir a lógica de quem acha que qualquer eleitor de Bolsonaro é um torturador em repouso, seria o caso de proteger a carteira cada vez que se aproximasse um petista. Trata-se de raciocínio esgarçado até perder o sentido.

A esquerda apontava ameaça democrática no bolsonarismo sem interlocução com o Congresso. Enquanto essa crítica era repetida, o PSL fazia campanha para eleger a nova grande bancada da Câmara. Ficou mais difícil sustentar o ataque por aí.

Numa luta legítima por corações e votos, muita gente da esquerda foi perdendo a lógica pelo caminho. Democracia boa não é só a nossa, não.

*Roberto Dias é secretário de Redação da Folha.