Lula [Luiz Inácio Lula da Silva]
Governo Lula: FAP realiza webinar sobre rumos da economia
Comunicação FAP
A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) realizará, nesta quarta-feira (26/4), a partir das 19 horas, webinar sobre os rumos do governo Lula na economia. O evento online será transmitido em tempo real, no site e nas redes sociais (Youtube e Facebook) da entidade, para todas as pessoas interessadas.
Clique aqui e veja série de eventos da FAP
Nova obra destaca propostas para desenvolvimento com inclusão social
Participam do debate o economista Benito Salomão, conselheiro da FAP e doutor em economia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e a ex-presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) Vanessa Petrelli, que também foi secretária municipal de Agricultura e Abastecimento de Uberlândia. Os dois são professores de economia e relações internacionais na UFU.
Otaviano Canuto, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University, também está confirmado para o debate. Ele ainda é professor afiliado na Universidade Politécnica Mohamed VI e do Center for Macroeconomics and Development em Washington.
A mediação é de Cezar Rogelio Vasquez, engenheiro de Produção pela UFRJ, mestre em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ e membro do Conselho Curador da FAP.
Estadão | Pesquisadores lançam propostas para retomada do desenvolvimento com inclusão social
Correio Braziliense | Livro debate desenvolvimento em várias frentes técnicas e ideológicas
Revista online | Marcelo Madureira: “Não tenho ilusão em relação ao governo Lula”
Comunicação FAP, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição)
O ator e humorista Marcelo Madureira, que ficou conhecido por integrar o programa Casseta & Planeta, diz que as “artes não têm componente ideológico de estímulo ao ódio” e afirma que o “humor é uma espécie de crítica humorada sobre fatos e pessoas”. Ele, que também é empresário de comunicação digital, posiciona-se contra o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, que está em discussão no governo e no Congresso, e defende a autorregulação das mídias digitais.
“Regimes autoritários tendem a fazer esse tipo de controle, com o qual é preciso ter muito cuidado”, afirmou Madureira, em entrevista à 52ª edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), em Brasília. A entidade é vinculada ao Cidadania. Ele acredita que o desenvolvimento da inteligência artificial e de várias ferramentas tecnológicas poderão reduzir o impacto das notícias falsas na sociedade.
Apesar de ter declarado voto no presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Madureira diz ser favorável à formação de uma ampla frente democrática. “Sou contra o autoritarismo de extrema direita ou de extrema esquerda. Não tenho qualquer ilusão em relação a esse governo, fora de que ele garanta a existência do regime democrático”, afirmou. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Clique aqui e veja outros artigos da 52ª edição da revista online
Política Democrática (PD): Existe um impasse entre pessoas que criticam o que chamam de “politicamente correto” e os que entendem que é preciso, sim, usar a linguagem de forma responsável em qualquer situação. Qual a sua opinião sobre a crítica ao que parte da sociedade classifica como politicamente correto no Brasil?
Marcelo Madureira (MM): Acho que existe um certo exagero com relação a essa política do politicamente correto, que acaba criando uma espécie de censura não institucionalizada sobre os conteúdos das pessoas, porque, muitas vezes, certas colocações, certas coisas gravadas, ditas ou escritas, são colocadas fora de contexto e acabam gerando uma enorme distorção, como as políticas de cancelamento, junto a essas políticas identitárias que existem hoje em dia. Não que eu seja contra política identitária, mas acho que elas tendem a ser mais políticas autoritárias que identitárias. Então, as pessoas defensoras do politicamente correto partem do pressuposto – por exemplo, no nosso caso dos humoristas – de como se não tivéssemos nenhum princípio de ética e profissional, o que faz [pensar] que a gente fala qualquer coisa ou ofenda qualquer tipo de pessoa ou de conjunto de pessoas que se possa imaginar – étnicos, políticos, religiosos – gratuitamente. Na verdade, o humor não quer ofender ninguém; ele quer fazer as pessoas rirem. O humor é uma coisa que o ser humano inventou para rir de si mesmo, rir das nossas idiossincrasias, das nossas limitações, da nossa arrogância, da nossa hipocrisia. O humor sempre teve uma certa. Aqueles que são objeto do riso, do humor, da piada se dizem ofendidos, quando, na verdade, você apontou que o rei está nu, uma realidade que todo mundo vê, mas não tem os canais - digamos assim, um canal humorístico - para falar sobre aquilo. Não digo nem denunciar, mas comentar aquilo, e aquilo tem um impacto na sociedade, uma repercussão. O humor é uma espécie de crítica humorada sobre fatos e pessoas, e isso só tem sentido se essas coisas, de fato, acontecerem. Por isso, eu, pelo menos, como humorista, sempre tive o cuidado de fazer piadas e não criar fatos falsos – fazer piadas sobre coisas que não são verdade, que não estão acontecendo. A grande preocupação que a gente tem é saber o que as pessoas estão falando, comentando, e fazer piada sobre isso.
PD: Então, o senhor não considera que parte de humoristas – ou de pessoas que se dizem humoristas –, de alguma maneira, pode reforçar, por exemplo, questões contra a comunidade LGBTQIA+ e pessoas negras? O senhor fez uma ressalva, dizendo que não é contra as políticas identitárias, mas, considerando esse mercado, algumas pessoas que se apresentam como humoristas não se atropelam?
MM: Já que você falou em termos de mercado, vamos tratar a questão economicamente. Achei muito correta essa sua colocação. Do lado da oferta, hoje você tem, de fato, uma quantidade de humoristas – de pessoas que se dizem humoristas, se dizem engraçadas – que falam as maiores barbaridades, inclusive de forma chula, uma coisa gratuita, com uma agressividade. Não sou moralista, muito pelo contrário, mas, usando palavras chulas, inadequadas, achando que são engraçadas. Não que você não deva usar, eventualmente, palavrão. O que consagra o humorista é a qualidade do trabalho dele. Qualquer um pode se autointitular humorista, falar coisas que lhe pareçam engraçadas ou mesmo usá-las de má-fé, em um pretenso humor para ofender, ridicularizar e avacalhar pessoas, instituições, grupos. Isso ocorre. Não é que não possa ocorrer, mas acho que o grande filtro para isso é justamente a opinião pública. Confio muito no receptor, na chamada opinião pública. Temos uma visão muito soberba do público, achamos que o nosso público, de maneira geral, não sabe distinguir as coisas. No humor, se sabe quem são os grandes humoristas, que são realmente bons, e aqueles que são apenas ofensivos ou que estão a soldo, por receberem dinheiro de A, B ou C, para fazer humor chapa branca, humor oficial, que não tem nada a ver com humor. Isso está do lado da oferta. Do lado da demanda, existem muitas pessoas que se acham ofendidas, se acham ridicularizadas, mas isso fica a critério de cada um. Por exemplo, posso chegar para você e falar "bom dia", e você ficar ofendido com isso, achando que estou sendo irônico, zombando da sua cara, porque sei que você teve um péssimo dia ou está atravessando um momento difícil. Então, tem má-fé também. Estou tentando relativizar as coisas para não cair, justamente, na polarização, já que, no Brasil e no mundo, tudo é polarizado, de maneira geral. Existem questões e reivindicações que são pertinentes, e outras que são absolutamente impertinentes, que não têm nada a ver. Por isso, acredito no bom senso do público. Então, o politicamente correto me parece um exagero porque eu, pelo menos, no meu trabalho de humorista, tomo cuidado de tentar ser engraçado. Jamais tive a intenção de ofender qualquer segmento da sociedade – políticos, antropólogos ou feministas, por exemplo –, com o objetivo de apenas ofender. Isso não tem, isso é discurso de ódio, discurso ofensivo. Isso não é trabalho de humorista. Isso é uma atitude indigna. Eu tento fazer graça.
PD: O senhor citou trabalho de humorista. Qual é o papel de um profissional que trabalha com arte do humor em uma democracia e em relação aos governos? Como o humor sobrevive mesmo em casos de governos autoritários de extrema-direita, como ocorreu durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro?
MM: O papel de todo artista, primeiro, é realizar a sua arte, avançar em relação aos limites estéticos e éticos da sociedade, propor novidades, surpreender. O artista é aquele que surpreende a sua plateia, de maneira agradável, lúdica, divertida ou crítica, no caso do humor. Isso é muito importante em todos os regimes. Eu mesmo e vários outros humoristas, durante o regime militar, jamais abrimos mão do papel crítico, aliás, com muita coragem e risco físico. Muitos foram presos, espancados, tiveram limitação ao realizar seu trabalho e fazer seu ganha-pão, mas o artista de verdade nunca se deixa intimidar, principalmente em regimes totalitários, em ditaduras. Sempre os humoristas nunca se intimidaram. É óbvio que existe o medo, como disse Millôr Fernandes. O medo sempre existe, mas também existe aquela necessidade de você, por meio de sua arte, mostrar o que você pensa, o que está errado. Não só em uma democracia, mas em qualquer tipo de regime, sobretudo nos regimes autoritários, é fundamental o exercício das artes. Em uma democracia, é preciso realmente entender o que é liberdade de expressão, mas, ao mesmo tempo, como criador, tem que saber que a própria liberdade de expressão tem limites. Artista não faz apologia de genocídio ou de perseguições raciais, preconceitos de maneira geral, de qualquer natureza, ou mesmo declarações que estimulem o ódio. Isso não é a ideia das artes. As artes não têm esse componente ideológico de estímulo ao ódio, bem pelo contrário. Há estímulo às liberdades, mas por meio da criatividade, para agregar massa crítica, conteúdo relevante para o conjunto da sociedade, e isso vale para todo tipo de artista, do palhaço de circo ao diretor de cinema. Em uma democracia, isso é muito bom e só estimula o ambiente democrático.
PD: Considerando justamente esse ambiente democrático e que o senhor tem empresa de comunicação digital, qual a sua avaliação sobre a proposta batizada como PL das Fake News? Qual é o limite entre o combate à desinformação, praticada por meio de mentiras ou informações fora de seu contexto, e o cerceamento à liberdade de expressão?
