Luiz Werneck Vianna
Luiz Werneck Vianna: As nossas duas pragas
Um ano aziago, sem dúvida, esse que começamos a deixar para trás. Então “que se foda 2020”, como se estampa no rótulo do vinho português da Adega Azoeira, aliás bem caro, porque ele superou todas as medidas ao combinar duas pragas pestilenciais, o covid19 e o governo Bolsonaro. Deixa em seus rastros cerca de 190 mil mortos, até aqui, e uma obra de destruição de muitas instituições frutos de conquistas de lutas democráticas e populares em que se acalentavam aspirações por uma sociedade menos injusta e mais igualitária. Desse flagelo, em que ainda se vive, acumulamos perdas, algumas irreparáveis como a de vidas ceifadas, e outras, que mais à frente, podemos com o tempo recuperar.
Contudo, esses têm sido também os tempos de avanços na valorização da ciência, como no empenho na busca de vacinas eficazes que interrompam a propagação incontrolada da atual pandemia, que ora se realiza por meio de uma comunidade científica que atua em caráter cosmopolita, ultrapassando os estreitos limites do Estado-nação. Igualmente viram renascer a agenda dos ideais da solidariedade, e impuseram com vigor os temas ambientais, especialmente entre os jovens.
Sobretudo, 2020 foi o ano da derrota eleitoral de Donald Trump e seu projeto malévolo de imprimir um movimento de marcha à ré nas coisas do mundo a fim de nos devolver por inteiro, em pleno século XXI, o Estado-nação de infausta memória.
A ascensão de Joe Biden ao governo dos EUA, na esteira dos movimentos sociais mobilizados em sua campanha vitoriosa, não deve ser relativizada em sua importância como o fazem certas análises trêfegas, pois trata-se, na verdade, de um acontecimento de repercussão estratégica que afeta para melhor a disposição de processos fundamentais, tais como os do meio ambiente, cujo alvo é o capitalismo vitoriano predatório, e a revalorização dos organismos internacionais, especialmente da ONU. Muito particularmente, e isso é de evidência solar, a nefasta ação da atual política externa brasileira e do seu ministério do Meio Ambiente, a partir de 20 de janeiro, data da posse de Biden, perderão seus pontos de sustentação, o que não é de pouca monta.
Os dois anos restantes do governo Bolsonaro terão como horizonte pautas e agendas estranhas àquelas de sua afeição, uma sobrevivência exótica do trumpismo sem régua e compasso para agir tanto no cenário internacional como no interno. Difícil, nessas condições, conceber a sua reeleição, a que o faro apurado das elites políticas tradicionais não deixará escapar. De qualquer modo, o novo ano não será como aquele que passou, cabendo a ele dar continuidade criativa ao legado que recebeu das lutas de resistência das instituições republicanas, com papel destacado do STF e de suas câmaras de representação política.
As recentes eleições municipais, embora de modo geral tenham confirmado a natureza conservadora da sociedade, viram nascer novas lideranças, vale ressaltar o caso de Guilherme Boulos de óbvia vocação nacional, inclusive muitas delas originárias do mundo popular e de movimentos sociais libertários como o feminista e dos que se empenham na agenda das denúncias contra as desigualdades raciais.
Numa apreciação mais abrangente, fica do ano do qual nos despedimos uma evidente revalorização da política, revigorada pela decisão do STF que interditou, em leitura literal do texto constitucional, a reeleição do comando das casas legislativas na mesma legislatura, animando partidos e parlamentares a ações autônomas quanto ao poder executivo, vindo a estimular, inesperadamente, práticas de negociação política e ações concertadas em frentes multipartidárias em torno de valores comuns.
Vista da perspectiva de hoje, o que se descortina é uma paisagem em mutação quando confrontada com os idos da última sucessão presidencial. Sem triunfalismo, pode-se sustentar que o fascismo, mesmo que tabajara, apesar de sempre latente numa sociedade com a história de formação da nossa, foi um risco exorcizado ao menos imediatamente, e que ora se abre diante de nós uma via franca para a política, à condição de que saibamos nos desatrelar dos erros que nos levaram ao desastre que aí está. Sobretudo se soubermos aproveitar dos bons ventos que nos vêm de fora, e dar sequência às recentes e benfazejas práticas de alguns partidos e várias personalidades políticas em buscar soluções negociadas em favor da democracia.
A tragédia da pandemia que nos assola e ao mundo, como tantos e tão bem têm registrado, induz à mudança que leve a um combate sem tréguas a fim de reduzir, se possível erradicar, os seus efeitos macabros. Uma delas, visível a olho nu, está na destituição do paradigma neoliberal, influente por décadas, como narrativa capaz de explicar e reger a vida social. Na esteira disso, chega igualmente ao fim a primazia do Estado-nação na ordenação da cena internacional, nenhum deles é uma ilha apartada dos demais, o regime dos ventos que vinha de Chernobil conduzia pelas nuvens sua carga tóxica aos distantes países nórdicos. O efeito bumerangue, magistralmente descrito por Ulrich Beck, em Sociologia do Risco, mantém países ricos e pobres atados ao mesmo destino no que se refere aos perigos ambientais.
Entre nós, a luta contra a pandemia transcende as dimensões técnico-científicas em razão, como sabido, das convicções temerárias do chefe do Executivo e do seu obtuso desconhecimento do que lhe diz respeito, incidindo diretamente na agenda política. Seu reino é o do absurdo, e sua contumácia inveterada em alardear despropósitos – a vacina vai fazer com que nos tornemos jacarés – parece estar orientada em conduzir seu rebanho não para a imunidade, mas direto ao precipício. Tal como se dizia, décadas atrás, em muitos dos filmes do nascente cinema novo, é preciso fazer alguma coisa e colocar um ponto final nessa história de horrores.
Luiz Werneck Vianna: Uma nova oportunidade e seus riscos
Em movimentos lentos, mas contínuos, uma nova era afirma seu caminho em meio a uma resistência de desesperados, como a de Donald Trump, que pretendem barrar o passo aos processos que prefiguram passo a passo a aparição de uma nova ordem nas coisas do mundo. Se esse tempo é de esperança ele também conhece riscos, como testemunha a atual onda de assassinatos de fins políticos e do recrudescimento das possibilidades de uma guerra nuclear. O capitalismo vitoriano a que se concedeu novo alento desde os anos 1970, primeiro com Thatcher, depois com Reagan e, na sua forma mais encorpada com Trump, que lhe difundiu em boa parte do mundo escorado pelos recursos vários de que dispunha, parece preferir o dilúvio a qualquer solução sem ele.
Aqui, na periferia, aguarda-se com fôlego preso a transmissão do governo de Trump a Biden, vitorioso nas eleições com larga margem de votos, quando se deve iniciar de fato a retomada do país da sua identidade e melhores tradições, a começar por sua agenda ambiental, ora posta a serviço dos proprietários de terras e dos interesses da mineração em solo amazônico. A partir daí, ter-se-á o ponto de Arquimedes para a regeneração da inscrição do país no cenário internacional aviltada pela figura anacrônica do chanceler que aí está. Como num jogo de dominó, seguem-se o tema crucial das desigualdades sociais tão bem posta pela candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, e sobretudo um largo debate entre as forças democráticas sobre o rumo a que o país deve perseguir na sucessão presidencial de 2022, se chegarmos até lá.
Não serão tempos fáceis os que temos pela frente, contudo certamente menos amargurados do que acabamos de deixar para trás com a sociedade impondo pela via eleitoral uma indiscutível derrota às forças anti-políticas e ao obscurantismo do governo Bolsonaro. Em particular, pela crise econômica, patente no desemprego massivo que ameaça as condições de sobrevivência das classes subalternas, já sob os letais riscos da pandemia.
Mas, se as eleições nos trouxeram boas notícias, elas igualmente revelaram as dimensões do nosso primitivismo e atraso políticos. Está aí o Centrão, impando de satisfação, uma nova direita cevada pelo voto, e uma esquerda sem forças próprias e que ainda desconhece o terreno em que pisa, nostálgica do carisma de Lula e imune à autocrítica dos seus graves erros.
Visto do horizonte de hoje, para as forças democráticas que aspiram por reformas sociais o que se tem pela frente não é um cenário estimulante, decerto distante do pesadelo em que vivíamos, percepção contrária da que medra no campo da direita e que descortina o futuro como um campo aberto para a conquista do poder político. Tudo permanecendo constante, como provável, acalenta-se uma solução de centro-direita que marginalize a esquerda. Não é fora de propósito supor que, no caso, se estabeleça um silêncio obsequioso quanto ao descalabro do que tem sido o atual governo, já indicado no telefonema realizado pelo prefeito recém-eleito Eduardo Paes do DEM ao presidente Bolsonaro, cujas ações na presidência seriam estimadas pela limpeza do terreno político da presença da esquerda.
Fora o alívio imediato que as eleições nos trouxeram, evitando a legitimação do atual governo pelo voto, o quadro diante de nós é desalentador quando se pensa em cenários futuros. As forças do mando tradicional demonstraram capacidade de se reproduzirem em cidades abastadas e nos ermos rincões do país, levando de roldão as prefeituras que se vão constituir na plataforma das próximas sucessões, especialmente na presidencial. O travo otimista que nos fica vem principalmente da campanha de Boulos, em São Paulo, de Marta Rocha, de Benedita da Silva e Renata Souza no Rio, com a boa recepção que obtiveram nos redutos periféricos de suas cidades ao denunciarem as alarmantes condições das desigualdades sociais, faltando-lhes compreender a necessidade de uma coalizão entre suas candidaturas.
A sorte futura da esquerda a fim de que seus temas se tornem influentes politicamente no que vem por aí depende de mobilizações dessa natureza. Força própria é a senha para que ela seja ouvida nesse caldeirão de ambições desatadas pelo poder num país que tem a sina de que cada qual que detenha uma nesga de poder queira ser califa no lugar do califa. Por mais que seja verdadeiro o caráter de acidente na eleição de Bolsonaro, ele não pode ocultar o fato do nosso atraso político e da nossa incapacidade de reconhecê-lo, suprindo essa falta com fantasias mesmo que bem intencionadas.
Nessa hora em que se acendem esperanças é preciso cautela com os que procuram nos vender gato por lebre, com candidaturas saídas de suas cartolas sem densidade e tirocínio comprovado. Não há caminhos de ocasião, o que se precisa é pavimentar com segurança a estrada para o futuro na longa caminhada que ora se inicia com espírito de luta que anime a vida popular para a ação e a imaginação aberta para o encontro com os democratas com que marcharemos juntos.
Sem Trump e com Bolsonaro perdido como cego em tiroteio nos dois anos que lhe restam, abre-se uma oportunidade para um esforço bem concertado no sentido de estimular alianças escoradas por baixo pelo apoio popular que traga de volta o que não soubemos conservar.
Salvo tropeços imprevistos, as coisas do mundo retornam ao leito das instituições e da cultura política forjadas no segundo pós-guerra como a ONU e tantas outras, e não nos faltam nem a tradição e a vocação para desempenharmos no que está por vir um bom papel nesse lugar que ocupamos.
*Luiz Werneck Viannaa, sociólogo, PUC-Rio
IHU Online: Eleições municipais não trataram do fundamental, diz Luiz Werneck Vianna
“Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano”, constata o sociólogo
Por Patricia Fachin e João Vitor Santos, IHU Online
Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade “hedonista e consumista”, cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a “sobrevivência material do cotidiano”, não é de se surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.
Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está".
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".
Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos?
Luiz Werneck Vianna – As eleições foram um banho de saúde na política brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no nosso mundo político; o que também não é nada de espetacular. Num país conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em 2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está. Há uma esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.
No Rio de Janeiro, se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a divisão entre PT, PDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto, passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.
Ela também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A remoção [de Trump], que ocorrerá em breve, abre uma bela janela de oportunidades.
IHU On-Line – O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?
Luiz Werneck Vianna – Abre uma janela de oportunidades imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que ocorre em matéria de saneamento básico.
Os partidos brasileiros ambientalistas se dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante. A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda está completamente defasada.
Vamos ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora. Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.
Apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros - Luiz Werneck Vianna Tweet
IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?
Luiz Werneck Vianna – Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará – que também é relevante –, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.
IHU On-Line - A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?
Luiz Werneck Vianna – Esses debates se fizeram presentes, mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.
IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?
Luiz Werneck Vianna – A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica.
Houve um avanço em relação à última eleição, que foi dominada pelo atraso e pela grosseria, pela “arminha” e esses símbolos idiotas que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.
Há candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [d’Ávila], no Rio Grande do Sul. Mas a ver; tem que esperar. Não sei o que vai se passar.
Não há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno; falta muito. Faltam personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.
A solução americana adotou uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levaram à vitória, em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [Joe] Biden a vitória. Aqui, quem aparece com esse papel?
No Rio de Janeiro, três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a experiência do socialismo real, por exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.
