luiz werneck viana
Luiz Werneck Vianna: A muralha e a sua porta
Aparentemente a atual conjuntura experimenta um tempo homogêneo e vazio em que se reitera o já vivido, como se a sociedade estivesse condenada a movimentos de repetição de suas experiências passadas sem lhe conceder a faculdade de descobrir suas alternativas de futuro. A aceitar esses termos viver-se-ia agora, no Brasil, nas mesmas condições dos idos de 1964 a 85, restando a nós reiterar as práticas bem-sucedidas naquele período. Mas, de fato, nosso tempo nem é homogêneo e nem vazio, pois forças surgidas das entranhas da sociedade capitalista contemporânea brasileira trazem consigo a heterogeneidade e fazem emergir novos sentidos na vida social, alargando a porta estreita de que falava Walter Benjamin pela qual podem entrar as forças da transformação.
Com efeito, se em boa parte novos processos benfazejos que transcorrem no mundo devem sua aparição à ação do domínio dos fatos como protagonista, outra parte se deve ao plano da consciência do ator que se anima e se inova ao vislumbrar as novas possibilidades que percebe na porta entreaberta que tem diante si. De fato, a intervenção sem freios que a expansão do capitalismo expôs o mundo, desencadeando exponencialmente suas forças produtivas, vem precipitando processos disfuncionais que põe sob ameaça sua própria reprodução, entre os quais os riscos ambientais, como a atual pandemia, que, se não controlados, podem, no pior dos cenários varrer do planeta a nossa espécie ou degradar a herança cultural que ela acumulou em sua jornada de séculos.
A onda neoliberal que tomou conta do mundo a partir dos anos 1970, em sua versão de um capitalismo vitoriano, deixou em sua esteira, como o demonstra incansavelmente o economista Thomas Piketty, um lastro de desigualdades que corrói por dentro a legitimidade do seu modo de produção. Ao lado disso, o legado do colonialismo com que o capitalismo iniciou sua trajetória de triunfos deu como um dos seus frutos amargos a questão do racismo, primeiro pela importação massiva, sob o estatuto da escravidão, de africanos com que se supriu as plantations de mão de obra com que as Américas realizaram sua inserção no mundo do capitalismo, e bem mais tarde, aí já em cenário europeu, com as migrações originárias das antigas colônias, também em grande escala, em busca de oportunidades de vida em sociedades carentes de força de trabalho barata em serviços subalternos.
A entrada em cena do racismo, em especial nos contextos europeus e americanos, como que vieram a sobredeterminar as desigualdades sociais, instalando um sentimento generalizado de que a injustiça se naturalizou na vida social, sentimento particularmente experimentado pelos jovens que se deparam com sociedades adversas à sua participação. O movimento catártico dos jovens em grande número de países, massivo no caso americano, em reação ao bárbaro assassinato de um negro por motivo banal pelas forças policiais, trouxe à luz a existência de uma ainda embrionária sociedade civil mundial e de novos personagens políticos prontos a entrarem em ação.
A atual pandemia que nos assola, por sua vez, acentua o quadro de fim de época que se insinua neste tempo que parece nos ensinar a abandonar as concepções de mundo do utilitarismo que o capitalismo nos impôs para buscar novos caminhos, alguns deles já conhecidos pela longa história humana como os que investiram nos ideais da igual-liberdade, para usar uma forte expressão de E. Balibar.
A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal.
Se Bolsonaro é prisioneiro dos idos do AI 5, a oposição democrática a isso que aí está, não deve ficar retida na sua história de sucessos nos anos 1980, embora deva estar atenta às suas lições. A trama é nova e novos são os personagens, muito particularmente aqueles que surgiram com a auto-organização da vida popular em suas lutas pela vida em meio à catástrofe da pandemia, eles e os seus intelectuais que ganharam estofo nessas lutas, e junto a eles os movimentos de cientistas, de universitários e de intelectuais que a eles se associaram. A política democrática não poderá perdê-los de vista, assim como abrir generosos espaços a esses emergentes setores da esquerda, que, embora ainda imaturos em alguns casos, trazem consigo seiva nova a ser valorizada.
As eleições municipais – eleições, na nossa experiência, consistem em uma forma superior de luta – estão batendo em nossas portas, e aí estará o momento, especialmente se a malfadada pandemia arrefecer para recuperarmos os espaços que fomos coagidos a abandonar. Nessa hora de retomada cumpre alargar, de forma tal que empalideça todas nossas experiências anteriores, uma frente democrática que invista com energia contra as muralhas reacionárias que os desavindos com a nossa história e melhores tradições ergueram para a proteção dos seus privilégios e de suas crenças malévolas.
Luiz Werneck Vianna: Não há mal que sempre dure
Não dá para esconder que a democracia brasileira esteja sob alto risco, e não apenas por que se encontra ameaçada por um governo que faz do seu desmonte o seu objetivo estratégico, mas também por que uma parte de sua sociedade abandonou sua afeição por ela. Afinal, os governantes que aí estão foram eleitos em pleitos eleitorais livres, secundados pelos parlamentares mais toscos, despreparados e vorazes conhecidos em nossa longa história parlamentar, presentes em todas as casas de representação política. Também eles não caíram do céu, foram eleitos, e muitos deles com estrondosa votação. O retrato lúgubre que estampam não é filho do acaso e da má vontade do destino, mas das nossas ações e inações. Diante de nossos olhos a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma, da sua história e melhores tradições.
Como isso pode acontecer aqui, justo no lugar que soube derrotar pela ação política bem concertada um regime autoritário que a afligiu por duas décadas, essa a questão que temos de sondar até as suas raízes a fim de encontrar remédio para os males que nos atormentam. Que se ronde a blasfêmia, inevitável no caso, por que foi de um partido nascido da vida sindical, lugar sagrado da esquerda, que teve início a difusão do vírus maldito que apartou a democracia política da democracia social, cerne da concepção da Carta de 88, destituindo a política do seu papel criador e pondo no seu lugar a esfera bruta dos interesses, deixando fora de foco o cidadão em nome dos apetites do consumidor – os automóveis, as viagens de avião, as comemorações da Força Sindical no 1º de maio com brindes e rifas aos participantes no lugar da evocação das lutas civis que tradicionalmente celebravam.
Principalmente o descaso com a organização da vida popular e a descrença no papel que uma cidadania ativa pode desempenhar nas democracias, uma vez que por cima de todos um poder tutelar agia em nome de todos, vindo a reforçar as tendências à fragmentação social que décadas de modernização autoritária tinham produzido. A questão social sob a administração do Estado vem à tona com pouca sustentação nos atores que deveriam ser os seus portadores naturais, orientada como estava para os fins políticos da reprodução do poder tutelar que se empenhava, como recurso de legitimação, na satisfação dos desejos de consumo das multidões.
Naquele contexto o que importava era a preservação das posições conquistadas no interior do Estado, pois era a partir dele que realizava o seu enlace com os movimentos sociais e setores da sociedade civil, aí incluídas atividades empresariais de todo gênero, movimento que mereceu ser designado como o Estado Novo do PT. Seus efeitos foram letais na medida em que expos as estruturas do Estado às ações de grupos de interesse que se valeram dessas relações promíscuas para a expansão dos seus negócios e atividades econômicas, terreno fértil à corrupção. Com este flanco aberto, escancarou-se a possibilidade para o capitalismo brasileiro de se livrar dos inúmeros obstáculos, sociais e institucionais, que obstavam sua plena realização. A chamada operação Lava Jato foi o cavalo de Troia que permitiu a entrada em cena das hostes que há tempos ansiavam por essa oportunidade.
Com o terreno da política desertificado, lastro deixado pela Lava-Jato, afetado em sua credibilidade o sistema da representação política, destruídas as escoras e referências que orientavam o sistema de crenças da sociedade, já enfraquecidas por anos de práticas refratárias a uma cidadania ativa por parte do PT, a cena pública tornou-se presa fácil do mundo dos interesses e de todos os apetites. Uma ralé de novo tipo, com extração nos setores das camadas médias, em busca da fama e da riqueza fácil, inebriadas pelo mito pós-moderno da personalidade, vislumbra na sociedade indefesa a sua hora e a sua vez e consegue postos importantes no sistema da representação política. Com a infiltração desses vândalos a obra da ainda inacabada civilização brasileira passa a sofrer graves ameaças.
Contudo, dessa história de ruinas permaneceram de pé as instituições edificadas no já longínquo 1988, ano em que celebrou sua Carta democrática, e por isso mesmo os bárbaros que a sitiam têm como lema a sua destruição. Seus defensores, com firmeza e sabedoria, têm sabido até aqui preservar esse último reduto da democracia brasileira, mas seu esforço solitário não é garantia de que poderão sem recursos externos sobreviver ao cerco a que estão expostas. A dificuldade para a efetivação desse movimento está na pandemia que nos assola, e que nos mantém confinados em defesa da vida. Há outros recursos, porém, que embaraçam as ações dos que tramam contra nossa democracia, um deles, nada irrelevante, provem do mundo ao redor.
As forças que nos rondam em nome da destruição da nossa obra coletiva também sabem calcular, e têm tudo a temer, na economia e na política, no cenário atual das coisas no mundo, caso prevaleçam impulsos em suas ações no sentido de apostar na barbárie que anima tantas lideranças suas. O Brasil não é uma ilha, e faz parte desde sua origem do sistema capitalista mundial, filho do Ocidente, sua formação nacional se forjou sob a influência das correntes de ideias que nos vinham da França, no Império, segundo a modelagem operada pelo Visconde do Uruguai, e, na República, dos EUA que inspirou em larga medida a sua primeira Constituição em 1891, obra em grande parte derivada da influência de Ruy Barbosa na sua redação.
Orbitamos desde aí, de Rio Branco a Nabuco e Osvaldo Aranha em torno desse último eixo, que agora se move em reação contrária a política de Donald Trump que desafia as concepções dos seus pais fundadores em nome do seu projeto de poder em antagonismo com o universalismo e ideais civilizatórios preponderantes ao longo da sua história republicana. Tal movimento, nos dias que correm, tendo como estopim a questão racial, ganhou as ruas, em que pese a pandemia que a todos atinge, em multitudinárias manifestações de jovens apoiadas pela opinião pública e de grandes personalidades do mundo da cultura e dos esportes, não lhe faltando sequer palavras de simpatia entre algumas de suas elites militares. Anuncia-se a possibilidade de mudança nas coisas do mundo.
A política dos governantes que aí estão se encontra desalinhada das tendências benfazejas que ora se afirmam em todos os cantos do planeta. Sob a pressão da pandemia em curso, a linguagem da cooperação se universaliza, com forte intensidade na dimensão da ciência onde se fazem presentes vigorosas denúncias do estado de coisas reinante no mundo, que adoece pelas desigualdades sociais, pela degradação da natureza e da vida em geral. Coube a nós viver essa quadra inclemente sob a condução de ideologias de hospício, hostilizados pelo bestiário de dirigentes que afrontam o mundo e o que há de melhor em nosso país. Isso que aí está não pode durar, não vai durar.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio.
Política Democrática: ‘Movimentos sociais estão destroçados’, diz Luiz Werneck Vianna
Sociólogo afirma que revolução democrática avança planetariamente
Cleomar Almeida
“A sociedade não vai abdicar facilmente do que conquistou, mas é preciso que transforme isso em motivação política, afirma o sociólogo Luiz Werneck Vianna em entrevista publicada na quarta edição da revista Política Democrática online. A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS).
» Acesse aqui a edição de janeiro da revista Política Democrática online
Para o sociólogo, “não há oposição efetiva, os movimentos sociais estão destroçados, o sindicalismo também”. Então, de acordo com ele, por mais que a harmonia na atual coalizão governamental seja difícil, os riscos são pequenos para ela.”
“Há processos reais, inamovíveis, irremovíveis que vêm trabalhando na nossa sociedade; e que isso, no limite, propicia um avanço continuo da democracia”, diz o sociólogo, ao comentar este início do governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e a onda à direita que está em curso atualmente no país.
De acordo com Werneck Vianna, a revolução democrática avança planetariamente, mas conhece também obstáculos que não são propriamente os que o campo adversário apresenta. “São, antes, interesses represados que se organizam de forma segmentada, com base em identidades culturais, com perda da ideia de bem comum”, diz ele.
Werneck Vianna também ressalta que a preocupação do lado de lá é refrear, é conter os processos que vêm atuando até agora como forças da natureza, embora com pouca reflexividade. Afinal, segundo ele, não é difícil descobrir, entre os jovens, centelhas brilhantes. “Não há caminho a ensinar para eles; eles têm de aprender por eles mesmos, como nós aprendemos, quando o país, em um certo dia de agosto de 1954, foi dormir de um jeito e, com o suicídio de Vargas, acordou de outro”, lembra.
“Eu e muitos da minha geração mudamos com a difusão da sua carta testamento no rádio, um dia inteiro, produzindo um impacto intelectual, moral, político muito grande sobre cada um de nós”, completa Vianna.
Sobre a possibilidade de Bolsonaro e sua nova ordem nacional pontilhada de projetos antagônicos vier um dia a fazer uso da força para manter o governo, Werneck Viana diz que cabe à sociedade impedi-lo. “O céu de brigadeiro a que alguns arautos do novo governo têm feito referência só existe em razão de os bloqueios políticos ao novo grupo no poder serem ainda muito frágeis.", completa
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002).
Sobre seu pensamento, conforme sugere a revista, o público pode ler Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro (intitulado) Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas (concedidas) que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos.
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Luiz Werneck Vianna/IHU On-Line: 'O texto constitucional está em risco'. Para onde a balança do novo governo vai pender?
Por Patricia Facchin, do IHU On-Line
“O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line ao comentar os primeiros movimentos do governo de Jair Bolsonaro. O discurso de posse do presidente, avalia, “foi ameaçador” e indica a intenção de fazer a “roda girar para trás” na questão dos costumes e das mulheres, mas “em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal”. O modelo econômico que orienta o governo, pontua, “não é bom nem mau”, mas é preciso “ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam”, pondera.
Entre os passos a serem observados no novo governo, Werneck Vianna chama atenção para qual será a participação e as posições a serem defendidas pelos militares no governo. “Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército”, menciona. Até onde se sabe, diz, “a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza”.
Nos primeiros meses de governo, Werneck Vianna aposta que as políticas econômicas do governo encontrarão “apoio” entre os militares, mas “algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver”. Mas o que “vai se ver” com certeza no novo governo é a reforma da Previdência. A questão é saber se “esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização”.
O sociólogo frisa também que “por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco” e “o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição”. Ele explica: “O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver a Justiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar”.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a entrevista:
IHU On-Line - Qual sua avaliação do discurso de posse do presidente Jair Bolsonaro e da primeira semana do novo governo?
Luiz Werneck Vianna – O discurso de posse foi ameaçador. Por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco. Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército. Havia, até bem pouco tempo atrás, a convicção de que eles estavam comprometidos com a defesa da Carta de 88, inclusive isso era claro em declarações públicas do general Villas Bôas. Mas parece que isso não é tão claro, porque o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição. O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver aJustiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar.
Um fenômeno local e global
A minha ideia geral sobre esse tema não é apenas local. Trata-se de um processo de alcance muito mais geral, que envolve a Itália, a Hungria, a Polônia, os EUA principalmente, e agora o Brasil, com a importância que tem na América Latina. Há um diagnóstico, por parte da direita emergente, de que se tudo permanecesse como antes, com a ONU, com o tema do meio ambiente, o tema da paz, o mundo do capitalismo iria conhecer dissabores importantes no tempo em que vivemos e no tempo em que ainda viveríamos. Vejo essa movimentação da direita como uma concertação internacional no sentido de devolver ao capital e ao capitalismo liberdade de movimentos, fazendo com que ele remova todos os obstáculos que estão antepostos a ele. Isto ocorreu na Inglaterra com o Brexit, que ainda é um processo inconcluso, mas, de qualquer modo, as reações reacionárias, que se opõem às mudanças que estavam ocorrendo e ainda estão, foram demonstradas nas próprias eleições na Itália, na Hungria, e o preço foi contestado por um processo plebiscitário, isto é, dentro dos canais democráticos. Então, a democracia apresentou e vem apresentando caminhos novos, como a emergência da direita no mundo através da manipulação eleitoral e através da exploração dos perdedores por aqueles setores sociais afetados pela globalização.
Esse mundo todo vem percorrendo um caminho que desconhece, que passa por cima ou que passa ao largo das questões do mundo urbano industrial. Os trabalhadores da indústria e os personagens do século XX, sindicatos, partidos de esquerda, partidos em geral, sofreram um processo de esvaziamento muito grande. Hoje o mundo transcorre mais na área dos serviços e das finanças. A política se tornou necessária para liberar o andamento dessa economia nova, financeirizada, para que ela remova os obstáculos da sua reprodução. A roda da história está girando. Quais são os grandes alvos desse movimento? A ONU, a paz.
Programa do governo
O programa desse governo que aí está é mais um programa de limpeza de terreno dos obstáculos existentes a uma reprodução mais flexível do capitalismo. Está aí a questão indígena e a liberação de terras indígenas para a mineração e o agronegócio.
A grande propriedade agrária está desempenhando um papel central na formação do governo, muito importante na formação do parlamento. Fazer a roda girar para trás é possível, mas é muito difícil. Daí que o mundo de Trump não seja um mundo de céu de brigadeiro, inclusive internamente, mas eles estão se esforçando bastante nessa direção e existe uma consciência nova, uma ação nova, novos protagonistas, que devolvem liberdade de movimento ao capitalismo.
A questão feminina não depende da movimentação política, de movimentos feministas e partidários — isso ajuda —, mas é sobretudo o movimento das coisas. O mundo capitalista atual foi obrigado a atrair as mulheres ao mercado de trabalho e, com isso, afetou a família nuclear, o patriarcalismo, inclusive no Oriente esse processo está chegando. Não é possível fazer com que esse movimento da emancipação feminina retroceda. No Brasil, o que se observa como reação àemergência das mulheres no mundo é essa epidemia de feminicídio que vem ocorrendo entre nós. É claro que estou mostrando e acentuando um aspecto microscópico disso, mas isso tem por trás mudanças societais imensas e revolucionárias do ponto de vista antropológico. A família nuclear que o mundo tradicional conheceu não volta mais ao que era; isso foi subvertido por processos sociais inamovíveis. Esse é um tema de fundo, não é um tema lateral, e está presente no combate às chamadas ideologias de gênero, tão forte nos discursos de campanha presidencial de Bolsonaro, e na armação ideológica do discurso anacrônico e primitivo do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Além do mais, o pentecostalismo cresceu no Brasil, mas o país continua católico, majoritariamente católico. Isso cria travas não na questão da mulher exatamente — não é a isso que estou me referindo. Estou me referindo à matriz que formou a identidade nacional brasileira, que não é uma matriz protestante, mas é uma matriz da catolicidade. Tem uma sofisticação dada por séculos e uma capacidade de resistência muito grande. Não creio que esses traços da identidade pela catolicidade no Brasil sejam facilmente radicáveis por essas novas ideologias de fundo pentecostal, como a ideologia da prosperidade e coisas do gênero. Não vejo como isso possa avançar a ponto de jogar a velha matriz que presidiu a formação da nossa identidade. Então, esse é outro ponto que tende a suavizar e amenizar essa ira da Reforma Protestante — não quero me referir ao protestantismo de modo pejorativo, mas a esse impulso de reforma que está nos pentecostais que querem que nos costumes, na sociabilidade, o mundo volte atrás, isso num momento em que Cuba, por exemplo, alivia o seu texto constitucional da repressão ao homossexualismo. Esse é um tema que também não volta atrás. De outra parte, o nível de independência, de liberdade com que o Brasil viveu as últimas décadas levou o país a ter novos personagens, novos temas, e não vai se fazer essa roda girar para trás. Então, esse é um lado do governo, digamos que o lado obscuro do governo.
O lado mais racional, digamos, admitindo de forma generosa a racionalidade disso, estava na necessidade de que o mundo da economia brasileira, especialmente das suas elites, vem ao seu encontro com a ideologia neoliberal. O neoliberalismo implica a remoção das conquistas sociais que foram acumuladas nas últimas décadas. O neoliberalismo precisa de uma movimentação livre de capitais, cujos custos sociais não importam. Os melhores dirão que, com a riqueza que o neoliberalismo trará, todos vão se beneficiar. Isso não se viu em parte alguma e é de uma improbabilidade quase absoluta. O que vai se ver é uma intensificação da exploração, do domínio. Sabe-se lá se vai encontrar resistências ou não.
IHU On-Line – Que problemas o senhor identifica na visão econômica do novo governo?
Luiz Werneck Vianna – É o de que terão de remover os direitos que estão aí: legislação do trabalho, Justiça do Trabalho, abrir a terra para a exploração mineral e agropecuária. Apostar no mercado com a crença de que, a longo prazo, isso vai trazer benefícios a todos.
IHU On-Line – Seria melhor continuar com o capitalismo de Estado que prevaleceu até então?
Luiz Werneck Vianna – Não. De jeito nenhum.
IHU On-Line – O que seria uma outra via?
Luiz Werneck Vianna – Uma via liberal, e não neoliberal. A economia com o governo Bolsonaro vai apenas selecionar regiões privilegiadas para a sua intervenção. Esse é um ponto. Outro ponto são os militares.
IHU On-Line – Por que o senhor está com receio da participação dos militares no governo?
Luiz Werneck Vianna – Eles sempre foram refratários à privatização e sempre tiveram um papel favorável à intervenção do Estado, às estatais, a Petrobras, a Eletrobras. Como eles irão se comportar diante disso ainda é um segredo, um mistério. Tem de se presumir que haverá alguma dificuldade ou algum ruído em algumas dimensões. É um governo com opções arriscadas, que se importa em produzir mudanças que se refletem em outros segmentos do próprio governo. Por exemplo, vamos franquear parte do nosso território a bases militares americanas, como preconizam tantos, como o ministro das Relações Exteriores? Os militares concordarão com isso? Acerca da questão de transferir a embaixada em Israel para Jerusalém, como ficaria isso para o setor agropecuário que depende tanto das exportações para o mundo árabe? Tudo isso não dá para antecipar.
IHU On-Line – Os militares de hoje têm uma visão diferente do nacionalismo se comparado aos militares do passado?
Luiz Werneck Vianna – É uma coisa a ver. O mundo militar é um mundo muito complexo e tem uma geração mais jovem. Está saindo uma pesquisa produzida pelo meu departamento na PUC-Rio, coordenada por Eduardo Raposo e Maria Alice Rezende de Carvalho, a qual foi feita num convênio com segmentos da corporação militar e patrocinado pela Capes. Por essa pesquisa, os elementos de continuidade aparecem muito fortes, a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza. O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender. Ela não vai poder ficar sem indicar lados perdedores e vencedores por muito tempo, porque as questões são muito pesadas e importantes. Abrir o território nacional para uma presença militar estrangeira é uma questão que vai mexer profundamente com as Forças Armadas e a sociedade inteira. A questão da transferência da embaixada em Israel vai mexer com um segmento, mas um segmento muito importante, que é o do agronegócio, e por aí vai. Outros temas, como o dos costumes, mexem com a sociedade toda.
O carnaval vem aí e ele não vai se passar que nem missas campais pentecostais; vai ser o carnaval de sempre, da sensualidade desenfreada, da liberação de sempre, e talvez ele também se comporte de forma a caracterizar o que está se passando fora dele, fora do mundo do carnaval. Blocos, escolas de samba vão refletir, como sempre refletiram, sobre temas do cotidiano, e vai ser interessante de ver. Nesse sentido, também por aí, não vai se conseguir fazer a roda girar para trás.
IHU On-Line – O novo governo tem a intenção de fazer a roda girar para trás, ou tem a intenção de fazer a roda girar para frente, mas ainda assim irá fazer a roda girar para trás?
Luiz Werneck Vianna – Em algumas questões, para trás, como na dos costumes, das mulherespor exemplo. Em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal. Não à toa o Chile de Pinochet é um paradigma do que está aí. Uma coisa que vai se ver é a reforma da Previdência. Esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização?
IHU On-Line – O ministro Paulo Guedes disse em seu discurso de posse que o projeto econômico de sua equipe é sustentado em cima de três pilares: a reforma da Previdência, a privatização acelerada e a redução ou unificação de impostos. Como o senhor avalia esse conjunto de propostas?
Luiz Werneck Vianna – O modelo em si não é bom nem mau. Tem que ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam.
IHU On-Line – Os militares irão apoiar esse modelo ou tendem a divergir?
Luiz Werneck Vianna – No começo, em linhas gerais, vai haver apoio. Algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver. O mundo gira, os atores mudam, os cenários mudam. Aqui mesmo estamos vendo uma mudança muito grande de cenário.
Cosmopolitismo como ideia-força
Algumas ideias se tornaram ideias-força. Por exemplo, o cosmopolitismo se tornou uma ideia-força. Arrebatadora? Não, tanto é que as resistências estão aí. Essa globalização não tem mais como frear, tem que ver quem está ganhando com ela e quem está se sentindo ameaçado por ela. A situação da China é real: a China é uma potência emergente no mundo, que está disputando a hegemonia com os EUA. China e Rússia estão se aproximando agora. Se se aproximarem de verdade, veja a mudança no tabuleiro. O que está por trás da ameaça de Trump? A ameaça pela perda da hegemonia. É um processo mundial de luta pela hegemonia. O Brasil vai tomar parte nisso? Parece que vai tomar partido de um lado contra o outro. Isso interessa a quem pensa em um país de grandeza e afirmação? Acho que não. Haverá ruídos por aí. Enfim, fomos envolvidos por uma trama infernal que está se dando no plano mundial por hegemonia, onde somos dependentes da China e deveremos ser mais.
Nesse cenário, vamos tomar partido contra a China? Isso é uma coisa que não passaria pela cabeça de um estadista como Vargas, que procurava trabalhar com as oportunidades que apareciam, jogando com os conflitos mundiais de forma tal que aproveitasse o Brasil, como foi o caso da industrialização com o financiamento americano. Vamos nos deixar arrebatar por apenas um dos polos do conflito nessa luta terrível pela hegemonia, que pode terminar em guerra? A guerra comercial já está aí. EUA, Rússia e China não param de aprimorar seu armamento, suas formas de defesa e agressão: mísseis balísticos para cá, mísseis balísticos para lá. Essa situação nos traz de volta aos anos 30, que é um período terrível, que parecia que tínhamos deslocado, com esse papa, esse Vaticano, com o tema do meio ambiente, o tema da paz, o tema da cooperação, da solidariedade. Esses eram temas emergentes até ontem, que estão sendo deslocados por essa gramática de guerra que está ocorrendo no mundo.
Tem uma bibliografia muito importante sobre o risco.
Sempre que se fala nela, lembro do alemão Ulrich Beck, que fez uma demonstração, um inventário de uma reflexão muito poderosa sobre a sociedade de risco, que é hoje a nossa. Não é que sejamos catastrofistas, mas sem reflexão, sem consciência, sem denúncia, o mundo da catástrofe se avizinha, progride, ganha terreno. A ecologia é um tema ineliminável do mundo contemporâneo e, não obstante isso, no Brasil e nos EUA de Trump, erradicaram essa questão como se fosse uma questão ideológica.
Então, há toda uma bibliografia em ciências sociais que vive agora a ameaça de ir para a lata do lixo. A sociologia do risco está sumindo do mapa. Reflexões das melhores consciências que o mundo desenvolveu nos últimos anos estão sendo jogadas na lata do lixo. Um país como a Inglaterra, civilizado, sofisticadíssimo, votou no Brexit por uma motivação rústica, primitiva. É ameaçador. Os EUA, com as suas tradições libertárias dos federalistas, têm na presidência da República um homem como o Trump. É ameaçador.
IHU On-Line – O que explica o apoio de parte da população desses países à emergência da direita?
Luiz Werneck Vianna – Isso vem com a ideologia do populismo, com as perdas que setores da classe média e mesmo setores dos trabalhadores vêm sentindo com as mudanças estruturais que estão ocorrendo na economia e que jogam algumas profissões no lixo da história, com mudanças que não são inclusivas, como a industrialização foi. Quem chegava à cidade vindo do mundo rústico do campo, conseguia emprego nas fábricas. E agora? O mundo industrial encolheu e os requerimentos educacionais para entrar no mundo da informática são altos e deixam gerações de fora. Não adianta ter informação, boa formação em outras dimensões, se não tiver formação do mundo informacional. Eu, por exemplo, estaria condenado à fome e à miséria dada a minha má formação no mundo digital. O populismo de direita avança em cima desse ressentimento, com ameaças trazidas pelos grandes grupos migratórios contemporâneos.
Temos que pensar no mundo a partir da globalização e não com esse populismo nacionalistaque só leva à intensificação dos conflitos e, no limite, à guerra. Só que a guerra agora pode ser final.
IHU On-Line – O retorno ao nacionalismo é uma reação às consequências da globalização?
Luiz Werneck Vianna – Este é o conflito da cena contemporânea: o local e o universal. Isso demanda estadista, intervenções sofisticadas, e não intervenções rústicas, como muros, como fechamento autárquico dos países. A Hungria não tem força de trabalho e fecha as portas à imigração. É todo o continente: a África Subsaariana e outros territórios africanos estão mudando em busca de oportunidades de vida e mudando de continente, marchando para Washington. Isso é algo sem paralelo. As pessoas levam seus filhos, inclusive de colo, nessa epopeia que é atravessar o continente para pedir acolhimento, o qual eles sabem que não terão. Reclamam por abertura do mundo, por uma ordem mais aberta, reivindicam o cosmopolitismo. Aí a presença do papa é uma presença beatífica, porque ele representa esses ideais de cooperação, de paz, embora sem força.
Enfim, esse inventário de conquistas está sob ameaça, inclusive no Brasil. Penso que o mundo da reflexão, da consciência, o mundo dos trabalhadores tem que exercer um sistema de defesa contra esses avanços ameaçadores que criamos da Segunda Guerra para cá. Por onde isso vai, não me pergunte, porque não sei. Só sei que vai haver muito conflito, porque são muitos interesses contrariados.
IHU On-Line - Qual sua expectativa para o novo governo?
Luiz Werneck Vianna – A minha expectativa é a de que será um cenário de competição, de muito conflito. E espero que vivamos isso de uma forma civilizada, sobretudo se conseguirmos garantir a Constituição que nos rege que, a essa altura, mais do que nunca, é o melhor instrumento de defesa da civilização brasileira.
Luiz Werneck Vianna: As ondas grandes e a oposição
O horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do novo governo
Não será a primeira vez, mas a terceira, que nos deixamos enredar na trama sinistra do que vem por aí. E, pior, sempre por nossos erros, pela desconsideração do País real, conservador a tal ponto que permitiu que sua quasímoda estrutura fundiária, herdada do período colonial, não só encontrasse sobrevivência, mas se convertesse, com a emergência do agronegócio, num dos esteios do processo de modernização burguesa ainda em curso, caso clássico de passagem para o capitalismo pela via prussiana de desenvolvimento capitalista e seus efeitos antidemocráticos, tema bem estudado por grandes autores como Barrington Moore e Charles Tilly, entre tantos outros. Estão aí a sua robusta bancada parlamentar e sua presença em postos estratégicos do novo governo.
As anteriores, de 1937 a 1945 e de 1964 a 1985, foram longevas, e em ambas a preservação da estrutura agrária cumpriu papel relevante: sob o regime de Vargas excluiu-se o trabalhador do campo da legislação social, reservada apenas aos trabalhadores urbanos; e no regime militar, por meio de uma generosa abertura de créditos para proprietários selecionados politicamente e de uma política de colonização que lhes concedessem acesso a mercados, convertendo-os em capitalistas modernos, história bem descrita e analisada em tese de doutoramento por Rafael Assunção de Abreu em A boa sociedade: história sobre o processo de colonização no norte de Mato Grosso durante a ditadura militar (Iuperj, 2015).
O legislador constituinte teve consciência da necessidade de democratizar a estrutura fundiária do País, mas seus esforços foram barrados por intensa mobilização das nossas elites junkers, que se arregimentaram, até mesmo em grupos armados, na União Democrática Ruralista (UDR), obstando uma via de reforma. Uma de suas principais lideranças de então, Ronaldo Caiado, antes senador, foi agora eleito governador de Goiás. A democratização do País teria de conviver com esse pesado lastro que lhe vinha do período colonial, e se os grandes proprietários de terra encontravam oportunidades de converter seus antigos papéis tradicionais em modernos no emergente capitalismo brasileiro, a massa dos trabalhadores da terra seria condenada à situação de retirante sem eira nem beira, mão de obra barata para as indústrias e os serviços dos centros urbanos, dependentes em sua sobrevivência dos ciclos expansivos da economia.
A herança da escravidão e a da estrutura a agrária colonial estão, como notório, na raiz da abissal desigualdade social brasileira, diagnosticada desde o Império por grandes intelectuais liberais, como Tavares Bastos, André Rebouças e Joaquim Nabuco. Na esteira dos movimentos sociais que se mobilizaram em torno do processo constituinte, o tema da igualdade encontrou vocalização e sustentação nos partidos de perfil social-democrata que então se organizaram, o PSDB e o PT, mais neste do que naquele, embora ainda sem o vigor necessário para enfrentar o tamanho do desafio que tinham pela frente.
Ademais, o PT, o mais vocacionado para interpelar os movimentos sociais, se na prática seguia o roteiro de uma política social-democrata, era refratário a assumir identidade desse tipo. Aos poucos, como se viu, sua política eleitoral se desalinhou do centro político e de suas inspirações originais de autonomia da vida associativa diante do Estado, reeditando em boa parte as políticas prevalecentes na era Vargas. Cooptadas pelos aparelhos estatais, as organizações sociais dos seres subalternos perderam vigor e capacidade de mobilização e, ao menos por ora, encontram-se sem capacidade de reação.
A agenda do novo governo, de confessada profissão de fé no neoliberalismo de modelo chileno de Pinochet, encaminha-se sem rebuços para a remoção do que há de inspiração em nossas instituições, principalmente na Carta de 88, da social-democracia europeia, tendo pela frente um deserto de vida sindical e associativa, e um Supremo Tribunal Federal esvaziado do carisma que a sociedade sempre reconheceu nele pelos conflitos fratricidas que corroem sua legitimidade, pela ação de alguns dos seus integrantes. A profecia de que para silenciá-lo basta um cabo e um soldado, antes anedótica, já conta com possibilidades de se autocumprir.
Diante desse cenário, embora a composição dos quadros governamentais revele opções erráticas que prometem ser fontes de problemas futuros, além das óbvias dificuldades para um governo que pretende realizar reformas dependentes de uma sólida base congressual com que não conta, o horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do seu mandato. No mais, as forças sociais e políticas que já se opõem a ele, esfaceladas e desarvoradas como se encontram, não devem, ao menos de imediato, significar obstáculos efetivos para a realização dos seus propósitos, e com todas as devidas vênias, não será um centro radical, esse espécime que não se vê desde a Revolução Francesa sob o consulado de Napoleão Bonaparte, que fará as vezes de uma oposição robusta.
Uma imagem trazida dos atletas do surf que praticam sua modalidade em ondas grandes talvez seja inspiradora para a oposição. Ondas grandes em geral vêm em série, um desequilíbrio do atleta que nelas se aventura pode ser-lhe fatal, em caldos sucessivos que não lhe permitam a respiração, mantendo-o preso ao remoinho das águas que o impeçam de voltar à superfície. Em cuidado com esses riscos, seus praticantes fazem exercícios de apneia, com que se preparam para o pior em suas evoluções.
Isso que aí está, aqui e alhures, é, sem dúvida, uma Praia da Nazaré com suas medonhas ondas grandes. Não se vai enfrentá-las sem treinamento adequado e sem lideranças de tirocínio comprovado, senão o caldo é certo, como o do AI-5, de infausta memória, há 50 anos. As lideranças se farão no caminho. E o caminho, adverte o poeta, se faz ao andar.
Luiz Werneck Vianna: Ao vencedor, as batatas
Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de feroz autocrítica
Um canal de TV de larga audiência transmite a sessão de abertura da Assembleia-Geral da ONU. Como é da tradição, cabe ao chefe de Estado do Brasil, o sr. Michel Temer, abrir os debates. O presidente Temer realiza seu pronunciamento com palavras ponderadas, desenvolvendo o tema da importância daquela organização para a paz e a cooperação solidária entre os povos, tal como tem sido a posição brasileira nas relações internacionais, que ele ali, mais uma vez, reafirmava, honrando os valores e princípios da nossa Carta constitucional e das nossas melhores tradições. O terceiro orador, o sr. Donald Trump, presidente da República dos Estados Unidos, um dos países fundadores da ONU, há décadas um dos principais protagonistas da cena mundial, em nome de um princípio de sua lavra, America first, confronta com um nacionalismo primitivo o espírito que animava aquela assembleia e que nos vem de duas grandes revoluções do século 19, a americana e a francesa, com que se abre a modernidade e aprendemos com Kant a manter viva a utopia realista da paz perpétua.
Volte-se ao canal televisivo e a palavra passa a seu comentarista político, jornalista de meia idade, com os cabelos encanecidos, que desqualifica sem mais o oportuno e feliz pronunciamento do presidente Temer, passando ao largo do patético discurso de Trump, merecedor do justo sarcasmo com que foi recebido por sua audiência. Cenas como essas falam mais que mil palavras, estava ali a revelação da estupidez política que nos trouxe ao miserável cenário da sucessão presidencial, que ora somos obrigados a purgar.
Lamenta-se, agora, a sorte nessas horas aziagas do nosso encontro com que as urnas nos esperam. Impreca-se contra o destino que nos teria roubado o futuro, posto em mãos desastradas de estrangeiros que não conhecem nem respeitam nossa História e seus feitos. O destino é inocente, fomos nós que criamos passo a passo a armadilha, salvo milagres - creio, embora seja absurdo -, que não temos mais como evitar. Fomos nós os autores da lenda urbana de que a corrupção estaria na raiz dos nossos males, criminalizando a política e os políticos com a arrogância de messiânicos refratários à avaliação das consequências dos seus atos, a proclamarem fiat iustitia, pereat Mundus.
O centro político, lugar estratégico em que se operou a bem-sucedida modernização burguesa do País, tornou-se um espaço vazio, recusando-se ao governo Temer, com sua história de dirigente do MDB, um clássico partido do centro, com sua natural inscrição nesse lugar reconhecida, em duas consecutivas eleições presidenciais, pelo PT - partido identificado como de esquerda pela crônica política, carimbo, aliás, recusado por seu principal dirigente -, que com ele se coligou, confiando-lhe a Vice-Presidência da República. Pranteia-se agora, com lágrimas de crocodilo, a má e imerecida sorte do finado centro político, que ora comparece às urnas, tudo indica, sem uma candidatura competitiva.
Contudo, o que é é. O artifício de negar a identidade ao centro político, de existência comprovada empiricamente em nossa sociedade há décadas, não tem como resistir ao império dos fatos. A iminência de um segundo turno eleitoral nos devolve, em clima de pânico, com o tempo fugindo das mãos, a busca pelo centro perdido. Sem ele como vencer as eleições, pior, como governar? Com Haddad teremos o indulto de Lula e a convocação de uma Assembleia Constituinte? Faltaria combinar com os russos, que, aliás, são muitos. Que economia nos espera com Bolsonaro, a do Pinochet, neoliberalismo com fuzis?
Como o gênio militar de Napoleão advertia, quando avaliava mapas de campanha, se o natural fosse arbitrariamente desconsiderado num plano, ele voltaria em galope. Nem sempre, pode-se acrescentar, em manobras afortunadas, dificílimas para os candidatos que devem disputar o segundo turno desprovidos como estão, contando apenas com seus preconceitos, de projetos de governo bem definidos. Tem-se pela frente um quadro de turbulência até que o novo governo consiga encontrar uma linha de ação compatível com o novo Congresso e com os novos governadores que nascerão das urnas. Na prática, essa incomum situação significa a abertura de um terceiro turno eleitoral, de tramitação exclusiva nos bastidores, quando só então serão conhecidos os rumos do novo governo.
O centro político, banido do salão, volta com força por todas as janelas. Tanto barulho por nada, retornamos ao ponto de partida, salvo se os estrategistas de plantão dos dois lados do tabuleiro já tenham decidido, no caso de vitória, levar a cabo o que ruminaram ao longo dessa paupérrima campanha eleitoral. O desenlace infeliz dessa imprudência, se vier, não deve tardar, e mente quem nega a força das nossas instituições, provada em tantos outros momentos críticos da nossa história recente. Os 30 anos da Carta de 88, a mais longeva da República, não foram em vão, a sociedade saberá preservá-la das sanhas dos cavaleiros da fortuna, ela já conhece o que perderá sem ela.
Mente igualmente quem se recusa a admitir a possibilidade de a nossa democracia estar sob risco, pois está, aqui e alhures. Sem triunfalismo, joga-se, nesta sucessão presidencial brasileira bem mais do que nossos negócios internos. Nossa presença no mundo importa para a paz, em particular para nuestra America. Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de uma feroz autocrítica, uma vez que não havia nada de inevitável nessa derrota que reconhecemos. Somos mais necessários que nunca, e fizemos nascer uma nova esquerda capaz de se articular com o liberalismo político, cuja missão desde agora é nos devolver aos eixos que nos são naturais.
Pelo andar da carruagem, pode-se prever que isso não deve demorar muito. Por fim, glória a Deus, há os milagres.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-RIO
Luiz Werneck Vianna: Terra à vista
A hora presente indica que se deve começar a solucionar a atual crise pela dimensão ideal
Estamos chegando depois de tormentosa viagem em mares bravios. Saídos de um continente velho de ideias cediças que nos fazia prisioneiros de um passado exausto que não mais nos permitia as ambições de conviver numa sociedade justa e igual, somos pioneiros em terra nova. Trazemos conosco os ideais anunciados no manifesto “Por uma sociedade democrática e reformista” e a vontade de propagá-lo por toda parte. Não vai ser nada fácil, como atesta a história de todos aqueles que assumiram este papel de desbravar terreno inóspito, a começar pelas próximas eleições. A seu favor, contudo, conspiram os novos ventos que têm varrido nossa sociedade e que assinalam o fim de um longo ciclo de modernização autoritária, que se inicia com Vargas, passa por JK, pelo regime militar e por Lula, e deságua no desastre que foi o governo de Dilma, que pôs a nu o anacronismo deste velho modelo que não é mais capaz de reiterar suas realizações no passado.
O melhor indicador desta mutação foi o massivo movimento da juventude nas jornadas de junho de 2013 – embora inconsciente dos efeitos de sua obra –, que se manifestou contra tudo o que está aí, o nosso Estado inclusive, em nome dos ideais de auto-organização e da participação social. Aquelas jornadas ficaram sem herdeiros que lhes dessem continuidade, mas deixaram no ar em disponibilidade seu significado de fundo para quem souber interpretá-las, tarefa que cabe, nesta hora difícil, às forças democráticas e progressistas.
O espírito do tempo mudou, como diagnostica Habermas com a precisão de sempre, tanto nos países que lideram a marcha da história pelos seus sucessos culturais e técnico-científicos quanto nas mais remotas periferias, como ilustra a saga dos garotos tailandeses que se perderam numa caverna cujos heróis são os jogadores de futebol dos grandes clubes europeus. Inexoravelmente, dia após dia, somos arrastados pelos fatos à globalização, que corroem os fundamentos do repertório keynesiano-westfaliano que suportaram o Estado-nação – na expressão da cientista política Nancy Fraser – que predominou no Ocidente até os anos 1970.
No nosso pequeno mundo ainda vicejam em círculos minoritários os ideais autárquicos, nostálgicos do nacional- desenvolvimentismo e de um capitalismo de Estado, que forças políticas, convictas ou não a eles, procuram animar em busca de votos, como se verifica no atual processo eleitoral. Tais círculos que se autodeclaram de esquerda se apresentam como herdeiros do nosso processo de modernização autoritária, que louvam esquecidos de que ele somente foi possível pela repressão exercida sobre os setores subalternos nos centros urbanos, cassando pela lei sua autonomia, e no mundo agrário com a coerção violenta dos movimentos do campesinato e dos seus trabalhadores assalariados. Sobretudo, esquecem que a modernização da economia, na forma por ele realizada, importou no fato de ser o Brasil um dos países mais desiguais do planeta.
O PT, por exemplo, desde a primeira eleição de Lula, aderiu, primeiramente de modo fraco e a partir do seu segundo mandato abertamente, à nossa tradição conservadora – a que o governo Dilma levou ao paroxismo –, embora jamais suas lideranças tenham justificado a metamorfose de um partido que nasce, como o PT, comprometido com a ruptura das tradições conservadoras para se mover no sentido de se tornar um dos seus esteios. Intelectuais e artistas, alguns deles campeões, nos anos 1960, da crítica ao governo Jango por seu nacional-estatismo, principalmente nas universidades paulistas, agora referendam acriticamente tais posicionamentos, pelo culto esquisito que dedicam a Lula, mesmo que desconheçam suas concepções sobre o estado de coisas no mundo, salvo a de que ele não é esquerda, como sempre declara.
O culto a Lula entre os intelectuais e artistas é uma patologia a ser estudada, sintoma que manifesta o algo de podre nesta nossa Dinamarca, em que o governo do PT trouxe para o interior do Estado tudo o que era vivo na sociedade, sindicatos, movimentos sociais, inclusive os identitários, submetendo-os a seus fins políticos. Quanto aos intelectuais, a política de contemplá-los com generosos financiamentos, especialmente algumas personalidades relevantes – vide a política cultural da Petrobrás –, teve um dos seus mais amargos frutos no rebaixamento da sua capacidade crítica e na autodestituição das suas responsabilidades em relação a seu país e seu povo, fermento que nos anos 1950 nos fez conhecer os Círculos Populares de Cultura, o gênio de Vianinha e de Guarnieri, a Bossa Nova e o Cinema Novo, entre tantos criadores e iniciativas de ideias novas que vieram animar a obra civilizatória dos brasileiros. E, mais tarde, sob o regime militar, as obras fundamentais de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Raimundo Faoro e José Murilo de Carvalho, para citar alguns, que desvendaram as raízes ocultas do autoritarismo brasileiro.
A crise que aí está é, a um tempo, de natureza estrutural – a fraqueza da nossa economia –, ética, moral e intelectual. Não há como dar solução a qualquer delas em separado, mas a hora presente indica que se deve começar pela dimensão ideal, pelas concepções do mundo, pela história do País, por que delas é que se principia, como sustenta reiteradamente Fernando Henrique Cardoso, a busca de novos rumos para o País.
Tal como em Habermas no primeiro ensaio de Diagnósticos do tempo, que deve servir para nós como um sistema de orientação, o Estado social ainda é o horizonte possível do centro e da periferia do mundo, e as tensões entre mercado e política próprias a ele podem ser equilibradas pela dimensão da solidariedade social, que, no nosso caso, impõe como começo de conversa a luta sem quartel contra a nossa indecente desigualdade, um dos frutos da modernização autoritária com que agora devemos romper.