MM: Nós precisamos, em qualquer tipo de regime, ter muito cuidado com as legislações, porque elas podem virar não um instrumento de Estado, e, sim, um instrumento de governo. Usa-se legislação para perseguir A, B ou C, enquadrando essas pessoas na legislação que estabelece as normas de registro do que é aceitável e do que não é. Regimes autoritários tendem a fazer esse tipo de controle, com o qual é preciso ter muito cuidado. A princípio, sou contrário a esse tipo de proposta. Acredito muito no bom senso e no caráter das pessoas. Por outro lado, as fake news sempre existiram, antes como boato, mentira. Com a revolução tecnológica, em nosso mundo, todo digitalmente conectado, as notícias falsas correm muito mais rápido do que as verdadeiras. Esse é um dos grandes desafios. Como a sociedade pode ficar protegida da difusão de notícias falsas? Não tenho resposta ainda. Acredito que, com o desenvolvimento da inteligência artificial e de várias ferramentas ao longo do tempo, conseguiremos não acabar com fake news, mentiras, mas fazer com que elas não afetem tanto a opinião pública, nem sejam aceitas de forma gratuita. Com o avanço da tecnologia e acesso cada vez maior, as pessoas ficam sujeitas a fake news, mas também à educação, ao aprendizado. Elas tendem a ter um preparo intelectual maior, capaz de distinguir o falso do verdadeiro - aquilo que é crível daquilo que não é crível. Sempre desconfio das coisas. O interesse do conjunto da sociedade é que a internet seja um meio de troca de ideias, e não de ataques e mentiras. Acredito que, com o tempo, isso vai melhorar. Não vai acabar, mas vai melhorar bastante.
PD: Parte da sociedade diz que haverá risco de retrocesso se a proposta for discutida em comissão especial, como defendem as empresas do setor de publicidade digital. O senhor acredita que o caminho é a autorregulação das plataformas de mídias digitais, que também já foi sinalizada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes?
MM: Acredito muito na autorregulação das mídias digitais. No próprio escopo da publicidade no Brasil, há órgãos que não são de Estado, mas que são autorregulatórios, assim como há os conselhos de medicina, a OAB e vários conselhos profissionais que, de certa forma, protegem e regulam a atividade dos respectivos trabalhadores e, eventualmente, punem. Na área da publicidade, por exemplo, existem várias limitações. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) age com muita ênfase e tem muita credibilidade. Praticamente, anúncios de tabaco não existem mais. Anúncios de bebidas alcoólicas são extremamente controlados. É autorregulação. São os profissionais de cada área, sérios e de boa-fé, que têm muito cuidado naquilo que estão fazendo. Por isso, prefiro realmente acreditar nesse caminho, na autorregulação, porque quando um negócio vem de cima para baixo, de fora para dentro, há o risco de ser transformado em instrumento de governo, instrumento de política, inclusive, de política econômica, de competição, que pode ser muito danoso, por favorecer os grandes.
PD: Caso o Estado regule as mídias digitais no Brasil, o senhor também vê risco de essa prática se estender para a regulação dos meios de comunicação?
MM: Exatamente. A princípio, a autorregulação é o melhor caminho, porque pressupõe que o cidadão tem direitos e deveres. Aqui no Brasil, as pessoas, quando se fala de cidadania, ficam muito preocupadas com a questão dos seus direitos, mas se esquecem um pouco dos seus deveres. Um cidadão tem que ser responsável, deve ter consciência de seus deveres para com o conjunto da sociedade, inclusive deveres no exercício da sua profissão, do seu trabalho. Acredito muito que, a princípio, a maior parte das pessoas têm senso de responsabilidade.
PD: Na avaliação do senhor, neste momento, qual é o principal desafio do país, que derrotou nas urnas um candidato de extrema direita e que elegeu um presidente que promete ser mais progressista? Até que ponto o novo governo, na sua avaliação, de fato já está conseguindo governar?
MM: O meu medo é as pessoas ficarem decepcionadas ao verem entrevista com um humorista falando de coisas muito sérias e importantíssimas. Sou cria do antigo Partidão, do glorioso PCB, e isso muito me orgulha. Fui educado politicamente pelo Partidão e, por isso, tenho muito sintonia com o Cidadania, porque o vejo como o herdeiro político do antigo Partidão, com todos os seus defeitos e virtudes. Somos todos humanos. Tenho muitos amigos. Hoje sou liberal de esquerda, ou um social-democrata de esquerda, para ser mais claro - de que costumo ter uma visão da história como um todo. No Brasil, 5% da população vive parasitariamente de 95% do resto dos brasileiros, que sobrevivem em condições cada vez mais difíceis. Isso é uma questão histórica que precisa ser rompida. Desses 5%, inclusive não é uma questão ideológica, dois terços deles são funcionários públicos municipais, estaduais ou federais. Para se ter uma ideia, grande parte do empresariado brasileiro é dependente do Estado. No total, 40% do PIB brasileiro vêm do Estado. Esse sistema, que no Brasil já é secular, precisa ser rompido, porque é uma sociedade que não vai dar certo, principalmente dadas as mudanças que o mundo vem atravessando. Hoje o ser humano se confronta com uma questão fundamental, que se retroalimenta. É a questão da concentração de renda, cada vez maior e mais aguda. Outra questão preocupante é o desequilíbrio ambiental. A concentração de renda e o desequilíbrio ambiental se alimentam, e isso está colocando em risco, agora, a humanidade. É preciso romper com isso e inventar uma nova forma de viver, um novo modus vivendi, que eu não sei qual é. O socialismo real se mostrou disfuncional, o capitalismo também não responde às demandas da sociedade. Não tenho resposta para essa pergunta hoje. Essa é a pergunta que se coloca para a humanidade. O Brasil está inserido nesse contexto. Só que, como tudo no Brasil, as coisas são mais arraigadas. O Brasil é um dos países que têm a maior concentração de renda do mundo. Tem uma população enorme, imensa, que cada vez mais vive à margem da economia, à margem de tudo, e sobrevive com grande dificuldade. Em um país como o nosso, que tem dimensão continental, com recursos naturais enormes, isso é um despautério, um contrassenso. É preciso que a gente entenda e compreenda a necessidade de mudança, de modernização do Brasil. Cito sempre a obra de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, escrita em 1958. É um livro enfadonho, difícil de ler, mas quem consegue ler consegue realmente compreender o Brasil de hoje em dia. Porque o Brasil de hoje não tem nenhuma diferença do Brasil do Império, da República Velha ou de Getúlio Vargas. É um país injusto e excludente, onde a miséria de grande parte da população é cada vez maior. Se continuar a se repetir esse modelo, esse estado de coisas, não consigo ver nenhum final feliz para essa história. Pelo contrário, vejo possibilidade de desmantelamento, de colapso geral muito grande, haja vista, por exemplo, as manifestações de 2013. Chega-se à anomia, que é o desmantelamento, a ruptura, o tecido social se desmancha, mergulhando a sociedade num caos, e caos começa e não tem data para acabar. Lembro o exemplo do Haiti, que é o único país em que aconteceu exatamente isso no século 18 e até hoje, no século 21, não conseguiu se recuperar do caos social. Evidentemente, o Brasil é um país enorme, de dimensões continentais, e tem papel extremamente importante no mundo, mas isso não nos salva dessa perspectiva. O problema do Brasil é justamente isso. Brasileiros mais privilegiados têm que pensar sobre isso, meditar sobre isso profundamente e, como digo, é a obrigação do cidadão participar da vida política, da vida social, da vida comunitária, e perceber que, se a gente não fizer mudanças estruturais relevantes no país, isso tudo pode inviabilizar a própria nação brasileira. Isso é um problema grave. E é preciso que se debata isso, se examine esse assunto, porque eles não se limitam só às fronteiras brasileiras. Essas questões se impõem hoje para o mundo inteiro, para os povos da África, da Ásia, da Europa, do resto das Américas. A humanidade hoje tem desafios imensos, e a impressão que tenho do Brasil, principalmente da nossa classe dirigente, política, é que ela tem postura meio alienada dessas questões. Eles não conseguem, ou não querem, ver a complexidade e a profundidade dessas questões e ficam nas questões cotidianas menores, que não são nada frente aos desafios que temos que enfrentar. Os desafios da miséria do povo brasileiro, da falta de educação, da falta de saúde, da falta de infraestrutura, da falta de transporte, da falta de segurança, são imensos, e não tem soluções fáceis ou triviais. No Executivo, no Legislativo e no Judiciário, vejo limitação intelectual e falta de visão, de perspectiva histórica. Há um despreparo mesmo para enfrentar. Nem sequer passa pela cabeça deles. Não tenho ilusão em relação ao governo Lula - e votei no Lula. Mais que isso: fiz campanha para o Lula, apesar de ser um severo crítico de Lula e do PT. No entanto, sei compreender o movimento histórico. Nas últimas eleições, o que estava em jogo era a democracia. Fora da democracia, não temos salvação. Então, por isso, não só votei no Lula, como fiz campanha para o Lula. A batalha pelas instituições democráticas não é jogo jogado, não é caso encerrado. Ela se coloca ainda, na medida em que há hoje, no Brasil, uma extrema-direita muito maior do que imaginávamos, organizada, estruturada, que é muito maior do que a família Bolsonaro, infelizmente. Por isso, sou favorável à formação de uma ampla frente democrática. Sou contra o autoritarismo de extrema direita ou de extrema esquerda. Não tenho qualquer ilusão com relação a esse governo, fora de que ele garanta a existência do regime democrático. Do ponto de vista tático e estratégico, a luta pela democracia só vai ser feita por meio de uma ampla frente que abranja o maior número possível de pessoas, com diferentes pensamentos, mas que sejam efetivamente a favor do regime democrático. Meu grande temor é que o Brasil fique oscilando entre um governo não de esquerda, mas esquerdista, e um regime de extrema direita, fascista, totalitário, como o de Bolsonaro. Percebo que o caminho está no centro, a virtude está no centro, no equilíbrio, em romper essa polarização que existe não só no Brasil, mas no mundo inteiro, com ódio recíproco muito grande, e isso não é solução para nada.
Leia também
Revista online | Governabilidade do governo Lula no Congresso
Revista online | Inteligência artificial: o difícil desafio de enfrentar as ambiguidades
Revista online | Muito além da Selic
Revista online | Carnaval da democracia
Revista online | Lula e Banco Central: charge destaca impasse
Revista online | Regulação das mídias digitais: o que fazer?
