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Merval Pereira: O futuro adiado

Ao ler que o prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa declarou apoio a Keiko Fujimori na disputa presidencial do Peru, alegando ser ela “o mal menor” diante o candidato de esquerda Pedro Castillo, fui tomado por uma sensação desalentadora de futuro adiado que experimento há anos, em relação ao Brasil e à nossa região.

Nós também no Brasil votamos no “mal menor”, raras vezes em um projeto de governo. Em busca permanente do “salvador da pátria”, acabamos escolhendo o “erro novo”. Jair Bolsonaro em 2018, Collor em 1989. Agora, possivelmente ficaremos em 2022 diante de dois “erros antigos”.

Lula, liberado pela Justiça para concorrer à eleição, deixa de ser “ficha suja”, sem ser “ficha limpa”, num paradoxo tão brasileiro que faz com que um ministro do Supremo, o “novato” Nunes Marques, vote a favor e contra a mesma ideia.

Ele considerou, na Segunda Turma, que o ex-juiz Sérgio Moro não é suspeito, mas aceitou, por questões regimentais controvertidas, que prevalecesse no plenário com seu voto a tese da falta de isenção de Moro no julgamento do triplex do Guarujá. A ministra Carmem Lucia mudou também de voto, de insuspeito para suspeito, em meio ao julgamento. Assim como ministro Gilmar Mendes votou a favor e contra a prisão em segunda instância, em julgamentos distintos, e ajudou a salvar Lula, assim como ajudara a prendê-lo. Lula foi vítima e beneficiário desses “passos trôpegos”, da balbúrdia jurídica oferecida pelo Supremo.

Apenas dois presidentes depois da redemocratização foram eleitos por projetos políticos: Fernando Henrique em 1994, com o Plano Real, e Lula em 2003, como alternativa ao que chamava de projeto neoliberal. Os dois foram reeleitos em 1988 e 2006, esgotando as últimas reservas dos projetos vitoriosos.

Lula chegou ao poder em 2003, depois de perder quatro eleições, porque se reinventou criando o personagem Lulinha Paz e Amor. E lançou a Carta aos Brasileiros. Mas também porque o segundo governo de Fernando Henrique, que teve méritos evidentes como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Rede de Proteção Social, origem do Bolsa-Família, dos genéricos e do combate à Aids, ficou marcado pela desvalorização do Real logo nos primeiros dias, o apagão de energia e a economia em situação difícil.

Paradoxalmente, para acalmar o mercado financeiro, Lula teve que escrever a Carta aos Brasileiros onde se comprometia a manter o tripé da política econômica: câmbio flutuante, meta de inflação e equilíbrio fiscal. Foi isso que garantiu o bom desempenho econômico no primeiro governo Lula, e o tripé é a base da política econômica até hoje. Ou era, pois o Centrão está aos poucos minando esse tripé, com o auxílio de Bolsonaro que, candidato à reeleição, escolhe aumentar os gastos.

O julgamento do STF que decidiu pela suspeição do juiz Sérgio Moro foi uma grande vitória política do ex-presidente Lula, e uma grande derrota do combate à corrupção do Brasil, que não cansa de regredir. Um país que teve avanço brutal no combate à corrupção volta à estaca zero, supostamente na defesa do estado de direito, de um justo julgamento. Um ministro como Ricardo Lewandowski, que admite que os diálogos roubados por um hacker são provas ilícitas “mas, enfim, foram amplamente divulgadas”, não deveria poder falar sobre suspeição.

Nem diante de todo o escândalo revelado, as forças políticas que continuam no poder, e a manter controle da situação, sempre encontram jeito de prevalecer, mesmo depois de cinco, seis anos. Tanto o combate à corrupção quanto o equilíbrio fiscal foram conquistas da sociedade brasileira, mas estão colocadas em perigo por um governo que se elegeu justamente para defendê-las.

O país do futuro de Stefan Zweig vai sendo eternamente adiado para ficar do tamanho de sua elite política e empresarial. E seguimos elegendo o populista da vez, revezando entre esquerda e direita, sem entendermos que o mundo lá fora, pelo menos o mundo que funciona, já está em outro patamar, discutindo o futuro.


Ascânio Seleme: Lula parte para o terceiro mandato

Ao confirmar suspeição de Moro, STF reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022

Ao confirmar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro depois de tê-lo considerado incompetente para julgar Lula, o Supremo Tribunal Federal reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022. Não, não haverá tempo para que uma candidatura de centro ou centro-direita surja e cresça a ponto de superar Lula e conseguir vaga no segundo turno. Apenas João Doria pode surpreender. Luciano Huck ficou no espaço. Luiz Mandetta não se consolidou. Moro se dissolveu. E os demais pré-candidatos que apareceram neste espectro eram apenas balões que nem sequer ensaiaram uma alternativa.

A centro-esquerda e esquerda tinham Fernando Haddad e Ciro Gomes. Haddad é Lula. Ciro não deve ser páreo para um Lula que volta revigorado pelo STF. À direita o candidato será mesmo Bolsonaro? Talvez sim. Talvez não. A direita liberal pode encontrar em Lula argumentos para fugir do capitão que muito prometeu em 2018 e pouco entregou. As reformas neste governo não avançaram. Mesmo a reforma da Previdência, aprovada em 2019, foi muito mais mérito de Rodrigo Maia e da Câmara do que de Bolsonaro e do Palácio. Além disso, as constantes ameaças às instituições atrapalham o capitão muito mais do que o ajudam.

O presidente ficará com a extrema-direita, isso com certeza. Neste espaço, só resta ele. Trata-se de uma área tão árida do campo que somente olavistas convictos e puxa-sacos rematados conseguem por ela transitar à vontade. Com eles seguirá parte do eleitorado que se enrola em bandeiras do Brasil e pede o fechamento do Congresso, do Supremo. São minoria, mais velhos e saudosistas ou mais ignorantes e menos informados. Serão acompanhados também pelos que ainda olham para Lula e para o PT e só enxergam corrupção. São muitos, mas as pesquisas revelam que a maioria já percebeu que a alternativa é pior.

O cenário não deixa muita dúvida. O desgaste de Bolsonaro, que deve seguir e ser ainda ampliado pela CPI da Covid, o debilitará política e eleitoralmente, mas dificilmente a ponto de tirá-lo do segundo turno. Esta talvez seja a única forma de Lula não conquistar um terceiro mandato. Se houver um segundo turno entre ele e qualquer outro candidato que não seja o capitão, suas chances de vencer diminuem muito. Como é pouco provável que isso ocorra, Lula e Bolsonaro deverão ir para o segundo turno. E aí, antes de dizer com quem vai o eleitor, é importante observar como se guiarão as forças políticas, os partidos e seus líderes.

Mesmo os partidos que hoje apoiam o governo no Congresso terão de fazer cálculos para decidir com que seguir num segundo turno entre os dois. Se Bolsonaro não estiver muito isolado em 2022, talvez tenha uma meia dúzia de partidos coligados em sua campanha. Mas nesta contabilidade, não se pode dar por certo nem mesmo o apoio do PSL, que só existe por obra do presidente. O Centrão, de DEM, PP, MDB e outros, sabe muito bem para qual canoa deve pular se a sua estiver fazendo água. E a canoa de Lula já abrigou o Centrão antes. Os partidos que formam esta amálgama podem se dividir até o limite do primeiro turno, depois seguem com quem for vencer.

À esquerda, nenhuma dúvida. Talvez Ciro Gomes viaje outra vez a Paris, como já disse que fará na hipótese de ter como opção o PT. Ciro vai, mas o seu partido, o PDT, fica. Seus eleitores também, ou alguém imagina que na ausência de Ciro pedetistas votarão por descuido em Bolsonaro? Os demais partidos que contam, PSOL, PSB, Rede, PCdoB, devem ir com Lula já no primeiro turno. Os demais desaguarão no PT em seguida. Mesmo que Doria anteveja um provável fracasso e prefira disputar um segundo mandato em São Paulo, o PSDB deve ter candidato próprio. Mas no segundo turno não piscará ao emprestar seu apoio à Lula contra Bolsonaro.

Ninguém, a não ser as forças mais retrógradas do país, quer dar mais um mandato ao capitão baderneiro. A experiência foi desastrosa politicamente e trágica do ponto de vista sanitário. O Brasil precisa recuperar sua saúde, sua economia, sua autoestima, o prestígio que um dia teve no mundo. Estes objetivos certamente seriam alcançados, em escalas diferentes, por Doria, Ciro ou Haddad. Os três são melhores, muito melhores do que Bolsonaro, sob qualquer ângulo que se olhe, e o derrotariam num segundo turno. Mas pelo que se desenhou com a decisão do STF, caberá a Lula a tarefa.

A BELEZA DA CPI

Há muitos céticos quanto ao resultado da CPI da Covid. Tantas deram em nada e a coisa agora pode ir pelo mesmo caminho, dizem. Acho que esta não, sobretudo porque o objeto da investigação são os inequívocos malfeitos do presidente e de ministros. As que ficaram no caminho, até sem relatório final, não tinham a gravidade desta. Mesmo que fique menor do que o esperado, a beleza desta CPI é a abundância de luz que ela jogarásobre a tragédia patrocinada pelo governo Bolsonaro. De terça-feira em diante este será o assunto número 1 do país. Os olhos da Nação estarão virados para o Senado. A exposição sobre os membros da comissão será de uma grandeza solar. Qualquer bobagem será anotada. Todos os acertos serão contabilizados. A CPI é política. Seus membros também.

O QUERIDINHO

Engana bem o general Braga Netto.

No período em que comandou as forças de intervenção no Rio, em 2018, foi tratado como o queridinho da cidade por empresários, políticos e mesmo alguns jornalistas. Braga já tinha feito amigos civisem 2016, quando chefiou a segurança da Olimpíada. Aos olhos de muitos parecia um general arejado, moderno, gente dos novos tempos. Bagagem, aquilo era apenas uma fantasia que o general usou temporariamente no lugar da farda.

RESPEITO É BOM

O ex-queridinho disse no nefasto discurso feito na posse do novo comandante do Exército que “o projeto escolhido pelos brasileiros merece respeito”. Boa general, correto. O problema é que o projeto escolhido foi abandonado pelo governo que radicalizou para atender apenas aquela parcela de malucos embandeirados que vão para a rua pedir a intervenção militar. Para que serviriam os ditados se não houvessem verborragias como esta do general? Por isso, caro Braga Netto, “não merece respeito quem não se dá ao respeito”.

LIBERDADE

Além da ameaça dissimulada à CPI da Covid, o general Braga Netto voltou a falar em liberdade. Disse estarem enganados os que acreditam que podem “colocar em risco a liberdade conquistada por nossa Nação”. Se não tivesse outro destino, diria que a mensagem de Braga foi acertada,

já que o Brasil não está disposto a devolver a liberdade que conquistou quando se livrou de outros generais que tomaram o poder pela força.

DOUTOR ZERINHO

Flávio Bolsonaro botou banca. Vai advogar no Distrito Federal. Uma maravilha, gente. Seu primeiro cliente poderia ser a rede LavLev, que em Brasília tem filiais na Asa Norte, no Sudoeste, na Octogonal e no Cruzeiro.

MARINA E A PERERECA

Lula tem razão. Ele e Gleisi assinaram artigo na “Folha” mostrando sua preocupação com o meio ambiente e batendo na política criminosa de Bolsonaro para o setor. Mas é bom não esquecer que o maior ícone ambientalista nacional, a ex-senadora Marina Silva, pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente no governo Lula por falta de “sustentação política” para tocar sua pauta. Também não custa lembrar que Lula sempre se queixou da “poderosa máquina de fiscalização” ambiental. Por isso disse, no longínquo 2010, que o Brasil não podia “ficar a serviço de uma perereca”. Criticava a paralisação das obras do Arco Metropolitano do Rio em favor da preservação de um anfíbio que habitava um charco por onde passaria a estrada.

BLABLABLÁ

De qualquer modo, não dá para comparar os pecados ambientais de Lula com os crimes que os vilões mentirosos Jair Bolsonaro e Ricardo Salles cometem diariamente contra o meio ambiente brasileiro. Por isso, aliás, pouca gente levou a sério o discurso hipócrita do presidente na Cúpula do Clima. Na prática, o governo faz exatamente o contrário do blablablá pronunciado. Anitta tem razão, difícil explicar no exterior esse que ela chamou de “desgoverno de bosta”.

CHAUVIN

Se o assassinato de um homem negro por sufocamento tivesse sido cometido no Brasil há um ano, o policial Derek Chauvin a esta altura já estaria de volta à ativa ou, no máximo, cumprindo alguma função burocrática numa delegacia ou num quartel. Logo após o crime, sobretudo se ele tivesse sido filmado, Chauvin seria afastado das ruas e mantido em casa ou detido no quartel, mas com remuneração garantida. Mesmo que a nossa bondosa Justiça visse dolo na ação do policial, se o assassino tivesse bons advogados, usaria os inúmeros recursos disponíveis e permaneceria na boa até o crime prescrever.

QUESTÃO DE AGENDA

Ernesto Araújo alegou ter um “compromisso inadiável” para não participar de uma live organizada na quarta-feira por olavistas notáveis, se é que isso existe. Talvez tivesse que buscar um filho no colégio ou restaurar uma obturação. Fora isso, agenda vazia.

NÃO MANDA NADA

Em razão de nota publicada aqui na semana passada, o presidente executivo da Fetranspor, Armando Guerra, ligou para explicar que a entidade não manda patavina nenhuma na desordem do setor no Rio. Se mandasse, 20 empresas não teriam fechado as portas entre março e dezembro do ano passado, não teria havido R$ 2,8 bi em perda de receitase R$ 1,5 bi de prejuízos no mesmo período.


José Eduardo Faria: A "sinalização do povo"

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Bolsonaro em manifestação de cunho golpista em Brasília. Foto: PR

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Bolsonaro fala a apoiadores na saída do Palácio. Foto: PR

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Carl Schmitt, à direita, na Paris ocupada, 1941. Foto: Reprodução

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.


Raul Jungmann: 'As Forças Armadas não aceitam uma aventura antidemocrática'

Ricardo Chapola, Revista IstoÉ

A carreira política de Raul Jungmann, de 69 anos, passou por extremos. Nascido em berço esquerdista, Jungmann lutou contra a ditadura militar quando ainda era universitário ao ingressar no MDB. Depois, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Sua trajetória começou a mudar quando integrou o governo de Fernando Henrique Cardoso. 

Durante esse período, Jungmann estreitou relações com as Forças Armadas, o que se intensificou durante seus mandatos como deputado federal, até transformá-lo em ministro da Defesa no governo Temer. Foi nessa época também que passou a defender a proibição da venda de armas no País. Por essa razão, virou ministro da Segurança Pública em 2016. 

Atualmente, Jungmann continua militando pela regulação de armas e pela democracia. Em entrevista à ISTOÉ, o ex-ministro criticou a política armamentista de Bolsonaro, sugeriu que o presidente tenta formar milícias para se sustentar no poder e afirmou que o ex-capitão é o principal responsável pela grave situação do País na pandemia “Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje”.

As trocas de ministros e de comandantes das Forças Armadas, além das mudanças na PF, feitas por Bolsonaro, configuram uma tentativa de o presidente interferir nessas áreas?

É privativo do presidente a substituição de cargos comissionados. Sob o aspecto legal é normal. O que parece anormal é o fato de termos tantas mudanças na PF. Isso sim caracterizaria uma intervenção na PF, que é descabida. A PF é a Polícia Judiciária da União. Evidentemente ela tem que ter autonomia, sobretudo face às funções que ela tem. Esse excesso de intervenção mostra interesse de dar uma direção política a um órgão de Estado e que não pode ser politizado. Essa sequência de mudanças e essa busca de politizar a PF desserve aos critérios constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade que um órgão como esse tem que ter. Isso significa uma tentativa de intromissão no domínio legal. Não contribui para a democracia e tampouco para a independência dos poderes.

O Ministério da Justiça fez uso da LSN para abrir inquérito contra críticos a Bolsonaro. Qual a opinião do senhor sobre o assunto?

O Congresso tem falhado desde a redemocratização em dar ao País uma lei de defesa do Estado Democrático. Para mim, a principal responsabilidade é do Congresso. Na medida em que a legislação que você tem de defesa do Estado é uma lei do regime militar, ela termina sendo usada. Evidentemente que ela está sendo empregada abusivamente. E também acho que vem sendo usada com finalidade política. O Congresso já deveria ter aprovado uma lei do Estado Democrático.

Polícias estaduais também usaram a LSN para prender pessoas. Como o senhor classifica essa relação que Bolsonaro estabelece com as polícias nos Estados?

Eu fui companheiro de Bolsonaro na Câmara durante 12 anos. A clientela dele eram os militares e os policiais. Uma parte dessa polícia é base do presidente, que comunga dos mesmos valores e das percepções dele. O que acontece é que isso leva, às vezes, a excessos, como é o caso dos rapazes presos por policiais do DF em Brasília. De fato, é um exagero você necessitar prender manifestantes com base na LSN. E isso, inclusive, tem sido repelido e negado pelo Judiciário, que não tem dado guarida a isso. Existe, de um lado, a falha do Congresso. De outro, existe um uso excessivo e político da legislação. Mas, ao mesmo tempo, pelo fato de não termos outra lei, terminamos utilizando uma legislação que é obsoleta. A liberdade de expressão existe e tem que ser respeitada.

O STF mandou o Senado instalar a CPI da Covid-19. Qual deve ser o foco das investigações da CPI?

O Senado não tem mandato para investigar estados e municípios. É inconstitucional. O que cabe é investigar a transferência de recursos federais para estados e municípios. Em termos de responsabilidade, a maior é do governo federal, sem a menor sombra de dúvida. Porque Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje. Acho também que o principal foco da CPI deve ser o de investigar o papel do governo federal, da Presidência da República e do Ministério da Saúde, os principais responsáveis pelo caos.

O senhor acha que Bolsonaro agiu corretamente quando escalou o presidente do Senado para articular a montagem do comitê de emergência da Covid-19?

A relação administrativa entre as esferas da União não são delegáveis a outros poderes. Quem tem atribuições constitucionais para estabelecer essa coordenação, obviamente, é o governo federal. Na prática, essa comissão é uma comissão natimorta. Esse papel é do Executivo. Não é do Legislativo, por melhor que seja a boa vontade do presidente do Senado. Essa comissão rapidamente desapareceu. O presidente tinha que criar uma unidade nacional. Tinha que promover um movimento que congregasse os poderes, União, estados, municípios e oposição em torno da questão de salvar vidas. E Bolsonaro faltou com esse papel de forma equivocada. Preferiu litigar, se contrapor a governadores e prefeitos, politizando algo que é inadmissível. Estamos lidando com a vida das pessoas. Não estamos numa causa política. Falta visão de estadista a Bolsonaro.

Mesmo assim essa tentativa de união veio tarde demais, não?

Sim, veio tarde. Já perdemos um ano e dois meses e quase 400 mil vidas. Mas sempre é hora para minimizar danos. Em que pese as críticas que faço, espero que o presidente reveja sua posição. Porque têm vidas em jogo. É uma dor que o Brasil carrega. É insuportável. Outra coisa é o desemprego, a fome e a falta de vacinas. Quando a necessidade ultrapassar o medo, aí sim nós teremos problemas sociais. Por isso que a gente tem que cuidar da vacina. Essa é a grande saída. De outra parte, precisamos reativar a economia. Não adianta separar as duas coisas. Tem que salvar as duas coisas. Mas a locomotiva disso é a vida.

Como o senhor classifica as acusações contra o presidente sobre o suposto uso da Abin para orientar a defesa de Flavio Bolsonaro no caso Queiroz?

A Abin é o órgão central do sistema de inteligência nacional. É um órgão da presidência para manter o presidente informado e apoiá-lo na tomada de decisões. Esse sistema de inteligência tem que estar submetido a critérios rígidos de controle. Como órgão de Estado, a Abin jamais pode estar a serviço de qualquer interesse privado, seja familiar do presidente, ou de quem for. Caracterizaria como crime caso fosse usada dessa forma. A Abin é um órgão de Estado. Não compete a ela nenhum tipo de atividade que seja em benefício de interesses privados. Isso significaria desvio de função, o que é inaceitável.

Qual é sua opinião sobre o projeto armamentista de Bolsonaro? Não seria arriscado defender que a população seja armada durante a pandemia?

Isso me preocupa. Sempre me posicionei que as armas fossem controladas. Mais armas significa mais mortes. Esse debate sempre foi feito na esfera da segurança pública. O presidente trouxe essa questão para a esfera político-ideológica. Fez isso ao dizer que precisávamos armar os brasileiros para que eles defendam a liberdade e não sejam escravos. Ele quebrou o monopólio da violência legal, que pertence ao Estado. Ele está ferindo o Estado, que é a parte que representa a soberania da nação. Bolsonaro está também ferindo o papel constitucional das Forças Armadas. Se o Estado tem o monopólio da violência legal, a última trincheira, a defesa que tem o Estado, são as Forças Armadas. Se você quebra o monopólio, você está criando um poder paralelo que tende a se contrapor às Forças Armadas.

O senhor está se referindo às milícias?

Sim, às milícias, bandos e grupos insurgentes. Não interessa. Se você arma brasileiros sem que exista qualquer ameaça ao Brasil ou à democracia, você está armando brasileiros contra os próprios brasileiros. Isso tem um nome horripilante: guerra civil. Na história, todas as vezes que alguém armou a população teve genocídio, massacre, golpes de estado. Por isso, foi tão importante a reação da ministra Rosa Weber. Os decretos representam exatamente a massificação do derrame de armas e munição para a população. Entre 2019 e 2020, a PF verificou um crescimento de 90% no registro de armas. Além do mais, grande parte dessas armas acaba parando nas mãos do crime organizado. Isso me preocupa, sobretudo quando a gente pensa no que aconteceu no Capitólio, nos Estados Unidos. E nós temos eleições presidenciais em 2022.

Bolsonaro entrou em atrito com os militares ao trocar o ministro da Defesa e o comando das Forças Armadas. O senhor acha que Bolsonaro tentou dar um autogolpe?

Não foi uma tentativa de golpe, porque não existe golpe no Brasil sem o apoio das Forças Armadas. O que Bolsonaro tentou fazer foi motivar as Forças Armadas a endossarem seus atos e ações, inclusive para constranger os outros Poderes. Como o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas não concordaram com isso, o presidente os demitiu. Não existe nenhuma razão para ele ter feito isso. A explicação é que foi uma intervenção política e uma punição às Forças Armadas, que não endossaram uma aventura autoritária. As Forças Armadas estão totalmente indisponíveis e não aceitam qualquer tipo de aventura antidemocrática no Brasil. O efeito foi o contrário. Um sonoro, uníssono, sólido “não”.

O senhor acha que a democracia corre riscos?

Temos aqui o presidencialismo de coalizão. Mas Bolsonaro aderiu ao presidencialismo de colisão. É o presidente da antipolítica. Preferiu optar por constranger outros Poderes. Dizendo ter a espada e ter apoio dos militares. O que ele não tinha. E dizendo também que tem o apoio das massas. Com esse presidencialismo baseado no constrangimento de outros Poderes, Bolsonaro fracassou redondamente. O STF não se dobrou. O Congresso tem um projeto autônomo, apesar de o presidente ter passado a negociar com o Centrão. E isso está manifestamente demonstrado no caso desse orçamento inadministrável. Esse orçamento é a expressão acabada de que o governo perde a capacidade de governar. Chegar nessa situação é a demonstração clara de perda de capacidade de governar. Independentemente de seus interesses, de seus desejos, o presidente vem tendo das instituições brasileiras uma resposta muito clara: de que elas não aceitarão qualquer tipo de desvio do rumo democrático. Não há disposição, nem vontade de ninguém para embarcar em qualquer aventura autoritária.


Armando Castelar Pinheiro: À espera da inflexão

Há que resistir à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa

A realidade tem se mostrado mais complexa que as previsões. Novas cepas, múltiplas ondas de casos e mortes, efeitos colaterais das vacinas, tudo eleva a incerteza sobre quando se controlará a pandemia da covid-19 e, não menos importante, como será o novo normal depois disso. Fica claro, também, que os países ricos não conseguirão controlar a epidemia vacinando só suas populações, enquanto no resto do mundo a pandemia segue solta, facilitando o surgimento de novas e mais virulentas variantes do vírus.

Isto posto, tudo indica que 2021 verá uma inflexão nesse processo, fruto do gigantesco esforço de vacinação em curso. E de que, os dados mostram, as vacinas estão funcionando. Até aqui foram aplicadas quase 900 milhões de doses globalmente, quase uma dose para cada seis pessoas com 20 anos ou mais. Na última semana, mais de 100 milhões de doses foram administradas e a tendência é esse ritmo acelerar, conforme suba a produção de vacinas. Mesmo que isso não ocorra, mantido esse ritmo o ano fechará com 4,5 bilhões de doses aplicadas, o suficiente para vacinar boa parte dos mais vulneráveis.

A vacinação avançou mais em alguns países ricos, como os europeus e os EUA, com grandes emergentes como Brasil, Argentina, China, México e Índia vindo atrás, nessa ordem, em termos de vacinas aplicadas por habitante. Onde a vacinação andar mais rápido, a atividade econômica e o emprego também se recuperarão mais ligeiro e significativamente. Os EUA são o grande caso de sucesso na economia, para o que os redobrados estímulos fiscais também contribuem.

No Brasil, tudo parece meio parado, à espera que a vacinação avance o suficiente para a normalização, ainda que parcial, para usar o jargão da moda, da economia. Já se aplicaram cerca de 35 milhões de doses e o ritmo tem ficado, com alguma volatilidade, perto de um milhão de doses por dia. Isso permitirá vacinar, com duas doses, todos os brasileiros com 20 anos ou mais até o fim do ano. Se conseguirmos mais vacinas, poderemos atingir essa “normalização parcial” no terceiro trimestre, com o ano fechando com uma retomada mais firme da atividade.

O problema é que há muito mais com que se preocupar, o que não parece estar ocorrendo. O que me fez lembrar da frase de Samuel Johnson: “Confie nisso, senhor, quando um homem sabe que está em vias de ser enforcado, concentra sua mente maravilhosamente”. Quem sabe a forca ainda não está apertando tanto quanto parece, mas a impressão é de rompimento com o padrão das últimas décadas, quando a proximidade da crise concentrou as mentes e levou à aprovação de ajustes fiscais. Não vemos isso agora, como ficou claro na confusão, ainda em curso, com o orçamento público deste ano.

O drama humanitário - mais de 20 mil mortes por semana - explica em parte essa apatia com a deterioração do quadro fiscal. É na saúde pública que as mentes estão concentradas. Parte da explicação também está, porém, em muito da deterioração futura vir de maiores despesas com juros, e não do mais visível déficit primário.

Entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês este ano, a Dívida Bruta do Governo Geral saltou de 75,2% para 90% do PIB. A despeito desse salto, a despesa com juros sobre essa dívida caiu de 5,5% do PIB nos 12 meses até fevereiro de 2020 para 4,7% do PIB um ano depois. Isso porque, na média dos 12 meses terminados em fevereiro último, a taxa de juros implícita incidente sobre essa dívida foi de apenas 5,7%, contra 7,5% um ano antes.

Essa taxa de 5,7% é a menor registrada na série histórica disponibilizada pelo Banco Central (BC). Essa excepcionalidade fica ainda maior quando se olha para essa taxa em termos reais, descontando a variação acumulada pelo IPCA: nos 12 meses até fevereiro de 2021, a taxa real ficou em 0,5%, contra uma média de dez vezes esse valor em 2007-20 (5%).

Nos próximos meses a taxa de juros real incidente sobre a dívida pública vai continuar caindo, indo para valores negativos. Porém, olhando um pouco mais à frente, parece inevitável que ela suba, possivelmente de forma significativa. Isso por dois fatores.

Um, a alta dos juros pagos pelo Tesouro americano, que deve continuar conforme a economia do país se recupere, dado que o governo americano necessita emitir altos volumes de dívida para financiar seu elevado déficit. O processo será gradual, oscilando com as ondas da pandemia, mas deve ganhar força com a recuperação da atividade e a queda do emprego.

Outro, a necessidade de controlar a escalada inflacionária doméstica, que fará o BC continuar a elevar a taxa Selic, indexador de 45% da dívida pública, provavelmente para além do que projeta o analista mediano do Focus (6% ao final de 2022). A inflação segue surpreendendo para cima e o risco de o BC perder o controle das expectativas inflacionárias tem aumentado.

Torço que se resista à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa. É hora de começar a se preparar para esse novo desafio fiscal.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro pode perder corrida pelo dinheiro para governadores

Presidente se mostrou no encontro como um aliado arrependido do trumpismo

Dezessete chefes de Estado e a presidente da Comissão da União Europeia falaram antes do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula dos Líderes pelo Clima. O presidente do país “detentor da maior biodiversidade do planeta”, como Bolsonaro definiu o Brasil, começou a falar quase duas horas depois de a conferência virtual ter começado. E não pôde, a exemplo de Angela Merkel (Alemanha), Emmanuel Macron (França), Ursula Leyen (UE) e Cyril Ramaphosa (Africa do Sul), saudar, com uma estocada da boa diplomacia, a volta dos Estados Unidos, anfitrião do encontro, ao esforço contra o aquecimento global.

Os americanos voltaram ao Acordo de Paris um mês depois da posse do presidente Joe Biden e três anos e sete meses depois de o ex-presidente Donald Trump tê-lo denunciado. Os líderes europeus e da África do Sul não deixaram passar a oportunidade de lembrar Biden do passado muito recente do país que agora se arvora à liderança global do ambientalismo na tentativa de reconquistar um viés de “superioridade moral” perdido na era Trump. Bolsonaro, porém, não pôde fazer o mesmo porque, de todos os 40 chefes de Estado convidados para a conferência, foi o mais estreito aliado de Trump.

E foi assim que o presidente brasileiro se mostrou no encontro. Como um aliado arrependido do trumpismo, incapaz até mesmo de adotar a linha de outros infratores das metas ambientais, como o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. No comando de um país que, a exemplo do Brasil, não cumpriu o que havia acordado no Acordo de Paris, em 2015, Trudeau colocou o combate ao aquecimento global como prioridade que secunda o enfrentamento da covid-19. Como a pandemia nunca foi sua prioridade, Bolsonaro preferiu centrar seus esforços numa única mentira, a do empenho nacional pela redução dos gases do efeito-estufa.

Os argumentos foram os mesmos apresentados na carta enviada, na semana passada, ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. A carta parece ter sido tão pouco convincente que o presidente americano esperou a vez de David Kabua, presidente das Ilhas Marshall, país minúsculo do Pacífico que tende a desaparecer pelo avanço dos oceanos, mas não Bolsonaro. Biden deixou a sala da conferência virtual antes de o brasileiro começar a falar. A mensagem brasileira foi mais ponderada do que as da era Ernesto Araújo, mas distorce a responsabilidade do país pela emissão de gases estufa, traça meta de redução baseada numa pedalada (para trás) sobre as conquistas anteriores e comemora a matriz limpa do parque energético como feito de seu governo.

A conferência deixou claras as dificuldades de Bolsonaro em limpar a imagem do Brasil depois da devastação e do desmonte das instituições de fiscalização promovidas por seu governo. Por razões inversas, Biden também pisou em ovos em seu discurso, que abriu a conferência. Ciente de que uma parte importante do eleitor americano rejeita o discurso ambiental, falou mais em emprego do que em clima. Ancorou a necessidade de mudar a matriz energética do país com o desenvolvimento de novas tecnologias como meio para a geração de emprego. O temor do eleitorado se estende ao mercado. À tarde, de volta à tela, mal acabara de falar da necessidade do esforço conjunto para o financiamento das ambiciosas metas ali traçadas, as bolsas despencaram, alarmadas com aumento de impostos.

O presidente chinês, Xi Jiping, citado por Merkel, Macron e pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em função dos esforços na pauta ambiental que precedem os dos EUA, também tratou de seus interesses sem subterfúgios. Ao enfatizar o multilateralismo, deixou claro que as conquistas não decorrerão do novo protagonismo americano mas do conjunto das nações. Xi insiste em se apresentar como liderança dos países em desenvolvimento propugnando o reconhecimento dos esforços que estes têm feito no sentido de buscar o desenvolvimento sustentável.

Todos os chefes de Estado exibiram esforços maiores do que aqueles que têm sido efetivamente feitos. E todos se comprometeram com metas ambiciosas para 2030 a serem acordadas na conferência das Nações Unidas sobre o clima, em Glasgow, em novembro. Nenhum deles, porém, enfrenta descrédito tão grande sobre a distância a ser percorrida entre os esforços e as metas quanto Bolsonaro.

O primeiro teste se dará no acesso ao fundo de US$ 1 bilhão, mobilizado a partir da coalizão de EUA, Noruega e Reino Unido e de empresas como Amazon, Airbnb, Bayer, Nestlé, Unilever, Boston Consulting Group, McKinsey, Salesforce e GKS (ver reportagem na página A5). É um dinheiro a ser destinado para o mundo inteiro e não apenas para o Brasil como desejava o Palácio do Planalto. E até mesmo os governos subnacionais estarão elegíveis. Como o pagamento se dará por meio de resultados, e não antecipadamente para armar a Guarda Nacional, como desejava o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, as chances de o governo federal são mais reduzidas do que, por exemplo, as do Consórcio Amazônia, que reúne os nove Estados da região.

Por meio um plano chamado “Recuperação Verde da Amazônia Legal”, os governadores apresentaram projetos como apoio na certificação de produtos sustentáveis para acesso aos mercados nacional e internacional, incentivo à pecuária intensiva, redução de carbono nas atividades de mineração e fomento ao turismo ecológico. Os desembolsos se dão mediante averiguação, por consultores independentes, do desempenho acordado. Depois de carregar sozinho o fardo da herança trumpista na cúpula, Bolsonaro ainda corre o risco de ser ultrapassado, em casa, pelos governadores, no acesso ao dinheiro.


Murillo de Aragão: Dificuldade em enxergar o óbvio

Estamos perdendo a capacidade de valorizar o que existe de bom

O Brasil é uma das últimas fronteiras do mundo para investimentos. Há necessidades gigantescas na área de infraestrutura e existe um mercado de mais de 200 milhões de pessoas educadas para o consumo.

As oportunidades existentes são únicas. Talvez nós, brasileiros, não tenhamos uma clara noção do nosso potencial devido à nossa irresistível vocação para falar mal do país. Na linha do que é ruim a gente mostra; o que é bom a gente esconde.

O setor imobiliário, por exemplo, pode avançar de forma extraordinária com a expansão do crédito. Somos uma das sociedades mais interconectadas do planeta, sistema que resistiu mesmo com o aumento de 50% do tráfego na internet durante a pandemia.

No campo ambiental, além de possuirmos uma das melhores matrizes energéticas do mundo, somos um dos maiores produtores de alimentos do planeta, mesmo com uma cobertura florestal que representa mais de 50% do território nacional. O agronegócio no Brasil, em sua imensa maioria, segue uma rígida legislação ambiental.

Com todo o fuzuê em torno das queimadas em nossas florestas, somos responsáveis por pouco mais de 3% das emissões globais de carbono. Os Estados Unidos, país campeão das narrativas em torno da defesa do meio ambiente, contribuem com mais de 14%. O pequeno Japão colabora com mais de 8% das emissões globais. E nenhum dos dois países é perseguido pela opinião pública mundial por questões ambientais.

 “No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece”

No campo político, apesar da lentidão exasperante, fomos além do que a maioria dos países de nossa dimensão consegue em termos de reformas. E continuamos a avançar, com a nova lei de saneamento, a lei de recuperação judicial, o marco do gás e a autonomia do Banco Central.

Em 2019, tínhamos pouco mais de 700.000 investidores na bolsa de valores. Hoje são mais de 3 milhões de brasileiros. E esse número deve triplicar nos próximos anos. Temos mais de 300 fintechs em operação e um consistente processo de desbancarização em curso.

No campo institucional, os atritos entre os poderes da República representam mais a impossibilidade de uma hegemonia antidemocrática do que a possibilidade de uma ruptura institucional. O Brasil vive um sistema político compartilhado que ajuda a impedir a violência política arbitrando os conflitos.

No entanto, existe uma infeliz preponderância do conflito político estéril sobre a solução para nossos principais desafios. O desejo de destacar o atrito prevalece sobre a vontade de resolver nossos problemas. As good news de nosso país são soterradas pelas más notícias, fazendo com que percamos uma visão mais precisa da realidade.

No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece. Isso, porém, não parece interessar a boa parte de nossa opinião pública nem às nossas autoridades, que se concentram mais no conflito do que nos desafios. Disse Clarice Lispector, “o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


Ricardo Noblat: Como de hábito, Bolsonaro mente da manhã à noite

Quem o pariu que o embale

O presidente Jair Bolsonaro acordou e foi dormir ontem mentindo, que é o que ele sempre sabe fazer de melhor.

De manhã, mentiu ao mundo na abertura da Cúpula do Clima ao dizer que “o Brasil está na vanguarda no enfrentamento ao aquecimento global”. Não está, já esteve.

Mentiu à noite nas redes sociais ao recomendar a cloroquina como remédio eficaz contra a pandemia do coronavírus.

A MM (mentira matinal) parece ter sido bem aceita por diplomatas que servem ao presidente Joe Biden, o organizador e anfitrião da cúpula. Eles gostaram do tom do discurso de Bolsonaro.

A MN (mentira noturna) pode ter agradado os devotos que a escutam como prova de coerência, mas somente a eles.

“Eu tomei um negócio ano passado, não vou citar o nome para não cair a live, mas se eu tiver um problema, vou tomar de novo”, prometeu Bolsonaro.

O desmatamento só cresce. Ao contrário do que disse, ele não está dobrando o orçamento das atividades de fiscalização ambiental.

À falta de vacinas porque o governo não as providenciou a tempo, o vírus segue matando. A culpa, segundo Bolsonaro, é de governadores e prefeitos que adotam medidas de isolamento.

Como o discurso da manhã foi lido, Bolsonaro não se enrolou. Como nas redes sociais ele improvisa, foi uma confusão só.

“Impressionante como só se fala em vacina”, reclamou Bolsonaro, que em seguida comparou a doença do vírus com os cânceres de mama e de próstata que ele considera tão mortais quanto.

Bolsonaro tomou emprestado aos governos que antecederam ao seu as ações em prol da preservação da natureza no Brasil.

Escondeu que o país é o campeão em perdas de florestas no mundo. Só de 2019 para 2020, foram eliminados 1,7 milhão de hectares de floresta primária no Brasil.

Isso é mais do que três vezes o que perdeu o segundo colocado, a República Democrática do Congo.

Comprometeu-se a eliminar “o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal” em vigor há 9 anos. Malandragem pura e direto na veia.

Na prática, pediu 19 anos de carência para cumprir a lei. E joga tudo nas costas dos próximos quatro governos.

Chega ou quer mais?


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro vende um Brasil imaginário na Cúpula do Clima

Jair Bolsonaro tentou vender um Brasil imaginário na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Nas palavras do presidente, o país está “na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”. Nem parecia o chefe do governo que mutilou a fiscalização ambiental e permitiu o avanço do desmatamento da Amazônia.

Na defensiva, Bolsonaro sustentou que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta e promoveu uma “revolução verde” no campo. Se tudo vai bem, o mundo estaria perdendo tempo ao se preocupar conosco.

O capitão abusou da boa-fé dos estrangeiros. Sem corar, ele disse ter determinado o “fortalecimento dos órgãos ambientais”. Na vida real, seu governo pilota uma operação de desmonte, executada pelo ministro Ricardo Salles.

No início da semana, mais de 400 servidores do Ibama denunciaram que as atividades de fiscalização estão paralisadas. Eles explicaram que uma nova instrução normativa inviabilizou a aplicação de multas aos infratores.

É verdade que houve uma mudança de estilo na fala de Bolsonaro. No passado recente, ele ameaçou abandonar o Acordo de Paris, espalhou mentiras contra o movimento ambientalista e declarou que poderia trocar a saliva pela pólvora se Joe Biden chegasse à Casa Branca.

Ontem o capitão se disse “aberto à cooperação internacional” e adotou um tom dócil ao se dirigir ao novo presidente americano. Para seu azar, o democrata já havia deixado a reunião quando ele começou a rastejar diante da câmera.

A distância entre o discurso e a prática não foi o único problema que impediu o presidente de ser levado a sério. Numa reunião em que diversos líderes prometeram sacrifícios para reduzir as emissões de gases poluentes, Bolsonaro estendeu o pires e pediu dinheiro.

“Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata”, afirmou.

Só faltou apresentar a conta de US$ 1 bilhão em troca da preservação da Amazônia, como fez na véspera o ministro Salles.


Vera Magalhães: Jair sem Trumpinho

'Alvorada sem alambrado/ Pão sem leite condensado/ Sou eu assim sem você. Ema sem cloroquina/Dudu sem carabina/ Sou eu assim sem você.'

Na hora e meia em que esperou sua vez de falar sem convicção na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Joe Biden, Jair Bolsonaro bem poderia cantarolar essa versão negacionista do sucesso de Claudinho & Buchecha.

Não que o clássico do funk carioca mereça ter seus versos solares e meigos substituídos pelo lamento do presidente brasileiro sobre o isolamento a que foi relegado no tabuleiro mundial depois que seu amigo Trumpinho foi derrotado nas urnas. Mas sua visível falta de ambiente na reunião em que teve de ler, a contragosto, um papel com o contrário daquilo que pensa e pratica em termos de política ambiental me lembrou os versos “Eu não existo longe de você/ E a solidão é meu pior castigo”.

Antes, quando era Trump, e não Biden, o anfitrião, Jair, família e agregados eram recebidos com alegria galhofeira. A caravana dos puxa-sacos exóticos dos Trópicos vestia boné, ganhava tapinha nas costas e se achava a tal. Podia mandar às favas os indicadores vergonhosos de desmatamento e queimadas. Afinal, primo Donald não estava nem aí para esse mimimi.

Agora, as coisas mudaram. Biden, vejam que amolação, resolve fazer uma Cúpula do Clima e, ainda por cima, exigir metas concretas. Jair não pode nem ler o mesmo discurso de sempre, como gostaria, porque os chatos do Itamaraty, depois da saída do Ernesto, vêm estragar o almoço do costelão e dizer que talvez seja melhor propor alguma coisa com cara de concreta.

Então toca colocar terno e gravata verde (ainda se tivesse o escudo do Palmeiras, talkey?) e fazer cara de sério ao lado do Salles, esquecer a Anitta e desenterrar aquele discurso “comunista” dos governos do PT e do PSDB.

Bolsonaro deve ter ensaiado diante do espelho para repetir palavras como biocombustíveis, biomassa, bioma e biodiversidade sem intercalar com um palavrão ou falar que aquilo é tudo coisa de maricas.

Do lado de lá da tela do computador, Biden (que até saiu da sala, dado o climão da Cúpula do Clima) e os demais líderes mundiais devem ter achado certa graça em ver o antes destemido presidente brasileiro prometer com a voz baixinha dobrar recursos para a fiscalização de crimes ambientais, uma semana depois de mandar exonerar o superintendente da Polícia Federal que ousou combatê-los por meio de uma operação.

Até Trump, onde quer que esteja curtindo seu merecido oblívio, deve ter soltado uma gargalhada e exclamado: “Quem é esse cara?”. Nem parecia aquele que até ontem estava disposto a lhe fazer companhia na bravata de abandonar o Acordo de Paris. Que deixou de sediar a COP-25, que se recusou a conversar com a diretora do Greenpeace, Jennifer Morgan, quando a encontrou em Davos em 2019. Seria o mesmo cara? Aquele do filho de boné que não sabe falar inglês, mas queria ser embaixador?

Eventos como os desta quinta-feira evidenciam a absoluta inadequação de alguém como Jair Messias Bolsonaro para presidir o Brasil, e de auxiliares como Ricardo Salles para gerir qualquer coisa que não seja destinada à destruição.

Ao conseguir, em três minutos de fala, prometer o oposto do que praticou ao longo de dois anos e quatro meses de desgoverno, Bolsonaro assinou diante de um mundo livre do trumpismo o atestado do desastre que é sua gestão.

Resta verificar o dia seguinte da Cúpula em que o Brasil e seu presidente ficaram nus diante do mundo com sua incompetência. Parece difícil que, diante de todas as evidências de que Bolsonaro apenas fez malabarismo retórico para pedir um trocado no final, Biden esteja disposto a financiá-lo. Assim como Trump só enrolava o “amigo”, os Estados Unidos sob nova direção devem continuar a dar chá de cadeira no Brasil.


Alon Feuerwerker: O cachorro do Pavlov

Os reflexos condicionados contra uma frente ampla de oposição

Na culinária e na política, nem sempre quem faz o bolo come o bolo. Em 1992, o PT ofereceu a base popular para depor o presidente Fernando Collor de Mello. Certa hora, achou-se que Luiz Inácio Lula da Silva emergiria do processo imbatível em 1994. Mas Fernando Henrique Cardoso reagrupou as tropas dispersas do collorismo, pegou o trem do Plano Real e matou o sonho do PT de surfar a onda do impeachment rumo ao poder.

Deu-se o mesmo na queda de Dilma Rousseff. PSDB e PMDB (hoje MDB) decretaram o fim do quarto governo petista, reuniram-se em torno de Michel Temer e projetaram poder ir adiante no tempo. Mas a entropia trazida pela Lava-­Jato foi além da conta e acabaram ambos tragados pelo tornado bolsonarista. O antipetismo trouxe junto a antipolítica e o antitudo, e tucanos e emedebistas viram o bolo escapar na undécima hora.

Esse fenômeno não se dá só em situações contaminadas por derrubadas de governos. Acontece também em transições normais, decorrentes de eleições convencionais. Quantas vezes se viu a polarização eleitoral, antes resiliente, ser atropelada por um azarão de última hora? Aí o oposicionista que fez de tudo e consumiu as melhores energias para minar o incumbente fica na poeira. Pois se tem algo difícil de combinar antecipadamente com o eleitor é o resultado de uma eleição.

“Na pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente”

Assiste-se agora à ofensiva da esquerda e da ex-direita, rebranded como centro, contra Jair Bolsonaro. No momento, o objetivo de ambas é enfraquecê-lo para derrotá-lo na urna. Até porque Hamilton Mourão não tem sido, por enquanto, um replay de Itamar Franco ou Michel Temer. Não dá esperanças aos políticos hoje excluídos do poder. Nem esses andam dispostos a cozinhar o bolo e, de novo, ficar a ver navios. E Bolsonaro vai navegando…

Mas os mares andam cada vez mais turbulentos. Inclusive por certos incômodos que a condução governamental desencadeou e fez crescer na pandemia. Um deles, importante: pela primeira vez a elite sente algo parecido com as gentes do povão quando ficam doentes e não têm certeza de que vão encontrar um leito vazio de hospital ou UTI.

Atenção, eu disse “algo parecido”. Mesmo hoje, continuam situações no limite incomparáveis.

Na tempestade da pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente, mas sempre com um olho no peixe, Bolsonaro, e outro no gato, o aliado de momento e já garantido adversário de amanhã. E, ao contrário de situações históricas anteriores, desta vez nem tentam disfarçar. Não é mais um jogo de dois, bolsonarismo e antibolsonarismo, ou petismo e antipetismo, mas de três.

Jogo de três é sempre mais complicado de operar. Se até o cachorro do Pavlov aprendeu, desenvolveu reflexos condicionados, não é difícil supor que os políticos também tenham aprendido. De viver, estudar ou ouvir falar, tanto faz. Entrar de gaiato numa “frente ampla” para confeitar o bolo e correr o risco de ficar sem nenhum pedacinho dele na hora de comer talvez não atraia mais tantos incautos como no passado.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


'Segurança jurídica é elemento de importância quase espiritual', diz advogada

Em artigo publicado na revista mensal Política Democrática Online, a também consultora legislativa do Senado avalia decisão envolvendo caso Lula

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

“Vivemos tempos difíceis e nossa democracia não caminha a passos largos, mas, sempre teremos no devido processo uma das mais importantes armas contra o arbítrio”. A declaração é da consultora legislativa do Senado Federal em direito penal e processo penal, Juliana Magalhães, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril (30ª edição).

Na avaliação dela, é preciso considerar que “a segurança jurídica é um elemento de importância quase espiritual para as nações, pois o homem toma decisões diuturnas com base no seu resultado futuro dessas decisões”.

Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

Mestre em direito e políticas públicas, especialista em direito processual e sócia do escritório Trindade Câmara Advogados, Juliana analisou os aspectos processuais da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin no habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Com a decisão de Fachin, o ex-presidente Lula continua elegível. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (18/02/2020)

Incompetência

Fachin declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento de ações penais (Triplex de Guarujá, sítio de Atibaia, sede do instituto Lula e doações ao mesmo instituto) em desfavor do ex-presidente, determinando a remessa daqueles autos ao Distrito Federal.  

No dia 15 de abril, o STF decidiu rejeitar o recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) que buscava reverter a anulação das condenações de Lula impostas pela Justiça Federal do Paraná, na Operação Lava Jato.

Além de Fachin, sete ministros (Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso) votaram pela rejeição do recurso e três pela aceitação (Nunes Marques, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux).

Com a rejeição do recurso, as anulações das condenações foram mantidas, e Lula continua elegível.

“A decisão do ministro [Fachin], tal como se tornou comum na comunidade jurídica, causou estranhamento”, afirma Juliana. “Não em razão da matéria de fundo, isto é, se, de fato, não há correlação entre os fatos narrados naquelas ações e os diversos episódios de corrupção em desfavor da Petrobrás, cujo mérito não será objeto do artigo”, ressalta.

Menoscabo

No entanto, segundo ela, o problema da questão são as sucessivas manifestações de menoscabo em relação às normas processuais penais pela justiça brasileira, especialmente pelo STF.

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

“O Estado Democrático de Direito deve estar baseado no devido processo legal, conquista da civilização moderna que sabe, com razoável previsibilidade, a sequência dos atos processuais e suas consequências”, assevera a consultora legislativa.

A análise de Juliana pode ser vista, na íntegra, na versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

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