A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica - Luiz Werneck Vianna Tweet
IHU On-Line - Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?
Luiz Werneck Vianna –Se essa mudança está ocorrendo, não estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano. Não tem portador para uma visão profética, por ora.
IHU On-Line – Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?
Luiz Werneck Vianna – Ah, seria. Claro que seria, mas aí veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela se retirou da política e da Teologia da Libertação – deu um fim nisso – e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade. De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com uma mensagem desse tipo? Nenhum. É “aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella”. Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.
IHU On-Line – O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?
Luiz Werneck Vianna – A Igreja tinha instrumentos na Teologia da Libertação, mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses cultos de fundo materialista preponderassem.
IHU On-Line – Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?
Luiz Werneck Vianna – Isso depende das lideranças, das personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.
IHU On-Line – Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?
Luiz Werneck Vianna – Precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU é um exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito embrionário, um novo despertar.
Essas eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de paciência também e de trabalho diário, cotidiano.
IHU On-Line – A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?
Luiz Werneck Vianna – Ela tem produzido intervenções interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer. Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso da Marielle Franco. Ela era socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.
A minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera pública. Marielle é um caso de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha do PDT [Anderson Quack] é uma liderança da Central Única das Favelas - Cufa. É por aí que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.
Luiz Werneck Vianna: Retomar o fio da meada
É cedo para se pensar no mapa eleitoral que sairá da próxima sucessão municipal, matéria para os especialistas, mas já se sentem lufadas de ar fresco que anunciam o começo de um novo dia ao fim de uma noite de pesadelo. É viva em nossa memória a velha lição de que, aqui, as eleições se manifestam como a forma superior de lutas das aspirações democráticas e das demandas sociais por políticas públicas igualitárias. E por toda a parte já assomam à superfície as indicações de que, mais uma vez, elas atuarão nesse sentido apesar das restrições impostas pela pandemia que nos aflige, presentes em candidaturas com histórico democrático confiável em várias capitais e em cidades influentes na formação da opinião pública na federação.
Decerto que eleições municipais têm um caráter singular em que são dominantes os temas locais, embora as que estão em curso guardem um significado plebiscitário implícito quanto a avaliação do governo Bolsonaro, que não por acaso evita se comprometer com candidaturas, mesmo com aquelas que lhe acenam com simpatia, salvo quando elas lhe permite confrontar com eventuais adversários em 2022, enquanto forças políticas de adesão democrática buscam demarcar com nitidez sua rejeição às suas políticas de governo, tal como nos casos da cidade de São Paulo, com a candidatura Boulos, de Porto Alegre, com a de Manuela Dávila, com as de Joao Campos e Marilia Arraes, em Recife, a de Edmilson, de Belém, e do Rio de Janeiro com a de Marta Rocha, cuja ênfase nas questões locais mal disfarça o sentido nacional da sua candidatura, inclusive pela contundente crítica ao candidato Crivela que procura identificação com o governo Bolsonaro, e em tantas outras.
É fato, contudo, que éticas de convicção rareiam neste cenário eleitoral em que predominam os cálculos de oportunidade. Mas uma circunstância externa a esse quadro pode vir a subverter as suas atuais marcações, qual seja as eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para o dia 3 de novembro, que, no caso da vitória de Biden deverá importar fortes repercussões na cena política brasileira com impactos sensíveis no pleito municipal de 15 de novembro. Até lá, convicções mal dormidas, podem encontrar tempo para despertar.
Os resultados eleitorais não terão efeitos banais. Eles servirão de vetor para o alinhamento das forças políticas e sociais, mas não se devem cultivar ilusões de superação imediata da atual cena de atraso e rusticidade da atividade política. Poderão, sim, estimular os impulsos, ainda em embrião, em favor da mobilização da oposição democrática ao que aí está, instituindo um novo patamar para novos avanços mais adiante. Por ora, fora do radar um retorno ao estado de coisas anterior ao governo Bolsonaro. Não eram apenas os 40 milhões de brasileiros que viviam em situação de invisibilidade de que apenas agora se teve ciência, era toda uma sociedade, inclusive seus segmentos ilustrados, que não foi capaz de identificar a miséria política e o primitivismo moral e intelectual que tomara conta da alma do país.
Os fios que nos mantinham vinculados às nossas melhores tradições e valores se encontram esgarçados, quando não rompidos. Conceder vida nova a eles, implica mais do que uma simples restauração, pois traz consigo o imperativo da inovação, para o que a agenda do espírito do tempo deste século com seus temas emergentes da questão ambiental e das relações solidárias entre os viventes nesse planeta é mais do que propícia. Resgatá-los, inovando-os, significa agora levantar um dique à ideologia neoliberal que nos ameaça com a desertificação moral e cívica na esteira de mecanismos autônomos do mercado como enteléquia fora de controle humano.
Sob a pandemia se visualizou com nitidez duas dimensões de onde podem fluir tal reanimação. A primeira delas é a da ciência, com protagonismo das suas instituições dedicadas às atividades da biomedicina, e a que provem da esfera pública dos subalternos no desempenho de ações orientadas para a auto-organização da vida popular, plataforma a partir da qual foram estabelecidos nexos com a universidade e segmentos do estrato dos intelectuais. Não à toa, a lista de candidatos que concorrem às câmaras de vereadores revela um bom número de originários com esse perfil.
Sob o influxo dessa movimentação de novo tipo, mesmo que em estágio precoce, germinam possibilidades de mutação na agenda tradicional das forças democráticas, especialmente na esquerda, visível na perda de ênfase da temática do nacional-popular, predominante entre nós por décadas, que ora começa a ceder lugar à pauta das demandas igualitárias. Exemplar disso está na crescente influência sobre nossos cientistas sociais da obra de Thomas Piketty, como no caso notável de “Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, do jovem sociólogo Pedro Ferreira de Souza, que sonda as raízes da invisibilidade da nossa miséria material e político-moral.
Estivemos imersos por longas décadas a partir do Estado Novo nos temas e nas políticas de modernização, ora em versões autocráticas, dominantes no período, ora em versões brandas, mas nenhuma delas renegou o papel da esfera pública na perseguição dos seus fins. No governo que aí está, pela primeira vez em nossa história política republicana, ela é concebida em pura chave de mercado. Para o argumento neoliberal dos atuais governantes, por modernização entende-se a destituição do público e das suas instituições a fim de deixar terreno livre para o aprofundamento irrestrito da expansão do capitalismo, seja no mundo agrário, no urbano, onde quer que se identifique uma fronteira propícia à acumulação de capitais, como nos resorts do litoral ou mesmo nos cassinos, objeto de desejo do nosso patético ministro da Fazenda. Na esteira de Thatcher, Reagan e Trump, para Bolsonaro não existe essa coisa de sociedade.
Essa construção ideal é exótica às nossas tradições, mesmo nas de raiz conservadora, ela está aí por um acidente de caminho, cujas sequelas começamos a reparar, passo a passo, como nas atuais eleições.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, Puc-Rio
Luiz Werneck Vianna: O Rio de Janeiro não pode ser Gotham City
Entregues ao Deus dará vivem no nosso estado Rio de Janeiro quase 16 milhões de pessoas, boa parte delas, talvez a maioria, sem rumo e tateantes em busca de oportunidades de vida, lutando com unhas e dentes por um lugar ao sol, uma boquinha, um negócio da China, uma boa mamata, um falso brilhante, para alguns até uma côdea de pão. Mas o estado do Rio de Janeiro nem sempre foi assim, pois aqui nasceu nosso estado nacional com suas elites dirigentes empenhadas em difundir ideais civilizatórios, e sobretudo, nos anos 1930, tornou-se a sede do projeto de implantação dos alicerces da indústria pesada na cidade de Volta Redonda, que se tornou polo da siderurgia, elemento crucial para a industrialização do país. Mais à frente, outras iniciativas asseguravam essa primazia do estado na conversão do modelo agroexportador até então vigente nas atividades econômicas para o industrial, tais como, entre outras, a Fábrica Nacional de Motores, a companhia Nacional de Álcalis, a Petrobras e a Eletrobrás.
Foi sob o impulso do Estado autoritário, institucionalizado pela Carta de 1937, que tomou forma o processo de modernização autoritária que iria remodelar o Estado e suas relações com a sociedade, conduzido por uma elite forjada ainda nos anos 1920, entre os quais se destacavam nomes como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Manoel Bonfim, entre tantos, que, críticos do liberalismo oligárquico e de sua república de fachada, preconizavam em favor de um estado forte que rompesse com o atraso do país e abrisse caminho à sua modernização. Com a criação do DASP, em 1938, dotava-se o Estado da capacidade de selecionar e treinar uma elite burocrática destinada a impor uma administração orientada para esses fins.
A democratização de 1946 não interrompeu essa trajetória que nos vinha da década anterior, apenas expurgou-a da sua ganga manifestamente autoritária, conservando sua modelagem original de primazia do Estado sobre a sociedade, principalmente quanto aos fins da sua economia. Contudo, a natureza desse Estado, manteve-se fiel à sua construção nos anos 1930 e preservou seu caráter bifronte, uma vez que não se reduzia aos elementos coercitivos, conhecendo também instituições e agendas voltadas para a produção de coesão social, muito especialmente abrigadas na fórmula corporativa. Por meio das corporações o Estado se vinculava à sociedade, em particular no mundo do trabalho, e, por meio desses nexos, seus fins e valores encontravam formas diretas de comunicação com os sindicatos e seus filiados. A Justiça do Trabalho cumpriria os fins estratégicos de extrair os conflitos do trabalho, em uma sociedade que se industrializava de modo acelerado, da órbita da sociedade para a do Estado, que os harmonizaria sob a mediação do Direito.
Ao estilo de Durkheim, sociólogo francês então em voga, referência importante na obra de Oliveira Vianna, autor chave na ideologia da modernização autoritária do período, a política do Estado não descuraria do tema da solidariedade social, recusando as concepções atomistas do liberalismo reinante na 1ª República. Nesse tipo de relação corporativa do Estado com os sindicatos, em que o primeiro, por meio da sua burocracia incutia naqueles os valores e interesses nacionais ao tempo em que amparava seus direitos trabalhistas, tecia-se uma certa eticidade no mundo do trabalho, certamente a partir da óbvia assimetria nessa relação.
Nesse cenário de empresas estatais e de organização corporativa, ordenou-se a paisagem social do Estado do Rio de Janeiro, em particular da sua capital. De fora dele restava uma imensa população vivendo de pequenos negócios e de ofícios urbanos praticados, em geral, individualmente. Esse mundo se encontra à margem da política, ocupando posições intersticiais na vida urbano-industrial em expansão. A política, enquanto tal, se fazia no interior do Estado e dos seus aparelhos, os dos maiores partidos, o PSD e o PTB, vinculados a ele. De meados dos anos 1950 a 1964, sob o registro da questão nacional, entendida em chave de desenvolvimento das forças produtivas, tal cenário, com algumas modulações, se mantém.
A principal modulação se faria presente nas classes subalternas que emergiria do afrouxamento dos controles coercitivos a partir do governo JK de índole liberal, bastante reforçado no governo Jango, um antigo ministro do Trabalho no segundo governo de Vargas, quando a questão nacional se encontra, pela via dos sindicatos, expressão popular. A cidade do Rio de Janeiro se torna o principal palco dessa mudança, e nela se constituem, na política e nas atividades culturais, novos atores sociais e políticos que vão exercer influência nacional, inclusive na vida popular, exemplar na crescente institucionalização das Escolas de Samba cujos desfiles extravasam as fronteiras da sua capital para todo o país.
O golpe militar de 1964 atalha essa movimentação virtuosa, e as mudanças que trazem consigo vão repercutir dramaticamente nos destinos do Estado, em particular da sua capital. Expurga-se o que havia de Durkheim na fórmula corporativa nas relações entre sindicatos e Estado que se orientava no sentido de favorecer elementos de solidariedade social, e o que vai restar dela se perverte em instrumento de coerção. De outra parte, o repertório que passa a ter vigência se desloca para os temas do mercado e do favorecimento da acumulação capitalista com o abandono da questão social, que, antes mesmo em plano secundário, se fazia presente em agendas dos dirigentes políticos.
A reação a esse estado de coisas ensejou nas duas décadas seguintes intensa movimentação popular e das forças do liberalismo político sobreviventes da razia operada em seus quadros pelo regime militar, que encontraram sua oportunidade na grave crise econômica que ameaçava o país. Como é sabido, a solução de compromisso encontrada para a saída do impasse que sitiava o regime militar foi o da sua auto extinção com as salvaguardas que conseguiu impor. A Constituição de 1988 nasce com o mandato de renovar a vida democrática do país, embora não venha a contar com sustentação explícita do PT, a esta altura o partido mais influente nas massas trabalhadoras, com óbvias repercussões futuras.
Os dois partidos que dominarão a cena a partir daí, o PSDB e o PT, ambos com identidades enraizadas em São Paulo, vão encontrar dificuldades de implantação na política do Rio onde a era Vargas, por meio de Leonel Brizola e do seu partido, o PDT, deixara fortes raízes. Nenhum desses partidos, entretanto, veio a demonstrar vocação de mobilização da vida popular, especialmente na imensa população das favelas que persistia à deriva da vida política, fora o esforço das Comunidades de Base da igreja católica em organizá-las, experiência virtuosa interrompida pelas elites eclesiásticas que a entenderam como de orientação simpática ao marxismo.
As classes subalternas da cidade, deixadas à sua própria sorte, se tornavam assim expostas, em particular os jovens, a atividades marginais, primeiramente do jogo do bicho e de sua corte de pistoleiros, que se convertiam em personagens tutelares das Escolas de Samba, e, depois, com a difusão milionária do comércio de drogas, das do narcotráfico como seus “soldados”. Na esteira disso, abriu-se passagem para a organização das milícias, a pretexto de proteger a população favelada da ação dos narcotraficantes, como ocorreu com a favela de Rio das Pedras, na região oeste da cidade, arregimentando para sua operação a banda podre de policiais militares e civis, que se tornam senhores dos negócios de transportes, da venda de gás, até da construção civil, praticando extorsões, em nome da proteção que alegavam fazer, da população dos seus “territórios”.
A partir desse lugar de força, controlando boa parte das favelas e regiões próximas a elas, as milícias descortinaram o lugar da política, apresentando, em vários casos com sucesso, seus quadros ou representantes como candidatos às eleições municipais. O Rio corre o risco de se perverter em Gotham City, sem ordem, sem lei e religião, salvo a de pastores que lhe recomendam a panaceia do empreendedorismo e que também já descobriram o caminho do voto.
Trazer a cidade de volta à vida e às suas melhores tradições não é tarefa fácil, cuja significação não se limita ao local, porque afeta a própria sorte da democracia no país. Tem-se à mão, nesta sucessão eleitoral que se avizinha a oportunidade de começar a virar esse jogo maléfico. Os partidos políticos de compromissos democráticos não podem ignorar o caminho das alianças que lhes abram a possibilidade de devolver a cidade aos seus cidadãos depois de tantas experiências grotescas. Sobretudo devem estar atentos aos novos personagens que vieram à tona nesta pandemia, principalmente os que souberam armar a trama da rede solidária que protegeu os mais vulneráveis, os profissionais da saúde que com espírito cívico se empenharam na defesa da vida, sem esquecer aqueles que permaneceram firmes em seus compromissos democráticos.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
Luiz Werneck Vianna: A hora e vez da esquerda democrática
Somos testemunhas ainda nessas primeiras décadas do século de uma grande transformação apesar de não a sentirmos, tal como no movimento da terra em suas rotações, expressão de Joaquim Nabuco, e já iniciamos, embora ainda tateantes e inconscientes o começo de uma nova era. Contudo, dos anos 1980, de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, retomados por Donald Trump no nosso século, foram feitas vigorosas tentativas no sentido de parar a roda da história e fazê-la girar para trás, tanto nos esforços de nos devolver aos nacionalismos outrora semeados pelos estados-nação como em preservar a ideologia produtivista do neoliberalismo. Esse foi um tempo de desmonte de instituições e de direitos, de esvaziamento de organizações internacionais, como a ONU, de tentativas de invalidar a União Europeia (caso do brexit inglês) de depreciação da democracia e de suas formas de representação política, com a ressurgência anacrônica do populismo, inclusive em alguns casos na sua versão fascista.
Vários marcadores denunciam que tais esforços não têm logrado os resultados que deles se esperavam, quer por que se defrontam com obstáculos derivados das suas próprias ações na medida em que edificaram uma sociedade de risco, não só com a proliferação dos artefatos de guerra nuclear como também pela depredação do meio ambiente expondo a sociedade humana a uma sucessão de epidemias letais, quer por que têm encontrado resistência política por parte de partidos, movimentos sociais, especialmente entre os jovens, governos e religiões, como no caso forte da igreja católica.
De outra parte, as desigualdades sociais que se extremam no período neoliberal, expostas na monumental pesquisa do economista Thomas Piketty, esgarçam ainda mais os laços de solidariedade social, numa polarização aberta entre as classes dominantes e os seres subalternos, produzindo conflitos sociais agudos e cada vez mais intensos, particularmente agravados pela questão racial, exemplar na cena atual pelas ruas das grandes cidades americanas e não poucas europeias. E também por aí, numa chave branda de interpretação ao estilo do velho e estimado Durkheim, se infiltram as convicções de que o capitalismo nessa versão vitoriana não reúne mais condições de reprodução – sem base de sustentação em recursos que induzam a solidariedade social as sociedades derruem.
A sociologia e as demais ciências sociais não têm o condão de mudar o curso das coisas no mundo, apenas explicam com diferentes capacidades de persuasão o que se passa nele. O meio idôneo para transformá-lo, como se sabe, pertence ao reino da política que se encontra, no momento atual, diante da oportunidade de romper caminho para uma trajetória alternativa na sucessão presidencial dos EUA ao alcance das mãos em apenas três meses, quando poderá abalar ou mesmo por abaixo este derradeiro pilar neoliberal com a derrota eleitoral de Donald Trump. Na pior hipótese, caso ele triunfe, dadas as expressivas forças que ora se opõem a ele, que seja por meio de uma vitória de Pirro.
Sem a escora da política de Trump, garantia até aqui da reprodução da modelagem neoliberal, o teatro de operações na cena mundial terá diante de si uma bifurcação, categoria a gosto de Piketty, abrindo-se a possibilidade para a imposição de rumos entrevistos no curso das lutas contra a atual pandemia, em particular na valorização das políticas públicas de saúde, claramente percebidas no Reino Unido e no Brasil, dos mecanismos de cooperação internacional e os diversificados movimentos de ação solidária saídos do ventre da sociedade civil, inclusive os originários dos seus setores subalternos, e, muito especialmente, no papel do Estado como lugar de articulação dos esforços em defesa da vida, em que foram exemplares a Nova Zelândia e tantos outros casos nacionais. Tudo isso levado em conta afirmam tendências que importam em viradas de páginas e na percepção de que um novo tempo faz parte do campo das possibilidades em presença.
Sem tal escora ou com seu enfraquecimento, políticas que nela se arrimam, como notoriamente a brasileira, devem experimentar inflexões benévolas no seu curso, a serem exploradas pelas correntes políticas democráticas, a começar pelas sucessões municipais que se investem de um papel estratégico, inclusive em razão do seu desenlace prefigurar o cenário da próxima sucessão presidencial. Nesse sentido, a hora dos partidos é esta, e o que cabe, na contracorrente de uma bibliografia irresponsável que medra por aí, é valorizá-los e procurar influir na composição de suas alianças sem sectarismos e em torno de ideais democráticos. Quanto às candidaturas é essencial conceder representação privilegiada àqueles que se destacaram nas lutas pela defesa da vida da população, como os profissionais da saúde e dos que organizaram os sistemas de cooperação solidária no mundo popular. Além, é claro, de selecionar políticos com credenciais que os identifiquem com a democracia e com os temas relevantes para o mundo popular.
A catástrofe da pandemia que nos assola pôs a nu o caráter patológico da modelagem de sociedades sob hegemonias da ideologia neoliberal, e não por acaso EUA e Brasil lideram o ranking macabro de óbitos, ocupando os dois primeiros lugares. Obviamente que as candidaturas em suas campanhas eleitorais devem estar centradas nos temas que digam respeito às concepções de sociedade e de justiça, traduzidas no plano concreto por enunciados por políticas distributivas e de promoção social. Essa hora tem a cara da esquerda democrática a ressurgir nas ruas e no voto.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio
O DIA: "A má política condenou o Rio a essa decadência", diz Luiz Werneck Vianna
Sidney Rezende, O Dia
O cientista social Luiz Werneck Vianna, do alto dos seus 82 anos continua sendo um dos intelectuais mais lúcidos do país. Ele é o responsável pela formação de muitos brasileiros que foram seus alunos no IUPERJ e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nós procuramos para saber qual a explicação para cruel decadência do Rio de Janeiro.
A resposta não foi otimista: "O Rio de Janeiro precisa de muito tempo para se recondicionar, se refazer, se constituir, para uma vida democrática, civil. O Rio caiu na barbárie. Criminalidade à solta, crime organizado atuando de forma quase livre. É uma tragédia nacional. Tantas expectativas se acumularam no Rio de Janeiro, como farol do Brasil, mas está empobrecido, envelhecido, rebaixado.
É preciso que haja um esforço de todos. Das elites econômicas, culturais, científicas, da vida popular, para reerguer o Rio de Janeiro, econômica, social e politicamente. Foi a má política que condenou o Rio a essa decadência que ele vive. Em eleições à vista, pode ser que as coisas a partir delas comecem a apresentar um horizonte melhor. Mas, por hora, o ressurgimento do Rio de Janeiro social econômico e político ainda é fora do horizonte. Ainda temos que lutar muito para chegar perto dele".
Luiz Werneck Vianna: A resistência ao fascismo tabajara
Soam por toda parte os sinais de perigo e os toques de reunir. Forças malévolas que nos sitiavam, espreitando nossos movimentos e confiantes na pandemia que nos obriga, em defesa da vida, a evitar as manifestações nos espaços públicos, um recurso importante do nosso repertório defensivo, calcularam ter chegado a hora do assalto às nossas posições. Não há por que tergiversar, o risco é real e seu nome é fascismo – tabajara, mas fascismo – que nos ronda desde os anos 1930, derrotado por duas vezes, em 1945 e 1985, mas nunca erradicado, entranhado como está em nossa história de modernização capitalista autoritária.
Fernando Gabeira, em iluminado artigo no Estado de São Paulo na edição de 29 do corrente mês, a rigor um manifesto, bendiz o dom de receber na derradeira fase da sua bela trajetória pessoal a missão de lutar pela democracia. Tal missão a todos, de todas as gerações, é confiada nesse momento difícil em que a sociedade se vê acuada pelo flagelo de uma epidemia letal. Hegel dizia que a escravidão somente era possível quando o bem da vida se punha acima do bem da liberdade. Nosso caso não é tão dramático, mesmo confinados contamos com espaços de liberdade e recursos para uma livre comunicação por meio da internet, conquista civilizatória ao alcance de todos.
Gabeira está consciente disso e dos limites que nos atam diante dos imensos recursos das forças que nos sitiam, mas os homens pensam e criam, e os desafios que nos confrontam exigem imaginação e inventividade. O caso da favela paulista Paraisópolis e de outras comunidades populares nos servem como paradigmas exemplares, a organização por conselhos, por sovietes, formas clássicas presentes em lutas populares, bem celebradas na obra de Hanna Arendt, ensinam caminhos a serem percorridos.
Em suas ações de defesa da vida, ameaçadas pela difusão da epidemia que a todos assola, as comunidades populares têm encontrado o apoio em círculos externos a elas, intelectuais solidários, pessoas e instituições de boa vontade, especialmente na Universidade e nos seus especialistas em saúde pública e técnicas de organização social. Surgem dessas inovações uma trama promissora, ainda em embrião, a combinar a agenda da defesa da vida com a da liberdade, pauta dos intelectuais ameaçados tanto pela pandemia como pela escalada autoritária em curso que tem como alvo o mundo da cultura e seus valores.
Tal descoberta para se impor na vida social depende da manifestação da vontade, muito particularmente da Universidade, que conta em seus quadros com especialistas capazes de levarem a termo a sua difusão mesmo nas circunstâncias adversas em que todos nos encontramos. A propósito, vale lembrar os protestos atuais contra a violência policial na sociedade americana –um caso extremo em que cidadãos se arriscam ao contágio pelo vírus diante da luta por liberdade –, exposta como a nossa à pandemia. Aqui, estamos começando a aprender a nos reunir e deliberar pela internet.
Decerto que a resistência nessa escala minimalista não tem o condão de opor uma linha forte de resistência ao avanço crescente do autoritarismo, embora em si mesma ela represente um reforço possível da sociedade civil e de suas ações. O reduto principal do sistema defensivo da nossa democracia está nas instituições que herdamos da Carta de 88, principal foco do assédio autoritário em suas tentativas cada vez mais intensas no sentido de neutralizá-las e, no limite, erradicá-las. O poder judiciário, um poder desarmado escorado apenas em sua autoridade moral, somente poderá resistir ao assédio de que é objeto se encontrar sustentação na opinião pública, nas instituições da sociedade civil e nos movimentos sociais que animam a vida popular. Sobretudo na disposição de reiterar aqui o esforço exemplar dos cidadãos americanos nos dias que correm de defesa intransigente dos seus direitos constitucionais.
Para uma defesa eficaz contra os perigos que nos rondam, não basta inventariar os recursos de força com que contamos, morais e organizativos, entre os quais os entes federativos refratários à escalada autoritária que se prepara para um golpe final em nossa democracia. A reunião do nosso sistema de defesa requer imperativamente a capacidade de sobrepor o interesse comum, qual seja o de evitarmos o abismo que se abriria diante de nós se permitirmos a ocupação do nosso país por forças estrangeiras à sua história e às suas tradições de perseguir os fins de uma obra civilizatória. Torna-se necessário também compreender a que aspiram as forças que nos antagonizam e a lógica que organiza sua movimentação.
O triunfo da coalizão de forças heterogêneas na sucessão presidencial contou como uma de suas palavras chave a ideologia do neoliberalismo, por meio da qual atraiu o apoio decidido das elites econômicas, especialmente das financeiras e agrárias, presença dominante no capitalismo brasileiro atual. Com essa marca de batismo, o novo governo nasce em antagonismo com a Constituição, de concepção, em seus traços principais, socialdemocrata. Remover a Carta, considerada como entrave aos seus fins econômicos, tornou-se assim um objetivo estratégico do governo Bolsonaro em seu projeto de capitalismo de estilo vitoriano, endossado por seu ministério, tendo à frente a anacrônica presença do ministro Paulo Guedes.
Em razão da arquitetura da Carta, que confiara a defesa dos direitos que criara a uma rede complexa de instituições, ao estilo da Constituição americana e com elementos importados do sistema alemão, a ser sustentada, em última instância, pelo Poder Judiciário, em particular no Supremo Tribunal Federal, o regime Bolsonaro identificou de pronto o inimigo a ser confrontado. O teatro das operações ora em curso estava armado, e a palavra de ordem delenda Cartago com que os romanos preparavam sua guerra de extermínio contra a sua cidade rival pelo domínio do mar Mediterrâneo, encontra sua tradução nos desígnios do atual governo de defenestrar o Poder Judiciário do sistema político, entregue apenas à jurisdição dos conflitos privados.
A vontade do poder, encarnada no chefe da nação, não deve reconhecer obstáculos à sua manifestação, leitura privilegiada dos desígnios de Deus, da pátria e da família. Com pandemia e contra todos os riscos, o que há de melhor em nós, acima de todas as diferenças entre nós, não podemos aceitar isso.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
IHU On-Line: 'Estamos num momento de empate; não de impasse', diz Luiz Werneck Vianna
Transcorrido um ano desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o caminho pelo qual o país enveredou já não é mais “misterioso”, como advertiu o sociólogo Luiz Werneck Vianna em janeiro do ano passado na entrevista que concedeu à IHU On-Line. Ao analisar o primeiro ano do governo Bolsonaro à frente da Presidência da República, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio é categórico: “Ficou claro neste primeiro ano que o tabuleiro que está posto na nossa frente é de uma guerra de posições. O governo está acantonado na sua trincheira, tentando implementar o seu projeto, que consiste em destruir o que havia antes e começar algo que considera que seja novo”. Do outro lado, diz, está a sociedade civil, que busca formas de resistir através do fortalecimento dela própria e das suas agências. “O importante, a meu ver, é que não há mais nada enigmático, está tudo claro: o que o governo quer e como a sociedade pode responder às pretensões autoritárias do governo”, assegura, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Na avaliação dele, a disputa de posições em curso no país “favorece mais a sociedade, porque deixa à vista de todos que o governo trabalha com certas limitações políticas e institucionais. Ele não pode tudo, embora ele tente, a cada passo, um avanço; tenta sair da sua trincheira e avançá-la um pouco a mais, mas é obrigado a voltar, porque não consegue consolidar suas posições mais à frente”.
Para ele, 2020, ano que será marcado pelas eleições municipais, sinaliza que estamos entrando em um cenário novo, distanciando-se da era pré-Bolsonaro. “É novo porque neste ano tem a novidade das eleições municipais, que vão mexer com este país, vão facilitar os encontros, as alianças, a formulação de projetos alternativos. (...) As eleições deste ano são um balão de ensaio para isso, especialmente em alguns estados relevantes da federação”. A longo prazo, o sociólogo avalia que a sociedade caminha na direção de alternativas ao projeto do governo. “Há um movimento das coisas atuando na sociedade que propicia a emergência da novidade, da nova personalidade política e intelectual. Não estamos congelados no tempo”, conclui.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na entrevista que nos concedeu no ano passado, logo depois da posse do presidente Bolsonaro, o senhor disse que o país havia enveredado para um caminho muito “misterioso” e não se sabia para onde a balança iria pender. Depois de um ano de governo, já é possível saber para qual lado a balança pendeu? Como o senhor avalia o primeiro ano do governo Bolsonaro?
Luiz Werneck Vianna – Este foi um ano de aprendizado para o governo e para a sociedade. Para o governo, porque ele testou os seus limites e as ideias que apresentou na campanha. Para a sociedade, porque ela aprendeu a encontrar formas de resistência ao projeto do governo. Ela deixou de ficar atônita, perplexa e passou a encontrar formas de respostas. Pelo menos o esforço disso ocorreu.
IHU On-Line - Como o governo se saiu neste primeiro ano, ao testar seus limites?
Luiz Werneck Vianna – Ficou claro neste primeiro ano que o tabuleiro que está posto na nossa frente é de uma guerra de posições. O governo está acantonado na sua trincheira, tentando implementar o seu projeto, que consiste em destruir o que havia antes e começar algo que considera que seja novo. Estamos na fase da demolição, mas haverá outras. O importante, a meu ver, é que não há mais nada enigmático, está tudo claro: o que o governo quer e como a sociedade pode responder às pretensões autoritárias do governo.
Agora estamos num cenário novo. É novo porque neste ano tem a novidade das eleições municipais, que vão mexer com este país, vão facilitar os encontros, as alianças, a formulação de projetos alternativos. Eleição no Brasil é sempre algo que traz novidade e esta não vai ser diferente. Estamos nos dissociando do período anterior, pré-Bolsonaro, assumindo novas identidades, identificando novos problemas e novas soluções. A intenção do governo é simplesmente erradicar todos os obstáculos que estão postos diante de uma afirmação capitalista selvagem no sentido de um projeto neoliberal, como se a experiência chilena encontrasse lugar aqui.
A sociedade brasileira é muito adversa, refratária a isso, independentemente de formações partidárias, ideologias. A resistência a uma ação econômica descontrolada como a que se quer introduzir é algo entranhado na nossa formação. Na questão ambiental, por exemplo, se quer remover os obstáculos que se manifestam nessa dimensão, como a questão indígena, e promover aí um capitalismo selvagem, com garimpos, avanço do agronegócio; isto está visto e não há mais enigma. O projeto do governo está visível diante do olhar de todos.
IHU On-Line – Como o parlamento tem reagido a esse projeto e às tentativas do governo de colocar seu projeto em curso?
Luiz Werneck Vianna – O parlamento tem afrontado tudo isso. Embora esse parlamento tenha uma representação mais fraca do que alguns anteriores, ele é expressivo da nossa cultura política e, para ele, há limites. Ele tem deixado isso claro. Essa não é uma novidade, porque isso apareceu no transcurso do ano que passou. Mas há novidades na emergência de novas lideranças intelectuais muito relevantes.
IHU On-Line – Quais, por exemplo?
Luiz Werneck Vianna – Armínio Fraga, por exemplo, que vem do campo liberal e contesta o neoliberalismo primitivo com o qual o governo desempenha seu papel. Ele está atento à questão social, à necessidade de enfrentar as imensas desigualdades brasileiras e, não à toa, ele está sendo cortejado pela classe política como um novo intérprete – um intérprete interessante – do status quo que estamos vivendo.
O imperialismo político, longe de estar banido da cena pública brasileira, se fortalece a cada passo. Inclusive, encontra muita expressão na vida institucional, especialmente no parlamento e no poder Judiciário, sobretudo no Supremo Tribunal Federal, que tem servido como marcador da resistência da sociedade a esse projeto do governo que visa a sua desfiguração.
É uma guerra de posição em que estamos empenhados: governo de um lado, sociedade do outro. No horizonte não há nada que diga que uma das posições vai ceder para o avanço da outra; então, é uma guerra de posição continuada. Agora, a continuidade dela favorece mais a sociedade do que o governo, porque deixa à vista de todos que o governo trabalha com certas limitações políticas e institucionais. Ele não pode tudo, embora ele tente, a cada passo, um avanço; tenta sair da sua trincheira e avançá-la um pouco a mais, mas é obrigado a voltar, porque não consegue consolidar suas posições mais à frente. Por que o governo resiste tanto? Porque tem o apoio das elites econômicas, especialmente das elites financeiras. Mas isso não basta. Nem aqui nem em lugar algum isso bastou, especialmente numa sociedade complexa como a nossa, num país continental, numa federação desigual. As dificuldades para isso são muito grandes. Eu diria que é uma impossibilidade, até.
Para onde estamos andando? Para que essa guerra de posição cada vez mais se sofistique, para que a sociedade recupere os seus movimentos. Coisas novas estão ocorrendo. Por exemplo: a revitalização da Associação Brasileira de Imprensa - ABI; toda a experiência acumulada na luta contra o regime de 64 está vindo à superfície. A sociedade pode resistir pelo fortalecimento dela própria, das suas agências, da sociedade civil.
IHU On-Line – No início do governo Bolsonaro, alguns analistas disseram que o governo era composto por alas, como a ideológica, a neoliberal e a militar. Transcorrido um ano de governo, quais são as correntes que predominam na condução deste projeto? Há uma unidade em torno do objetivo fim do governo ou disputas internas entre as correntes?
Luiz Werneck Vianna – Isso não está bem compreendido. Ainda não temos informações suficientes para o entendimento dessa questão. Sabe-se, por exemplo, que na questão da política externa, os militares têm sido mais prudentes, mais inteligentes do que o governo. Um exemplo é a questão da Venezuela, onde havia a pretensão maluca de uma investida militar contra o país, a qual não encontrou passagem entre a elite militar. Nesta questão sobre o Oriente Médio, intensificou-se na elite militar uma certa resistência a posições aventureiras do governo brasileiro quanto à política com o Irã.
Nós fomos grandes vendedores para aquela região. Voltamos a uma fase pobre da economia. A indústria está fraca e cada vez mais enfraquecida, sem capacidade de reação. Tirando o mundo das exportações das mercadorias do agronegócio, não temos nada na mão, mas uma parte importante do mercado está no Oriente Médio e temos que trabalhar com luva de pelica nessa região. Acho que os militares estão atentos a isso. Tenho minhas dúvidas, para falar de forma eufemística, de que o governo compreenda essa questão. Ele age por necessidade, porque, por impulso, teria se envolvido mais na questão da Venezuela e do Oriente Médio.
A sociedade acumulou muita experiência ao longo das últimas décadas e as classes sociais e as instituições não são ingênuas em relação ao que está se passando aqui e no mundo.
IHU On-Line – As instituições continuam funcionando neste governo?
Luiz Werneck Vianna – Um dos alvos preferidos deste governo é o Judiciário, especialmente o STF, que conta como cavalo de batalha do ex-juiz Moro, o qual, em nome de uma cruzada contra a corrupção - uma cruzada idiota e que não faz sentido algum -, ganhou uma parte da opinião pública e projeção na mídia, e provoca o Supremo a cada passo.
A vida institucional tem servido de obstáculo para o aprofundamento das experiências autoritárias que o governo quer fazer. Aonde isso vai parar? Guerras de posição podem se converter em guerras de movimentos. Não é o caso de a sociedade se mobilizar agora para uma guerra de movimentos, pois ela não tem força para isso; mas o governo pode. Mas pode cometer aventuras nessa direção. Ele tem tentado descobrir um caminho para isso, mas está difícil, porque ele não tem suporte interno. Por exemplo, os militares são muito avessos a concepções aventureiras. A instituição militar tem séculos de experiência da vida republicana brasileira. A tentativa de fazer o governo passar de uma guerra de posição para uma guerra de movimento é uma aventura sem tamanho. Ele não tem força na sociedade, nem partido, nem movimentos sociais para isso. Tem arremedos como esse novo partido [Aliança pelo Brasil], que é uma ressurreição do Partido Integralista.
Estamos num momento de empate; não de impasse. A sociedade vai tendo mais força a cada momento que passa e novas lideranças surgem, como Armínio Fraga e outras que estão surgindo por aí. O novo é imprevisível e a emergência dele não está sendo abafada por um autoritário. Veja a mídia: ela está desenvolta, você encontra articulistas e colunistas trabalhando facilmente nessa linha de procurar frentes de resistência ao que está aí. Agora, quando isso vai se constituir num movimento ofensivo por parte da oposição, não dá para saber. O fato é que as eleições deste ano são um balão de ensaio para isso, especialmente em alguns estados relevantes da federação.
IHU On-Line – Como as eleições podem dar início a mudanças no cenário político e movimentar a cena política?
Luiz Werneck Vianna – O governo vai sem partido para estas eleições. Tudo que é institucional se volta contra o governo Bolsonaro, porque é da natureza desses movimentos quererem autonomia, apoio da sociedade, e não se pode ter apoio da sociedade recusando saídas para ela. A trajetória de um [João] Doria, por exemplo, é absurdamente errática, de um político que sente que o caminho do governo Bolsonaro não é favorável a ele e fica procurando alternativas na sociedade. Como vai operar isso? Imagino que seja procurando alternativas mais ao centro e por aí vai. Esse é um caso extremo de um político muito oportunista, carreirista, mas que serve de exemplar para governar um grande estado como São Paulo.
A solução pluralista é muito grande. No caso do Rio de Janeiro, o [Marcelo] Crivella foi e é um pesadelo que a sociedade carioca vive. Agora vem o carnaval, que por si só é contraditório ao governo Crivella. Vai ser um carnaval daqueles, com 50 dias, e a sociedade vai cantar com os sambas-enredos, que têm uma narrativa democrática, pluralista, de valorização das coisas do povo, ao contrário do que está aí. Nós não somos uma sociedade totalitária. Podemos até estar correndo o risco de nos tornarmos, se errarmos muito na condução da política, mas não somos. O governo é autoritário, mas não pode tudo, tem o parlamento, o Congresso, a opinião pública, que ainda é incipiente. O fato da ressurreição da ABI, a meu ver, é muito significativo, assim como o de outras instituições, como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, que são experiências muito frutuosas que tivemos nos anos 1970 e que estão sendo resgatadas agora.
Está faltando a vida associativa, a política de vizinhança, especialmente no mundo popular. A política do PT nunca foi favorável a isso e essa é uma das heranças desgraçadas que o PT deixou: a falta de um entendimento do papel que a organização da vida popular pode ter. Faltam também os sindicatos, por ora muito enfraquecidos, mas o mundo do trabalho está aí, o desemprego está aí. O combustível da insatisfação do mundo do trabalho permanece e vai ficar silencioso agora, mas por quanto tempo? Não dá para subestimar a vida do trabalho e a vida associativa dos trabalhadores.
Por outro lado, estão aparecendo movimentos intelectuais da elite brasileira muito interessantes, com nova bibliografia, novas personalidades. Eles não estão emergindo com uma inclinação autoritária, antipopular, antidemocrática; ao contrário. Tudo isso que estamos vendo apenas em botão, vai amadurecer muito lá na frente, especialmente no processo eleitoral.
Uma liderança política emergente como esse jovem apresentador de televisão, o [Luciano] Huck, aparece preenchendo teses autoritárias? Não. Seu discurso é o da redistribuição de renda, da democracia política, da força das instituições. Sei lá se ele vai vingar como político – espero que sim. Mas há outros que estão vindo na mesma direção, porque na verdade há um movimento das coisas atuando na sociedade que propicia a emergência da novidade, da nova personalidade política e intelectual. Não estamos congelados no tempo.
IHU On-Line – O senhor está otimista com o futuro e com possibilidades de mudança a partir das eleições municipais?
Luiz Werneck Vianna – Neste sentido, mas não a curto prazo. O projeto do governo, para avançar, precisava recorrer a um discurso de natureza totalitária, mas vai fazer isso com quem? Não tem material humano para fazer isso. Os militares não estão dispostos a exercer esse papel. Tem aí um bando de intelectuais fora do tempo, anacrônicos, como o Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, e Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, mas essas são pessoas condenadas a uma vida episódica, de borboleta. Eles não estarão aí nos anos que vêm, não têm solo para se instalar, para se reproduzir. Eu estou olhando no longo curso. Não estou dizendo que as coisas vão acontecer agora, mas dizendo o que não pode acontecer, como, por exemplo, o governo investir mais no seu projeto autoritário; tem limites para isso.
IHU On-Line – Qual é a expectativa em relação ao governo neste ano?
Luiz Werneck Vianna – Pelo que entendemos da prática do governo até aqui, ele não vai mudar. Ele vai continuar neste caminho, insistindo na abertura de novas possibilidades para uma sociedade diferente da nossa: ele quer destruir a antiga para construir a nova, para edificar um projeto neoliberal e sujeitar a sociedade a um movimento livre do capitalismo selvagem. Essa é a pretensão do governo: um economicismo primário do ministro Guedes, que entende que a economia é capaz de, sozinha, mudar o mundo. Não é; nunca foi. Ela precisa da política, precisa da sociedade, e só o movimento do mercado não é capaz de trazer a novidade para nós. Mas essa é a marca do governo e ele não vai abandoná-la, porque faz parte do seu DNA.
Estamos, aos poucos, encontrando formas de resistir, e a resistência hoje é diversa daquela que ocorreu nos anos 1960: até agora não se falou – e espera-se que não se fale – em resistência armada. A sociedade teve um aprendizado com isso. A senha para o avanço da direita, para uma sociedade totalitária, estaria numa esquerda que perdesse o rumo, perdesse o tino, mas como isso não ocorreu, não ocorre e provavelmente não ocorrerá, o governo se debate com ele mesmo diante de uma sociedade cada vez mais complexa e diferenciada. Em qualquer circunstância, este é um país difícil de governar.
O Brasil, como disse o nosso grande poeta, não é para principiantes. Esta gente que está aí é principiante. O Guedes não entende nada da sociedade brasileira, se é que ele entende alguma coisa de economia. Ele não sabe qual foi a história do capitalismo brasileiro, a formação da burguesia brasileira, e se recusa a entender o papel que o Estado teve, que a política social teve na imposição do capitalismo entre nós, especialmente no mundo sindical. Através da fórmula corporativa, o sindicalismo foi atraído pela ordem burguesa na era Vargas, de forma harmoniosa; tutelada, mas harmoniosa. Agora, sem o mundo do trabalho, como a economia vai se montar, se edificar? Sem a inovação tecnológica da robótica, da inteligência artificial, como isso vai ficar? Com universidades sem recursos, com uma formação universitária capenga, com um sistema educacional desses? Não vai, não tem como.
Você esboçou que eu estaria otimista. Não é verdade, mas fico olhando e consultando as possibilidades que estão aí e as possibilidades de se constituírem forças alternativas ao que está aí. Isso está acontecendo. É lento? É muito lento. Precisa de calma? Precisa. Paciência, perseverança dia a dia; é uma luta do cotidiano.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Luiz Werneck Vianna – Estou preparando um curso sobre a teoria política de Hannah Arendt e estou sendo obrigado a viver nos anos 1920, 30, com o avanço do totalitarismo, do imperialismo, que são os temas da autora. Vivo isso também na minha realidade cotidiana, e vivo imerso nessas cogitações. E comparando o momento de hoje com o que foi o advento do totalitarismo, principalmente do nazifascismo dos anos 1930, a nossa situação é completamente diferente. Inclusive, vivemos um tempo em que a hegemonia americana não é mais o que era. Qual é a data disso? O desfecho da crise com o Irã no Oriente Médio e o avanço da China na economia – um avanço dotado de movimentos de irreversibilidade. A Rota da Seda passa pelo Irã. A influência da política externa no Brasil no que se refere à logística da produção brasileira é apenas o começo da investida da China no nosso mundo. A Rússia está assentada no arsenal atômico monumental, inabalável. O que pode, nesta altura, o exercício do império americano? Ele está cheio de limitações internas.
A questão ambiental pega gregos e troianos, e não há como fugir dela. Ela tem, por natureza, um elemento de correção do capitalismo na sua fisionomia atual. O capitalismo precisa de limites ambientais, sociais e políticos. Acabou-se o tempo do exercício do poder discricionário da economia nas coisas do mundo. É isso que o Guedes não entende. Florações como Guedes, Araújo, Salles, são florações de uma primavera; não resistem à mudança de estação.
Luiz Werneck Vianna || A procura de um ator
Cumpridos sete meses de disputas encarniçadas ainda não se divisa qual partido tem levado vantagem na guerra de posições em que estão envolvidos o governo com as forças políticas que o apoiam no sentido de desviar o curso do nosso processo de modernização, vigente em linhas gerais desde os anos 1930, e as que se opõem, embora erraticamente, a tal movimento. De qualquer modo, pode-se constatar que se houve veleidades de uma ação do tipo blitzkrieg, rápida e fulminante, a fim de levar de roldão o sistema da ordem da Carta de 88, ela saiu do plano das cogitações oficiais, admitindo os estrategistas dessa operação que ela exige um tempo longo de maturação, para o que já se cogita mais um período presidencial.
Longe de serem uma linha maginot facilmente devassável, as instituições postas pela Carta de 88 tem-se mostrado robustas e resilientes, contrariando os incréus, ao assédio que lhes são feitas. Daí serem elas o objetivo estratégico do governo e seus aliados, principalmente o grande empresariado das finanças e do agronegócio, que identificam nelas obstáculos à expansão dos seus negócios, tal como na afirmação do princípio da solidariedade social, obstáculo ao modelo de capitalização desejado pelo super ministro da economia em favor das finanças, e da defesa do meio ambiente e das terras indígenas cobiçadas pelo agronegócio e pelo setor da mineração.
É próprio das guerras de posição de que as partes em conflito não só se mantenham firmes na defesa do terreno ocupado como procurem se assegurar das suas bases de abastecimento, de apoio político e social. Na atual circunstância em que ora se vive aqui é preciso destacar as vantagens com que contam o governo e seus aliados sobre seus oponentes, a começar pelo fato elementar de deterem a iniciativa das ações, com o que selecionam a seu favor o tipo dos embates com que fustigam seus adversários. Outra vantagem não negligenciável deriva da inexistência no campo das oposições de lideranças que organizem sua heterogênea composição, quer as de origem política quer as intelectuais, viciadas em seu gosto idiossincrático pelo protagonismo, dificultando, quando não impedindo, ações concertadas.
Contudo, pode-se considerar como passageiras algumas dessas desvantagens por que de fácil remédio. O estoque de reservas mobilizáveis pela oposição é muitas vezes superior ao que se apresenta como disponível pelo governo e aliados, e que tende a crescer em razão do estilo truculento e errático que tem caracterizado suas ações, prisioneiro até então da biografia e da personalidade agressiva do seu maior condutor, o presidente da República. O sindicalismo, os intelectuais, os estudantes, o amplo mundo das classes subalternas, a massa considerável da população se encontra à margem da agenda governamental que não dispõe de políticas de legitimação para elas. No caso, vale lembrar que o regime militar – pretenso espelho do governo atual – adotou em busca de legitimação, com êxito durante certo tempo, a via da expansão econômica, objetivo inteiramente ignorado pelos agentes atuais da política econômica.
Nesse cenário de disputa não se trata de uma corrida contra o tempo. Salvo imprevistos dramáticos, os atores que se contendem devem continuar em seus esforços de acumulação de forças, contrapondo o projeto de erradicação da Carta de 88, fórmula concisa da estratégia do governo e seus aliados, dos que a defendem. São dois projetos antagônicos de concepção de ordem e de sociedade, e nisso a vantagem se encontra mais no lado dos seus defensores do que naqueles que a atacam, em razão do óbvio motivo de que a Carta já está aí, conta com trinta anos de existência e penetração capilar em todas as regiões do social.
Daí estarmos envolvidos numa batalha de ideias, apesar de se ter uma débil compreensão a respeito desse fato. Grande parte dos nossos intelectuais, como reação à rusticidade e à brutalidade das ações do governo, tem-se dedicado, muitas vezes com brilho, a explorar pelas artes da ironia a fraqueza e a ausência de argumentos com que são formuladas as suas iniciativas. Ficar nisso não altera em nada a atual disposição de forças. O endereço principal da crítica deve ser o da estagnação da economia, do crescimento das desigualdades sociais, da falta de alento na vida social, da baixa estima quanto aos nossos valores e à nossa história. Para tanto, conta-se com um rico inventário na nossa bibliografia a ser expandido e exposto a uma revisão crítica e que tenha como alvo a valorização da nossa cultura e o reconhecimento dos nossos êxitos civilizatórios, recusados arbitrariamente pelo conjunto de forças que animam o governo que aí está.
Lembrar que o movimento vitorioso na derrota do regime militar nasceu escorado numa larga produção cultural, inclusive universitária, constante desse acervo a produção de teses de doutorado que se dedicaram à pesquisa das raízes do nosso autoritarismo e das nossas desigualdades sociais, exemplares dessa vasta coleção a obra de Florestan Fernandes em a Revolução Burguesa no Brasil e São Paulo, crescimento e pobreza, trabalho coletivo inspirado pelo Cardeal Paulo Evaristo Arns, ambos de meados dos anos 1970. São fios a serem retomados a fim de dotar as forças da oposição ao que aí está de um plano de navegação em meio a essa tempestade que se abateu sobre nós, cuja duração parece longe de arrefecer.
Finalmente, deve-se atentar para o contexto internacional em que o país vem dando largos passos em direção a um alinhamento incondicional à política do presidente norte-americano Donald Trump, rompendo com a tradição de autonomia da sua política externa, vigente inclusive durante o recente regime militar, e que, no limite, pode trazer prejuízos a muitas de suas atividades econômicas, como no caso do agronegócio. Contradições severas, portanto, caracterizam o momento atual, e que demandam por parte de um ator, que ainda não temos, amplo descortino da situação, sangue frio e perseverança no sentido de afastar os perigos que rondam a nossa democracia e o destino do seu povo. O esforço de agora é para construir um ator capaz de intervir com eficácia nessa cena.
Luiz Werneck Vianna: O Desencontro trágico entre a fortuna e o ator na experiência brasileira
Não é a primeira vez que temos a desventura de nos encontrar numa situação como esta que aí está. Com o Estado Novo de 1937 que se prolonga até 1945 tem início este ciclo infernal, que, com interrupções provocadas por movimentos democráticos – embora mesmo nesses momentos tenha permanecido de modo latente na vida institucional e política como se manifestou na tentativa do golpe militar para impedir a posse do presidente eleito JK. Inaugura-se outro ciclo com a intervenção militar de 1964, especialmente após a imposição do AI-5, em 1969, que derrogou o que havia de democrático na Carta de 1946. Mais uma vez por força da resistência da sociedade, em 1985 a democracia ganhou nova oportunidade, apesar de sua volta não ter importado ruptura com o regime autocrático que até então vigia sob a institucionalidade do AI-5. Como se sabe, o caminho adotado foi o da transição política que abriu caminho para uma assembleia nacional constituinte, restaurando-se as liberdades civis e públicas que o regime anterior tinha expurgado da política.
A Carta de 1988 teve a pretensão de sepultar as possibilidades de retorno do autoritarismo político afirmando uma forte adesão ao liberalismo e ao sistema da representação, e robustecendo de modo inédito o poder judicial por meio de novos institutos como o mandato de injunção, e com a recriação do papel do Ministério Público que será deslocado do eixo estatal, conforme antiga tradição, para o da sociedade civil, a quem foi confiado, entre outras, a missão de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, figura inexistente no direito comparado
Com a ressalva do PT, já um importante partido, influente no sindicalismo e com a auréola portada por seus dirigentes de ter conduzido greves vitoriosas no regime militar, a nova Carta encontrou recepção positiva na sociedade. Estava aberta uma via real para a internalização da democracia política entre nós. As instituições eram propícias e o cenário internacional favorável, faltava a ação humana capaz de portar uma política que soubesse se aproveitar dos bons ventos da fortuna que a tinham levado a seus êxitos contra o regime militar. Vargas Llosa, nas primeiras páginas de Conversa na Catedral, clássico da literatura latino-americana, indaga, amargando a história do seu país, o Peru, quando foi que ele se ha hodido. No nosso caso talvez resposta a uma questão desse tipo esteja no momento em que se abre a conjuntura da primeira sucessão presidencial do novo regime democrático institucionalizado com a Carta de 88. Aqui o que faltou não foi a fortuna, que nos sorria, mas o ator que, com suas ações desastradas malbaratou as oportunidades de que dispunha.
Findo o governo de transição, que foi o de Sarney, estava aberta a primeira sucessão presidencial sob a égide da nova Constituição. É aí, nesse momento de importância capital que os atores políticos abandonam suas práticas de alianças tão bem-sucedidas na hora da resistência ao regime militar e dos trabalhos constituintes, particularmente entre a esquerda e os liberais, e passam a procurar caminhos solitários. Vale lembrar que o hoje extinto PCB apresentou à sucessão uma candidatura própria, refugando apoio à candidatura de Ulisses Guimarães, a maior liderança surgida nas lutas pela democratização do país, comportamento que se reiterou no PT. Selou-se, então, a fratura entre o campo do social e das forças políticas liberais, fatal para o transcurso do processo que se segue.
Deslocado o eixo da política de alianças, o quadro político se fragmenta e abre espaço para a passagem de cavaleiros da fortuna, com a vitória eleitoral de Collor, um político de Alagoas sem registro na história da resistência ao regime militar. Doravante estavam perdidos os fios de comunicação com a história dos movimentos e lideranças que resistiram ao regime autoritário, quando se obscurece a relevância do tema de um necessário aprofundamento das instituições da democracia política.
O governo Collor durou pouco, inclusive por falta de sustentação congressual – ele foi eleito por um pequeno partido –, atalhado por um impeachment com larga aceitação popular. Registre-se que tanto para sua eleição – a denúncia dos marajás da república – como para seu impedimento os temas dominantes foram os que se orientaram para os temas da corrupção de agentes estatais, A dissociação entre as agendas do tema do social e da democracia política, de armação complexa e altamente dependente do tirocínio dos atores políticos, produziu, então, o resultado nefasto da ocupação do campo da política pelas questões afetas à moralidade, terreno fértil para a demagogia e para as disputas estéreis da competição política esvaziada das questões substantivas atinentes aos rumos do país. Fechava-se a cortina para a grande política.
A época virtuosa do encontro entre a democracia política com os portadores da questão social ficara para trás com o país e suas estruturas econômicas e sociais ameaçadas por uma inflação crescente cuja escalada parecia não ter fim. O governo Itamar, que sucede ao de Collor, teve o mérito de procurar restaurar a política de alianças da oposição ao regime militar, embora não tenha contado com a participação do PT ( a deputada federal Luiza Erundina do PT que o apoiou foi punida por seu partido), lacuna que, no entanto, não o impediu de assentar fundamentos para a recuperação da economia e da estabilização político-institucional, e conduzir com sucesso sua sucessão presidencial com a candidatura de Fernando Henrique Cardoso.
Fernando Henrique tinha uma história significativa no movimento da resistência ao regime militar, exercendo a representação do estrato dos intelectuais, quando estabeleceu pontos de comunicação com as elites políticas aderentes ao liberalismo político e com o sindicalismo, a essa altura já liderado por Luiz Inácio da Silva, e construiu sua candidatura e campanha presidencial em aliança com um partido liberal, o PFL, que contava em seu histórico com vários políticos remanescentes do regime militar. O candidato foi lançado pelo PSDB, surgido poucos anos antes e de programa socialdemocrata, embora não viesse a contar em suas bases representação efetiva do meio sindical e do mundo do trabalho em geral, com a opção do PT de apresentar candidatura própria. A socialdemocracia à brasileira nasce, assim, ao contrário de sua inspiração europeia distante das classes subalternas e como uma construção de intelectuais.
Seu governo se pautou pelo exercício de uma forte intervenção modernizadora no campo da vida econômica, formulando e implementando com sucesso uma política de combate à inflação e de redefinição do papel do Estado na economia, cujos êxitos lhe asseguraram, com facilidade, como sabido, a sua reeleição.
A forma frágil em que nascera a socialdemocracia entre nós a condenara a uma morte prematura, e, assim, na sucessão seguinte abriu-se um caminho de oportunidade eleitoral para o PT, coroando o lento e progressivo acúmulo de forças políticas e eleitorais, sempre sob a liderança de Lula, que, em nome da questão social, se confrontara com todos os governos anteriores. A hora do social havia chegado. Sob este signo, o governo e as políticas de Estado deveriam agir no sentido de resgatar a imensa hipoteca social que pesava no país. A correção dos males herdados das nossas origens dependia de uma vontade política iluminada que soubesse intervir sobre a sociedade no sentido de transformá-la. Com estes objetivos, diante de uma sociedade conservadora, com suas elites senhoras dos cordéis da vida econômica e detentoras do controle dos principais meios de comunicação – o PT, ao contrário de Vargas, que favoreceu a criação de um jornal de massas, a Última Hora, não criou o seu. Seu enfrentamento com as elites seria confiado, fundamentalmente, aos movimentos sociais, dos tradicionais aos novos, estes últimos, em geral, saídos dos emergentes movimentos identitários.
Designei em artigo tal processo como o Estado Novo do PT, pretendendo qualificar a mutação que este Partido conhecia em sua história de críticas ao Estado e de valorização da sociedade civil da qual passa a se descurar. Essa tendência de afirmou ao longo do tempo, e, como se sabe, importou em perda da autonomia dos movimentos e da sua capacidade de mobilização. Dilma Roussef, que sucede a Lula na sucessão presidencial, quadro político formada no interior do Estado, sem história relevante nos movimentos sociais, exaspera o papel do Estado na condução da economia, vindo a afrontar as forças de mercado com que Lula sempre soube negociar. Apeada por um impeachment de fundamentos obscuros, o governo Temer que a sucede se aplica no favorecimento da agenda portada pelas forças de mercado. A agenda do social sem as escoras estatais que lhe serviam de sustentação e forças próprias que a defendesse, vai-se tornar presa fácil, como ficou claramente demonstrado com a aprovação congressual da reforma trabalhista.
De outra parte, a operação Lava Jato em nome da luta contra a corrupção – agenda testada com êxito contra Vargas nos anos 1950 – levava ao pelourinho a classe política, rebaixando a dimensão da política a uma atividade escusa. O sebastianismo, presença nunca de todo erradicada em nossa sociedade, retorna com força no culto endossado por amplos círculos sociais, inclusive intelectuais, a juízes e promotores públicos à testa da Lava Jato, que se auto investem no papel de refundar a história do país. Nesse clima pouco propício à democracia política são convocadas eleições gerais. Tragicamente, mais uma vez, a esquerda se recusa a uma composição com as forças do centro político, aferrada a uma candidatura Lula, a essa altura alvo preferencial da Lava Jato, que condenado em processo de provas controversas, não poderá concorrer.
Diante do deserto a que se tinha reduzido a política, a competição eleitoral se tornou pasto fácil a todos apetites, trazendo à tona personagens obscuros e de história pregressa sem registro na vida política. Esta foi a hora do empreendedorismo das religiões pentecostais, da expressividade em estado bruto do ressentimento social dos emergentes das novas camadas médias, e da demagogia dos salvadores da pátria, que encontrou representação em um parlamentar extraído das fileiras do baixo clero, um capitão sem brilho reformado do Exército.
Essa mixórdia, a que se acrescentava a defesa dos valores tradicionais da família próprios ao patriarcalismo dominante no país pela movimentação crescente dos movimentos identitários de gênero, camuflava à perfeição o real sentido da operação política de grande envergadura orientada ao alinhamento do Estado aos interesses dos grandes interesses capitalistas das finanças e do mundo agrário, cuja representação será confiada ao ministro Paulo Guedes. No plano da cultura e dos valores sociais essa política visava erradicar o difuso sentimento anticapitalista socialmente vigente, natural numa sociedade cuja economia floresceu a partir do Estado e sempre dependente de suas iniciativas.
Pretendeu-se com essa ampla e confusa orientação fazer a roda da história girar para trás, alinhando-se a política brasileira aos objetivos do presidente Trump e das resistências ao processo de globalização, potencialmente ameaçador à hegemonia americana nos negócios do mundo. Na verdade, o que se pode qualificar como a política de Trump não passa de uma tentativa de deter os processos que estão em curso no mundo e que sinalizam em favor da imposição de limites ao capitalismo e ao exercício da hegemonia americana na política mundial, cujos efeitos perversos já se fazem sentir na atual corrida armamentista, na questão ambiental e nos riscos de desaparição de espécimes vitais para a reprodução da vida humana.
Não se pode ocultar que se vive em tempo sombrio. Mas há o outro da lua, até mesmo aqui. Nos EEUU o partido Democrático se apresta em indicar um candidato que se oponha frontalmente a Trump, os resultados das recentes eleições europeias testemunham a existência de coalizões exitosas entre o campo liberal-democrático e a esquerda. A China vem-se tornando capaz, inclusive no campo da economia, de rivalizar com a hegemonia americana nos negócios do mundo. O cenário atual não está congelado e , por toda parte, há forças políticas e sociais motivadas para alterá-lo. Aqui, já se pode perceber que a composição do governo atual não dá boa química, como se pode observar, entre tantos episódios, incluídos alguns afetos à corporação militar, sobretudo na participação do governo no pacto recentemente celebrado entre a União europeia e o Mercosul, na contramão da política antiglobalista vigente na retórica do discurso governamental. e que nos levou por gravidade a aderir ao pacto de Paris sobre a questão ambiental, em mais um evidente descompasso com a política levada a efeito até aqui. Importa ainda registrar o papel do Poder Legislativo em defesa da sua autonomia contra o Fuhrerprinzip que as hostes governamentais estão animadas a impor, derrogando a Constituição se for preciso, em óbvio retorno à constitucionalidade do Estado Novo de 1937.
O ator em política pode muito, mas, aprendemos com Maquiavel, que ele não pode conformar o mundo dos fatos à sua vontade. Somos filhos do longo processo de modernização burguesa autoritária brasileira. Nada que ocorre hoje é estranho à nossa experiência, e nem sempre estivemos do lado dos perdedores, pois contamos com nossos momentos de vitória, embora, como se constata agora, não tenhamos sabido extrair proveito delas. Esta é uma hora de consultá-la. Em boa parte ela esta narrada no baú de ossos da reflexão acumulada na rica produção da nossa sociologia, que, reaberto, deve nos indicar os bons remédios para os males atuais que nos afligem.
(Texto apresentado ao 19º Congresso da SBS)
IHU Online: #15M e o retorno da política às ruas. Algumas análises
Por: Patricia Fachin, João Vitor Santos e Ricardo Machado
As manifestações estudantis da última quarta-feira, 15-05-2019, contra o contingenciamento dos gastos na área da educação, revelam que a pauta do ensino “está sendo posta na rua” e que “a educação tornou-se parte da agenda dos jovens. Isso é novo e é bom”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line. Na avaliação do pesquisador, os protestos da semana passada são marcados por uma “diferença fundamental” das mobilizações de Junho de 2013. “Junho de 2013 tinha uma conotação antipolítica, que a manifestação de agora não tem. Ao contrário, o que se vê – e eu como professor universitário vejo com os estudantes iniciantes na universidade – é uma grande atração pelos partidos políticos; não pelos que existem, mas a necessidade de se ter partidos está muito presente entre eles”.
O professor Benedito Tadeu César observa que “o governo acendeu o estopim de uma bomba que vai explodir contra ele próprio”. Ele se refere aos ataques e cortes de recursos para universidades, o que, na sua opinião, funcionou como uma espécie de catalisador para todas as insatisfações contra o atual governo. Entretanto, pontua que é cedo para associações com 2013, quando houve o que chama de um processo de “politização” que se voltou contra o governo de Dilma Rousseff. Agora, a imprensa endossa o clamor das ruas, mas com um objetivo muito claro. “Há uma estratégia que é bem traçada em que tudo deve se dirigir para possibilitar a aprovação da reforma da Previdência”, observa. “Não sei até onde eles irão nisso, pois querem tirar tudo da frente para aprovar essa medida, nem que seja o próprio presidente, por isso é preciso ficar atento”, acrescenta.
Na avaliação de Cléber Buzatto,”as mobilizações criam um campo político muito adverso” e poderão influenciar “significativamente na base parlamentar que poderia dar sustentação ao governo e às suas proposições”, criando “dificuldades para que o governo mantenha as atitudes extremamente agressivas contra os direitos da população brasileira”.
De acordo com Bruno Lima Rocha, as manifestações ocorridas em 15 de maio ilustram de forma surpreendente a primeira grande cruzada contra as políticas de austeridade que se iniciaram ainda no governo anterior. “No meio urbano e de forma nacionalizada foi a primeira grande jornada de luta contra as políticas do governo Bolsonaro, incluindo também a política herdada do governo Temer, que é o ‘teto dos gastos’ e essa aberração inconstitucional e imbecilidade macroeconômica dizendo que ‘acabou o dinheiro’”, pondera. Ao analisar o fenômeno em perspectiva com Junho de 2013, Rocha avalia que as mobilizações operam em “linha de continuidade na rebelião secundarista de 2015 em São Paulo – contra o fechamento de escolas públicas por parte do então governo Alckmin – e a ocupação de escolas públicas no início de 2016 – em Goiás e no Rio Grande do Sul, por exemplo – e na sequência, no final de 2016 – já no governo Temer - na ocupação dos campi universitários contra a aprovação da PEC 95 no Senado”, complementa.
***
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil(Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Benedito Tadeu César é graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, mestre em Antropologia Social e Doutor em Ciências Sociais com ênfase em Estrutura Social Brasileira, ambos pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Seu depoimento foi concedido por telefone.
Cleber César Buzatto é graduado em Filosofia. Atualmente trabalha como secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em Economia Política, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atua como docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também como analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal Estratégia & Análise, onde concentra o conjunto de sua produção midiática, analítica e acadêmica. É professor de graduação na Unisinos, nos cursos de Relações Internacionais e Jornalismo, e de Direito na Unifin.
Confira as entrevistas:
IHU On-Line - Que avaliação faz das manifestações de quarta-feira, levando em conta que essa foi a primeira grande mobilização no país depois de quatro meses de governo Bolsonaro?
Luiz Werneck Vianna – Foi uma manifestação extraordinária. A lembrança que me veio foi a de 1956, quando aconteceu outra manifestação de caráter nacional dos estudantes secundaristas por causa do aumento da passagem de ônibus no Rio de Janeiro. Chegou a um ponto tal que o presidente da República da época, Juscelino Kubitschek, chamou os estudantes para conversar e a partir dessa negociação a coisa se resolveu. Tenho uma memória muito forte disso porque eu era secundarista na época e participei de algum modo dessa manifestação como massa dos estudantes que estavam protestando. Foi um movimento que incendiou a imaginação dos estudantes na época. Vi uma cena das manifestações em Manaus na televisão, que me impressionou muito, porque era uma manifestação de estudantes secundaristas, muito jovens, uniformizados. Se chegou em Manaus nessa força e nessa idade, é porque isso vai ficar.
***
Benedito Tadeu César – Foram se acumulando ações inconsequentes, impensadas que atingiram diversos segmentos da sociedade. Todo o governo tem um período de crédito, tem a legitimidade das urnas que lhe foi conferida e as pessoas ficam na expectativa. Mas, nesse governo, certas coisas foram se acumulando e atingiram um segmento que é formador de opinião e que hoje está ramificado em todo o Brasil. Só no Governo Lula foram criadas 18 novas universidades federais. Hoje, as grandes cidades brasileiras, e até as de porte médio, têm estudantes em universidades públicas.
E ainda mais: esse é um segmento de jovens, que pela própria condição de juventude tem um ímpeto maior de expor suas opiniões. Assim, quando esse segmento foi atingido, deu o troco. Fiz alguns comentários, logo que começaram os cortes, as agressões a universidades, e disse: o governo acendeu o estopim de uma bomba que vai explodir contra ele próprio. E acho que não deu outra. O estopim foi aceso e as bombas estão explodindo.
***
Cleber Buzatto - Considero que as manifestações da última quarta-feira, 15-05-2019, foram de grande importância pela amplitude de participação e abrangência, considerando todas as regiões do país em que elas aconteceram. Foi um momento especial que aponta para uma nova fase no processo de relação dos cidadãos brasileiros com este governo. Nós passamos por um período conturbado em que as forças populares estiveram retraídas do ponto de vista da mobilização social, mas as ações agressivas e antissociais por parte do governo Bolsonaro contribuíram para acelerar um processo de articulação e mobilização das organizações, movimentos, sindicatos e também das pessoas que não têm tanta articulação com movimentos. Acredito que as manifestações de quarta-feira servirão como um movimento de encorajamento para que outras manifestações possam acontecer nos próximos meses, seja acerca do tema da educação, da defesa da educação pública de qualidade, seja do ensino básico, superior e da pesquisa, ou relativamente a outras questões, como a da previdência.
Considero também de grande importância a participação de representantes de povos indígenas em diversas mobilizações no Brasil. Isso demonstra que os povos estão mobilizados em relação ao tema da questão fundiária, como eles já mostraram em outras ocasiões, como durante o Acampamento Terra Livre recentemente, que reuniu cerca de quatro mil indígenas em Brasília. Eles também estão mobilizados em relação ao tema da saúde, como mostraram as mobilizações que fizeram no mês de março em todas as regiões do Brasil. Isso demonstra que os povos estão muito atentos e estão tentando se articular com outras forças sociais. A participação dos povos indígenas nasmanifestações do dia 15 demonstrou mais uma vez a atenção e a disponibilidade deles de se manifestarem e se mobilizarem em defesa dos seus direitos e dos direitos coletivos da população brasileira.
***
Bruno Lima Rocha – Foram positivamente surpreendentes. A convocatória ultrapassou a estimativa dos mais otimistas defensores da agenda da educação pública no Brasil. O fato doMinistério da Educação - MEC sob o governo Bolsonaro já estar no segundo titular da pasta, somado ao estilo do ministro Weintraub – acirrando os ânimos e mantendo o grau de provocação tipo bate boca nas redes sociais – e a tentativa de enquadramento que ameaçava a autonomia universitária (alegando “punir por balbúrdia”) motivou a unidade dentro do meio universitário e das vastas relações que esse ambiente tem com a educação brasileira. Diria que no meio urbano e de forma nacionalizada foi a primeira grande jornada de luta contra as políticas do governo Bolsonaro, incluindo também a política herdada do governo Temer, que é o “teto dos gastos” e essa aberração inconstitucional e imbecilidade macroeconômica dizendo que “acabou o dinheiro”. É preciso reconhecer que o grande motivador da jornada de protesto foi o próprio governo Bolsonaro, causador de suas próprias crises e gerando unidades possíveis: unidade da agenda universitária (liderada pelas federais, mas seguida pelas demais); tentativa de uma unidade da direita que se alega lúcida (ex. defendendo o austericídio mas contra a cruzada olavista); uma unidade que vai das posturas nacionalistas de defesa do patrimônio público até o protagonismo dos movimentos sociais da primeira linha (como o dos povos indígenas e movimentos afro). Enfim, 15 de maio foi um momento importante, através de uma pauta unificadora, onde até a direita não olavista-bolsonarista se viu na obrigação de reconhecer o mérito e a justiça da causa. A pesquisa científica e a capacidade instalada no meio universitário brasileiro têm capilaridade maior do que se imaginava no início do século XXI.
***
IHU On-Line - As manifestações podem produzir algum impacto no governo?
Luiz Werneck Vianna – É insondável; esse governo é imprevisível e não tenho como responsavelmente prever o que o governo vai fazer. Imagino que ele deva ter ficado sensibilizado com a proporção e a envergadura dessa movimentação, que foi uma movimentação estudantil de verdade, com o tema dos estudantes, o tema da universidade, do ensino. A questão do ensino está sendo posta na rua; isso é para ser saudado. A educação tornou-se parte da agenda dos jovens; isso é novo e é bom.
Não sei direito quem é o governo; temos que ver quem é o governo de verdade. É claro que os setores mais atentos e mais lúcidos estão fazendo a leitura correta dentro do governo sobre essa movimentação. Agora, há os que querem um antagonismo a todo preço, porque na verdade o que eles visam é instabilizar instituições: é fechar o Congresso, é fechar o STF. Essa é que é a ideia de fundo desses grupos mais “tresloucados”, como os “olavetes”. Eles querem essa mudança, mas isso não é o governo inteiro. O governo inteiro é outra coisa. Há uma disputa permanente de setores que sabem interpretar direito o que está se passando. Imagino que esses setores vão pressionar no sentido de mudanças na política educacional.
***
Benedito Tadeu César – É muito cedo para fazermos qualquer avaliação nesse sentido. Vai depender de como isso será conduzido daqui para frente. Eu falei do estopim, mas se isso se torna um rastilho, como um rastilho de pólvora, vai ligando a outras bombas e acho que isso pode tomar um volume muito grande e realmente abalarem o governo.
Faria aqui uma previsão: não sei se esse governo chega ao seu final, podendo terminar muito rapidamente. Não sei se em decorrência dessas manifestações, mas desse acúmulo de ações que são, em última análise, inconsequentes, para reduzirmos tudo a uma expressão. Esse é o governo da inconsequência.
***
Cleber Buzatto – Considero o governo Bolsonaro autocrata e autoritário, de modo que as mobilizações terão dificuldade de incidir e influir sobre os rumos do governo. Mas, evidentemente, as mobilizações criam um campo político muito adverso, o que certamente influirá significativamente na base parlamentar que poderia dar sustentação ao governo e às suas proposições. Isso certamente criará ainda mais dificuldades para que o governo mantenha as atitudes extremamente agressivas contra os direitos da população brasileira e, de modo especial, neste caso, relativo à temática da educação.
Relativamente à mobilização da quarta-feira, as manifestações públicas do presidente Bolsonaro foram extremamente desrespeitosas para com a população brasileira que se mobilizou, se manifestou, e isso é um indicativo de que o governo buscará desqualificá-las e deslegitimá-las. Mas, de qualquer maneira, as manifestações provocam um campo político que certamente criará ainda mais dificuldades para a condução dessas pautas antipopulares por parte do governo Bolsonaro.
***
Bruno Lima Rocha – Insisto que se fossem apenas manifestações estudantis, o efeito seria menor. Mas como se trata da defesa da educação pública brasileira, chegando ao ponto da defesa da diversidade, da ciência e pesquisa nacionais além de uma posição pós-iluminista, a dimensão é muito maior. O presidente foi eleito em cima de uma agenda também ideológica, e manifesta convicção na hostilidade como método de governar e arregimentação de sua própria base. Esta forma de “agradar sua base” mira na educação, na pedagogia libertadora, nos ícones de Paulo Freire e Anísio Teixeira como seus alvos permanentes. Dentro dessa lógica, de pressionar a pesquisa e a autonomia universitária como uma forma de reduzir a amplitude de pensamento, a resposta foi inicialmente muito boa e coloca o governo contra a parede. Ocorre que não se trata apenas do núcleo da presidência, mas seguidas vezes vemos títulos de teses e de dissertações sendo ridicularizados em grupos de mídia – incluindo as tradicionais – como se os recursos da universidade fossem apenas para gerar discurso ideológico mais à esquerda, ou “globalista”. O impacto pode se dar em políticas localizadas, como o MEC de portas abertas para reitores, mas deve manter a tentativa de ocupar o Ministério como uma força conservadora e que vai de encontro aos consensos da área, como por exemplo, o respeito às eleições (não paritárias!) para as reitorias.
O sistema educacional brasileiro é complexo e bastante integrado e não se nota reorientação de verbas que seriam do nível universitário para a educação infantil ou fundamental. Isso é balela e o governo não vai rever sequer a própria balela. Em termos gerais posso afirmar que o governo foi abalado – parcialmente – pelos atos coincidentemente no mesmo dia da convocatória do ministro Weintraub na Câmara, contando com a assinatura de 307 deputados – faltaria um voto apenas para emplacar uma PEC, 308 votos. Dentro das batalhas simbólicas e de ausência de políticas positivas do governo Bolsonaro, 15 de maio foi uma demonstração de força da sociedade contra a posição assumidamente retrógrada e reacionária, anti-iluminista eu diria, do presidente e seus aliados ideológicos e de ocasião.
***
IHU On-Line - Que aproximações e distanciamentos podemos fazer entre as manifestações de ontem e Junho de 2013?
Luiz Werneck Vianna – Vejo uma diferença fundamental, porque Junho de 2013 tinha uma conotação antipolítica, que a manifestação de agora não tem. Ao contrário, o que se vê — e eu como professor universitário vejo com os estudantes iniciantes na universidade — é uma grande atração pelos partidos políticos; não pelos que existem, mas a necessidade de se ter partidos está muito presente entre eles. A discussão, inclusive, sobre a participação nessa movimentação de protesto contra os cortes teve uma presença forte dos partidos que têm trabalho juvenil. Vejo aí uma diferença muito grande e positiva em relação ao tema de 2013, que era aquele clima contra os partidos e antipolítica em geral. Essa coisa não está posta agora; ao contrário.
***
Benedito Tadeu César – Tem algumas pessoas fazendo relações com 2013, mas acho que é cedo ainda para fazermos esse paralelo. As grandes mídias, principalmente a Globo, deu uma cobertura razoável ao que aconteceu na semana passada, mas não podemos esquecer que, em 2013, toda grande mídia nacional ficou incentivando, durante semanas, para que as pessoas saíssem às ruas. Se acontecer algo parecido, acho que podemos chegar a uma dimensão similar àquela de 2013. Senão, acho que isso vai se mantendo e, à medida que isso for se politizando mais, pode ser que atinja realmente o governo.
Uma semelhança com 2013 é que foi uma reação mais ou menos espontânea, porque transcendeu as universidades. Teve uma origem dentro das universidades públicas, mas isso já chegou, inclusive, aos estudantes das escolas particulares. Pudemos ver muitas escolas particulares nas manifestações, em muitas escolas os alunos suspenderam as aulas, aderiram à greve, adesão que chegou até mesmo aos professores da rede privada. E muitas pessoas que estavam nas ruas não eram estudantes nem professores universitários. Eu mesmo participei da manifestação e vi muita gente ali que necessariamente não era público universitário, mas populares que estão aderindo.
Por todos esses fatores considero que isso está transcendendo o movimento corporativo. Um primeiro impulso é corporativo, de reação, de defesa a uma agressão que foi feita. Então, os integrantes das corporações universitárias reagem, mas isso acaba atingindo segmentos muito mais amplos. Tem uma nova paralisação, não sei se está confirmada, para o dia 30 de maio, que é um chamamento da União Nacional dos Estudantes - UNE, e há uma greve geral convocada para o início de junho. Isso tudo pode demonstrar que as manifestações da última quarta-feira foram o estopim de uma grande revolta.
Politização e ação da mídia
Entretanto, para que isso ocorra, o movimento precisa ser politizado. Em 2013, a grande mídia se encarregou de dar um direcionamento político para uma reação que era de uma situação de insatisfação difusa e acabou direcionando aquilo contra o governo de Dilma Rousseff. A ex-presidente Dilma tinha uma aprovação altíssima e, depois de dois meses de manifestações, os índices de aprovação do governo dela caíram para menos da metade.
O atual governo já tem uma aprovação muito baixa, cerca de 30%, e a Dilma, na época que começaram as manifestações, tinha mais do que o dobro disso. Assim, as manifestações de agora começam num percentual de insatisfação parecido com aquele que Dilma tinha como piso no momento das manifestações, depois esse percentual caiu ainda mais. Por isso digo que tudo isso pode causar um estrago grande. Acho precipitado dizer que tudo vai evoluir na mesma direção de 2013, mas destaco: as grandes mídias se encarregaram de dar a dimensão política para as manifestações de 2013.
A mídia e o trabalho pela reforma da Previdência
Não acredito que a mídia deva exercer o mesmo papel agora, na mesma proporção. A cobertura da Rede Globo, por exemplo, deu bastante espaço para as manifestações, inclusive eu não imaginava que ela fosse dar todo aquele espaço. Fiquei em dúvida e, depois de meses sem assistir televisão, liguei para acompanhar e me surpreendi. Agora, ela bateu o tempo todo no seguinte: “esse governo está criando a impossibilidade de aprovar aquilo que é a grande necessidade, que é a reforma da Previdência”.
Na realidade, há uma estratégia bem traçada de que tudo deve se dirigir para possibilitar a aprovação da reforma da Previdência. O que, cá entre nós, é um grande caos. Não sei até onde eles irão nisso, pois querem tirar tudo da frente para aprovar essa medida, nem que seja o próprio presidente, por isso é preciso ficar atento. Vejo algumas pessoas dizendo que é preciso derrubar o [Jair] Bolsonaro, mas se isso acontecer, entra o [Hamilton] Mourão. E aí? Aí, não tem mais, eles fazem o que quiserem. Essas bateções de cabeça vão desaparecer.
Expressar insatisfação, mas nos marcos institucionais
Realmente não sei qual é o melhor cenário. Outro dia alguém comentou: “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”. É mais ou menos isso, as perspectivas não são boas. Mas isso não quer dizer que tenhamos que desistir. A sociedade civil tem que expressar as suas insatisfações e o ideal é que possamos agir dentro do marcos institucionais. Cada vez que se rompe com algo sem ter de fato algo mais sólido para colocar no lugar, dá no que deu. Quando começou o processo do impeachment e a Lava Jato, eu dizia que estavam abrindo a Caixa de Pandora e, depois, o que vai acontecer e como vai se fechar ninguém sabe. E foi o que aconteceu, pois quando se enfraquecem as instituições democráticas, abre-se espaço para a tirania.
E aí demora muito tempo para fazer uma recomposição. O melhor seria mesmo agirmos dentro dos marcos institucionais. Essa coisa de interromper mandato de presidente não é bom, temos que ter uma certa estabilidade. Agora, se criou um caos tão grande que se possibilitou a eleição dessa chapa; se não tivessem sido criadas todas aquelas situações que viabilizaram, que criaram aquele caos pré-eleitoral, essa chapa não seria eleita nunca. Ela seria motivo de chacota. Agora o mal está feito, como vamos superar é a questão. É preciso apostar na capacidade de resistência da sociedade, da nação brasileira. Nós vamos amargar, pelo menos, quatro anos de loucuras e do desmonte do Estado de bem-estar social precário que já tínhamos, de desmonte das empresas públicas.
Reflexos nos estados
É um absurdo o que estamos vivendo. Estamos entregando as nossas riquezas, estamos desmontando uma estrutura tanto do plano estadual como do federal. Recebi ontem um vídeo do governador [do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB)] dizendo: “estou aqui nos Estados Unidos, conversando com investidores e tal”. Não me contive e disse: isso é crime de lesa-pátria. Ele está oferecendo, dizendo para virem para o Rio Grande do Sul, pois temos aqui um parque energético instalado no valor de tantos milhões de dólares, temos uma rede rodoviária no valor de tantos milhões, e vai setor por setor dizendo o quanto aquilo custou para os cofres públicos, quanto se tem de investimento público em cima daquilo e dizendo para os investidores que tudo isso está à venda. Veja, se quer promover desenvolvimento, não é dessa maneira que se faz, porque esse investimento está feito. Desta forma está se entregando investimento público já realizado e somente trocando a titularidade, está entregando para outros.
Para promover crescimento é preciso novos investimentos. Se essa é a estratégia governamental, é preciso destacar as potencialidades do Estado e propor que os investidores coloquem novas empresas aqui. Agora, não transferir titularidade, pois isso não agrega nada, não gera emprego, pelo contrário.
***
Cleber Buzatto – As manifestações de 2013 iniciaram uma pauta propositiva e progressista de ampliação de direitos coletivos, especialmente no que tange à questão do passe livre, mas não só. Na sequência houve um empoderamento das forças reacionárias antissociais, antipopulares, que acabaram ocupando as ruas com pautas conservadoras e até reacionárias e que, infelizmente, contribuíram para o fortalecimento da candidatura do então candidato Bolsonaro. Uma série de outras questões, mas de maneira especial a prisão do ex-presidente Lula, levaram-no à presidência da República.
Agora viveremos um novo momento em que a direita vencedora das eleições está testando seu governo e tem se mostrado extremamente incompetente, autoritária e tem perdido recorrentemente a adesão popular. Bolsonaro tem se mostrado uma antítese daquilo para o que se acreditou que seria eleito, inclusive no tema da corrupção: hoje se visibiliza uma série de situações extremamente comprometedoras por parte do presidente e de seus familiares. Portanto, o contexto é bastante diferente do de junho de 2013 e tende a favorecer a ampliação das mobilizações por parte de setores progressistas da sociedade. O grande desafio é manter a hegemonia nas ruas por parte dos setores progressistas, populares, e, por isso, é importante que as pessoas se mantenham mobilizadas para que se evite qualquer tipo de mobilização por parte dos setores reacionários em relação à disputa das ruas. Ganhar a disputa das ruas é um elemento político fundamental tanto na defesa dos direitos da população brasileira, especialmente daqueles mais pobres, explorados, quanto para que a tempestade desse governo reacionário possa passar o mais breve possível.
***
Bruno Lima Rocha – Eu sinceramente não vejo grau de comparação com 2013. As jornadas de 2013 não iniciaram em junho e tampouco terminaram em 2013. Os atos de 2013 têm relação direta com os Comitês Populares da Copa e dos setores que em algumas capitais e regiões metropolitanas lutavam pela execução do Estatuto da Cidade e do direito à mobilidade urbana. Em termos de polarização ideológica, no começo ao menos, se deu um embate entre os setores à esquerda do lulismo e a centro-esquerda governista. Houve “sequestro da pauta” através da intervenção dos grupos de mídia – especialmente em São Paulo capital – e depois os “estudiosos” que em geral não estavam na rua e não conheciam quem se organizava fisicamente afirmam um “conflito de narrativas”. O delírio pós-moderno dá conta das interpretações narcisistas do pós-2013. Mas, os efeitos concretos se deram, e aí têm relação direta com os atos de 15 de maio. Vejo uma linha de continuidade na rebelião secundarista de 2015 em São Paulo – contra o fechamento de escolas públicas por parte do então governo Alckmin – e a ocupação de escolas públicas no início de 2016 – em Goiás e no Rio Grande do Sul, por exemplo – e na sequência, no final de 2016 – já no governo Temer - na ocupação dos campi universitários contra a aprovação da PEC 95 no Senado. Neste sentido, na dimensão socialmente organizada e à esquerda do governo deposto pelo golpe jurídico-parlamentar, observo alguma continuidade. Outro marco de continuidade, agora mais próximo do pós-2016, foi certa unidade por esquerda, mais próximo de uma pauta de defesa do patrimônio público e abertamente antifascista. Creio que esse será o marco das manifestações deste ano, especificamente ainda neste primeiro semestre.
***
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Luiz Werneck Vianna – Sim. Queria dizer o quanto esses profetas do absurdo, que nessa hora preconizam o fim dos partidos, estão equivocados. Os partidos não estão vivendo momentos finais nem aqui nem no mundo; eles estão vivendo crises que são crises de crescimento. Os partidos vão sair melhor do que eram. É preciso dar tempo ao tempo, especialmente no nosso caso. Percebe-se, entre a juventude estudantil, um interesse pela política e pelos partidos muito grande. Não é verdade que essa é a hora dos movimentos sociais e que os partidos não têm mais lugar no mundo. Isso é coisa desses políticos que se orientam pelos modismos, que vivem mudando de roupa para dizer sempre a mesma coisa, que não há saída, especialmente os da esquerda, os que na esquerda preconizam essa posição de dissolução dos partidos. Portugal está lá com seu sistema partidário indo muito bem. Era um país pobre e sem esperança ontem e está lá, é lugar de atração, despertou.