Luiz Werneck Vianna

E-título | Foto: Shutterstock/rafapress

As eleições como forma superior de luta

Luiz Werneck Vianna, Horizontes democráticos

Será que o Brasil é isso mesmo, indiferente diante da injustiça, chapado sem erguer um dedo em sinal de protesto aos males que lhe são infligidos, engolindo ofensas calado, anômico, abúlico, e que estivemos redondamente enganados quando o imaginávamos, não há muito tempo, pleno de energia e animado para grandes realizações? Quando perdemos os elos que nos vinculavam a nossos maiores e seus feitos exemplares, como os de Mario Andrade, Drummond, Bandeira, Villalobos, Portinari, Niemeyer, Rondon, os tenentes de 22, a Coluna de 24, os do Teatro de Arena, com o Guarnieri e o Vianinha, e com todos aqueles que deixaram em seus rastros a promessa de aqui iria florescer uma sociedade justa e solidária?

Algo de muito grave ocorreu aqui para que nos encontremos na miserável situação do regime Bolsonaro, inimigo do nosso passado, de suas tradições e instituições, que não só quer aviltá-las como erradicar a sua memória para cujo sinistro desígnio já conspira para sua perpetuação. Tal resultado malévolo não é fruto apenas das circunstâncias desafortunadas que nos viram nascer como nação marcada pelo estigma do latifúndio e da escravidão, que ainda nos atormenta, pois ao longo da nossa história, inclusive recentemente, contamos com oportunidades de buscar alternativas benfazejas, que perdemos por incúria.

As eleições já ao alcance da mão nos fornecem mais uma oportunidade para que, dessa vez, afastemos o passivo que continua a nos assombrar abrindo passagem ao que há de novo na nossa sociedade que forças obscurantistas se esforçam em reprimir. O cenário à frente, diversamente dos idos de 1964, inscritos como estamos na geopolítica americana, apresenta possibilidades para que uma coalizão de forças democráticas encontre sua hora e sua vez e enfrente com êxito a fronda reacionária em plena articulação. O embate entre elas transcorre no campo da política, principalmente eleitoral, terreno mais promissor às oposições democráticas do que para seus adversários, que procuram, conscientes disso, levá-lo para outras esferas como evidente em suas arremetidas contra o processo eleitoral e suas instituições.

Nesse sentido, o foco central dos democratas consiste em criar condições para garantir a preservação do calendário eleitoral e se apresentar nas eleições com candidaturas capazes de ampliar nos limites do possível alianças que lhes facultem o sucesso nas urnas, e, mais que isso, por sua envergadura, afastar as eventuais tentativas de impedir a sua conclusão. A aliança entre Lula e Alckmin certamente é um bom começo para esse fim, mas não basta, a gravidade dos riscos a que estamos expostos exige a incorporação de todas as forças vivas da sociedade, dos sindicatos aos movimentos sociais, não podendo faltar as agremiações de estudantes, universitários e secundaristas, fermento sempre presente em nossas lutas libertárias, capazes de evocar em suas manifestações o que fez do Brasil Brasil.

*Texto publicado originalmente no blog Horizontes democrático, de Alberto Aggio


Luiz Werneck Vianna: pêndulo entre a modernização e o moderno

Recidiva fascista frustrada de 2021 não foi um ponto fora da curva, mas uma confirmação da natureza trágica da nossa sociedade

Luiz Werneck Vianna / Democracia e Novo Reformismo

10 de novembro de 1937 e 7 de setembro de 2021são duas datas afastadas por pouco mais de oito décadas, mas próximas pelo que revelam das raízes fundas do autoritarismo político do país. Na primeira, quando um golpe de estado urdido no palácio presidencial por Vargas em conluio com o comando do exército, em nome de uma pretensa ameaça comunista, baseada numa documentação forjada, derrogou a Constituição de 1934 e promulgou em seu lugar um texto inequivocamente fascista. Nascia ali a ordem do Estado Novo, vigente nos longos oito anos seguintes. Na segunda, sob o governo que aí está, depois de uma cuidadosa preparação, quando se aliciou ao estilo de Donald Trump a mobilização de milícias aderentes ao governo, teve-se em mira o objetivo de derruir a ordem constitucional de 1988 com foco imediato no Supremo Tribunal Federal. Nessa oportunidade, faltaram os militares que se limitaram a participar da parada cívica do dia da Independência. Ao fim daquele dia deu-se o dito pelo não dito, com seus autores humilhados em juras de obediência às instituições democráticas e homiziados na grei dos políticos patrimonialistas do Centrão a fim de evitarem os riscos de um impeachment pelos crimes que tinham acabado de praticar.

A recidiva fascista frustrada de 2021 não foi um ponto fora da curva, consiste, ao contrário, em mais uma confirmação da natureza trágica da nossa sociedade nascida no ventre malsão do latifúndio escravocrata que a condenou a uma história infeliz apesar dos esforços realizados para se emancipar dessa triste condição. Não têm sido poucas as tentativas de exorcizar esses males de origem, algumas delas longamente maturadas em décadas, como a que frutificou em meados dos anos 1960, atalhada pelo golpe de 1964 a que se seguiu uma implacável perseguição das lideranças sindicais do movimento operário e do mundo agrário, em muitos casos com a eliminação física dos seus dirigentes.

Sobretudo naqueles anos processos novos animaram as classes subalternas que se emanciparam da tutela exercida pelo Estado pelo sistema do corporativismo sindical que nos vinha dos anos 1930 e, no mundo agrário, disseminou-se a criação de sindicatos dos trabalhadores do campo e a organização de movimentos em favor de uma reforma na propriedade rural. Na sociedade política e entre os intelectuais, na literatura, nas ciências sociais, no cinema, na dramaturgia, esse será um tempo de ruptura com o passado e de esperança no futuro, interrompido pela larga coalizão de tudo que persistia como taras da nossa má formação

O movimento pendular a que parece estarmos submetidos, segundo os famosos diagnósticos em meados dos anos 1850 de Justiniano José da Rocha e do ministro Golbery na recente ditadura militar sobre o caráter da nossa política, mais uma vez se impôs com as duas décadas de ditadura que nos sobressaltaram até os idos de 1985. Politicamente acuado por uma larga coalizão democrática escorada em massivas e inéditas manifestações, seus dirigentes negociam com as lideranças oposicionistas uma via de transição para o retorno à legalidade que culminou com a convocação de uma assembleia constituinte que nos trouxe a Carta de 1988 numa promessa de tempos menos infortunados.

Vianna: "De um só golpe acertamos as contas com esse nefasto presente e com o que há de pior na nossa formação". Foto: Roberto Parisotti/Fotos Públicas

Mas, a genética tem suas leis próprias, e a nossa má conformação congênita nos trouxe de volta às trevas, agora imprevistamente pela via eleitoral, com a vitória na sucessão presidencial de Bolsonaro, candidato de um inexpressivo partido, mas apoiado pelos grandes interesses capitalistas   do emergente agronegócio com muitas de  suas raízes originárias das cediças relações do patrimonialismo agrário, e pelo pessoal das finanças especializado em drenar recursos públicos em proveito próprio encapuçados de empresários modernos no estilo faria-limers.