Revista Online | Cinema = Arte + Tecnologia – Uma fórmula esquecida?
Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online
Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online
Nas entrelinhas: fusões partidárias fortalecerão ainda mais o Centrão
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Temos atualmente 28 partidos. Formalmente, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com um deputado, requer a fusão com o Patriota (quatro deputados) para formar o partido Mais Brasil. Solidariedade (quatro deputados) pede a incorporação do Partido Republicano da Ordem Social, o PROS (três deputados). O Podemos (12 deputados) solicita a incorporação do Partido Social Cristão, o PSC (seis deputados). Mas a movimentação mais importante é a federação ou fusão do PP (47 deputados) e do União Brasil (59 deputados), que resultará na formação da maior bancada da Câmara, com 106 deputados.
Dos 28 partidos e federações que concorreram nas eleições passadas, apenas 13 receberão recursos do Fundo Partidário em 2023, 15 não elegeram deputados federais, nem obtiveram votos suficientes para alcançar a chamada cláusula de desempenho. Os partidos que sobreviveram estão canibalizando os demais. As maiores bancadas na Câmara são do PL, de Jair Bolsonaro, com 99 deputados, e da federação PT-PV-PCdoB, com 81 deputados, que protagonizam a polarização entre o governo Lula e a oposição.
A fusão ou formação de uma federação do PP, liderado pelo ex-ministro da Casa Civil Ciro Nogueira e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), com o União Brasil, sob comando do deputado Luciano Bivar (PE) e o ex-prefeito de Salvador ACM Neto, consolida a hegemonia do Centrão no Congresso, alicerçado no controle sobre a distribuição de emendas do relator no Orçamento da União.
Essa hegemonia no Congresso cria condições mais favoráveis para o Centrão arrancar concessões do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seja na ocupação de cargos do governo, seja na aprovação de seus projetos, que geralmente caminham lado a lado. Além disso, o controle sobre as emendas, ao lado das mordomias e privilégios dos detentores de mandatos, além dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, desequilibrarão a disputa nas eleições municipais.
Outras fusões e incorporações também deverão ocorrer e compor um espectro partidário mais reduzido e de perfil político mais claro. Considerando o perfil das legendas, a direita mais ideológica será representada pela aliança do PL com o Republicanos, sob forte influência do ex-presidente Jair Bolsonaro, cuja capacidade de transferência de votos nas eleições ficou provada em 2018, 2020 e 2022.
MDB e PSD, com 42 deputados cada, são as forças mais importantes de centro e centro-direita, respectivamente, o que deixa muito pouco espaço para o surgimento de um partido social-liberal, ao centro. PSB, PDT e a Federação Rede-PSol ocupam o espaço da centro-esquerda, ao fazer aliança com Lula. A federação PSDB-Cidadania, com 18 deputados, saiu muito enfraquecida da eleição e vive uma indefinição em relação ao rumo a tomar, uma vez que a opção de ampliação da federação com o Podemos não se consolidou e o projeto da “terceira via” subiu no telhado, com a participação de Simone Tebet no governo Lula. Além disso, suas bancadas se deslocaram da centro-esquerda para a centro-direita.
Crescer ou crescer
Quando Lula se refere à “cooperativa de partidos”, está passando recibo de que essa movimentação pode se tornar uma dor de cabeça nesse começo de mandato. A grande maioria do Congresso se move por interesses, velhas práticas como o patrimonialismo, o fisiologismo e o clientelismo estão vivíssimas. Tudo converge para as emendas de relator, nas quais os verdadeiros autores não são conhecidos. Mesmo nos partidos mais programáticos, o transformismo se impôs durante a gestão de Lira, reconduzido ao cargo com amplíssima maioria. Não existe mais “baixo clero” porque, agora, quem manda são suas principais lideranças, muitas das quais desconhecidas do grande público.
Nesse contexto, Lula navega em meio à calmaria que antecede a borrasca. Haverá uma queda de braço entre o governo e a oposição, na qual o Centrão será o fiel da balança. A mão pesada do governo sempre influencia as votações, ainda mais com um presidente recém-eleito, mas isso depende da preservação da popularidade de Lula, que venceu por estreita margem e enfrenta uma oposição radical nas redes sociais, que já demonstrou ser capaz de ganhar as ruas.
A maior ameaça à governabilidade é a situação da economia, principalmente o baixo crescimento, que inviabiliza as promessas de campanha de Lula. As medidas tomadas pelo governo até agora, tanto na área econômica — como a cobrança de impostos sobre combustíveis — quanto na área social — caso do novo Bolsa Família —, não têm sustentabilidade enquanto a taxa de juros estiver em 13,75%.
Com um crescimento do PIB de 2,9% em 2022, o mercado começa a projetar uma inflação da ordem de 4,9% para este ano, bem abaixo do último Boletim Focus, que era de 5,9%. Se isso ocorrer, o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, estará na berlinda novamente, porque a taxa de juros se tornará uma ameaça ainda maior ao governo Lula. Não por acaso, a artilharia petista novamente se voltou contra ele, porém, sua blindagem é o Centrão.
Revista online | Lula e Banco Central: charge destaca impasse
JCaesar, chargista*, para a revista Política Democrática online (52ª edição)
Em nova charge, JCaesar aborda o imbróglio entre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o Banco Central, comandado por Roberto Campos Neto.
O assunto ganhou ainda mais relevância nas últimas semanas depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticar a decisão do Copom (Comitê de Política Monetária) de manter a taxa de juros a 13,75% pela quinta vez seguida. Segundo ele, a decisão influencia no crescimento do país.
Clique aqui e veja outros artigos da 52ª edição da revista online
A guerra entre favoráveis e contrários ao presidente se acirrou também depois de ele afirmar que iria cobrar o Banco Central . Lula ainda chamou a independência da instituição de “bobagem”.
Além da fixação da taxa de juros, o Banco Central é responsável pela emissão de moedas e atuação no câmbio e em modalidades como controle de garantias – depósitos compulsórios e mais).
A independência do Banco Central, discutida por mais de 30 anos, ocorreu para evitar interferência política nas decisões econômicas, além de intercalar os mandatos do presidente da instituição com o do presidente do país.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por exemplo, fica no posto até o fim do ano que vem, no meio do governo Lula. Ele tomou posse no cargo em fevereiro de 2019, logo após reunião privada com o então presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), dentro do Palácio do Alvorada.
Leia também
Revista online | Regulação das mídias digitais: o que fazer?
Revista Online | Cinema = Arte + Tecnologia – Uma fórmula esquecida?
Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online
Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online
Segurança Pública de Lula mira arsenal pesado de CACs e pode cassar licenças de clubes de tiro
Alex Mirkhan*
O governo de transição planeja conter o fluxo de armas de fogo e munições de civis para grupos criminosos e milícias privadas. Coordenador da equipe de justiça e segurança pública, o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA) tem falado em revogar decretos de Bolsonaro para iniciar um plano de desarmamento da população.
Nesta quarta-feira, dia 23, o político maranhense voltou a atacar os decretos e portarias editados pelo governo de Jair Bolsonaro, que que fizeram o número de armas nas mãos dos civis quase triplicar, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz.
“Existe uma decisão do presidente Lula de mudar a legislação que foi mutilada nesse período bolsonarista no sentido de voltarmos ao controle responsável sobre armas. O que temos em debate é como vai ser a regulamentação dos CACs [caçadores, atiradores e colecionadores] em relação aos arsenais que foram adquiridos nesse período em que reinou o vale-tudo. Daqui pra frente não há dúvidas de que as portarias, as normativas que foram editadas inclusive contrariando a lei serão revistas”, adiantou Dino em entrevista concedida à imprensa no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em Brasília.
Leia também: Armas no governo Bolsonaro: cresce risco à população e também às polícias, alerta pesquisadora
Apesar de ainda reunir propostas e estratégias, o governo Lula não deve promover mudanças drásticas de imediato para a maior parte das pessoas que já possuem armas. O foco será cortar excessos nas liberações dadas aos CACs, aumentar a fiscalização sobre clubes de tiro e recolher armas de grosso calibre.
Sob Bolsonaro, cada CAC pôde adquirir até 15 fuzis e 6 mil munições por ano, ampliando os arsenais de civis tanto em quantidade quanto em calibre. Ao mesmo tempo, os clubes de tiro se proliferam pelo Brasil e mostraram sua influência política e financeira, sendo um dos principais financiadores de protestos pró-armas realizados nos últimos quatro anos.
“A gente estima que tenha entrado ali, no mínimo, 1,2 milhão de armas só na mão de civis, dezenas de milhares de fuzis, muitos dos quais que já se sabe hoje estão sendo comprados por laranjas e desviados para o crime organizado, para milícias”, aponta Bruno Langeani, gerente de projetos do Sou da Paz.
Leia mais: 25N: Dia de luta pelo fim da violência às mulheres, veja a origem da data e os desafios atuais
Ele também refuta ilações feitas por grupos armamentistas que têm difundido desinformação sobre a abrangência dos planos do governo Lula para o tema. Inclusive, um dos desafios previstos pelo próximo governo passa por campanhas de comunicação e conscientização, tentando evitar o pânico e a resistência às proposições.
“Ninguém está defendendo a proibição da compra de arma, o fim do tiro esportivo, não tem nada a ver com isso. Agora, esses excessos absurdos que foram criados, permitindo um único CPF ter 60 armas, comprar 180 mil munições, são coisas incompatíveis com o estado de direito e com a garantia de promoção de segurança pública prevista na Constituição Federal”, afirma.
Mudanças exigirão nova postura das forças de segurança
Com o apoio da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, pretende-se verificar a frequência de integrantes de clubes de tiro, a comprovação de participação de atiradores esportivos em competições e outras medidas de controle sobre os arsenais já existentes.
Há a expectativa de que as ações sejam respaldadas por outras políticas de segurança pública, mais afirmativas do que pautadas pela repressão e o encarceramento em massa. É o que agrega Bella Gonçalves (PSOL-MG), eleita deputada estadual por Minas Gerais e membro da equipe de Cidades do governo de transição.
“Nós temos muitas armas nas mãos dos civis, talvez até mais do que nas mãos das forças policiais e isso é gravíssimo. Eu entendo que a gente vai ter que construir algumas medidas que foquem num modelo de segurança pública cidadã e consiga pensar em formas de estimular os civis a devolverem as armas, uma campanha de conscientização e a essa cultura de violência”, afirma a socióloga.
Você também pode se interessar: Revogar normas sobre armas é insuficiente para reverter quadro criado por Bolsonaro
Porém, as metas traçadas pelo governo de transição esbarram nas atribuições dadas ao Exército e à sua própria competência para cumpri-las. Além de controlar as autorizações dadas aos CACs, o braço terrestre das Forças Armadas também é responsável pelo cadastramento de armas e artefatos.
De acordo com Langeani, membros do Exército foram lenientes com as alterações de normativas feitas pelo governo federal e devem ser responsabilizados pelo crescimento de ocorrências envolvendo arsenais provenientes de CACs. Ele menciona como exemplos o aumento de ocorrências de fuzis dessa procedência sendo usados em roubos a banco e apreensões de armas de grosso calibre junto a integrantes de grupos criminosos com extensa ficha criminal pregressa.
“A nossa avaliação é que o Exército teve uma atuação vergonhosa nesse campo. A gente faz o acompanhamento de controle de armas e munições há décadas e sempre teve críticas sobre a qualidade da fiscalização das Forças Armadas, com casos de conflitos de interesse claro por militares que foram trabalhar na indústria de armas. Mas o pior de tudo foi ver o Exército dizendo ‘amém’ a todas as vontades que o governo eleito quis fazer”, enfatiza.
Atribuições do Exército podem ser revistas no futuro
O ex-governador do Maranhão Flávio Dino é o nome mais cotado até o momento para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública e já se reuniu, no dia 17 de novembro, com o atual ministro Anderson Torres. Além do tema das armas, sua equipe se debruça sobre outros cinco temas principais: Amazônia, homicídios, fronteiras, drogas e o papel das polícias, em especial da PRF (Polícia Rodoviária Federal). Um relatório deve ser divulgado até 12 de dezembro.
Dino também se reuniu nesta quarta-feira (23) com secretários de segurança pública estaduais, que foram convidados a participar da elaboração de planos de ação a partir de janeiro. Uma das preocupações já declaradas é com regiões que apresentaram uma explosão no número de clubes de tiro e armas regularizadas, que seriam incompatíveis com o número de caçadores, atiradores e colecionadores cadastrados.
“Um dos lugares onde mais cresceu o registro de armas e clubes de tiros foi a região Norte, que é a região que também teve a maior alta de homicídios nos últimos anos, na contramão do que tivemos no resto do Brasil. E quando a gente analisa o número de clubes de tiros por unidades da federação, vemos que há cidades muito pequenas com dois clubes de tiro, algo que de fato perguntar qual a intenção mesmo desse crescimento”, alerta o porta-voz do Sou da Paz.
Como meta de longo prazo, há também um anseio antigo de organizações da sociedade civil em reverter uma lógica que permaneceu imtacta após a redemocratização do Brasil após a ditadura militar (1964-85).
“O que o tiro esportivo tem a ver com a missão constitucional do Exército brasileiro, que é prioritariamente de defesa nacional? O que a caça, que na verdade nem é permitida no Brasil, tem a ver com a missão do Exército? É uma série de perguntas que o Brasil vai precisar enfrentar e a gente espera que, cada vez mais, para que isso seja unificado, centralizado e debaixo de um controle civil”, finaliza Langeani.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato
Nas entrelinhas: O recado que vem dos chilenos
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Por esmagadora maioria — 61,86% —, os chilenos rejeitaram a proposta de uma nova Constituição, que buscava estabelecer maiores direitos sociais e ampliar a democracia chilena. Apenas 38,14% do eleitorado votaram a favor do texto, com 99,97% da apuração oficial concluída. O resultado surpreendeu o mundo político e a própria mídia chilena. Com o voto obrigatório, 13 milhões de eleitores participaram do plebiscito, cujo objetivo era referendar a nova Constituição, em substituição à Carta de 1980, do regime de Augusto Pinochet, reformada durante o governo de Ricardo Lagos, em 2005.
O “Rechazo” da nova Constituição foi geral, vitorioso, inclusive, na Grande Santiago, onde a esquerda e a centro-esquerda sempre foram maioria. “Esse Chile não é apenas Santiago; não foi uma eleição municipal, para se falar em bairros ricos e pobres. Há um sentimento de unidade nacional que se impôs democraticamente. A esquerda mais identitária (de todos os tipos de identitarismo) fracassou em sua perspectiva hegemônica. Isso não se chama ‘progressismo’, já que parte dos progressistas não apoiou a opção apruebo”, destaca o historiador Alberto Aggio, professor titular de História da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Franca (SP), especialista na política chilena.
Segundo ele, a disjuntiva refundação versus pinochetismo fracassou, porque era uma leitura errada do sentimento da sociedade em seu conjunto. “Não houve, da parte da ‘nova esquerda’, apenas um erro de cálculo, de direção e de voluntarismo; Boric corre um sério risco se não entender o que aconteceu. Sua única opção ‘progressista’ era e ainda é um governo ‘mais amplo’, com apoio da ex- Concertación; permanece o sentimento de elaborar e aprovar uma ‘nova Constituição’, é um sentimento majoritário no país.”
Sua observação é muito importante diante do cenário eleitoral brasileiro, no qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é favorito, com uma narrativa voltada para o passado, ou seja, as realizações de seus dois mandatos, e uma agenda opaca em relação ao futuro, como quem deseja assumir o poder com carta branca para promover reformas políticas e institucionais. Ninguém sabe quais são essas reformas, a não ser que sejam deduzidas da autocrítica que o PT fez após o impeachment de Dilma Rousseff, o que não seria um bom sinal.
Agenda identitária
Até agora, a estratégia eleitoral de Lula está fundada no apoio eleitoral das parcelas mais pobres da população e de uma frente de esquerda, que rejeitou alianças ao centro nos maiores colégios eleitorais do país, todas viáveis quando Lula parecia imbatível. O erro da esquerda chilena foi esquecer as lições da crise do governo Allende e do golpe de Pinochet. A Convenção Constitucional autônoma, paritária, externa aos partidos e com uma maioria de independentes, que elaborou a nova Constituição, traduziu o “estallido social” de outubro de 2019 para o texto da nova Carta, na linha de ultrapassagem da democracia representativa, dita burguesa. Foi o erro.
A nova Constituição consagrava a paridade entre homens e mulheres em todos os cargos públicos; um “Estado plurinacional e intercultural”, reconhecendo 11 povos e nações (Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan, Selk’nam); direito à natalidade e ao aborto autônomos; Estado de bem-estar social, com educação, moradia, saúde, previdência, trabalho; a extinção do Senado e a água como bem inapropriável (a crise hídrica chilena é seríssima). Consagrava a utopia política, mas o passo foi maior do que as pernas.
A vitória de Gabriel Boric, jovem político de esquerda radical, parecia dar uma direção política mais permanente ao processo iniciado em 2019, mas o novo presidente, antevendo as dificuldades, assumiu um perfil mais conciliador, apesar da forte oposição à esquerda. A nova Constituição traduzia o desejo da esquerda chilena de refundar o país, mas essa não é a vontade da maioria dos chilenos. Está posto um novo problema, porque também não se pode voltar à velha Carta de Pinochet.
A situação do Chile serve de advertência para a frente de esquerda que se formou em torno do ex-presidente Lula. O presidente Jair Bolsonaro (PL) faz campanha com uma agenda emergencial, alavanca sua candidatura com o pacote de bondades insustentável fiscalmente. Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) tentam oferecer alternativas de futuro, sem os mesmos lastros de poder e/ou eleitoral dos que lideram a disputa. A mesma coisa faz Felipe D’Ávila (Novo) e Soraya Thronicke (União Brasil). Lula precisa apresentar sua alternativa para o futuro e rechaçar a veleidade de que o Brasil dará uma grande quinada à esquerda. O que as pesquisas estão mostrando é outra coisa.
Nas entrelinhas: Condenação de procuradores pode virar bumerangue
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A Segunda Câmara do Tribunal de Contas da União (TCU) condenou ontem, por unanimidade, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, o ex-procurador Deltan Dallagnol e o procurador João Vicente Romão a ressarcir os cofres públicos por dinheiro gasto pela força-tarefa da Lava-Jato com diárias e passagens. Segundo os ministros da Corte, houve prejuízo de R$ 2,8 milhões em gastos da operação, valor que deve ser restituído ao Tesouro. Técnicos do tribunal haviam recomendado arquivar o processo.
Para o ministro do TCU Bruno Dantas, relator do processo, e para o subprocurador-geral do Ministério Público de Contas, Lucas Furtado, o modelo adotado na operação permitiu o pagamento “desproporcional” e “irrestrito” de diárias, passagens e gratificações a procuradores, com ofensas ao princípio da impessoalidade, em razão da ausência de critérios técnicos que justificassem a escolha dos procuradores que integrariam a operação.
A decisão é mais um capítulo da “desconstrução” da Lava-Jato, que culminou na anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com base no princípio do juiz natural, sustentado pela defesa do petista desde quando o ex-presidente começou a ser investigado pelo então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro.
Principal referência da operação, Moro teve sua imparcialidade como magistrado colocada em xeque quando aceitou o convite do presidente Jair Bolsonaro (PL), recém-eleito, para ser o ministro da Justiça, e abandonou a toga. Ambos acabaram rompendo em abril de 2020, quando Moro deixou o governo.
Janot foi condenado por ter autorizado a constituição da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba; ex-coordenador da força-tarefa, Dallagnol por ter participado da concepção do modelo escolhido pela força-tarefa e da escolha dos integrantes da operação; e Romão, por solicitar a formação da força-tarefa. Sete procuradores foram inocentados.
Em nota, a assessoria de Dallagnol afirmou que há perseguição. “A decisão dos ministros desconsidera o parecer de 14 manifestações técnicas de cinco diferentes instituições (…) que referendaram a atuação da Lava-Jato e os pagamentos feitos. Tudo isso com o objetivo de perseguir o ex-procurador Deltan Dallagnol e enviar um claro recado a todos aqueles que lutam contra a corrupção e a impunidade de poderosos”. Agora, ele está impedido de concorrer às eleições, com base na Lei da Ficha Limpa, porque foi condenado por um colegiado.
Casa de enforcado
Entretanto, a decisão do TCU pode virar um bumerangue eleitoral. Iniciada em 2014, Lava-Jato foi uma das maiores iniciativas de combate à corrupção e lavagem de dinheiro da história recente do Brasil. Na época, quatro “organizações criminosas”, que teriam a participação de agentes públicos, empresários e doleiros passaram a ser investigadas pela Justiça Federal, em Curitiba. A operação apontou irregularidades na Petrobras, maior estatal do país, e contratos vultosos, como o da construção da usina nuclear Angra 3.
Frentes de investigação também foram abertas no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Distrito Federal. As investigações foram iniciadas a partir de uma rede de postos de combustíveis e de um lava-jato de automóveis de Brasília, usada para lavagem de dinheiro — daí o nome da operação. No ambiente de descontentamento com a política e os políticos, a força-tarefa de Curitiba e Moro alavancaram o tsunami eleitoral de 2018, quando Bolsonaro foi eleito.
No decorrer do atual governo, porém, o combate à corrupção deixou de ser uma prioridade para a opinião pública, muito mais preocupada com a pandemia de covid-19, a recessão econômica, o desemprego e o aumento da miséria. O eixo da política nacional se deslocou gradativamente da bandeira da ética para a economia.
Nesse ínterim, os condenados na Lava-Jato cumpriram parte da pena, adquirindo direito à prisão domiciliar ou liberdade condicional. Foram absolvidos ou tiveram suas condenações anuladas por desrespeito ao “devido processo legal”. Lula, que fora condenado e impedido de disputar as eleições de 2018, nas quais era o favorito, permaneceu 580 dias na carceragem da Polícia federal de Curitiba, até sua condenação ser anulada.
Sem entrar no mérito da polêmica jurídica sobre a Lava-Jato, que foi “deslegitimada” pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para os réus e condenados na operação esse assunto é como falar de corda em casa de enforcado. Na atual campanha eleitoral, quem ganha com a polêmica é Bolsonaro, apesar dos escândalos de seu governo, porque essa polêmica
aumenta a rejeição de Lula.
*Título editado
Auxílio Brasil dá fôlego a Bolsonaro, mas Lula mantém vantagem na liderança
Redação Brasil de Fato*
A nova pesquisa Quaest, encomendada pelo Banco Genial e divulgada nesta quarta-feira (3), aponta que o governo de Jair Bolsonaro (PL) dá sinais de recuperação na opinião pública, mas segue com dificuldades na corrida pela reeleição.
A queda na rejeição da gestão do presidente, que ocorreu principalmente entre beneficiários do Auxílio Brasil, impactou pouco a disputa eleitoral. O estudo aponta que o ex-presidente Lula (PT) segue firme no topo e com chances de vitória no primeiro turno.
A retomada do Auxílio Brasil fez com que o governo Bolsonaro atingisse o menor nível de rejeição desde que a pesquisa começou a ser feita, em julho de 2021. Agora, 43% avaliam a gestão federal de forma negativa, enquanto 27% consideram positiva.
O processo de recuperação da imagem do governo aparece nos eleitores que recebem o Auxílio Brasil. Em junho, a distância entre a avaliação negativa e a avaliação positiva era de 27 pontos percentuais. Em agosto, a diferença caiu para 11 pontos.
Avaliação do governo Bolsonaro entre beneficiários do Auxílio Brasil, de acordo com a pesquisa Quaest/Genial / Reprodução
O governo também voltou a recuperar sua imagem entre os eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018. Já são 57% dos eleitores do presidente que avaliam como ótimo ou bom o governo Bolsonaro. No começo do ano, eram apenas 45%.
O cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest, publicou uma análise da pesquisa no Twitter. Segundo ele, os sinais de melhora na avaliação do governo se devem a medidas do governo federal.
"A principal hipótese para explicar essa recuperação de imagem do governo e a aproximação das intenções de voto de Bolsonaro e Lula em setores importantes do eleitorado é o efeito expectativa de futuro gerado pelo presidente com as medidas adotadas nos últimos meses", escreveu.
Nunes destaca que caiu de 64% para 56% os eleitores que acreditam que a economia do Brasil no último ano piorou, e subiu de 15% para 20% os que dizem que a economia melhorou no último ano.
Ele também aponta que caiu de 25% para 21% os eleitores que acreditam que o principal responsável pelo aumento de preço dos combustíveis foi Bolsonaro.
O estudo aponta, portanto, que o atual chefe do Executivo conseguiu terceirizar a culpa da crise para os fatores externos ao país, que hoje agregam 34% dos entrevistados.
Leia a análise completa do diretor da Quaest:
Corrida eleitoral
Nas perguntas sobre eleições, o levantamento da Quaest/Genial mostra que Lula segue disparado na liderança, com 44% das intenções de voto. O presidente Jair Bolsonaro (PL) tem 32%.
O petista soma 2 pontos percentuais a mais que a soma de todos os outros candidatos, o que pode significar uma vitória no primeiro turno. A vantagem, no entanto, é igual à margem de erro, de 2 pontos percentuais para mais ou para menos.
Ciro Gomes (PDT) oscilou para 5%, enquanto André Janones (Avante) apareceu com 2%, assim como Simone Tebet (MDB). Pablo Marçal (Pros) teve 1%. Estes valores são do cenário estimulado, quando os eleitores escolhem a partir de uma lista de pré-candidatos. Os demais candidatos não pontuaram.
Em relação à última pesquisa presidencial e nacional da Quaest, Lula e Bolsonaro oscilaram dentro da margem de erro. Em julho, o petista tinha 45% e o candidato do PL aparecia com 31%.
Segundo turno
Lula segue vencendo todos os cenários no segundo turno. Em comparação com a pesquisa de julho, Lula e Bolsonaro oscilaram dentro da margem de erro. O petista tinha 53%, agora 51%. Já Bolsonaro cresceu de 34% para 37%.
Em julho, Ciro tinha 25% em um segundo turno contra Lula, que tinha 52%. Agora, o político do PDT tem 27% e o petista, 51%. Contra Tebet, Lula manteve os 55%, enquanto a senadora oscilou de 20% para 22%.
O levantamento entrevistou 2.000 pessoas face a face, entre os dias 28 de junho e 31 de julho e foi encomendada pela Genial Investimentos. O índice de confiança é de 95%. A pesquisa foi registrada no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sob o número BR-02546/2022 e custou R$ 139.005,86.
*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato. Título editado.
Nas entrelinhas: Mitos e heróis na cena eleitoral brasileira
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra seminal Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros, um artificio psicológico incorporado ao nosso processo civilizatório. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” Mais atual impossível.
A apropriação afetiva do outro apontada por Buarque, em grande parte, é responsável pela “fulanização” da política brasileira, apesar de termos instituições seculares bastante consolidadas, alguma das quais com origem na chegada de D. João VI e sua Corte ao Brasil, como o Supremo Tribunal Federal (STF). O exercício efetivo do poder central em todo o território nacional, por exemplo, deve-se ao Judiciário, muito mais do que às Forças Armadas, cujo protagonismo político, na República, por duas vezes, se deu em duradoura contraposição ao Estado democrático de direito, na Revolução de 1930 e no golpe militar de 1964.
Não por acaso, graças à política de conciliação da segunda metade do Império, também temos um Congresso forte, embora nossos partidos políticos, contraditoriamente, sejam fracos, por causa da “fulanização” da política e da construção de acordos interpessoais de natureza fisiológica, corporativa e/ou patrimonialista. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essa “fulanização” da política e desnudaram a outra face do “homem cordial”, que agora protagoniza a radicalização política.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro exacerbam essa característica da política brasileira. Ambos têm um viés populista; constroem suas alianças a partir de relações afetivas e, ao mesmo tempo, pragmáticas. Não é outro o sentido da aliança de Bolsonaro com Valdemar Costa Neto, presidente do PL; a escolha do ex-governador Geraldo Alckmin como vice por Lula tem o mesmo significado.
No conceito de Buarque, o “homem cordial” é sinônimo de passionalismo, personalismo e irreverência, um transgressor das normas institucionais. Age mais pela emoção do que pela razão, sua cordialidade está associada ao domínio da esfera privada na vida brasileira. O Estado é sua segunda casa, povoada por familiares e amigos. Não é preciso um grande esforço retrospectivo para constatar esse fenômeno na vida política brasileira, muito menos revisitar as páginas de Raízes do Brasil, quase centenárias, e resgatar a nossa herança colonial lusitana.
Terceira via
O semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt associava-o ao que hoje muitos chamariam de “lugar de fala”. Sua disposição de agir e falar pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.
O “homem cordial”, na atual cena eleitoral, se apresenta como o herói semideus da Ilíada de Homero, cujos pilares são a grandiosidade e a singularidade, além da aspiração à imortalidade. Em 2018, Bolsonaro saiu do leito da morte para o Palácio do Planalto sem fazer campanha; nestas eleições, Lula deixou a cadeia e pavimentou a estrada para voltar ao poder sem deixar os ambientes fechados. Agora, outro candidato a semideus prepara sua volta à cena eleitoral: o ex-juiz Sergio Moro, personagem central da ascensão e queda da Operação Lava-Jato.
Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não teve a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.
Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo foi posto em xeque pela revelação das mensagens que trocou com os procuradores da Lava-Jato em Curitiba. O cristal foi trincado por conversas banais nas redes sociais. Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. Filiou-se ao Podemos, trocou-o pelo União Brasil, sem garantia de legenda. Agora ensaia uma volta à ribalta, como um herói noir, em disputa pela Presidência. Moro pode recuperar o espaço que ocupava no campo da chamada terceira via.
Revista online | Derrota de Bolsonaro é essencial para o Brasil, analisa Marco Antonio Villa
Equipe da Política Democrática e Paulo Roberto de Almeida, como convidado especial
O historiador Marco Antonio Villa acredita que o maior desafio para o Brasil, nos próximos anos, é o crescimento econômico com democracia. Para isso, segundo ele, é necessário que o presidente Jair Bolsonaro (PL) seja derrotado nas eleições de outubro deste ano. Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), colunista do UOL e autor de mais 30 livros, Villa é o entrevistado especial desta 42ª edição da revista Política Democrática online (abril/2022).
Marco Antonio Villa, que lançou no fim de 2021 o livro Um País Chamado Brasil - que apresenta panorama sobre a formação econômica, política e cultural nacional -, afirma que há uma crise de lideranças políticas brasileiras, o que, conforme analisa, fortalece os extremismos. Contudo, na avaliação do escritor, transformações importantes ocorrem na América Latina e Europa em relação à democracia, e a população precisa manter o otimismo.
A guerra entre Rússia e Ucrânia é outro tema abordado com profundidade pelo entrevistado. “O mundo está passando por transformações abruptas desde 24 de fevereiro. Até então, a história tinha registro de dois pontos de inflexão: a segunda guerra e a queda do muro de Berlim”, explica. “A invasão russa da Ucrânia lança novo desafio para todos nós, nos planos da economia, da política e da sociedade”, complementa.
As dificuldades da terceira via e os cenários políticos para as eleições de 2022 no Brasil também estão entre os temas da entrevista especial. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa Marco Antonio Villa.
Revista Política Democrática Online (RPD): Seu livro Um país chamado Brasil consegue ser uma crônica de nossa trajetória desde o descobrimento até o século 21, portanto, de leitura leve e envolvente. Sem descurar o rigor histórico, traça a origem de várias distorções de nossa formação. Destaco apenas uma: o descaso dos governantes quanto às necessidades e às aspirações das classes menos favorecidas. Herbert de Souza, o saudoso Betinho, costumava falar da incapacidade da elite de elaborar um conceito de humanidade que incluísse o pobre. Seu livro ilustra essa assertiva. Seria esse o maior óbice ao nosso projeto de desenvolvimento, isto é, enquanto não corrigirmos as imensas desigualdades, o Brasil não poderá decolar?
Marco Antonio Villa (MV): Uma das questões importantes do século 20 brasileiro, especialmente do período 1930 e 1980, meio século, portanto, quando o Brasil exibia os mais elevados índices de crescimento no Ocidente, era precisamente como incorporar as classes populares, no sentido sociológico mais amplo, ao processo político e aos ganhos do desenvolvimento econômico. Basta levantar a literatura no campo da economia, da sociologia, da política, da história dessa época.
A cidade de São Paulo, no final dos anos 1950 e anos 1960, era conhecida como a que mais crescia no mundo. E não era exagero. Era uma verdade, como resultado da industrialização, do deslocamento populacional do nordeste e do próprio interior do Estado para a cidade, para a região metropolitana, que desenvolveram os serviços, modernizaram o Estado, impulsionaram a infraestrutura. Dá gosto explorar os sebos do centro da cidade e olhar aquelas estantes de sociologia, cheias de projetos para o Brasil, em que tudo se discutia. Mas a questão hoje não é incorporar na base programas sociais e intervenções imediatas da dimensão de um Bolsa Família, hoje renomeado e mal elaborado. Além disso, são necessários, para se combater com eficácia a miséria e a pobreza, programas efetivos que desloquem socialmente, usando uma expressão ao Elio Gaspari, o andar de baixo para andares intermediários na estrutura social brasileira.
Esse é o grande desafio da atualidade, políticas permanentes. É a condição sine qua non para o país voltar a crescer. Fico ouvindo discussões sobre como melhorar a defesa dos direitos trabalhistas no campo do direito, quando, na verdade, a questão central não está no que falta ou sobra na legislação trabalhista. A questão é que a economia não volta a crescer, como crescemos em certo momento da nossa história. Se olharmos as últimas quatro décadas – a de 80, a de 90 no século passado e as duas primeiras deste século – são quase décadas perdidas. Quando dizíamos que os anos 80 foram uma década perdida, tínhamos como referência os anos 60 e 70. Mas, na comparação com o que veio depois, não há dúvida de que 80 foi a melhor das últimas quatro décadas.
O desafio é, portanto, voltar a crescer e combinar crescimento econômico, que em si já é um desafio, com democracia. Este é o desafio duplo brasileiro. Já tivemos, em certo momento da nossa história, no século 20, crescimento econômico sem democracia: durante o primeiro governo Vargas e durante a ditadura militar. A democracia plena foi recuperada a partir da Constituição de 1988. O que precisamos agora é voltar a crescer de forma sustentável mesmo, ter um papel de destaque no mundo, entrar nas cadeias produtivas globais. Tudo isso que se fala todo dia, e, ao mesmo tempo, enraizar o que dizia Otávio Mangabeira, essa plantinha tão frágil que é a democracia no Brasil.
RPD: Virou moda, hoje em dia, matizar o conceito de democracia diante das dificuldades de o sistema capitalista fazer refletir sobre os níveis de renda e emprego da população, os frutos das incessantes conquistas alcançadas pela tecnologia. Seria essa a origem de discursos políticos alternativos, populistas e demagógicos, que buscam simplificar conceitos que fissuram o edifício da democracia para valorizar o recurso à discórdia, senão o ódio, entre os cidadãos?
MV: Na breve conversa que tivemos hoje no café da manhã, minha mulher fez uma relação entre a vitória do Orbán, na Hungria, a guerra da Rússia contra Ucrânia e questões do Brasil. É inevitável, muitas vezes, entrever uma leitura um pouco pessimista da conjuntura contemporânea. Não sou o doutor Pangloss redivivo, o célebre personagem de Voltaire, eternamente otimista. Mas temos que ver sempre um outro lado das questões. Estamos com o espírito tão baixo – natural depois da tragédia do governo Bolsonaro – que não conseguimos ver transformações importantes e positivas que estão ocorrendo no mundo até mesmo no tocante à democracia.
Por exemplo, o que está ocorrendo no Chile é muito positivo e torço muito para que dê tudo certo lá e influencie nas eleições na Colômbia, onde são promissores os avanços na direção do fortalecimento da democracia. Lembro, ainda, os resultados da última eleição portuguesa, em que o partido socialista obteve a maioria absoluta das cadeiras. Na Alemanha, os sociais-democratas fizeram pelo menos o chanceler. Vamos ver o que vai acontecer na França, onde tudo é sempre problemático. Macron deverá vencer no segundo turno, mas a extrema direita é historicamente fortíssima. Basta recordar que, no século 19, se germinou todo aquele antissemitismo alemão, cujo padrão teórico veio de Gobineau, na França, e de Chamberlain, na Inglaterra.
O mundo está passando por transformações abruptas desde 24 de fevereiro. Até então, a história tinha registro de dois pontos de inflexão: a segunda guerra e a queda do muro de Berlim. A invasão russa da Ucrânia lança novo desafio para todos nós, nos planos da economia, da política e da sociedade.
Refiro-me, em particular, a essa disputa na sociedade em torno de questões identitárias. Reli, recentemente, textos – decerto de autoria de jovens pesquisadores – que refletem visões da sociologia americana que não se podem aplicar à realidade brasileira, na análise da revolução burguesa no Brasil e da integração do negro na sociedade de classe. As contradições do Brasil não são as mesmas da sociedade americana. Falar isso eu sei que é um terreno pantanoso, perigoso, mas temos que falar, não dá para tergiversar. A questão que envolve a identidade no Brasil não é naturalmente a mesma que a dos Estados Unidos, por exemplo.
São desafios, assim, que temos de considerar no campo acadêmico e no campo político. Há, infelizmente, nos tempos atuais, uma fratura entre esses dois campos, que não existia nos anos 1950, nos anos 1960. Basta recordar que, nos anos 1970, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promovia grandes reuniões, prática que se estendeu a alguns momentos da década de 1980. Hoje, temos só fratura, justo quando enfrentamos questões complicadíssimas e fundamentais que mereceriam nossos melhores esforços conjuntos para, senão resolvê-las, listar as melhores recomendações para equacioná-las.
RPD: Com relação à conjuntura política atual, estamos vivendo uma espécie de inflexão. A polarização entre Bolsonaro e Lula parecia ter vencedor garantido, mas começa a revelar uma certa reversão em favor do presidente, ao passo que forças da oposição batem cabeça. Essa avaliação é procedente? Em caso afirmativo, o que as forças oposicionistas deveriam fazer?
MV: Hoje de manhã, olhava no portal Metrópoles um levantamento interessante sobre o que acontecia há cerca de seis meses antes das eleições de 1989, 1994, 1998 e, sucessivamente, até 2018. Qual era o desenho eleitoral no primeiro e segundo turnos. O estudo verificou que, na maior parte das vezes, o retrato seis meses antes não foi o retrato do primeiro turno das eleições presidenciais. Pode ser que o fato se repita, não sei, é necessário cuidar.
Lembro que, em 2014, a morte do Eduardo Campos, em 13 de agosto, mudou a situação eleitoral. Naquela segunda quinzena de agosto e na primeira semana de setembro, Marina Silva passou a liderar as pesquisas, quando sofreu o maior bombardeio da história de fake news, na eleição mais suja das eleições presidenciais, e acabou chegando ao terceiro lugar no primeiro turno. Em 2018, o atentado de 6 de setembro afetou radicalmente as pesquisas pela exposição de cerca de um mês de Bolsonaro. O que poderá ocorrer em 2022? São aqueles fatos incontrolados, a bela história do futebol, do Sobrenatural de Almeida. Tem aqueles fatos que a gente não domina.
Há, ainda, outras variáveis. A pesquisa que saiu hoje (6/4/2022), do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), dá 41% para Lula e 30%, Bolsonaro, confirmando que haverá segundo turno, diante da impossibilidade de se construírem alternativas em torno de uma chamada terceira via, seja por uma explosão de Ciro Gomes, seja por uma composição entre o MDB e o PSDB. Tudo indica que uma chapa liderada por Simone Tebet, uma mulher com ampla experiência política, poderia ser viável. Só que acertos desse tipo são bastante difíceis em momentos tão polarizados, tanto mais porque uma terceira via não pode ser buscada às vésperas das eleições. Teria de ser construída no processo cultural, como um produto da história, pelo menos desde 2019, e não agora, diante da cristalização de tantas rivalidades regionais e interesses pessoais. Tenho vontade de rir quando ouço algumas análises no sentido de que, em julho, todos se unirão. Será necessário combinar com os eleitores, porque por essa época tudo já deverá estar decidido. Temos 27 unidades da Federação. Imaginem a diversidade das alianças estaduais. Quem não entender isso não entende de eleição presidencial. Mas haverá sempre alguém que diga que, em 2018, Bolsonaro era um ponto fora da curva e agora é candidato à reeleição. Não cabe a comparação.
RPD: O que as oposições deveriam fazer para crescerem na disputa?
MV: Justamente o que não fizeram nos últimos três anos, uma política na unidade, na diversidade das diversas forças oposicionistas. A questão central é que há uma pedra no meio do caminho, como alguém já disse. E a pedra é o PT. Este é o nó górdio. O bolsonarismo se construiu contra o PT, e as forças chamadas de democráticas têm uma visão de política também oposta ao PT. Dá impressão que elas são forças auxiliares ao bolsonarismo, e não são. Ao combater o PT, passa-se para um eleitorado mais atrasado – recordando o baixo nível da cultura política no Brasil, que venho confirmando diariamente, para minha perplexidade – a impressão de que está fazendo o jogo do bolsonarismo, tanto quanto, ao atacar o Bolsonaro, é a vez de fazer o jogo do PT.
O desafio é, então, como construir uma alternativa de poder não só eleitoral, mas algo que demonstre que, no futuro, quando se chegar ao poder, não se seguirá as linhas do bolsonarismo nem as do PT. O problema, embora seja duro reconhecer, é que o país nunca teve uma crise de liderança política como a que temos hoje. Costumo dar o exemplo da eleição de 1982, final do regime militar, quando Franco Montoro venceu em São Paulo, Tancredo Neves venceu em Minas e Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Hoje temos João Doria, Romeu Zema e Cláudio Castro, referências que dispensam análise, diante da evidente pobreza de lideranças nacionais. Na eleição de 1989, tivemos número elevado de candidatos, os nomes mais notáveis do cenário político nacional, incluindo Roberto Freire. E o que temos hoje? A pobreza não é só de líderes políticos; estende-se também ao setor empresarial, ao setor acadêmico. Não temos nada.
Diante desse vazio de líderes, não se surpreende o crescimento dos extremismos, segundo a máxima do futebol de que espaços vazios têm de ser ocupados. Daí a expansão do extremismo bolsonarista, esse circo dos horrores que a gente vê todo santo dia. O desafio é, portanto, a conquista dos espaços, fazer política democrática. Mas isso não é fácil, demora e não se resolve em um processo eleitoral. É algo de médio prazo. Não foi feito no passado. Então, vamos ver se ao menos consigamos fazer neste processo eleitoral de 2022.
RPD: Existe hoje, em alguns setores da sociedade, certa perplexidade quanto à percepção popular do conceito de democracia, como se fosse difícil para muitos alcançar a complexidade dos valores envolvidos na questão. Isso estaria na base de sua afirmação do baixo nível político do eleitorado brasileiro, que dificulta a arrancada cívica da sociedade?
MV: Estamos vivendo um desafio que afeta o processo de conhecimento sobre nosso próprio país. E, se não sabemos em que país vivemos, como será possível fazer política? E nós não conhecemos o Brasil de hoje. O Brasil de hoje não é o Brasil da década de 1950, não é aquele reducionismo do Jacques Lambert dos dois Brasis, o atrasado e o moderno, o do litoral e o do sertão. Hoje o país é muito complexo. A região metropolitana de São Paulo, que é a maior do Brasil, tem cerca de 20 milhões de habitantes, 18 a 20 milhões na região metropolitana, que são três dúzias de municípios. Só que parte desses municípios não tem serviço de tratamento de água e esgoto, na região metropolitana mais desenvolvida do país.
Trata-se de uma geração nem-nem, que nem trabalha nem estuda, diante da ausência do Estado na criação de empregos, na escola, na saúde, no posto de saúde, na segurança pública, na água tratada.
A presença hoje do conflito religioso político é nova na história do Brasil. Nunca tivemos isso: a presença do catolicismo nunca colocou o dilema catolicismo versus política. Quando houve uma tentativa na eleição de 1933 de criar a liga eleitoral católica, não teve relevância eleitoral alguma. Foi coisa do Tristão de Ataíde, do Alceu de Amoroso Lima. Hoje, não tem essa novidade, e temos de tentar entendê-la para superá-la. Os partidos políticos não conseguem compreender o fenômeno. Ao contrário, passam a mão na cabeça do pastor, e todos os partidos, sem exceção, vão beijar a mão do pastor, do dono da franquia religiosa, a cada dois anos, na coincidência dos processos eleitorais. Os partidos não conseguem mais uma relação direta com o eleitor, ou com o “rebanho”, como gostam de falar.
Temos um país que não cresce há décadas, as pessoas estão frustradas. Antigamente, o filho vivia melhor que o pai, e o pai, melhor que o avô. Hoje isso não ocorre mais. Não existe mais esse processo de deslocamento social, de ascensão social. É um país que tem dificuldade de entender o que ele é. É um país muito fraturado. O fenômeno do agronegócio reforça isso. Pela primeira vez na história do Brasil, o agronegócio, o setor mais dinâmico da economia, está deslocado absolutamente do litoral. Alguém vai falar assim: a mineração do século 18 estava vinculada ao litoral, por meio dos portos do Rio de Janeiro e Parati. Mas o agronegócio é outro mundo, é como se fosse um outro Brasil, fortemente reacionário, que não tem identidade com as grandes questões sociais do Brasil, paga poucos impostos, tem um olhar de violência para a democracia e as questões do século 21. Até sua saída não é mais pelos portos tradicionais. Suas mercadorias partem pelo norte do Brasil, e já se pensa em usar a alternativa do Peru. São segmentos da sociedade totalmente dissociados, têm outra cultura, ouvem outras músicas, não leem nada, têm ódio da cultura. É outro mundo. Esse é o Brasil que queremos? Nós queremos outra coisa.
Por isso, digo que é difícil fazer hoje política no Brasil com tantos Brasis, como na cidade de São Paulo tem muitas cidades de São Paulo. A questão que se coloca é entender aqueles trabalhos clássicos que tínhamos de interpretação do Brasil, nos anos 30, 40, 50 e 60 até anos 70, com mais visões de totalidade, o que não temos, e acho difícil termos na atualidade. Tomando emprestada uma expressão de Ortega y Gasset, o Brasil, tal como a Espanha, é um país invertebrado, invertebrado socialmente, culturalmente, politicamente. Daí, com isso, eu vou saltar no rio Tietê? Não, temos de entender isso, compreender e dar o passo adiante. Este é o nosso desafio. Fácil não é.
RPD: Quando você usa a primeira pessoa do plural “nós”, nós quem? Não se trata de uma consciência individualizada, mais do que plural, com dificuldades de contaminar o conjunto da sociedade?
MV: Tenho conversado com muitas pessoas, e o que ouço é uma demonização dos partidos e da política, o que fez muito mal ao país. Isso decorreu do que se passou na década passada, com os escândalos de corrupção do governo do PT, o mensalão, petrolão, coisas absurdas que minaram a base da democracia. Quando menciono "nós'', em termos abstratos, me refiro às universidades, sobretudo, nas áreas de ciências médicas e biológicas, que tiveram papel fundamental na pandemia, agiram muito bem. O Brasil conheceu cientistas que desconhecia e foi apresentado a gente muito importante, a cientistas de valor. Mas, no campo das ciências humanas, entram em campo a universidade, os partidos políticos, organizações da sociedade civil, e aí o astral muito baixo.
Bolsonaro tem de perder no dia 2 de outubro e no segundo turno. Esta é a condição sine qua non para a gente começar a enfrentar algumas dessas questões que acho que o Brasil tem de enfrentar. Hoje o desenho que se projeta é a vitória do PT, ou seja, voltarmos a algo que imaginávamos já ter superado com o processo de impeachment. Só que, nesse processo, as forças democráticas foram derrotadas pelos extremistas reacionários. Digo nós porque eu participei desse processo ativamente, imaginando que teríamos de construir alternativas democráticas após o impeachment.
Mas aí veio o governo Temer, que tem uma conta terrível a pagar na história, que não o absolverá. O governo Temer poderia ter sido um governo Itamar Franco, não foi. Primeiro, porque há uma distância enorme entre Itamar Franco e Michel Temer, em todos os sentidos, da moralidade republicana, de fazer política, de entendimento do Brasil. E, segundo, ele prometeu um ministério de notáveis e entregou um ministério de Geddels. O fracasso do governo Temer conduziu o que estamos vivendo hoje. perdemos a chance de mudança para transformar 2018 em um bom processo eleitoral. Inclusive para a participação dele, porque ele poderia ser candidato à reeleição. A gente se esquece disso, porque ele estava tão embaixo, tinha sido tão desastroso que ninguém cogitou mantê-lo no poder.
De qualquer forma, é muito difícil buscar as origens dessa crise. É melhor nos concentrarmos no desafio de construir a participação. E a eleição serve para isso, sacode as pessoas e as leva a se identificarem com ideias e com candidatos. Revelados os resultados das urnas, o desafio é fazer com que o eleitor que escolheu seus candidatos, no dia 2 e no dia 30 de outubro, continue se interessando por política. É importante manter a sociedade atenta à política, porque é onde se constroem os consensos, pelo debate, pelo intercâmbio de ideias, a coluna vertebral do regime democrático.
RPD: Na sua opinião, o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia é um ponto de inflexão da história contemporânea quanto à queda do muro de Berlim. Poderia ampliar um pouco essa sua visão?
MV: Na minha leitura, tivemos, grosso modo, de 1945 até a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, a Guerra Fria, que opôs os Estados Unidos e a União Soviética, implicando a formação de blocos de países de um lado e de outro do confronto. Aí veio a queda do muro e, dois anos depois, no natal de 1991, o fim da União Soviética. De 1989 a 24 de fevereiro de 2022, os Estados Unidos foram militarmente a potência hegemônica e deram as cartas. Mas, no plano econômico, sofreram com a sombra da China, que não é (ainda) uma potência militar à altura dos Estados Unidos nem da Rússia, mas já é uma potência econômica. Dizem mesmo não PIB per capita, mas o PIB total deve ser nesta década superior ao dos Estados Unidos.
O que ocorreu em 24 de fevereiro surpreendeu a todos, pensou-se num primeiro momento que Putin estivesse blefando, mas a invasão aconteceu. Alegaram-se razões históricas para justificar o ataque à Ucrânia, e também o apoio a mercenários russos para os combates nas regiões separatistas. O fato é que a invasão ocorreu, sem uma declaração formal de guerra, porque até hoje o governo russo se recusa reconhecer a existência de uma guerra.
Acontece que a invasão foi mal calculada. Não se confirmou o pretenso passeio de no máximo sete dias para derrubar o governo de Kiev. O que se viu foi a ineficácia militar do exército russo, para a surpresa – e alívio – de muitos, e, mais importante a indignação coletiva e frontal da comunidade de nações, sobretudo dos Estados Unidos e membros da Comunidade Europeia, circunstância que gerou particular tensão internacional, ante a possível ampliação do conflito, envolvendo forças da OTAN.
O desgaste político de Putin aumentou em vista da resistência heroica dos ucranianos às forças superiores em armas, tecnologia e efetivos, e, ao que tudo indica, os riscos de um conflito mundial, até mesmo com o uso de armas nucleares, parecem não ser iminentes.
Vive-se, atualmente, situação complicada por conta dos efeitos sobre a economia mundial das sanções impostas à Rússia pelos EUA e a Comissão Europeia (CE). A meu ver, o governo brasileiro se saiu muito mal nessa situação. Não parece estar acompanhando o rearranjo geopolítico que a guerra implicará. A provável derrota política e econômica da Rússia terá graves consequências. Como uma das possíveis ironias da história antecipadas por Isaac Deustcher, a Rússia provavelmente vai passar a depender da China, que, a médio prazo, deverá se transformar em uma potência militar superior à Rússia, situação que será particularmente grave levando-se em conta o isolamento a que o mundo ocidental, o Japão e outras nações asiáticas estarão relegando o regime de Moscou no cenário internacional.
Quando terminará a guerra? Não sabemos, mas é muito provável que ocorram alguns dos seguintes fenômenos. A Ucrânia será neutralizada, não poderá entrar na OTAN, mas deverá ser admitida na CE. Terá de reconhecer a incorporação pela Rússia da Crimeia. Vai gastar bilhões para reconstruir o país, contando, decerto, com a ajuda de países ocidentais. Putin vai se declarar vencedor, mas terá de sair do país. Nem mesmo a autocracia do regime russo conseguirá seguir bancando essa aventura militar malsucedida.
De qualquer forma, 24 de fevereiro é uma ruptura no contexto das relações internacionais. Como se costurarão as articulações dessa nova realidade. Qual será o papel do Brasil? Isso é uma questão importante. Como o Brasil vai se posicionar? O Brasil está nos BRICS, mas, se olharmos para os BRICS, quem cresce no BRICS são o I, de Índia e o C, da China, já que o B, o R e nem mesmo o S, da África do Sul, parecem estacionados.
Como vai ficar isso, como vai ser o mundo? Realmente, nós estamos sendo testemunhas presenciais de um novo momento da história, de uma nova recomposição de forças. Quem imaginaria uma guerra, uma guerra mesmo de um país contra outro na Europa depois de 45? Alguém vai mencionar a Iugoslávia? Mas a Iugoslávia foi uma história de secessão, uma divisão de mais de meia dúzia de países. Não se aplica, portanto. Ninguém imaginava que isso fosse ocorrer, e ocorreu. Na verdade, ninguém conseguiu antever a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Os famosos analistas internacionais erraram nas previsões. Recentemente, falaram do fim da história, do fim da globalização, do fim do nacionalismo, e o mundo nunca foi tão nacionalista como o que estamos vivendo na terceira década do século 21.
Saiba mais sobre o entrevistado
*Marco Antonio Villa é historiador, escritor e comentarista político brasileiro. Villa é bacharel e licenciado em história, mestre em sociologia e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. É professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos.
** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de abril/2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Leia também
Revista online | Com Claude Lévi-Strauss: a arte plumária dos índios
Revista online | Oscar e a tentação das majors
Revista online | Lições da Itália ao Brasil de 2022
Revista online | A frente democrática, aqui e agora
Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online
Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online
Marco Aurélio Nogueira: Políticos imperfeitos
Crítica a Temer deve ser bem calibrada. Ele é produto do quadro político atual...
Na conhecida conferência A política como vocação, proferida em 1919, o sociólogo alemão Max Weber sugeriu que o verdadeiro homem político deveria possuir ao menos três qualidades essenciais: precisaria combinar a paixão por uma causa, o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. Poderia ter uma dessas qualidades em maior dose, mas não poderia deixar de ter as três. Com elas, entre outras coisas, haveria como controlar a vaidade, o desejo de permanecer sempre no primeiro plano, e dar o devido peso à missão política propriamente dita.
A sugestão é útil para que se discuta, por exemplo, a conduta de parlamentares e governantes, seu maior ou menor sucesso, seu estilo de liderança, as razões que os fazem mais eficientes na representação política e na gestão e lhes dão maior capacidade pedagógica de interagir democraticamente com as massas.
Há governantes que se seguram tão somente na paixão pela causa, conseguindo compensar a ausência (relativa) das outras qualidades mediante a organização de uma boa equipe de auxiliares. Enquanto o chefe faz política e enfatiza sua causa, os assessores cuidam da administração e garantem alguma margem de responsabilidade e senso de proporção no processo de tomada de decisões. Lula pode ser aqui tomado como exemplo positivo. Dilma seria um exemplo negativo.
Em seus dois mandatos, o ex-presidente não deixou um minuto sequer de fazer política e reverberar sua causa. Conseguiu terminar seus governos nos braços do povo, sua equipe de auxiliares se encarregou, com eficiência, de fazer a máquina administrativa funcionar e estabilizar a base política, que forneceu ao governo a necessária sustentação. As circunstâncias nacionais e internacionais foram-lhe favoráveis e o beneficiaram com os ventos da Fortuna, mas é evidente que houve Virtù e bom desempenho entre 2013 e 2010.
Com Dilma Rousseff ocorreu o contrário. Apresentada ao mundo como “gestora rigorosa e técnica competente”, não mostrou aptidão particular para a política, não conseguiu expressar causa alguma nem exibiu a exaltada competência administrativa. Seu senso de proporção e responsabilidade foi reduzido, o que impulsionou a crise. Em decorrência, entrou em atrito com amigos, aliados e auxiliares, não estruturou uma equipe leal e eficiente, teve de aceitar a contragosto a transferência da operação política para outros personagens e não conseguiu organizar um Estado administrativo vigoroso. As circunstâncias não a beneficiaram e passaram, em decorrência, a exigir sempre mais talento político, que lhe era escasso. Dilma plantou, assim, os ventos que iriam transformar-se na tempestade perfeita do impeachment. A desgraça configurou-se quando ela, em 2014, bateu pé e fez questão de concorrer à reeleição. Sua vitória nas urnas foi de Pirro e só serviu para bloquear as chances que o PT teria de ajustar o curso do navio.
Faltaram a Dilma, portanto, as três qualidades essenciais estabelecidas por Weber, com o que ela foi devorada pela vaidade e pela dificuldade de interagir democrática e pedagogicamente com as massas. Sua queda foi uma espécie de profecia que se autorrealizou.
Trazendo o argumento para os dias correntes, encontramos Michel Temer como exemplo de político com dificuldades para combinar as três qualidades. Falta-lhe antes de tudo a devoção a uma causa, já que a ideia de fazer de seu governo um artífice da retomada do crescimento econômico e do ajuste fiscal não aquece mentes e corações. Com o tropeço nas pedras que surgiram pelo caminho (Joesley e Janot), Temer viu evaporar o que tinha de força para aprovar reformas, sobretudo porque não soube reunir os consensos sociais necessários para fazê-las e foi sendo desconstruído pelo próprio Congresso, que esperava ver apoiá-lo. O presidente também não demonstra possuir um apurado senso de proporção e responsabilidade, o que fez com que vacilasse na composição de seu Ministério, para o qual convocou pessoas que pouco o ajudam e têm opaca imagem pública, e se entregasse desmesuradamente ao jogo político miúdo e fisiológico. Foi, assim, sendo devorado por predadores de várias espécies, perdendo condições de fazer política abrangente, a ponto, por exemplo, de influenciar sua própria sucessão. Tornou-se um governante inercial, refém do Congresso e sustentado pelos relacionamentos que amealhou durante a longa carreira parlamentar. Seus baixíssimos índices de aprovação e popularidade fecham a moldura.
Mas a crítica a ele deve ser bem calibrada. Temer é produto do quadro político atual, que está majoritariamente ocupado por políticos imperfeitos. Alguns têm causas, outros se declaram responsáveis, mas há poucos que se dediquem a unir uma qualidade à outra. Não porque não as tenham, mas porque não se dispõem a confrontar as bandas podres do sistema e recuperá-lo.
Bons políticos existem e continuarão a existir sempre. O que falta é que eles se reúnam, se articulem, se imponham nos espaços políticos institucionais e dialoguem abertamente com a sociedade. Sem a paixão que promove a entrega a uma causa e sem um sentido superior de responsabilidade (pública), os políticos são atraídos mais pelo brilho do que pela realidade do poder; e terminam por usufruir o poder pelo poder, sem cumprirem funções positivas. Precisam romper com isso.
Constatar que um país como o Brasil esteja entregue nos últimos 15 anos às desventuras de políticos “imperfeitos” – e imperfeitos porque “incompletos” – certamente levaria Max Weber a tremer no silêncio sepulcral em que repousa.
Quanto a nós, pobres seres viventes, a constatação provoca pasmo e uma perturbadora inquietação. O momento é exigente, pede empenho e discernimento. Não precisamos de “chefes”, mas de políticos dispostos ao sacrifício e vocacionados para colocar os dedos nas engrenagens da História, assumindo compromissos claros com uma agenda corajosa.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp