lula

El País: Lula e Marielle, símbolos de duas esquerdas separadas nas ruas

Ato da campanha Lula Livre, semanas depois das homenagens à vereadora assassinada, marcam as diferenças de idade e prioridades temáticas das mobilizações progressistas

O ato realizado em São Paulo neste domingo pedindo a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi marcado por algumas ausências. A pequena multidão reunida na avenida Paulista entre às 14h e 17h para recordar o primeiro ano de prisão do petista era composta, em sua maioria, por pessoas oriundas de uma classe média trabalhadora que possuíam uma média de idade que facilmente beira os 50 anos. Sobrou melancolia e nostalgia por tempos vividos num passado não muito distante, quando o país fazia sua transição para a democracia ou vivia o auge da inclusão social e do pleno emprego durante os Governos do Partido dos Trabalhadores. Mas, salvo exceções, como os militantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) ou do Levante Popular da Juventude, faltaram os jovens. Jovens negros e periféricos que há menos de um mês, no dia 14 de março, engrossavam outra manifestação, a que recordava o primeiro ano da brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

Lá os protagonistas eram outros. Chamou atenção o fato de que poucos homens e lideranças partidárias — com exceção das deputadas Talíria Petrone, Mônica Francisco, Dani Monteiro e Renata Souza, consideradas as herdeiras políticas de vereadora assassinada — tenham subido no palco montado na Cinelândia, no centro do Rio. No festival de música e poesia organizado por Anielle e Luyara Franco, irmã e filha de Marielle, estavam artistas e coletivos negros e feministas como o Slam das Minas, que dizia que "a justiça não é cega, é daltônica". Também escutava-se uma multidão entoando o samba enredo da Mangueira, campeão do carnaval de 2019, que evoca um país "que não está no retrato" e que deve ouvir "as Marias, Mahins, Marielles, malês". Ao invés de um discurso político como gran finale, o ato terminou com um grande baile funk — porque, quando era adolescente, Marielle fugia de casa para escutar Furacão 2000, recordava Anielle no microfone.

A vereadora representa para Amanda Gabriela, uma estudante de História de 30 anos que participava do ato, "a força da mulher dona de seu mundo, de sua verdade e de seu caminho". Também enxergava um sentido de urgência em estar na rua. "Se ficarmos em casa, sem trazer as pautas para a rua, vamos morrer", dizia.

Em São Paulo, escutava-se o clássico Guantanamera, uma marca da ainda reivindicada Revolução Cubana, apesar do Governo autoritário da ilha, e o vereador Eduardo Suplicy acalentando corações com Blowing in the Wind, de Bob Dylan. Maria de Lourdes, uma bancária aposentada, de 64 anos, viajou de Marília, interior de São Paulo, para acompanhar o ato. "Eu poderia estar em casa descansando na piscina, assistindo de camarote. Mas não consigo. Me sinto fazendo parte de um momento importante da vida do país. E também retribuindo por todas as oportunidades que tive, por terem dado o direito ao voto e aberto o mercado de trabalho para as mulheres", explicava.

Havia jovens com suas famílias e jovens que estavam de passagem. Alguns chegaram a fazer fila para tirar foto com Guilherme Boulos, principal liderança do MTST e candidato a presidente pelo PSOL em 2018. Uma liderança política nova que começa seu discurso com um "boa tarde a todos e todas", ao invés do velho "companheiros e companheiras" que seus colegas tanto usaram neste domingo para defender Lula e a democracia.

Em uma entrevista para este jornal sobre a falta de renovação da esquerda, a filósofa e matemática Tatiana Roque falava sobre como os protestos de junho de 2013, que eclodiu em todo o país, embaralhou o campo progressista. "Novos atores estavam se apresentando ali na cena política e foram rechaçados pela esquerda, que não conseguiu até hoje dar um sentido para junho de 2013 e entender as pautas, as formas de organização, a estética... Não conseguiu entender o movimento". É dela também a explicação de que a esquerda ainda carrega uma ideia de trabalhador muito "homogeneizante" que dificilmente se aplica nos dias de hoje. "Os modos de vida, as experiências, as sensibilidades se tornaram muito mais importantes ao se inserir num coletivo. Não à toa vemos tantos coletivos feministas, negros, LGBTs, de legalização das drogas, de ambientalistas... Os coletivos se organizam mais em função daquilo que os afeta de modo singular", explicava em outra entrevista para este jornal.

"A esquerda precisa de unir em grande frente progressista", dirão uns. Uma frente que chegou a se desenhar nas ruas com o movimento #EleNão, contra o então candidato e atual presidente Jair Bolsonaro. O problema é que questões temáticas e até estéticas parecem separar essas duas esquerdas, que têm pautas em comum e se solidarizam uma com a outra, mas nem sempre se encontram nas ruas. Uma tem Lula como símbolo. A outra tem Marielle Franco como símbolo. Uma acha graça quando o ator José de Abreu se autoproclama presidente e diz que Marielle seria sua primeira dama in memorian. A outra acha a piada ofensiva e gostaria que Marielle tivesse sido a presidente. Uma veste camiseta vermelha. A outra exibe com orgulho cabelo estilo black power. Uma mira com nostalgia o passado e se apoia em antigas lideranças. A outra surge como uma grande potência transformadora, aponta questões consideradas mais urgentes — o racismo, o machismo e a LGBTfobia que mata milhares diariamente, por exemplo — e quer ser protagonista do futuro, não apenas mera espectadora.

Lula e Marielle representam, ontem e hoje, lutas pela democracia mais que legítimas. Nessa equação está uma imensa massa de pessoas historicamente abandonada pelo Estado que ainda tem o petista como principal referência e fizeram que Fernando Haddad chegasse ao segundo turno no ano passado. Mas isso já não é suficiente. Resta saber agora quando essas esquerdas voltarão a confluir, se é que isso acontecerá, em um novo projeto que volte a conquistar os setores populares, geralmente ausentes das ruas. Não é fácil.


El País: Lula faz um ano na cadeia à espera do STJ e empenhado em controlar o PT

Recurso de ex-presidente deve ser analisado pelo tribunal em breve, com poucas possibilidades de soltura. Partido tenta reavivar o "Lula Livre" e adia eleição do comando da legenda para o segundo semestre

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa um ano neste domingo, 7 de abril, com o PT tentando reanimar a militância com atos pelo "Lula Livre" e adiando apenas para o segundo semestre a troca de poder na legenda, que ainda disputa espaço para se firmar como protagonista na oposição ao presidente Jair Bolsonaro (PSL). O consenso no partido é o de que as condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro nos casos envolvendo o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia — 12 anos e 11 meses em ambos os casos — foram injustas e de que a prisão do ex-presidente é política. Na sigla, os atos pelo ex-presidente são uma forma não só de manter a pressão sobre o Judiciário como também de manter petistas e os movimentos sociais mais próximos unidos sob um rara bandeira comum.

Da cadeia em Curitiba, Lula acompanha as discussões no partido, cuja eleição interna adiada tem potencial para, pela primeira vez, não corresponder com a vontade do ex-presidente, que já demonstrou seu desejo em manter a deputada federal Gleisi Hoffman na liderança. Com Gleisi na presidência, a influência de Lula nas decisões do partido estariam garantidas. Ao EL PAÍS, a deputada diz que o ex-presidente recebe informes das reuniões do partido. "Ele é o nosso presidente de honra. É natural e importante que ele receba as informações.Quando eu posso, escrevo cartas, porque essas ele pode receber. Trato das reuniões dos diretórios, das reuniões que fazemos, das decisões que tomamos", contou Gleisi.

No plano legal, as esperanças de uma absolvição e soltura do petista são escassas. O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Antonio Dias Toffoli, decidiu adiar o julgamento sobre a constitucionalidade da prisão após a condenação em segunda instância, que estava marcada para a quarta-feira dia 10 e teria repercussão no caso. Agora, residem no recurso levado pela defesa ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o primeiro tribunal superior que analisará a sentença em segunda instância do caso Triplex — o caso do sítio Atibaia só foi julgado em primeira instância. Tanto o STJ como o STF só analisaram até o momento pedidos de soltura do ex-presidente, mas não a condenação em si. Ainda não há uma data marcada para que a 5ª turma do STJ se reúna, mas a defesa espera que isso ocorra em breve. Segundo o advogado Cristiano Zanin, a defesa pede e enfatiza no recurso a anulação do processo nas instâncias inferiores ou uma absolvição. Também apresenta argumentos auxiliares que poderiam levar a uma revisão do tamanho da pena — o que pode resultar, por exemplo, em prisão domiciliar — ou a prescrição do caso.

A defesa contesta as acusações e considera que não há provas suficientes de que a OAS presenteou o ex-presidente com um triplex no Guarujá como pagamento de propina por contratos na Petrobras. Apresenta ainda um leque de argumentos, como uma suposta falta de imparcialidade do juiz Sergio Moro — hoje ministro da Justiça de Bolsonaro — ou a negativa de que uma prova pericial no processo fosse produzida. Segundo Zanin, a defesa também contesta a competência da Justiça Federal para tratar do caso com base em suas decisões do Supremo. A primeira, de 2015, resultou no fatiamento da Lava Jato e deixou nas mãos da força tarefa de Curitiba apenas os casos relativos a corrupção na Petrobras. A defesa acredita que o caso não tem relação com o escândalo envolvendo a petroleira, embora a sentença condenatória estabeleça uma relação entre os contratos entre empreitas e a Petrobras com o triplex reformado que a OAS teria repassado para Lula. A segunda e mais recente decisão do STF, por seis votos a cinco, determinou que cabe a Justiça Eleitoral julgar crimes comuns, como os de corrupção e lavagem de dinheiro, conexos com delitos eleitorais de caixa 2.

"A jurisprudência do STJ é incompatível com a condenação do ex-presidente. Então, estamos pedindo que a Corte reafirme sua própria jurisprudência", explica Zanin ao EL PAÍS. O problema é que, de acordo com uma pesquisa realizada pela Corte com base nos julgamentos de 69.000 recursos entre 2015 e 2017, apenas 0,62% dos casos julgados no STJ reverteram totalmente as decisões das instâncias inferiores e resultaram na absolvição do réu. A mesma pesquisa indicou que em 1,02% dos casos os ministros da 5ª e 6ª turma reverteram a pena de prisão por uma pena “restritiva de direitos”, como a prestação de serviços comunitários. Em 0,76% dos casos foi reconhecida a prescrição. Para Zanin, contudo, o caso do ex-presidente é peculiar. "Estamos vendo ao longo do tempo a ocorrência de diversas ilegalidades e abusos que precisam ser coibidos", diz ele, no momento que a o entorno de Lula se queixa da falta de recursos para tocar a própria defesa. Há bens e contas bancárias do ex-presidente bloqueados por ordem de Moro e, por isso, há ações que buscam arrecadar dinheiro para a causa. Nesta semana, um grupo de fotógrafos anunciou ter arrecadado mais de 600.000 reais leiloando fotos históricas do petista.

Um PT em busca de protagonismo

No campo político os obstáculos não são menores. O PT tem a maior bancada na Câmara, com 55 deputados — um a mais que o PSL de Bolsonaro —, e é a maior força de oposição ao Governo. Mas, por ora, continua apostando suas energias na campanha pelo "Lula Livre" enquanto que as pesquisas indicam uma cristalização do apoio popular à prisão do ex-presidente — segundo o Atlas Político, cerca de 57,9% do eleitorado. "O partido ficou muito preso a isso. Não sei se dentro do partido existe consenso sobre o que fazer. Enquanto isso, o 'Lula Livre' dá certa unidade de ação para a máquina partidária. É algo que mantém todos unidos", explica o sociólogo Celso Rocha de Barros.

Para ele, a "atualização" do PT ainda depende de como o Governo Bolsonaro, que completa cem dias nesta semana com a popularidade em queda, vai se sair. Ainda assim, ele chama atenção para o fato de que, embora numericamente maior, é mais comum ver lideranças de outros partidos progressistas, como os deputados Alessandro Molon (PSB), Tabata Amaral (PDT) ou Marcelo Freixo (PSOL), na linha de frente da oposição. "O partido ainda não assumiu uma liderança lá dentro, porque está preso a essas questões", explica. Em jogo está também uma disputa também no campo progressista pela hegemonia, ocupada pelo PT há 30 anos.  "Se eles querem substituir o PT, precisam atrair as pessoas que gostam o PT. O Ciro Gomes, por exemplo, pela suas declarações e posturas, acaba sendo antipático para os eleitores PT. Além disso, essas pessoas foram coadjuvantes durante muito tempo e não precisaram se posicionar sobre questões econômicas e políticas de governo. Isso ficava na conta do PT", pondera Rocha de Barros. "No mínimo", explica ele, "a competição vai fazer bem e vai obrigar os petistas a se mexerem".

Essa renovação depende também da liderança do partido, hoje nas mãos de Gleisi Hoffmann, apesar das ressalvas de alguns petistas. A política paranaense é considerada uma das responsáveis por manter como prioridade do partido a pauta do "Lula Livre", enquanto há pouco debate sobre renovação partidária e outras questões programáticas a um ano e meio das eleições municipais. "Nós consideramos o Lula um preso político. Lula é a grande liderança política e popular desse Brasil. Depois dele não surgiu mais ninguém com essa envergadura, com essa grandeza, com esse poder de mobilização", reafirma Gleisi.


Ricardo Noblat: Um presidente e o seu abacaxi

Sério, sorrindo ou em tom de piada

Sempre que Lula dizia inconveniências, os assessores dele na presidência da República saíam imediatamente em seu socorro. Chamavam os jornalistas e diziam assim: “Não levem a sério. Foi brincadeira dele, só brincadeira.”

A diferença de Lula para o presidente Jair Bolsonaro é que o capitão dispara inconveniências sorrindo, e às vezes acompanhadas de um “taokey”. E aí os jornalistas se sentem obrigados a escrever: “Sorrindo…”

Ou então eles escrevem: “Em tom de piada…” Porque para os jornalistas, mas não somente para eles, muitas vezes soam como piadas certas coisas ditas por Bolsonaro, sorrindo ou sério.

Entre tantos disparates cometidos ontem por ele em três ocasiões distintas, vale a pena destacar as que seguem. Elas parecem trair o visíver desconforto de Bolsonaro com suas novas funções.

“Desculpem as caneladas, não nasci para ser presidente, nasci para ser militar, mas no momento estou nessa condição de presidente e, junto com vocês, nós podemos mudar o destino do Brasil”.

“Não tenho qualquer ambição, não me sobe à cabeça o fato de ser presidente. Eu me pergunto, olho pra Deus e pergunto: Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema.”

“Confesso que nunca esperava chegar à situação que me encontro. Primeiro porque sobrevivi a um atentado, um milagre. Depois, o outro milagre foi a eleição. A gente estava contra tudo, né? Imprensa, fakenews, tempo de televisão, recurso de campanha… Mas Deus estava do nosso lado”.

“Na campanha, eu disse que em janeiro ou estaria aqui nessa cadeira ou na de praia. Me dei mal. Pode assumir a cadeira, Moro!”

No meio desta semana, em visita a Israel, Bolsonaro afirmou que governar era um abacaxi. Talvez por isso ele seja o único presidente desde a redemocratização do país que já faltou ao expediente no Palácio do Planalto para ir pela manhã ao cinema com a mulher.

Sim, de outra vez ele faltou a parte do expediente da tarde para ir rezar com amigos. Bolsonaro está muito bem de saúde. Não é por causa dela que volta cedo para o Palácio da Alvorada onde mora. Antes de ir dormir, confere se o revolver está ao alcance da mão.

Seu compromisso com o que diz é quase sempre ralo. Em café da manhã com os jornalistas, ele deu todas as indicações de que na próxima segunda-feira demitirá do cargo o desastroso ministro da Educação. No final da tarde, admitiu que ele poderá fica.

Por sinal, ao referir-se à sua equipe de governo, Bolsonaro o fez em tom de queixa: “A maioria dos ministros não tem nenhuma habilidade política. Vivência política. Ontem, alguns (presidentes de partido) reclamaram de ministros, de bancos oficiais”.

Para desespero do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, ao falar sobre a reforma da Previdência, Bolsonaro reconheceu que o Congresso não irá aprová-la do jeito que foi proposta. Isso até Guedes sabe. Mas não é assim que se negocia, ora.

Se a reforma for mais esquálida do que se anuncia, parte da culpa por isso caberá a Bolsonaro. E se for esquálida a um ponto que desagrade Guedes, ele simplesmente irá embora.


Elio Gaspari: Lula livre, em casa

Manter um ex-presidente na cadeia faz mal à história do país

No próximo domingo (7) Lula completará um ano de prisão, fechado numa cela de 15 metros quadrados na carceragem da Polícia Federal de Curitiba. Sua situação é inédita na história do Brasil e essa circunstância sobrepõe-se aos aspectos jurídicos, porque a decisão dos magistrados um dia será uma nota de pé de página na narrativa de um fato maior. Em 1889 decidiu-se banir a família imperial. Vá lá, mas fazia sentido negar sepultura no Brasil a d. Pedro 2º durante décadas?

Para quem vive com a cabeça quente, Lula deve "apodrecer na cadeia", como disse Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Quando as cabeças esfriam, as coisas voltam para seu lugar.

Três precedentes mostram que seria melhor permitir, em algum momento, a transferência de Lula para o regime de prisão domiciliar. Nele só poderia receber um número fixo de visitantes. (Em 2017, quando Marcelo Odebrecht passou a cumprir a pena em casa, tinha direito a 15 visitantes previamente listados.)

Jefferson Davis, o incendiário presidente dos estados confederados do Sul dos Estados Unidos, foi preso em 1865 e libertado dois anos depois. A Guerra Civil americana custou ao país quatro anos de combates e algo como 700 mil mortos (2% da população).

As condições carcerárias de Lula são dignas, mas assemelham-se àquelas que a República Francesa impôs ao marechal Philippe Pétain em 1945. Ele presidira o regime ditatorial e racista de Vichy, colaborando sinceramente com a ocupação nazista. Nonagenário e doente, teve a pena comutada em 1951 e logo depois morreu, em casa. Lula não foi um Pétain.

Os Estados Unidos e a França têm um tipo de história. A China tem outro. Mao Tse-tung prendeu o presidente Liu Shaoqi em 1967. Ele viveu em condições deploráveis até 1969, quando morreu. Ao contrário do que aconteceu com Pétain e Davis, Liu foi reabilitado. Sua filha formou-se na Universidade Harvard e geriu investimentos da família Rockefeller.

Lula encarcerado não faz bem à história do país, como não faz bem a lembrança de que João Goulart morreu na Argentina depois de 12 anosde desterro.

Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, nenhuma trapalhada foi produzida pelo PT. Tendo perdido o monopólio das encrencas, o comissariado vive em relativa paz. Noves fora alguns arroubos de Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, prevalecem vozes mais equilibradas. Prometendo o fim da ideologia de gênero e escolas sem partido, o Ministério da Educação vive uma guerra de facções, sem ensino algum.

Combatendo uma diplomacia militante, o chanceler Araújo meteu-se numa pregação inútil em torno do que seria uma essência esquerdista do nazismo.

Se Lula for transferido para um regime de prisão domiciliar a questão legal continua quase do mesmo tamanho. Afinal, estão nele Marcelo Odebrecht (que colaborou com as investigações) e o comissário Antonio Palocci (que colaborou com a campanha eleitoral).

A transferência de Lula para o regime domiciliar, aventada em junho do ano passado pelo advogado Sepúlveda Pertence, foi rebarbada pelo PT. Supunha-se que "Nosso Guia" pudesse ser favorecido pela eleição de um presidente-companheiro ou pelo clamor da rua. Nenhuma das duas coisas aconteceu.

Para a turma de cabeça quente que defendia a transferência da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, o gambito de Bolsonaro oferecendo um escritório comercial foi um gesto hábil. Lula em casa seria um gesto de pacificação histórica. Afinal, no ano passado 45% dos eleitores, não podendo votar nele, votaram no seu candidato.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Merval Pereira: Quase confissão

Todo político quer ser acusado de caixa 2, e não de corrupção e lavagem de dinheiro, que valeram a Lula a condenação

O pedido da defesa para que o processo que resultou na condenação do ex-presidente Lula pelo tríplex do Guarujá vá para a Justiça Eleitoral, além de uma tentativa patética de chicana, é quase uma confissão de culpa.

Ele não foi condenado por caixa 2, mas sua defesa alega que o processo acusa Lula de ter liderado um esquema de arrecadação de dinheiro para custear campanhas eleitorais do PT e de partidos aliados.

Todo político quer ser acusado de caixa 2, e não de corrupção e lavagem de dinheiro, que valeram a Lula uma condenação de 12 anos e um mês. Querer se beneficiar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que mandou para a Justiça Eleitoral os crimes conexos ao caixa 2 é também admitir, o que nega até hoje, a existência de um fundo formado pelo dinheiro de propina em obras públicas para financiar as campanhas eleitorais de seu partido.

Ganhar de empreiteiras um tríplex na praia ou melhorias no sítio em Atibaia que usava como se fosse seu, dificilmente, pode ser considerado um crime eleitoral. No limite, o ex-presidente terá desviado dinheiro da propina para a campanha eleitoral para uso próprio, o que descaracteriza a finalidade política. E, como os desvios foram de dinheiro público, através da Petrobras e de outras estatais, não existe caixa 2, mas sim peculato, como ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do mensalão.

Lula volta, quase 14 anos depois, a utilizar-se de uma estratégia de defesa montada pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para amenizar as acusações contra o PT, pois naquela época o crime eleitoral quase nunca levava políticos para a cadeia. Ainda hoje pelo menos a percepção continua a mesma.

Em 2005, no auge das acusações sobre o mensalão, o então presidente em duas oportunidades jogou para o caixa 2 o esquema de corrupção que montou em seu governo. Em julho, em entrevista no “Fantástico”, da Rede Globo, gravada em Paris, Lula disse que “o que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente”.

Em novembro, em entrevista no “Roda Viva” da TV Cultura, Lula disse que a denúncia do deputado cassado Roberto Jefferson revelou o caixa 2 nas campanhas eleitorais do PT, o que o então presidente da República classificou como uma ação “contra a história do próprio partido”.

Agora, Lula, depois de tantos anos de revelações terríveis sobre a corrupção institucionalizada que patrocinou nos governos do PT, comprovadamente não contra a história do partido, quer através de sua defesa que essa corrupção, que de fato foi geradora das benesses de que ele e sua família usufruíram, seja transformada em ações de cunho político-eleitoral.

É como se o ex-governador Sérgio Cabral, que depois de anos preso confessou afinal seu esquema de corrupção, alegasse que tudo o que ganhou de propina — joias, helicópteros, roupas de grife, bebidas caras —tinha um objetivo político-eleitoral.

A única maneira de essa chicana dar certo seria os juízes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que vão julgar nos próximos dias os recursos a favor de Lula, aceitarem a tese de que o ex-presidente, por ser o chefe da organização criminosa que atuou durante os anos petistas, usou o caixa 2 do partido para obter o tríplex e, por extensão, também o sítio de Atibaia.

Mas o simples senso comum, além da delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antonio Palloci e de outros, impede que essa tramoia dê certo.

Mais confissões
Outro que acabou confessando seus crimes foi o terrorista Cesare Battisti, que admitiu a participação direta e o envolvimento em quatro assassinatos durante interrogatório feito na prisão pelo procurador Alberto Nobili, responsável pelo grupo antiterrorista da cidade italiana de Milão.

Na confissão, Battisti disse que alegava inocência para obter apoio político da esquerda do México, da França e do Brasil, principalmente do ex-presidente Lula, que proibiu sua extradição, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O ex-ministro da Justiça Tarso Genro, que pediu a Lula que não extraditasse o terrorista agora confesso, e o ex-senador Eduardo Suplicy ainda alimentam dúvidas sobre sua culpabilidade. Querem saber por que Battisti confessou. Muito simples: perdeu a proteção dos governos de esquerda.


Cora Rónai: Não se amplia a voz dos imbecis

Gente burra e má sempre existiu, mas a sua voz jamais ganhou a dimensão que ganha hoje nas redes sociais

No dia em que faleceu o netinho do ex-presidente Lula, as minhas redes sociais foram tomadas pela comoção — e pela indignação contra pessoas que estariam tripudiando da morte da criança. Vi muitas manifestações de revolta mas, nas minhas redes, não cheguei a ver, naquele momento e em sua forma primária, nenhum post que não fosse de pesar ou de solidariedade.

Tentei encontrar as causas da indignação na sua raiz. Encontrei apenas dois posts com referências diretas ao menino Arthur, escritos por duas usuárias desconhecidas do Facebook, compartilhados milhões de vezes, dando às suas autoras um alcance (e uma notoriedade) que jamais teriam como conseguir nas asas da sua própria maldade; muitos posts questionando a saída de Lula da prisão e discutindo minúcias legais, como se deixar um avô ir ao enterro de um neto fosse um privilégio; e comentários genéricos contra o ex-presidente em publicações dos portais e da imprensa em geral, chocantes porque, no momento de horror indizível da morte de uma criança, tudo o que se espera é solidariedade à família, qualquer que seja essa família.

Em todos os casos, a desumanidade foi amplificada pelos bons sentimentos de quem reagiu a ela: o ódio pegou carona no amor e foi longe. As vastas ondas de solidariedade não repercutiram, é claro, porque reações normais tendem mesmo a não repercutir.

Gente burra e má sempre existiu, mas a sua voz jamais ganhou a dimensão que ganha hoje nas redes sociais.

Millôr costumava dizer que não se amplia a voz dos imbecis -- e ele nem chegou a pegar as redes sociais no seu auge. Na internet a voz dos imbecis repercute ad infinitum, e nós corremos o risco de achar que eles representam a totalidade da população fora dos nossos círculos de amizade: os "outros".

Está aí a receita perfeita para disseminar ódio em vasta escala a partir de sementes que não deveriam em circunstância alguma ser regadas.

Imbecis representam-se apenas a si mesmos, e nós faríamos um bem a todo mundo se pensássemos duas vezes antes de compartilhar as imbecilidades que expressam -- seja em relação à política, seja em relação ao que for.

Leio frequentemente comentários de pessoas desiludidas com a humanidade, achando que nunca fomos tão brutos e maus. Tendo lido um pouco de História, não tenho tanta certeza disso, mas tenho certeza absoluta de que a palavra dos brutos e maus nunca foi tão propagada pelos justos e bons.

Em tempo: o tuite de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal, que em 217 caracteres conseguiu expor a abissal falta de empatia, de educação e de humanidade da sua família, é um caso à parte. Saímos aí do maluco da esquina, do troll, do militante hidrófobo que não se deve levar em consideração, e entramos na esfera do governo e da representatividade política.

Besteiras patológicas ditas por políticos devem ser apontadas e publicamente execradas sempre, para que fique claro à população como estão agindo os seus representantes, e o que lhes passa pela cabeça.


Mauricio Huertas: Chegou a hora de soltar o Lula. Ou o Brasil prende todo político corrupto ou não prende ninguém, tá ok?

Sei que é uma tese polêmica e aparentemente até simplória, que vai gerar discordância, revolta, xingamento e mal-entendido. Ainda mais num ambiente tóxico e polarizado, cheio de ódio, preconceito e intolerância como esse que adentramos politicamente e não vemos saída fácil. Soltar o Lula? Tá louco? Não, não estou, mas confesso que a boçalidade do meme que virou presidente, seus rebentos sem caráter e seus seguidores fanáticos virulentos me fazem voltar a ter alguma empatia pelo petista. A boa política faliu. É a minha opinião.

No Brasil de hoje, da ditadura das bolhas nas redes sociais, todos temos que estar automaticamente de um lado ou de outro. Vivemos a era do "idiota da aldeia", ou da "legião de imbecis", definidos com propriedade por Umberto Eco. Não existe meio termo, bom senso, diálogo, racionalidade. Para sobreviver sem ser massacrado, sem ter minha reputação execrada ou ser jogado num gueto virtual, preciso escolher minha bolha: sou de esquerda ou de direita? Sou lulista ou bolsonarista? Sou honesto ou corrupto? Sou cidadão de bem ou cúmplice de político mafioso? Mas será que é tão simples reduzir o mundo real a esse pensamento binário?

Que p**** é essa? Assuma logo que você aderiu ao #LulaLivre e quer encontrar argumentos para se justificar. Vira-casaca! Vendido! Ah, cala a boca, defensor de bandido! Vai pra Cuba, seu lixo esquerdista! Petralha! Comunista enrustido! Mas... Espera lá! Não, eu não acho que o Lula é inocente. Estão aí os episódios do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia com fartos indícios de lavagem de dinheiro e de corrupção. São crimes passíveis de prisão. Fora o caixa 2, o aparelhamento do Estado, o loteamento do governo entre quadrilhas partidárias e a usurpação do poder. Portanto, Lula não é um injustiçado. Cadeia nele!

Uai, então por que tanto mimimi? Qual é a tua? Quanta contradição, hein, meu caro? Decida: Lula é inocente ou culpado? Um preso comum ou herói do povo brasileiro, como quer fazer colar a narrativa petista? Ou você quer dar uma de "isentão" e estar bem com todo mundo? Pensa que alguém é trouxa? Não percebe que sua opinião não agrada nem convence ninguém, de nenhum dos lados? Você consegue irritar ao mesmo tempo petistas e bolsonaristas, otário! (Isso! É mais ou menos por aí! Esse é um dos objetivos e dane-se a censura alheia!)

Tenho convicção de que Lula se beneficiou da passagem pela presidência para, no mínimo, cometer tráfico de influência. Isso é crime e pronto! Afinal, alguém duvida que ele se aproveitou da posição privilegiada e de suas conexões com pessoas influentes ou com algum grau de autoridade para obter vantagens ou benefícios para si próprio e para terceiros, geralmente em troca de favores ou pagamento? Isso é meio evidente, não é? Ou o que falta para nos convencer? Recibo assinado da propina? Transferência da posse dos imóveis em cartório? Não sejamos ingênuos.

Mas quantos outros políticos, dos mais diversos partidos, estão presos por esses mesmos crimes e contravenções? Diga aí os nomes. Difícil, né? O petista será o primeiro de muitos ou ele nos basta como bode expiatório? O maior pecado de Lula foi trair a confiança e a esperança da maioria do povo brasileiro ao copiar os velhos métodos dos políticos que prometeu combater. Ao contrário, acabou se associando e se igualando aos outros, com o PT, para se perpetuar no poder.

Lula, em seus 40 anos de vida pública, subiu e despencou no conceito popular com a mesma intensidade. Venceu todos os preconceitos que carregava como líder sindical, superou a resistência das elites, virou presidente da República, conseguiu se reeleger e fazer sua sucessora. Mas ao cair na vala comum dos maus políticos - logo ele, a quem não era dada essa regalia - viu a cisma, a hostilidade e o antipetismo voltarem com força redobrada. Lula tropeçou nas próprias pernas.

Então, de alguma forma estão certos tanto os que consideram a prisão justa quanto os que apontam perseguição política. Não que Lula seja inocente, mas é exceção entre os homens públicos presos, num país em que liminares de juízes do Supremo libertam quem lhes convém, que o crime organizado controla mecanismos institucionais da sociedade e que os assassinos de uma vereadora preta e lésbica seguem impunes porque o sistema prefere assim (Quem matou Marielle? Quem mata tanto preto, tanto gay e tanto pobre?).

Que republiqueta é essa que garante saidinha do dia das mães para Suzane Richthofen, liberdade provisória para feminicidas, que deixa soltos os devastadores de Mariana e Brumadinho, os piromaníacos do Ninho do Urubu, os laranjas de partidecos fictícios, os fabricantes de fake news que interferem no resultado das eleições, outros ladrões do erário e até "cidadãos de bem" que corrompem por uma multa, um atestado ou uma licença - e que não medem as consequências das suas infrações enquanto apontam o dedo sujo para a transgressão do vizinho?

O Brasil não deu certo. Ou passamos tudo a limpo, recomeçamos do zero, refazemos tudo com ética, correção, equidade e justiça, ou vamos nos afundar cada vez mais nesse lamaçal de arbitrariedade, desigualdade, ilegalidade, impunidade, polarização e desrespeito. Lula é um mau político? Errou? Claro, por isso está preso há quase um ano. Que seja punido! Mas cadê os outros? Ou prendemos todos os corruptos ou não prendemos ninguém!

A minha divergência com Lula se dá no campo partidário, político, ideológico, ético, até moral. Mas com esses Bolsonaros e seus clones, além das discordâncias políticas e ideológicas, tenho aversão no aspecto humano, existencial. Pelo amor de Deus, não é possível que essas figuras execráveis, asquerosas, repugnantes, representem a cara e a alma do novo Brasil que desejamos construir. Precisamos mostrar que somos melhores que isso aí, tá ok? Senão, f****!

* Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente


Hélio Schwartsman: PSL e PT, tudo a ver

Além do discurso, os dois partidos chegaram ao poder prometendo revolução

Bolsonaristas e petistas têm muito mais em comum do que imaginam e gostariam. Eles se valem de racionalizações idênticas para tentar afastar o que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva, que é o sofrimento mental experimentado quando identificamos uma incoerência entre as atitudes que consideramos corretas e a maldita realidade.

Nessas situações, o cérebro faz o que pode para apa ziguar a contradição. Vale fingir que não viu, torcer as definições, buscar argumentos fajutos. Mesmo que o resultado seja logicamente inconsistente, nós não desistimos de tentar, já que fazê-lo parece funcionar como uma espécie de anestesia.

Nos últimos dias, fui agraciado com um experimento natural que escancara esse mecanismo. Na sexta-feira, publiquei uma coluna em que destacava a picaretagem do PSL, o partido do presidente, que patrocinou candidaturas de fachada para pôr as mãos em verbas reservadas para a cota de mulheres. Ato contínuo, leitores me escreveram para dizer que eu estava sendo injusto ao falar só do PSL, já que outros partidos se valem do mesmo expediente.

Esses leitores talvez não se tenham dado conta, mas estão recorrendo à mesma racionalização utilizada por petistas quando viram sua sigla do coração envolvida com corrupção e passaram a bradar que os outros partidos também roubam. Pode até ser verdade, mas não acho que apontar para os outros seja uma defesa apta. E, mesmo que fosse, se esse argumento valesse agora para o PSL, teria de valer para o PT, hipótese em que bolsonaristas precisariam parar de fustigar a legenda de Lula.

Uma das principais funções dos jornais numa democracia é manter sob escrutínio permanente as ações dos que estão no poder. Os holofotes agora se voltam para o PSL, como já se voltaram para o MDB, o PT, o PSDB. Outra semelhança incômoda é que o PSL, como o PT, chegou ao topo prometendo uma revolução ética. Desconfie de revoluções.


Bernardo Mello Franco: Ciro ataca PT e chama Lula de adversário

‘Para a cúpula do PT, o inimigo não é o Bolsonaro. Sou eu’, diz Ciro. ‘O Lula é um político preso. Preso político é o Mujica, que nunca foi acusado de corrupção’, provoca

Ciro Gomes vai à guerra. Terceiro colocado na corrida presidencial, ele pretende liderar a oposição ao governo Bolsonaro. Não está disposto a dividir espaço com o PT, que agora descreve como adversário direto.

Na quinta-feira, o pedetista reapareceu em Salvador, onde bateu boca com militantes que defendiam o ex-presidente Lula. Foi um aviso. Daqui para a frente, ele quer distância dos ex-aliados, mesmo que isso signifique manter a esquerda fragmentada.

“Para a cúpula do PT, o inimigo não é o Bolsonaro. Sou eu”, justifica. “A disputa agora não é de projeto, é de hegemonia. Eles envelheceram. A tática do PT é me empurrar para a direita, como fizeram com o Brizola e com o Arraes. Só que eu não vou”, desafia.

Ciro se considera rompido com o ex-presidente, que foi condenado pela segunda vez nesta semana. “O Lula continua conspirando de dentro da cadeia, na politicagem mais rasteira. Nós temos que tratá-lo como ele é: como um adversário”, afirma.

Ele diz que “não comemora” a situação do petista, mas se recusa a endossar sua defesa incondicional. “Lula não é um preso político. É um político preso. Preso político é o Mujica, que nunca foi acusado de corrupção”, provoca. “Vamos olhar a realidade ou ficar navegando na maionese?”.

Para o ex-ministro, o PT se deixou aprisionar com seu líder em Curitiba. “A tese do ‘Lula Livre’ foi derrotada. Se continuarem insistindo nisso, vão ser derrotados de novo”, avisa.

Ciro diz que a estratégia dos petistas está errada. “Conhecendo o Judiciário, acho uma aberração pensar que vão ajudar o Lula com campanha de rua. Isso funciona pelo oposto”.

Ele não se arrepende de ter virado as costas para Fernando Haddad no segundo turno. O petista ficou esperando seu apoio, mas o ex-ministro escolheu viajar de férias para a Europa.

“O que é que eu devo para eles? O Haddad teve 71% dos votos no Ceará. Em São Paulo, o estado dele, teve 32%”, afirma. “Não sou obrigado a votar nessa gente de novo. Nunca mais”.

Ciro promete uma oposição “propositiva” a Bolsonaro. No próximo dia 20, vai apresentar um projeto alternativo de reforma da Previdência. Ele quer centrar fogo na agenda econômica e no que vê como um desmonte das políticas sociais. Prefere ignorar as pautas de comportamento, que têm dominado o debate nas redes.

“Não vou ficar comentando declaração de maluquete sobre cor de roupa de menino”, diz, referindo-se à ministra Damares Alves e sua polêmica do rosa e do azul. “Isso é irrelevante. A agenda identitária não pode substituir a luta da esquerda”, afirma.

Na disputa pelo comando da Câmara e do Senado, Ciro travou o primeiro embate do ano com o PT. Ele apoiou Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, enquanto os petistas ficaram com Marcelo Freixo e Renan Calheiros. Os candidatos do DEM venceram, e agora prometem facilitar a vida de Bolsonaro.

“Aquilo não era um terceiro turno da eleição”, diz Ciro, rejeitando a crítica por ter se juntado aos governistas. “Nós sofremos uma derrota fragorosa no ano passado. O lutador tem que entender sua posição no tablado, e o PT ainda não entendeu”, rebate.


Bernardo Mello Franco: Lula condenado, PT mais isolado

Depois da derrota para Bolsonaro, o PT se distanciou de aliados e perdeu influência no Congresso. Agora fica ainda mais longe de ver seu líder fora da cadeia

A segunda condenação de Lula tende a agravar o isolamento do PT. O partido não conseguiu unir a oposição e perdeu influência no Congresso. Agora fica ainda mais longe de ver seu líder fora da cadeia.

Em 2018, o PT foi varrido pelo furacão Bolsonaro. Só elegeu quatro governadores, todos no Nordeste. Em 2019, as perspectivas não parecem melhores. O ano mal começou e a sigla já sofreu derrotas significativas na Câmara e no Senado. Pela primeira vez em 17 anos, foi excluído das duas mesas diretoras.

Na Câmara, os petistas foram esnobados por Rodrigo Maia, que preferiu se aliar ao PSL. Fecharam um acordo de última hora com Marcelo Freixo, mas não conseguiram entregar nem 40 dos 54 votos da bancada. Agora correm o risco de não comandar nenhuma comissão importante.

No Senado, o PT escolheu abraçar Renan Calheiros. Foi uma decisão desastrada. O emedebista retirou a candidatura e deixou os parceiros ao relento. O governista Davi Alcolumbre virou presidente e deixou claro que não dará vida fácil a quem apoiou o rival.

Um ex-ministro petista afirma que o partido está sem rumo e “caminhando para o gueto”. Ele diz que a legenda adotou um discurso sectário e ficou imobilizada com a campanha “Lula Livre”. Na sua avaliação, o ex-presidente não sairá da cadeia tão cedo. Aos 73 anos, terá que esperar um habeas corpus humanitário.

Outro ex-ministro descreve a situação do PT como um “profundo isolamento”. Ele defende um esforço de reaproximação de aliados históricos como PDT e PCdoB. O problema é que as duas siglas ainda reclamam do tratamento que receberam na eleição. Preferiram apoiar Maia e sabotaram a formação de um bloco de esquerda na Câmara.

O PT recebeu 47 milhões de votos na corrida presidencial, mas não sabe o que fazer com eles. Fernando Haddad voltou às salas de aula e resiste a assumir o comando do partido. Só tem sido visto no Twitter, onde faz críticas pontuais a Bolsonaro.

A presidência da sigla continua nas mãos de Gleisi Hoffmann, rebaixada de senadora a deputada. Ela é cada vez mais contestada pelos colegas. Tem dado motivos para isso. Sua última trapalhada foi baixar na Venezuela para a posse de Nicolás Maduro.


Luiz Carlos Azedo: Lula sabia, diz Gabriela

A nova condenação reabre a discussão sobre os rumos da legenda, que o ex-presidente comanda da prisão, por intermédio da deputada Gleisi Hoffman (PT-PR)

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpre pena em Curitiba por ter sido condenado em segunda instância no caso do triplex de Guarujá, foi condenado ontem a mais 12 anos e 11 meses de prisão pela juíza Gabriela Hardt, da 13ª. Vara Federal de Curitiba (que substituiu o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, no cargo), no caso do sítio de Atibaia, também em São Paulo. Segundo a magistrada, Lula era próximo do ex-presidente da OAS José Aldemário Pinheiro Filho e “tinha ciência do ‘caixa geral’ de propinas mantido entre a empresa e o Partido dos Trabalhadores”.

A juíza, que na primeira audiência com Lula foi desafiada por ele e o advertiu de que seu comportamento poderia se tornar um problema, concluiu que o ex-presidente se beneficiou do esquema de propina da Petrobras: “É fato que a família do ex-presidente Lula era frequentadora assídua no imóvel, bem como que usufruiu dele como se dona fosse. Inclusive, em 2014, Fernando Bittar alegou que sua família já não o frequentava com assiduidade, sendo este usado mais pela família de Lula”, afirma na sentença.

A juíza determinou o confisco do sítio de Atibaia e rechaçou os argumentos da defesa de que não existiriam provas contra Lula: “Foram ouvidas mais de uma centena de testemunhas, anexados dezenas de depoimentos produzidos em feitos correlatos como prova emprestada, deferida realização de prova pericial, anexados diversos documentos, sendo nítido que a produção probatória é farta”. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, a Odebrecht e a OAS custearam R$ 850 mil em reformas na propriedade. Já o pecuarista José Carlos Bumlai fez o repasse de propina ao ex-presidente no valor de R$ 150 mil.

O processo não tratou da propriedade do imóvel, mas das reformas que foram feitas nele. Como os valores do terreno e das benfeitorias se equivalem, a juíza determinou a venda do sítio e devolução da diferença entre o valor das benfeitorias e o valor pago pelo imóvel aos proprietários, Fernando Bittar e sua esposa, após o trânsito em julgado do processo. A reforma do sítio de Atibaia foi feita a pedido de Lula, que acompanhou o arquiteto responsável, Paulo Gordilho, na visita ao sítio e aprovou o projeto.

Foram realizadas diversas benfeitorias no sítio, mas consta da denúncia somente o valor pago à empresa Kitchens: R$ 170 mil. A obra foi realizada de forma a não ser identificado quem executou o trabalho e quem foi o beneficiário; os pagamentos feitos pela OAS à Kitchens foram em espécie, para não deixar rastros. “Não houve ressarcimento à OAS dos valores desembolsados pela empresa em benefício de Lula e de sua família”, destaca a sentença. Também foram condenados, a penas menores, Léo Pinheiro, José Carlos Bumlai, Emílio Odebrecht, Alexandrino Alencar, Carlos Paschoal, Emyr Dinis, Roberto Teixeira, Fernando Bittar e Paulo Gordilho. Odebrecht teve a pena suspensa por causa do seu acordo de delação premiada.

Inelegibilidade

A juíza Gabriela Hardt decretou a interdição de Lula para o exercício de cargo ou função pública pelo período equivalente ao dobro da pena estabelecida, ou seja, 24 anos, o que significa seu afastamento definitivo de qualquer projeto eleitoral próprio. A nova condenação fragiliza as articulações para que Lula saia da cadeia, quando nada para cumprir pena domiciliar, com tornozeleira eletrônica. Se for referendada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, com sede em Porto Alegre, dificilmente voltará a ter qualquer protagonismo político.

Embora o ex-presidente da República seja ainda a maior liderança do PT, que inclusive realiza uma campanha de solidariedade internacional e tem como principal palavra de ordem o “Lula livre”, a nova condenação reabre a discussão partidária sobre os rumos da legenda, que hoje gravita em torno do prisioneiro, que comanda o partido detrás das grades, por intermédio da deputada Gleisi Hoffman (PT-PR), atual presidente da agremiação. Entretanto, dirigentes petistas já defendem a necessidade de o partido encontrar um outro eixo de atuação, para evitar seu isolamento. O ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, que foi candidato a presidente da República e teve grande votação no segundo turno, é a liderança de maior expressão eleitoral, mas o quadro político histórico mais importante do PT no Congresso é o senador Jaques Wagner, ex-governador da Bahia.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-sabia-diz-gabriela/

 


Vinicius Torres Freire: Lula e Bolsonaro no SUS

Gasto per capita em saúde pública cresceu 91% de 2003 a 2017, mas a crise chegou

Quando gente mais rica ou remediada fala do SUS (Sistema Único de Saúde)? Quando um presidente é internado em um grande hospital privado de São Paulo, por exemplo. Então vem a pergunta mesquinha: “Por que não foi para o SUS?”. Vale para Jair Bolsonaro ou Lula da Silva, a depender do ódio político do freguês.

Mas o SUS deve ser a prioridade do presidente na opinião de 40% dos eleitores, segundo pesquisas Datafolha de 2018 (e para 49% dos que ganham até dois salários mínimos). Cerca de 25% dos brasileiros têm acesso à saúde privada, aqueles com renda e empregos melhores. O SUS não é lá assunto para a elite da opinião pública. Precisamos falar sobre o SUS.

Qual o estado do financiamento da saúde pública? Houve desmonte sob Michel Temer? Progrediu, neste século?

A despesa dos governos federal, estaduais e municipais com saúde pública cresceu sem parar entre 2003 e 2014. Caiu então um tanto e se recuperou em 2017. O gasto por brasileiro, per capita, também cresceu nesses anos: 91%.

Essas contas foram baseadas em dados do estudo “Consolidação do Gasto com Ações e Serviços Públicos de Saúde”, dos pesquisadores Sergio Piola, Rodrigo de Sá e Benevides e Fabiola Vieira, do Ipea (Texto para Discussão 2.439, de dezembro de 2018).

O crescimento da despesa não foi pequeno, embora nada comparável ao dos gastos previdenciários federais, que foram de 9,2% do PIB para 11,2% do PIB entre 2007 e 2017. Nesses anos, o gasto federal em saúde passou de 1,6% do PIB para 1,7% do PIB —note a brutal disparidade entre Previdência e saúde.
Se o dinheiro foi suficiente ou se é gasto de modo eficaz, são outros quinhentos.

Para os autores do estudo do Ipea, a estagnação do gasto em saúde é problema sério. A população envelhece, se disseminam doenças crônicas, ainda há desigualdade regional no acesso a serviços e os preços da saúde sobem mais do que a média da inflação. Seria necessário mais dinheiro.

Isto posto, não houve “desmonte” na saúde sob Temer. Em 2017, a despesa federal per capita foi, de fato, 0,6% menor que em 2014 (ano final de Dilma 1). Mas a recessão talhou a receita de impostos e, de resto, o gasto per capita em 2017 ainda era 11,9% maior do que no final de Lula 2 (2010). Em estados e municípios, a despesa caiu mais.

Não é defesa de Temer. É um exemplo de exageros ou alucinações na discussão pública. A universalização da saúde pública (1988) e a vinculação mais efetiva de despesa (2000-2001) foram resultado de longo debate entre pesquisadores, servidores, militantes sociais e parlamentares. O gasto em saúde pública entre 2001 e 2016 foi vinculado à receita de impostos e, em parte, ao crescimento do PIB, grosso modo. No geral, é mais uma política de Estado do que de governo.

Ainda assim, governos podem redirecionar políticas de longo prazo ou avacalhar sua execução.

A despesa federal com saúde deixou de ser vinculada à receita de impostos. Desde 2018, há apenas um piso de gastos, que será reajustado pela inflação. Para elevar a despesa na saúde, será preciso tirar dinheiro de outra área, dado o teto geral de gastos criado sob Temer, em 2016.

O que vai fazer Bolsonaro a respeito do problema prioritário para a população, ainda mais em tempos de estados e municípios sem dinheiro, de mais gente sem saúde privada, afora problemas de longo prazo? Seus economistas querem acabar com o piso de gastos sociais. Dá certo?

A gente não está nem aí.