Dessa vez, contudo, sem retorno às práticas da modelagem das modernizações autoritárias, recorrendo a uma interpelação direta ao discurso do neoliberalismo próprio ao reacionarismo dos círculos trompistas dos EEUU. Há algo de novo nesse bicho que em nada se assemelha ao ornitorrinco que tempos atrás frequentou as análises do sociólogo Francisco Oliveira. Ele é de conformação abstrusa na medida em que os militares, espinha dorsal do governo Bolsonaro, descendem ideologicamente do positivismo e, como tais, comungam ideais em que a dimensão do público e o papel do Estado exercem papeis dominantes na organização da vida social, em clara desconformidade com a narrativa neoliberal.

Não se pode contar a história da modernização brasileira sem a forte presença dos militares tanto em suas configurações abertamente autoritárias como naquelas em que coexistiu com regimes de inclinação liberal. Eles foram protagonistas na montagem das bases da industrialização do país, diretamente envolvidos nas questões-chave do aço e do petróleo, assim como no período da última ditadura militar conceberam com sucesso as iniciativas que propiciaram a emergência do agronegócio em regiões de fronteira. Formados nessas tradições, seus vínculos com a política atual, fora motivos contingentes e precários que podem se esvair no ar, não devem fornecer escoras firmes para um eventual golpe que pretenda estabelecer um regime militar capitaneado pela farsesca figura de Bolsonaro.

Sem eles a sustentar seus projetos delirantes de se manter no poder depende do voto, resta a Bolsonaro explorar os caminhos conhecidos secularmente pelas elites brasileiras do atraso político e social em que ainda vive grande parte da nossa população, sujeita ao mandonismo local nas regiões retardatárias do mundo agrário e no urbano a milícias que as submetem pelo terror, essas últimas cultivadas pela política bolsonarista, particularmente no Estado do Rio de Janeiro, como é de conhecimento público. A essa massa amorfa a sua política de mobilização eleitoral agrega numerosos contingentes da nova ralé de setores médios da população, ressentidos com sua desqualificação social e temerosos de perderem o que ainda os mantém abrigados da proletarização, base sobre a qual pretende organizar, se for o caso, suas falanges fascistas. No vértice dessa pirâmide, a experiência recente lhe ensina, precisa assentar as elites do agronegócio e das finanças.

Aí é que entra o mundo e suas circunstâncias que não giram na órbita do leste europeu nem nas margens do golfo pérsico e que são adversas dos círculos trompistas norte-americanos. A emergência da questão climática para que o planeta acordou vulnera em cheio o agronegócio na forma predatória com que é praticada pelo regime Bolsonaro, objeto de repúdio no Ocidente desenvolvido já atento em lhe impor limites. A América de Biden se reencontrou com uma Europa que se democratiza e concede lugar ao discurso de valorização dos direitos humanos, inclusive como tema nas suas disputas com potências rivais, como a China e a Rússia. Esse não é um cenário compatível com um projeto que nasceu sob a inspiração do regime de 1937 e do AI-5 de 1989, que assim se vê obrigado a sondar suas possibilidades de subsistir no terreno da competição eleitoral de mãos dadas com o Centrão.

Se os surtos de modernização autoritária encontraram seu fim no governo que aí está, que oculta sua adesão ao patrimonialismo numa profissão de fé de mentirinha no neoliberalismo, as vias para a modernidade se encontram abertas para uma sociedade que se civiliza, exemplar no seu enfrentamento da atual pandemia, quando remando contra a corrente leva a cabo o programa da vacinação em massa da população com efeitos visíveis no seu controle. O exame recente do Enem, realizado com sucesso apesar das tentativas de tumulto presentes por iniciativa do bando no poder, vai na mesma direção. Por toda parte são evidentes os sinais de animação da sociedade civil, inclusive nos seus setores subalternos que se organizam como autodefesa da pandemia e da luta contra a fome. O movimento pendular que a nossa história registra parece agora se inclinar em favor da democracia, percepção que não deve faltar ao ator político que a tem em mira. Com sua ajuda, mais seguramente o pêndulo vai completar sua rotação feliz e tirar da nossa frente o entulho que embaraça nossa livre movimentação. Com isso, de um só golpe acertamos as contas com esse nefasto presente e com o que há de pior na nossa formação.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio 

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/11/luiz-werneck-vianna-oscilacao-do.html


Luiz Werneck Vianna: Até quando suportaremos?

Quem são os nossos algozes e de onde extraem o poder com que nos assolam?

Luiz Werneck Vianna / Blog Horizontes Democráticos

Até quando vamos tolerar o saque de uma gangue instalada no coração da política brasileira que se apropria do que é ganho pelos brasileiros que mourejam para ter o pão de cada dia? Até quando vamos permanecer passivos diante dos crimes continuados que perpetram mesmo diante de uma sociedade vítima de uma cruel pandemia que ceifou a vida de 600 mil de cidadãos, parte dos quais poderia ter sobrevivido não fossem as ações criminosas da quadrilha que pretendeu tirar proveito da calamidade sanitária que ainda nos aflige em negócios escusos? Até quando será permitida a eles comprometer nosso futuro com a depredação da nossa natureza e dos recursos nossos humanos privando as novas gerações de uma formação que lhes permita o acesso a uma vida ativa e produtiva? Quem são os nossos algozes e de onde extraem o poder com que nos assolam?

Não fomos objeto de uma conquista militar por parte de um país inimigo que nos imponha pela força a vassalagem como a antiga Roma reinava em seu vasto império. Ao contrário, estamos submetidos a naturais da terra com nomes e sobrenomes conhecidos, não poucos de longa data, herdeiros da nossa história comum de contubérnio entre o latifúndio e a escravidão. Essa marca de registro do nosso DNA, tantas vezes diagnosticada e não poucas combatidas pelos que tentam extirpa-la sem êxito, persiste como mácula em nossa formação, resistente ao que foi a obra da Abolição, que deixou ao desamparo a população liberta com sua opção preferencial pela emigração massiva dos pobres europeus, e na forma de república sem povo que se criou aqui com o protagonismo dos militares e dos proprietários de terras paulistas.

Tal herança maldita, longe de perder influência com os sucessivos surtos da modernização do país, foi preservada em suas linhas principais, exemplar o processo de industrialização conduzido por uma política de Estado que sintomaticamente se aliou às elites agrárias. No caso, nada de melhor expressa essa aliança do que a legislação trabalhista do governo Vargas nos anos1930 do que a exclusão dos trabalhadores da terra dos direitos concedidos aos urbanos. Classicamente, configuraríamos o tipo de modernização conservadora, confirmado nas décadas seguintes, com os resultados nefastos que hoje se estampam aos olhos de todos como na abissal desigualdade social reinante entre nós, raiz dos processos pelos quais as elites proprietárias se apropriam do poder político e fazem uso dele para preservar seus privilégios.

Raimundo Faoro, em ensaio magistral sobre a modernização nacional procura demonstrar seus elos de ligação com as reformas modernizadoras introduzidas pelo marquês de Pombal em Portugal de fins do século XVIII, que se aproveitou de recursos do despotismo político para introduzi-las ao tempo em que conservavam os setores privilegiados como a nobreza e o clero. Sem bases novas de sustentação, suas mudanças não resistiram à duração de um reinado e tiveram frustrados seus objetivos. Tal modelagem pombalina, conclui Faoro, nunca abalada ter-se-ia conformado na plataforma de todas as modernizações brasileiras, cujas mudanças sempre impuseram o resultado de ainda mais reforçar o domínio das forças conservadoras.

Raymundo Faoro (1925-2003)

Quase ironicamente, o argumento de Faoro sugere que, por volta dos anos 1870, a tal revoada das ideias novas de que fala a bibliografia no seu culto à ciência importado pelo positivismo mal ocultaria o retorno do espírito pombalino de cientificismo. O lugar de assentamento dessas novas ideias seria a das academias militares, o da Escola Politécnica e das faculdades de medicina. O positivista Comte teria recuperado Pombal. A emergência das novas elites intelectuais forjadas nessas instituições teria dado origem ao pathos de um desenvolvimento e de uma industrialização induzida pelas luzes da ciência mediante ações orquestradas por elas. 

 Nesse novo cenário, sob a república, os militares são investidos de papel de protagonismo e com advento do Estado Novo, em 1937, se tornam hegemônicos na condução da política brasileira e, a partir daí, atores privilegiados na condução da industrialização acelerada do país, presentes na construção de Volta Redonda, na Petrobras, assim como na imensa malha das empresas estatais. O script, longamente ensaiado cumpriria seu enredo: a modernização brasileira teria um andamento conservador sob a tutela militar.

O desafio a esse andamento, no começo dos anos 1960, centrado em um programa de reformas sociais, entre as quais a agrária, proposto pelo governo João Goulart, com ampla base popular, encontrará seu desenlace no golpe de 1964, quando os militares se auto-investirão dos papeis de condutores da modernização pelo alto, com atenção especial à questão agrária, tal como se evidenciou na implantação do agronegócio.

Essa história de frustações e de desencantos das modernizações autoritárias podem, até elas, conhecer o sortilégio da astúcia na história, pois os processos que desatam contêm em si a possibilidade de trazer o moderno como antídoto a elas, tal como ocorreu nos idos dos anos 1980 quando foram derrotadas por uma coalizão ampla de forças democráticas escorada por massivas manifestações populares. Lá como agora onde se generaliza a percepção de que o país está sem rumo e dirigido por caminhos equívocos que somente trazem o aprofundamento da miséria social reinante, por toda parte, inclusive em setores das elites, soam os sinais de que isso que aí está deve ser interrompido como solução de salvação nacional.

A derrota da fascitização da sociedade, a essa altura consumada, culminou, como último recurso para esse governo de militares nostálgicos da ditadura do AI-5 se manterem no poder, na cínica aliança aos políticos avulsos do Centrão sempre aplicados em suas pretensões de roer até os ossos o patrimônio comum. Tal mudança de rota se afasta radicalmente das tradições modernizadoras brasileiras, inclusive daquelas que se originaram nos meandros das corporações militares. O lixo do atraso está pronto para ser varrido.

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/ate-quando-suportaremos/


Luiz Werneck Vianna: Desventuras e promessas do liberalismo brasileiro

Envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida

Luiz Werneck Vianna / Democracia e Novo Reformismo

Não foi a primeira vez e nem será a última em que se tentou nos infaustos acontecimentos deste 7 de setembro fazer a roda da história retroagir a fim de repor o país nos trilhos do malsinado regime do AI-5, obsessão manifesta do governo que aí está. A intentona, preparada como um plano de estado-maior a que não faltaram recursos oficiais e de setores reacionários das elites econômicas, em particular do agronegócio, tinha em mira jogar por terra a Carta de 88 cujas instituições obstam os arreganhos absolutistas no exercício do poder presidencial. O sistema de controle do poder contemplado no texto constitucional, orientado para a defesa dos direitos políticos e sociais consagrados por ele, demonizado pela clique no poder como entraves às suas ações liberticidas, deveria ser derrogado. Ferindo de morte o constitucionalismo democrático, ao Judiciário caberia apenas agir nos litígios privados na contramão dos processos civilizatórios emergentes desde a derrota do nazi-fascismo na segunda guerra mundial.

Foi por pouco. E ainda são obscuras as razões por que apenas em um dia a formidável arma de propaganda golpista que se abateu sobre o país fosse recolhida aos coldres, com o país estupefato tomando ciência de uma declaração presidencial reverente às instituições. Para tal resultado, os   pronunciamentos fortes e tempestivos de presidentes das altas cortes do Poder Judiciário, a que se seguiram manifestações dos dirigentes do Senado e da Câmara dos Deputados em defesa das instituições democráticas, decerto importaram, mas pode ter havido nos céus mais do que o movimento dos aviões de carreira embora ainda não registrados no radar. Enfim, por fas ou nefas, as trevosas nuvens que pairavam sobre a sociedade se dissiparam como num passe de mágica, ficando o dito pelo não dito enquanto se sussurra na sociedade até quando?

A envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida. Foi real a parada militar em Brasília – os militares sabiam o que se seguiria? –, como reais as concentrações de massas da avenida Paulista e na praia de Copacabana e noutras capitais, como também reais as vociferações do presidente Bolsonaro em todas elas, cruzando o país a bordo de aviões oficiais, dardejando ofensas a autoridades judiciárias com o ímpeto de Donald Trump no frustrado golpe ao Capitólio de 6 de janeiro do ano passado. Real igualmente o suporte financeiro com que setores das elites econômicas deram à mobilização de milhares de pessoas que acorreram às ruas em apoio a Bolsonaro naquela jornada equívoca de 7 de setembro.

Só não vê quem não quer, o governo que aí está não caiu sobre nós como um raio num dia de céu azul, suas raízes têm causas remotas a começar da nossa formação como sociedade e estado-nação. Padecemos dos males da herança maldita do latifúndio e da escravidão, livramo-nos tardiamente da primeira e ainda coexistimos com a primeira, a essa altura reciclada em agronegócio com seus personagens elevados a posições destacadas na economia e na política. O desenlace do nosso processo de independência política se operou na forma clássica de uma revolução passiva – seu condutor era o príncipe herdeiro da dinastia reinante na metrópole – abortando a revolução nacional-libertadora que tomava forma em movimentos como a Inconfidência Mineira, no de 1817 em Pernambuco e se disseminava pelo Nordeste, especialmente na Bahia, sob a inspiração de ideais liberais influentes na revolução americana.

Os efeitos dessa solução política “por cima” comprometeram no Império a sorte dos liberais com a recusa do imperador do texto da constituição elaborada pela assembleia constituinte, de caráter liberal em política, vindo a promulgar de modo autocrático a Carta de 1824, que outorgava a ele um poder moderador com o qual limitava o papel da representação e se punha à margem da soberania popular.

Wanderley Guilherme dos Santos, em um ensaio de 1974 “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa”, procede a um inventário crítico do destino desse conceito entre nós. Descontado o que há de datado nesse estudo, ele captou com precisão as razões do malogro do nosso liberalismo político a partir de dois momentos de importância capital na formação do Brasil moderno, o da Abolição e o da República.

Ambos movimentos são analisados a partir dos manifestos com que elites políticas da época desencadearam suas campanhas, o Radical Liberal, de 1869, e o Republicano do ano seguinte. Persuasivamente, Wanderley sugere que os rumos futuros da sociedade teriam sido demarcados pelo tipo de orientação neles predominante, enquanto os liberais radicais, defensores de uma monarquia constitucional postulavam em favor de reformas de clara adesão ao liberalismo político, inclusive com a abolição do trabalho escravo, os republicanos, que desejavam o apoio das classes proprietárias a fim de atingir seus objetivos, se fixaram no tema da mudança de regime. Tais divergências entre as elites modernizadoras de então teriam comprometido em boa parte o destino dos ideais liberais debilitando o impulso original que o animava.

A revolução de 1930 abre um novo ciclo na política brasileira dominado pela paixão da modernização econômica e de um Estado dotado de meios eficientes na sua aceleração. É o tempo da fórmula corporativa e do predomínio da ação estatal como reguladora de todas as instâncias da vida social, culminando com a criação do Estado Novo e da Constituição outorgada de 1937. O capitalismo brasileiro deveria seguir um curso iliberal em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas. O empreendimento bem-sucedido tanto em economia como no controle social do mundo do trabalho e da sociedade em geral concedeu permanência, afora os ajustes que se fizeram necessários ao longo do tempo, às instituições e ao estilo de mando autocrático do Estado Novo, exemplar no caso do regime militar de 1964 a 1985, especialmente sob o AI-5, redigido pelo mesmo Francisco Campos, autor do texto da Carta de 1937.

O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza.

 A modelagem do governo Bolsonaro é com todas as letras a do capitalismo iliberal. Nesse sentido, há um fio vermelho entre ele e a história do nosso autoritarismo político, remota ou contemporânea, como o Estado Novo e o AI-5, que se opuseram à passagem do liberalismo político. Derrotá-lo, mais do que abrir caminho para as forças vivas da sociedade atual, significa passar a limpo as trevas do nosso passado.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio  

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/luiz-werneck-vianna-desventuras-e.html


Luiz Werneck Vianna: Uma rota de saída do inferno

Recebemos como herança maldita uma sociedade saída do ventre do latifúndio e da escravidão e fomos em nossa história lenientes em recusá-la. Ao contrário, seguimos em frente na ilusão de estarmos realizando obra civilizatória sem remover esse lastro pestilencial e até se aproveitando dele no que propiciava o ingresso na moderna ordem burguesa. Pagamos agora, gregos e troianos, nossos vícios de origem com as pragas que emulam com as das cenas bíblicas como as do bolsonarismo, da pandemia descontrolada, com a carnificina exercida sobre jovens pretos favelados e sob ameaça de que a fome venha ainda mais a afligir nossas populações desvalidas. Isolados do resto do mundo, não temos para onde fugir. As portas do êxodo estão fechadas para nós, que temos de ficar aqui e encontrar as vias de saída do inferno que nosso país se tornou.

O caminho para esta jornada é o da política que na aparência se mostra fértil para as incursões redentoras, mas basta que elas se iniciem para que se encontrem com os muros das nossas taras congênitas como as do patrimonialismo e do patriarcalismo que sempre o acompanha, engrenagens poderosas treinadas em barrar os processos de mudança, presentes em número expressivo na nossa representação parlamentar. Pois é preciso que se atente para o fato de que o atual governo não deve sua existência apenas à desastrada ação na política dos partidos democráticos, mas a uma concertação – elaborada sem dúvida açodadamente – de setores das elites cujas raízes se vinculam à formula reacionária com que o país veio ao mundo, tal como no caso exemplar das relações entre o secular latifúndio e o moderno agronegócio, uma das peças de sustentação do estado de coisas reinantes.

Tal circunstância, do ponto de vista do operador político democrático, deve ser levada em conta a fim de reparar na distância mantida entre as dimensões da política, em que o governo Bolsonaro mingua com as do social – entendidas aí restritivamente como a malha de interesses estruturadas a partir das ações das elites econômicas dominantes – até então confortáveis, em que pesem os desatinos presidenciais, com o terreno seguro que têm encontrado para a expansão dos seus negócios. Atuar nesse cenário, no contexto de uma pandemia que imobiliza a sociedade, reclama pela presença de personagens à altura do desafio de nos reconduzir à plenitude dos meios democráticos na condução da administração pública, objetivo ao alcance das mãos se tivermos a sabedoria de alguns dos nossos maiores como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves na articulação de uma ampla coalizão democrática para a próxima sucessão presidencial, ou antes dela, na melhor das hipóteses.

Faz-se necessário compreender que a coalizão reacionária no poder, apesar da sua aparência caótica, nasce e persiste – como se evidencia no comportamento dos senadores governistas na atual CPI – como um projeto orientado para malbaratar o marco democrático fixado pala Carta de 1988 com os direitos sociais que consagrou e com seus procedimentos de controle do poder político. Imprimir um movimento de marcha à ré nas conquistas acumuladas por parte da sociedade em todas as suas esferas, das institucionais às culturais e comportamentais, tem sido o leit motiv do governo que aí está.

Com essa direção enviesada Bolsonaro arremedou a política retrô em questões internacionais e sobretudo ambientais de Donald Trump, fragorosamente derrotada nas últimas eleições americanas pela candidatura de Joe Biden cujo programa defendeu o retorno do seu país ao cultivo dos seus valores fundacionais. Essa metamorfose da cena internacional, de óbvio impacto em nosso continente, soma-se às dificuldades internas para que o “regime” Bolsonaro se reproduza, uma tentativa anacrônica de nos devolver aos idos do AI-5, especialmente vistas da perspectiva das questões ambientais e direitos humanos, em maré montante nos EUA e na União Européia, com a força gravitacional que suas políticas exercem sobre a cena brasileira.

Por dentro e por fora, as pretensões de continuidade do atual governo se confrontam com o mundo das coisas reais. Bolsonaro demonstra conhecer as dificuldades à sua frente, e, tal como Trump, de que é patética caricatura, envereda pelo atalho sinistro da conspiração contra o processo eleitoral, investindo contra o voto eletrônico, de notória lisura, atestada por várias investigações especializadas. Ainda como Trump, Bolsonaro visa melar o processo eleitoral, e, desde agora inicia esse movimento aliciando a ralé de camadas médias que o acompanha em ridículas passeatas de motocicletas, quando confessa sem rebuços, como Bonaparte às vésperas do golpe de 18 Brumário que leva seu nome, que a legalidade é o que nos mata.

Não será sem atropelos que teremos de volta a democracia livre dessa permanente conspiração que a assedia, para tanto, contamos com a vacinação massiva da população, agora alavancada pelos debates suscitados na CPI que esclarecem os motivos obscuros da inação do governo na obtenção de vacinas e destrancam as vias pelas quais elas podem ser melhor negociadas, a fim de que afinal, como já acontece em vários países, as ruas se abram às manifestações populares, que é o que nos falta para nos livrarmos da tormenta desse pesadelo.

Não é de ciência certa, em política nada é, mas se conseguirmos a lucidez que nos propicie, por cima dos pequenos apetites e das idiossincrasias que infestam a nossa política, articular o maior arco de alianças possível, está ao alcance das mãos trazer de volta a sanidade na administração pública e uma nova possibilidade para um ajuste necessário com o que subsiste em nós da herança maldita que recebemos ao vir ao mundo.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio

Fonte:

IHU Online

http://www.ihu.unisinos.br/609152-uma-rota-de-saida-do-inferno-artigo-de-luiz-werneck-vianna


Luiz Werneck Vianna explica, na RádioFAP, os riscos da crise militar para a democracia brasileira

Tema do segundo podcast da FAP, a crise causada com a saída simultânea dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica em função da demissão do ministro da Defesa Fernando Azevedo é inédita no país e provocou preocupação internacional

A queda do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e o pedido de demissão
dos comandantes das Forças Armadas acenderam alertas sobre os riscos para a democracia brasileira. Os chefes do Exército, Edson Leal Pujol, Marinha, Ilques Barbosa, e Aeronáutica, Antônio Carlos Bermudez, deixaram os cargos em 30 de março. A saída simultânea dos militares é inédita no país e provocou preocupação internacional.

Ouça o podcast!

Para discutir os desdobramentos da maior crise militar no governo desde 1977, o segundo podcast da RádioFAP conversa com o cientista social Luiz Werneck Vianna. Professor reverenciado Brasil afora, Werneck é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e autor dos livros Liberalismo e sindicato no Brasil, Democracia e os três poderes no Brasil e A Modernização sem o moderno, entre outros.

O programa de áudio é publicado em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, ncora, RadioPublic e Pocket Casts. O episódio
conta com áudios da TV Globo e BBC News.

O RádioFAP será publicado semanalmente, as sextas-feiras. O programa é produzido e apresentado pelo jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz, gerente de Comunicação da FAP.


Luiz Werneck Vianna: 'Desertificação da política é o legado da Lava Jato',

Para cientista político, operação ‘morre’ pelos próprios erros, como ações 'messiânicas' e querer 'salvar o País'

Wilson Tosta, O Estado de S. Paulo

RIO - Depois que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e considerou a 13.ª Vara Federal em Curitiba incompetente para julgá-lo, o cientista político Luiz Werneck Vianna afirmou ao Estadão que a Lava Jato "morreu de morte morrida". Para o professor da PUC-Rio, a ação dos procuradores da força-tarefa e do então juiz Sérgio Moro tinha objetivo "messiânico" – mudar o País pelo Código Penal –, durou demais e deu errado. Vianna descartou ainda a possibilidade de Moro ser candidato à Presidência, e disse que o combate à corrupção será tema "lateral" em 2022.

Que balanço faz desse processo, com a decisão de Fachin?

 Demorou muito. Não é a primeira vez que a Justiça tarda e falha. Mas o fato é que a decisão é inatacável do ponto de vista jurídico. A Lava Jato não podia assimilar todos os casos de corrupção que estavam ocorrendo no País. Desde o começo, foi um erro monumental, em que juízes e procuradores jovens, eu diria provincianos, assumiram o papel de salvadores do País. Andaram estudando a operação que transcorreu na Itália (Mãos Limpas) e aplicaram aqui. Fizeram uma leitura descontextualizada da situação italiana. E mobilizaram a mídia como peça de sustentação. Acho que foi um erro.

Mas tudo que o STF está revendo foi aprovado pelo próprio STF. Por que a mudança agora?

Não creio que tenha sido uma manobra conspiratória. A Lava Jato… ela durou demais. Nasceu de uma concepção abstrusa, em que um pequeno núcleo de procuradores e juízes assumiu um papel messiânico, de salvação da política. Querer fazer política pelo Judiciário é um caminho ruim. E foi o que a “República de Curitiba” tentou. Pelo processo formal, os processos não deveriam ser vinculados a Curitiba, mas à Justiça Federal. Houve um erro humano. Desqualificou-se a política, os partidos, e ficamos em um deserto. O legado da “República da Lava Jato” é a desertificação da política.

Qual foi o ponto de virada, no qual se notou que a Lava Jato estava indo além do que poderia?

Foi um processo. Começa com a revisão da política da chamada condução coercitiva. Havia as prisões demoradas, a que eram submetidos os indiciados nas ações, ações cercadas de espetaculosidade. A mídia participou disso, de uma forma inteiramente franca e aberta. Não existiria "República de Curitiba" sem a mídia.

Essas prisões prolongadas muitas vezes foram confirmadas pelo Supremo…

Mas de outras vezes, não. A sociedade também não estava atenta ao que se passava, na medida em que a luta contra a corrupção encontrou guarida na alma popular. Encontrou legitimidade nos anseios escondidos, ocultos, da sociedade. 

Os integrantes da Lava Jato atendiam a uma demanda social?

É, eles foram levados à desgraça pelo sucesso. Foi um grande sucesso, não é? Chegou-se até a especular uma candidatura de Moro a presidente da República.

Isso está afastado?

Está. Moro sai desse processo inteiramente desqualificado como juiz. Ele foi parcial.

Que saldo fica?

O saldo primeiro, para mim, é o de que não se deve combinar ação política com ação judiciária. São duas dimensões: a política é uma coisa, a Justiça é outra. Houve essa combinação esdrúxula, e deu no que deu.

Mas isso, de certa forma, continua, não? Porque agora, com a decisão de Fachin, a Justiça também interveio na política...

Ah, continua. Isso agora faz parte do nosso DNA. A política se judicializou no Brasil. Por falta de política, falta de partido. Não se veem medidas judiciais interferindo na questão sanitária brasileira? Na compra de vacina? No lockdown? Isso foi trazido para a política pelos erros da própria política. E agora dificilmente sai.

Quais são as consequências do retorno de Lula à política?

O fato é que, para escapar da polarização extremada, Bolsonaro e Lula, seria preciso que as forças do centro tivessem outra capacidade de interferir nos acontecimentos. Mas o centro está fraco também!

Existe centro na política, com chances de sucesso eleitoral?

Não sei se o centro vai se reconstituir. Ele pode se reconstituir para ter um papel marginal. Penso que, se o PT tiver maior lucidez, não vai ser o protagonista da sucessão. Seria, nessa minha projeção utópica, o construtor de uma frente de centro-esquerda. Ele participaria, evidentemente, ativamente. Agora, sem o papel principal. É possível? Ele não tem história disso. Sempre procurou ser o protagonista. E ficou claro, no discurso de Lula, que isso vai persistir. 

Voltando à Lava Jato: a postura messiânica do Ministério Público e da Justiça acabou?

A Lava Jato está acabada. Morreu de morte morrida.

Não foi de morte matada?

Não.

Não foi o STF que matou?

Pode ter sido um golpe de misericórdia, mas estava morta. Passou da conta. Foi um projeto messiânico de salvação do Brasil pela reparação da criminalidade, pela punição, pela extirpação do crime. Isso é uma proposta fora de sentido. Os males do Brasil não são esses. Tem corrupção, sempre teve. É necessário que se combata a corrupção de outra forma, não de uma forma que comprometa todo o tecido político, como se fez. Queriam salvar o País por mecanismos judiciários, pelo Código Penal. Não é por aí.

Em 2022, um candidato com a bandeira do combate à corrupção seria então enfraquecido?

Olha, a bandeira da luta contra a corrupção não fará parte da próxima sucessão eleitoral de forma protagônica. Vai ser um tema adjetivo, lateral.


Luiz Werneck Vianna: O imprevisto, o Centrão e a política

Quando algo é natural, se for banido da sala, ele volta com força redobrada pela janela, clássico aforismo que serve como uma luva para retratar a nossa situação atual, quando se constata o retorno de instituições e de tradições que dois anos de governo Bolsonaro se empenharam em destruir como projeto político, tal como nos casos das suas arremetidas contra os poderes legislativos, e, principalmente, o judiciário. Esse tipo de experiência é uma velha conhecida, praticada com sucesso nos anos 1930 pela ditadura estadonovista, que fechou o Congresso e emasculou o Supremo Tribunal Federal, e foi reiterada pelo regime militar do AI-5, com as cassações de mandatos parlamentares e o expurgo de juízes da nossa mais alta corte. Nos dois casos, como sabido, frustraram-se os desígnios autocráticos e essas duas instituições renasceram com maior vigor.

Países, tal como os indivíduos, observava Tocqueville em “Democracia na América”, têm sua história marcada pela forma com que vieram ao mundo, na linguagem dos contemporâneos o DNA que trazem de suas origens marcam suas trajetórias futuras. Nosso estado-nação recebeu sua primeira configuração de uma assembleia parlamentar, e o parlamento foi a instituição-chave com que se edificou as estruturas do Estado, o modo de inscrição do país no cenário internacional e a preservação num imenso território da unidade nacional. Para esse último fim, foi determinante o papel desempenhado pelas instituições judiciais, em particular pelos magistrados, disseminados em rede capilar que atava regiões e rincões remotos aos desígnios do Estado.A mesma corporação cumprirá papel igualmente estratégico a partir do processo de modernização que se inicia com a revolução de 1930 que desloca o eixo agrário, até então dominante, para o urbano sob a condução do Estado e de suas políticas de indução da industrialização. Por meio da criação da CLT, da Justiça Trabalhista e do Ministério do Trabalho, o “ministério da Revolução”, se cria um mercado nacional de trabalho, regulado pelo direito e pelos novos agentes que emergem nesse processo, entre os quais, destacadamente, os juízes trabalhistas.

Aqui, não se chegará ao moderno e à industrialização pelas mãos do mercado, mas pelas do Estado, e será por essa via, que nosso longo processo de modernização, variando os regimes políticos, terá seu curso. Daí que, entre nós, o “natural” conheça essas marcas de origem, refratárias às intervenções que visem erradicá-las, propósitos declarados do governo que aí está. Não por acaso o governo de orientação neoliberal de Bolsonaro, cultor do trumpismo, tenha como projeto a submissão do Poder Judiciário e do Legislativo que impõem freios, ainda que débeis, à realização de suas agendas programáticas liberticidas.

Não é que a política seja o reino do imprevisto, mas é certo que ele atua nela, como agora testemunha a crise institucional que se avizinha, provocada por um obscuro parlamentar bolsonarista, marginal em sua grei, que numa ação solitária (tudo indica), investiu pesadamente contra o Poder Judiciário e a ordem constitucional, obrigando o STF a uma resposta à altura com a ordem da sua prisão. Com P. Bourdieu aprende-se que as instituições “pensam”, logo que criadas e institucionalizadas elas se investem de uma lógica própria de difícil erradicação, como o caso brasileiro é mais um exemplo na forte reação às atuais investidas contra elas.

Assim, um episódio provocado para agredi-las suscitou um movimento que as reforça e tende a devolver o andamento da política ao seu leito natural da democracia representativa, pois é na Câmara dos Deputados, sob uma maioria alinhada ao Centrão, agrupamento de políticos em geral pouco afeitos a convicções democráticas, que se encontrou a fórmula de superação de uma grave ameaça ao ordenamento constitucional. Tal feliz solução não se esgota topicamente com a recusa a afrontar o STF suspendendo a prisão do agente agressor, na medida em que deixa como lastro o isolamento das forças que tramam em favor da interrupção da vida democrática no país, a ser certificada pela sua punição exemplar no próprio âmbito do Parlamento.

O mundo gira e a Lusitana roda, e está aí o Centrão em papel propositivo, inédito em sua história de comportamentos meramente reativos, não por que o tenha procurado e sim em razão da trama profunda tecida ao longo da nossa vida institucional que o obrigou, em ato de legítima defesa, a superar suas limitações e agir em favor do interesse geral. Ele também não teria como escapar do naufrágio do nosso Titanic.

Nesses dois anos de governo Bolsonaro a democracia e suas instituições têm experimentado sobressaltos, já naturalizados em nosso cotidiano, e sob esse signo perturbador, em meio a uma cruel pandemia, contavam-se os dias que nos aproximam da decisiva eleição de 22. A pandemia continua, mas, ao menos, pudemos exorcizar as ameaças malévolas de retorno dos anos sombrios do AI-5. Ditadura nunca mais, bradou um ministro do STF no auge da recente crise, sem que fosse replicado.

Deve-se sempre se manter em guarda com as ilusões que podem nos toldar a vista, mas a essa altura é inevitável nosso encontro marcado com o destino na próxima sucessão presidencial. Temos tempo para nos preparar para ele, e devemos aprender com os recentes acontecimentos que, no mundo da política, o melhor ator é o que se guia pelas variações da fortuna e não aspira a lhe impor sua vontade. O imprevisto faz parte da sua lógica, aí está o Centrão não como mero coadjuvante, mas com fumaças de protagonismo, mais uma peça no tabuleiro a ser considerada pela esquerda democrática ao conceber seu xeque-mate à aventura golpista que visou atalhar nossa história.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo PUC-Rio


Luiz Werneck Vianna: Encontro marcado (se possível, suspenso por força maior)

Com os êxitos eleitorais das forças conservadoras no Senado e na Câmara Federal experimentamos um momento inédito na política brasileira de captura dos instrumentos do poder por parte de elites parasitárias do Estado, agrupadas no chamado Centrão, assim conhecido na linguagem dos jornais, melhor designado pelos cientistas sociais como o reduto do nosso atraso político-social. Tais elites nos acompanham ao longo do nosso processo de modernização, de Vargas a Lula, sempre como coadjuvantes, fornecendo bases de sustentação em seus rincões aos diferentes surtos de modernização que se sucederam na história republicana moderna no processo de imposição do capitalismo brasileiro.

Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.

O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.

O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.

Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.

Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.

É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.

As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.

A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.

É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio  


Luiz Werneck Vianna: As velas pandas de Ulisses Guimarães

A posse de Joe Biden na presidência dos EUA, a rigor uma solenidade cívico-religiosa concebida para reanimar as crenças nos temas e ideais fundadores da sua sociedade, ao menos por ora afasta em todos os quadrantes os riscos para a segurança comum representados pelo que foi o governo Trump em sua versão degradada do nacional-populismo. De fato, há o que comemorar, embora não se possa desconsiderar que Trump, mesmo que amplamente derrotado nas urnas, obteve mais de 70 milhões de votos e uma legião de fanáticos seguidores, uma parte deles organizados em milícias, vistas a olho nu na tentativa insurrecional de 6 de janeiro de barrar a certificação eleitoral da vitória de Biden. E, para eles, deixou suas últimas palavras de que por algum modo, voltaria.

O augúrio fúnebre tem como ser evitado, as forças democráticas foram testadas em sua vitoriosa campanha eleitoral em que deram provas de sabedoria política, agora confirmada pela decisão de apresentar o impeachment ao senado, e sobretudo pelas medidas de impacto já efetivadas nas frentes sanitária e econômica com que se espera diluir a influência do trumpismo. O processo do impeachment, como se sabe, pode culminar com a interdição definitiva de Trump da vida política. Caso bem-sucedidas, tais intervenções benfazejas põem por terra o projeto de arregimentar em novo partido com os salvados do trumpismo, o Patriota, de óbvia má índole fascista.

Nada disso é estranho à nossa sorte. Uma das marcas do trumpismo esteve na sua tentativa de criar uma internacional reacionária, missão confiada ao ex-estrategista do governo Trump, Steve Bannon, perdoado do crime de fraude num dos seus últimos atos, que conta entre seus aderentes personagens do governo Bolsonaro e da sua família. Tal como a  Hidra de Lerna, o trumpismo tem várias cabeças e somente pode ser exterminada com a amputação delas cauterizadas as suas feridas, sem o que renascem como na mitologia. O governo Bolsonaro é um sobrevivente da debacle do trumpismo nesta nossa América Latina que reinicia seu encontro com sua história de luta por liberdades. Barrar seu caminho importa, além de outros motivos relevantes impedir que nosso país se torne um reduto da central reacionária do trumpismo nesse sub-continente.

Na hora da partida para essa navegação difícil que temos que começar mesmo que ainda incertos os resultados pela miséria da nossa política, ouvem-se as lamúrias do Velho do Restelo para que recolhamos as velas e nos conformemos ao que aí está, por que tudo pode piorar.  Mas como as velas já se enfumam, como as queria Ulisses Guimarães, e de toda parte se ouvem os brados de basta, fora já? Bem mais arriscado do que o da hora presente foi o cenário do movimento das anti-candidaturas de Ulisses e Nelson Carneiro, apenas uma manifestação de força moral, com que se abriu, mais tarde, a via para o movimento em favor das diretas já que desaguou na derrota do regime militar em 1985.

Desde Maquiavel, que estudou as grandes batalhas da Antiguidade em Arte da Guerra, ecoam as lições de que os resultados das batalhas não se podem prever de antemão, eles se decidem no fragor da luta. No nosso caso, o teatro de operações que se tem pela frente, bem distante de desfavorável, apresenta-se como propício, quer pela conjuntura internacional, quer pela catástrofe sanitária a que estamos expostos pelo governo Bolsonaro. A rota do impeachment recém-descoberta como recurso de legitima defesa da sociedade ganha o caminho das ruas com as carreatas que proliferam e o adensamento da opinião pública em seu favor. Diante da miséria política do país, entretanto, nada garante a ela um final feliz.

As longas marchas começam com um pequeno passo. Logo ali, na próxima esquina, nos espera a próxima sucessão presidencial. A envergadura da frente política que ora se ensaia, com o movimento em favor do impeachment consiste no primeiro e decisivo teste que ela enfrentará naquele momento de importância capital. Quanto mais ela se ampliar politicamente, e mais se enraizar capilarmente na vida social em ações de protesto e de recusa a um governo maligno nas lutas imediatas atuais, maiores serão suas possibilidades de dar um fim – se não conseguir antes por outros meios –  ao pesadelo atual. É verdade que nos faltam Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, mas contamos com suas histórias exemplares que bem poderiam emular o que nos sobrou.

Mas, entre tantas faltas a lastimar, não se pode deixar de contar com as novas presenças que nos vêm da vida do associativismo popular, dos profissionais e intelectuais das atividades da saúde, da nova safra de artistas populares e dos que se dedicam com brilho ao colunismo na imprensa e aos comentaristas políticos na TV e no rádio. Nesse rol igualmente devem ser mencionados os parlamentares e os partidos políticos que com sua resistência ao autoritarismo honram seus mandatos, sobretudo os ministros do STF que preservam a integridade da nossa Constituição. São eles que abastecem de oxigênio uma sociedade exangue por falta de ar.

Aos poucos se desvanecem as ameaças que nos prometiam a destruição da obra da nossa civilização, ainda incompleta e precária como se sabe, mas que aos trancos e barrancos teimávamos edificar. A resistência a este novo autoritarismo em nosso país, em meio a uma cruel pandemia, mostrou, mais uma vez, ser eficaz. Tudo somado nesses tempos sombrios, pode-se constatar que, dos salvados do incêndio com que pretendiam nos destruir, salvou-se a nossa alma da sanha de Bolsonaro, Paulo Guedes, Ernesto Araújo et caterva. Não é pouco para quem vivia como nós sob a ameaça de extinção dos nossos valores e das nossas melhores tradições.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio  


Luiz Werneck Vianna: Hic Rhodus hic salta

Nesse tempo de espantos algo já se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald Trump que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou por princípios opostos de política externa será ungido com a faixa presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente constituído, exemplar no processo de criação da ONU.  O eixo do mal, portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam não terão como operar sem o amparo do sistema de quem faziam parte.

Cerra-se um ciclo que se iniciou no governo Thatcher, aprofundou-se com Reagan e culminou com Donald Trump, em que se tentou com a fórmula neoliberal nos devolver ao capitalismo vitoriano. As promessas de um novo tempo, contudo, se encontram embaçadas pelo flagelo da pandemia que nos assola e tolhe a livre movimentação das forças sociais embora estimulem a procura por soluções cooperativas supranacionais. Nesse sentido, o esforço mobilizado para o combate contra ela ainda mais reforça o processo de transição em que estamos envolvidos para uma era de superação do modelo de estado-nação em favor de organizações multinacionais que se comprometam com os ideais da igual-liberdade.

Essa transição não será um processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da invasão do Capitólio quando se intentou obstar a certificação das eleições por um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de supremacistas brancos, neonazistas, de milicianos, de uma gente sem eira e beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as bênçãos do governante do país.

Conduzir essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu caminho, a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20 em nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua sociedade.

Tal como testemunha o caso brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que integravam sua constelação, entre os quais o Brasil, contudo a necessária admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.

O princípio da realidade nos aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições, inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa marcha que se tem pela frente, pois não se podem dar as costas à fortuna que nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens, ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de prolongar o abjeto governo que aí está.

A tragédia amazônica, se permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas, na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia do ministro Pazzuelo.

Nessa direção, o movimento ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.

Cassandras nos aconselham a não partir para o mar alto, e nos relembram dos políticos liliputianos com que contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de forças esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos, basta, fora.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio


Luiz Werneck Vianna: A longa tragédia brasileira

Com dois anos de governo Bolsonaro e mais 10 meses de pandemia passados já se pode avaliar os estragos provocados por esses males, ainda longe de serem erradicados. Por ora, quase 200 mil mortos, milhões de afetados, sabe-se lá quantos padecendo de sequelas, um rastro de miséria política e social, uma sociedade com a morte na alma com os valores que a formaram relegados ao limbo. Entregue às suas próprias forças diante da omissão do governo, dirigido por um Rambo de padaria, ela perde as esperanças, especialmente entre os jovens, abdicando da luta contra a pandemia nas aglomerações dos bares e das baladas malsãs quando flerta animadamente com as práticas de roleta russa. Na ausência de pastor o rebanho desafia o destino e se entrega sem luta à morte.

Não há mais dúvidas de que a tragédia em que somos personagens se deve ao tipo de pastoreio a que fomos confiados, a melhor sorte dos países vizinhos testemunha isso, para não falar dos países desenvolvidos guiados por lideranças conscientes do papel da ciência e das políticas públicas no combate ao flagelo da peste. Em legítima defesa da vida somente dispomos dos recursos da política e das instituições e meios consagrados por nossa Constituição a fim de imprimir um paradeiro a essa nefasta experiência a que fomos submetidos. Não é uma tarefa fácil, inclusive porque nos faltam lideranças à altura dos desafios presentes. Mas sapo não pula por boniteza, e sim por necessidade, lembrava Guimarães Rosa.

O fato é que, nas condições dadas, armou-se uma inextricável fusão entre democracia e defesa da vida, a partir da qual se pode entrever a emergência de promissoras personagens e novas possibilidades de ação. Boa parte delas provém do campo da ciência e dos profissionais da saúde, não menos relevante é a originária da vida associativa popular, evidente em algumas capitais nas recentes eleições municipais, processo benfazejo que também alcança a esfera da política com essa nova safra de prefeitos alinhados em luta contra a pandemia que os irmana às lutas pela democratização das políticas públicas.

Toda essa nova movimentação vem emprestar suporte novo aos que, no interior das instituições republicanas, notadamente no Congresso e no STF, vêm suportando o assédio das forças do autoritarismo político e lhe impondo limites. No horizonte imediato, surgem os primeiros sinais de terra à vista, confirmando que o plano de navegação até então obedecido merece confiança e deve ser preservado. Seu traçado fundamental repousa na formação de uma frente democrática a mais ampla possível, na forma como agora se delineia na eleição à presidência da Câmara dos Deputados, no que pode ser o esboço da política a ser adotada na próxima sucessão presidencial quando o país enfrentará o que tem sido seu trágico destino.

Tragédia de Sísifo, condenados como temos sido, a refazer nosso caminho para a democracia sempre desconstruído em razão da maldição em que incorremos por evitarmos, na hora da nossa fundação, uma luta nacional de libertação, pela frustração do abolicionismo e pela República sem povo que criamos. Assim, como em tantos movimentos do passado, depois das lutas que nos trouxeram a Carta de 1988 temos aí essa marcha à ré ao AI-5 de que é nostálgico o governo Bolsonaro.

Os sinais de alvíssaras também se fazem presentes agora em janeiro com a posse de Biden no governo dos EEUU, malgrado os renitentes pedantes de sempre relutarem em valorizar o episódio, um golpe fundo no nacionalismo populista que vicejou em nossas bandas americanas. Por igual, de nossos vizinhos emanam bons ares, como os da Argentina, Chile e Bolívia. O céu se desanuvia e mais dia menos dia nos chega a vacinação em massa, e com ela as possibilidades de encontro, inclusive com as ruas de que temos sido obrigados a nos afastar.

Tragédias transcorrem em meio a lutas por sua superação, como exaustivamente procura demonstrar o notável crítico Terry Eagleton em seu longo ensaio sobre o tema “Doce Violência – a ideia do trágico” (UNESP,2013). Prometeu roubou o fogo dos deuses para confiá-lo aos homens, assim lhes propiciando os meios para fugir de uma vida vegetativa e a capacidade de modelar com suas próprias forças o seu destino. É Eagleton quem nos lembra do lema de Lacan “não desista do seu desejo”, com o que nos recomenda arriscar o bom combate contra o falso e o injusto e a recusa a uma vida de qualidade inferior.

     No deserto hostil em que ora se vive algumas vozes em tom manso, pontuadas pelas artes da ironia, procuram se fazer ouvir como a do jornalista Fernando Gabeira, vocalizando o desejo recalcado de tantos em favor de uma luta que nos liberte dos grilhões que nos mantém atados ao nosso trágico destino. Para tal empreitada não nos faltam os meios nem instituições, assim como as boas lições que aprendemos com a boa sorte de muitos processos de revolução passiva, que longe do quietismo que se entrega aos fatos, importa num ativismo incessante em busca dos elos mais fracos da corrente que nos aprisiona a fim de afrouxá-los, quando não os romper, no limite com o recurso extremo do impeachment.

Os caminhos das revoluções passivas não são adversos ao pragmatismo em matéria política, muito pelo contrário. Maquiavel é sempre bem lembrado quando se trata de sopesar as circunstâncias, se propícias ou não para que tal ou qual ação seja desencadeada. Mas, como ele sustenta, em linguagem hoje talvez tida como machista, a fortuna é mulher e acolhe melhor as ações audazes do que as tímidas. As tragédias contemporâneas têm no lugar dos heróis clássicos a multidão dos homens comuns, como os das praças da primavera árabe e das ruas americanas das passeatas intermináveis do black lives matter. Essa a razão de fundo para que a luta pela democracia tenha seu ponto forte de partida na luta contra a atual pandemia, a fim de liberar, por meio de amplíssimas alianças, o acesso às nossas ruas e praças.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio