Luiz Sérgio Henriques

Luiz Sérgio Henriques: O erro histórico de Fernando Henrique Cardoso

Pode-se divergir, e muito, do político Fernando Henrique, especialmente quando no exercício da presidência viu-se às voltas, como qualquer eleito, com os desafios normais da governança que não poupam ninguém de erros, falhas e fracassos. Dificilmente, porém, se poderá desconsiderá-lo na sua atividade posterior: concluídos os dois mandatos presidenciais, continuaria a ser figura influente sem que insinuasse uma volta extemporânea ao cargo, como se o País dele, e de mais ninguém, dependesse para “se salvar”. Caso raro, pois, de ex-presidente que se impôs como referência, passível obviamente de críticas e observações polêmicas – até mesmo aquelas que o tornaram uma espécie de encarnação do “neoliberalismo” na simplificada, mas eleitoralmente rendosa, versão petista.

Seu artigo “Reeleição e crises” (O Globo/Estadão), publicado na véspera do dia da Independência, mereceu mais do que a habitual atenção. Nele, FHC faz um inédito “mea culpa” sobre a emenda da reeleição, “historicamente um erro”. Reafirma a insuficiência dos mandatos executivos de quatro anos e propõe um mandato único de cinco, sem direito a recondução, possivelmente associado a reformas de outro tipo nos demais mecanismos eleitorais (o voto distritalizado). O pressuposto de fundo está contido na frase: “Imaginar que os presidentes [qualquer presidente, não só Bolsonaro – LSH] não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. E a expectativa é que, confortados com a duração maior dos mandatos, os mandatários procurariam nela acomodar as pretensões de entrar para a História pátria, diminuindo o empenho demagógico que hoje empregam para obter um segundo termo.

Reformas constitucionais são um tema que nos convida a pensar intensamente sobre nossas relações com os governantes e as instituições. No caso brasileiro, a sucessão de PECs tem um lado inevitável, dado o caráter analítico do texto constitucional. Um defeito fruto do tempo, provavelmente, mas não insanável. Feitas com zelo, longe das armadilhas do casuísmo, podem até ter o condão de aproximar a população do texto magno, fazendo compreender cada vez mais sua relevância na vida de todos. E neste ponto, a nosso ver, reside o pecado de nascença da reforma reeleitoral de 1997, que à época pareceu ter sido feita sob medida para beneficiar o incumbente e espantar o fantasma da candidatura Lula.

Às reformas desse tipo aplica-se o que se diz da mulher de César. Não podem estar a serviço de ninguém nem parecer que estão. Deixando de lado a questão da “compra de votos”, que o ex-presidente repele com serenidade, o fato é que em 1997 agiu-se de modo apressado e insuficiente, o que sempre constitui terreno fértil para hipóteses mais ou menos mal-intencionadas. Fernando Henrique escreve ter tido em mente o que acontece nos Estados Unidos, onde notoriamente o ciclo presidencial bem-sucedido compreende, em princípio, dois mandatos de quatro anos, articulado com mandatos legislativos de dois (para os deputados) e quatro anos (para os senadores). Um ciclo que se repete exitosamente há mais de dois séculos com uma só exceção, a saber, o caso singularíssimo de um grande presidente, F.D. Roosevelt. Colhido pela morte no início do quarto mandato, Roosevelt representou uma mudança na regra não escrita de uma só reeleição, mudança que o legislador expressamente proibiria a partir de uma das raras emendas feitas à Constituição de 1787.

Apressada e insuficiente, a emenda de 1997 esqueceu-se de prever este limite precioso: a impossibilidade de o presidente, cumpridos os dois termos, voltar a candidatar-se para um cargo eletivo, um limite que a nosso ver traz uma contribuição, ainda que não suficiente, para renovar as elites políticas e, muito especialmente, para atenuar as pretensões salvíficas com que se embriagaram, e se embriagam, tantos personagens da nossa História. Repúblicas presidencialistas, como se sabe, inspiram-se em última análise em figuras monárquicas, só que com prazo de validade, mas há quem, no exercício da presidência, julgue-se coroado com mais e maior pompa do que no tempo dos reis…

Um último argumento – o de que incumbentes dilapidam as arcas do Tesouro para obter o segundo mandato – não pode ser descartado sem comentário. Argumento forte, que se baseia na ideia de que nem todos os presidentes se comportam como estadistas; ao contrário, muitos deles têm uma visão medíocre e convencional, mesmo que tenham sido referendados pelas urnas. Um governante medíocre, de fato, sempre será capaz de mudar de rumo e de prosa, contrariar convicções antigas (se é que as tinha de verdade) para renovar o cargo e manter-se no poder. Tudo o mais é instrumental. Seria desta natureza, segundo FHC, a relação entre o atual presidente e o seu ministro da Economia, cujo liberalismo, originalmente rançoso e carunchado, viu-se em seguida atropelado pelos fatos e pelas circunstâncias, limitando-se hoje a viabilizar intenções reeleitorais.

Cabe observar que, na falta daquela cláusula contra as pretensões salvíficas e os respectivos salvadores da pátria, o mesmíssimo assalto ao Tesouro pode acontecer sob mudada aparência. Não custa lembrar que a década perdida – efetivamente perdida – que se inicia em 2011 teve logo antes de si um ano de superaquecimento econômico deliberada e artificialmente induzido, para favorecer não um projeto pessoal de reeleição, mas um mandato-tampão que prepararia – tanto quanto se podia prever à época – o retorno triunfal, em 2014, do “melhor presidente que este país já teve”. Logo, medidas de contenção do uso e abuso do poder de Estado nas conjunturas eleitorais devem ser pensadas em todas as direções, não só naquela indicada pela recandidatura do incumbente.

Depois da mencionada campanha de 2010, arrebentadas as contas fiscais, exaurida a capacidade de coordenação e planejamento público, o que se seguiria é a tragédia que ainda transcorre sob nossos olhos, com o advento de um messias inacreditável, uma economia em frangalhos e uma sociedade atormentada por níveis inéditos de barbárie. Tudo isso condimentado com a possibilidade, aberta pela reforma de 1997, da reiteração de atores, enredos e desfechos no iminente encontro marcado de 2020 e, mais ainda, no de 2022.

*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição).


Luiz Sérgio Henriques: Além dos pequenos nacionalismos

É preciso considerar os conservadores clássicos para manter viva a corrente da democracia

Até certo ponto inesperada, e por isso ainda vista por alguns como ponto fora da curva ou raio em céu sereno, a pandemia de covid-19 acabou por se impor como o elo que, uma vez bem apreendido, permite lançar luz nova sobre toda uma corrente de fatos e acontecimentos que moldam nosso tempo, particularmente conturbado. Signo ao mesmo tempo da globalização e de suas fragilidades, a faísca que se acendeu há menos de um ano no imprudente “mercado molhado” de Wuhan, espalhando-se por toda parte e praticamente emperrando a máquina do mundo, logo gerou percepções anacrônicas, alimentou negacionismos e confirmou a sensação de que a unificação do gênero humano não é um processo inscrito nas próprias coisas e, portanto, uma marcha triunfal previamente garantida.

A consciência humana, não raramente, costuma correr atrás das mudanças sociais e dos eventos da História, e não há de ser muito diferente desta vez, quando a interdependência de povos e nações, objetivamente estabelecida, convive com instituições políticas em sua maioria restritas ao plano nacional. Somos cidadãos de uma nação, nela votamos e pagamos impostos, sentimo-nos próximos dos governantes que, nos momentos felizes de vida plenamente democrática, podemos eleger ou destituir. Muito mais longe estão os organismos multilaterais, a começar pela ONU; relativamente débeis, com exceção da União Europeia, as tentativas de coordenação supranacional; e ainda fumosa a ideia de uma sociedade civil internacional, em cujo âmbito, mesmo assim e apesar de tudo, já transcorrem manifestações globais antirracistas ou em defesa do meio ambiente, indicativas de que uma cultura de direitos só tem sentido se tender à universalização, como nos ensinaram as grandes revoluções da modernidade.

A consciência estreita, ideológica, no mau sentido da palavra, com que se percebem processos dessa magnitude é uma âncora pesada a nos amarrar ao passado. O internacionalismo dos antigos comunistas, com todas as suas limitações, dava uma chave de leitura do mundo, mas ai de quem o lamentar nostalgicamente. Proclamar mecanicamente a palavra de ordem “socialismo ou barbárie” é pregar para convertidos, antes de mais nada por ignorar que as formas do socialismo de Estado foram também bárbaras ou, na hipótese melhor, autoritárias. O americanismo, a outra forma de universalismo que terminou por assinalar todo o século passado, hoje recua para sua dimensão mais egoísta e rudimentar, renunciando a dirigir os acontecimentos e proclamando canhestramente “America first”. Trump é o interesse bruto, imediato, na contramão do sonho americano de Roosevelt, da Grande Sociedade de Johnson, dos direitos humanos de Carter, das inovações em saúde pública de Obama.

Perigoso internamente, Trump ainda irradia pelo mundo força e inspiração para nacionalismos sem grandeza, como os que caracterizam a experiência dos chamados populismos contemporâneos. O autoritarismo de todos eles – na Hungria, na Polônia, no Brasil ou, ainda, na Venezuela, em sua versão de esquerda – deixa cicatrizes nas instituições democráticas, ferindo-as mais ou menos de acordo com a resistência que encontra.

As lideranças populistas, na versão de extrema direita, enchem a boca para apregoar um conservadorismo que, estranhamente, não conserva instituições, antes as depreda, e para impingir uma religião que, mais estranhamente ainda, se degrada a mero instrumento de poder e de regressão medievalesca. Conservadores “revolucionários” difundem homogeneamente, por onde se instalam, não só a concepção do “inimigo interno”, com o qual não seria possível conviver, como também a do “inimigo externo”, que estaríamos fadados a combater numa reedição extemporânea da guerra fria. O vírus da covid, afinal, é um comunavírus, um vírus chinês, desenhado para abater o “Ocidente judaico-cristão” e implantar o comunismo, esse dragão da maldade a requerer um santo guerreiro sempre mais virulento e implacável.

O paradoxo é que esses pequenos nacionalismos compõem, peça a peça, um singular internacionalismo de extrema direita que hoje desafia as formas da democracia tal como a conhecemos. Reivindicam a estreiteza nacional como destino e âmbito existencial, mas globalmente ajudam-se, reconhecem-se, trocam experiências. Sempre que podem, reúnem-se para demolir ou deslegitimar irresponsavelmente instâncias multilaterais, tornando mais difícil a construção de mecanismos capazes de governar democraticamente processos que afetam todos, como as crises financeiras, o aquecimento da Terra ou as pandemias que decerto nos esperam mais adiante.

Curiosamente, ou nem tanto, para a construção desses mecanismos é imprescindível a presença ativa dos conservadores clássicos. Eis um elo – a contribuição dos conservadores – que é preciso considerar para manter viva a corrente da democracia. Há muito que conservar nas nossas sociedades, mesmo que a História não tenha acabado e se vislumbre um longo e indefinido caminho de mudanças que só descobriremos à medida que o palmilharmos em liberdade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: Simão Bacamarte e a política nacional

O balanço do impacto de grandes operações judiciárias, como a Lava Jato, sobre o sistema partidário é, no mínimo, inquietante. Alguns dos seus aspectos mais problemáticos já foram ressaltados e outros mais virão com o tempo, mas é fato que operações inicialmente focadas em questões específicas, ainda que graves, ampliaram-se em demasia, conferiram um veio salvacionista aos principais atores, tomados por uma espécie de complexo de Simão Bacamarte, o qual, como se sabe, pretendia encerrar no manicômio de Itaguaí todos os que, a seu juízo, tinham comportamento desviante. Os resultados não foram lá muito animadores e o Bacamarte terminou encerrando-se na Casa Verde, depois de livrar a multidão de internados.

Não devemos esperar desfecho análogo: nenhum dos personagens da grande confusão brasileira, independentemente de culpas, se encaminhará por vontade própria até o manicômio. Nem entre os aprendizes de Bacamarte nem entre seus pacientes forçados surgirá espontaneamente uma avaliação serena de erros e exageros, parcialidades de julgamento e desvios reais de comportamento, de modo que, ainda no rescaldo daquelas operações, seremos obrigados a retomar pacientemente o ofício de trabalhar as duras vigas de madeira que constituem a política, de acordo com a lição clássica.

Deixemos provisoriamente de lado pequenos e grandes bacamartes; a eles voltaremos outras vezes, com particular ênfase na escolha política desastrada que fizeram na única circunstância em que efetivamente não podiam errar, a saber, na eleição de Jair Messias Bolsonaro e nas decisões judiciais que direta ou indiretamente a favoreceram. E reconheçamos, de cara, que o paciente – o sistema partidário – não estava bem das pernas (e da cabeça) quando sobre ele se abateram as acusações dos procuradores e o martelo dos juízes. Personalismo e fragmentação excessiva eram males que deformavam o funcionamento daquele sistema, para não mencionar o problema crônico – e longe de ser resolvido – das relações entre dinheiro e política, financiadores e campanhas, empresas e administradores públicos, com o atalho para o enriquecimento desonesto.

O personalismo tem múltiplas facetas e não será fácil reduzi-lo a proporções mais razoáveis. Partidos, entre nós, costumam ser empreendimentos individuais, “movimentos” que se estruturam em função de uma determinada candidatura presidencial e muitas vezes com ela desaparecem. Raramente são agrupamentos estáveis, com capacidade de expressar demandas da sociedade, selecionar grupos dirigentes ao longo do tempo, propor uma relação mais ou menos coerente entre valores e política. Nestes trinta anos de vigência da Carta de 1988 perderam-se ocasiões interessantes – não sabemos se para sempre – de um enraizamento mais definido de partidos como o PFL/DEM, que poderia ter sido expressão de uma necessária direita democrática; ou como o PSDB, embrião de uma boa socialdemocracia que, sem no entanto ter implantação sindical, se reduziria crescentemente a uma federação de “notáveis”; uma federação, de resto, facilmente desafiada e batida, à esquerda, pelo PT, cuja implantação mais forte acabaria por associar as características mais problemáticas do partido “orgânico” e da liderança carismática, tornando-se assim um partido poucas vezes capaz de pensar além de si mesmo e das suas conveniências mais imediatas.

A fragmentação, de certo modo, não foi um traço inteiramente endógeno do sistema. Natural que, após o regime autoritário, com sua ação arbitrária no sentido de dissolver os três grandes partidos da democracia de 1946 – e, obviamente, manter a proscrição dos partidos comunistas –, soprasse um vento libertário. O exagero aqui consistiu em confundir o direito à livre associação no terreno da sociedade e o direito de acesso às casas legislativas e aos fundos públicos, a ser regido por algum mecanismo mínimo de desempenho eleitoral. A intervenção “exógena” do STF, em 2006, adiou a adoção das cláusulas de barreira, que teriam dado – como começaram a dar já em 2018 – o pontapé inicial para o enxugamento e a racionalização da presença dos partidos na cena parlamentar.

A cada ato legislativo que se proponha regular os mecanismos partidários e eleitorais cabe fazer, a nosso juízo, um conjunto de perguntas intimamente relacionadas: tal ato contribui, ou não, para atenuar o grau de personalismo dos partidos e da política? Ainda que a médio prazo ele favorece a ação de forças centrípetas, impedindo que atores individuais e coletivos, semelhantes entre si, exerçam furiosamente o narcisismo das pequenas diferenças? Que regras até mesmo corriqueiras, como a da famosa “janela de transferências” às vésperas de cada pleito, podem ser aperfeiçoadas – e por certo endurecidas – para que tantos políticos “não mudem de partido como quem muda de camisa”, segundo o lugar comum que trazemos na ponta da língua? O presente mecanismo de financiamento público das campanhas será o Santo Graal finalmente encontrado ou ainda é preciso imaginar formas complementares, que necessariamente supõem limite, transparência e accountability para não se transformarem em atividades que transcorrem nas sombras?

É preciso reconhecer que estes e outros problemas não foram coerentemente formulados e menos ainda equacionados pelos políticos e partidos que dirigiram a democracia brasileira nos primeiros trinta anos do novo ordenamento constitucional. Ao contrário, foram muitas vezes varridos para debaixo do tapete, e o custo desta omissão paga-se em termos de desprestígio dos parlamentos, dos partidos e da ação política. No vácuo assim criado surgiram os salvadores da pátria – de toga, beca ou farda, tanto faz. Com os resultados calamitosos que sempre ocorrem depois que se desmoraliza a ciência dos bacamartes, a mágica dos ilusionistas e a aura mítica dos liberticidas.


Luiz Sérgio Henriques: Os vivos e os mortos

Não é mais incomum ver EUA e Brasil associados sob o rótulo de ‘párias’ ambientais e sanitários

Que os mortos possam julgar os vivos não é um absurdo. O que nos educa para cenas desse tipo, naturalmente, é a arte, uma forma extraordinária de conhecimento. E aqui ressurge a lembrança do “incidente” imaginado por Érico Veríssimo na sua fictícia Antares. Uma greve de coveiros faz com que se acumulem os insepultos. E são esses mortos sem sepultura que retornam, exigindo providências para poderem enfim descansar. Revisitam parentes e amigos, testemunham discussões e conflitos embaraçosos, até ocuparem a praça da cidadezinha, onde encenam um duro juízo sobre a mediocridade e a vileza que desgraçadamente puderam constatar entre aqueles que assombraram com sua volta fantástica.

Deixamos para trás a ditadura, em cuja atmosfera, na arrojada ficção de Veríssimo, se quis cancelar da memória o “incidente”, e já há três décadas vivemos o mais longo período democrático da História republicana. Nesta pandemia, contudo, os mortos ao redor parecem reatualizar a incômoda alegoria. É que eles são em número muito maior do que se poderia esperar de um país cuidadoso com seus cidadãos, mesmo que esta seja uma catástrofe sanitária sem paralelo desde 1918 e, nascida na globalização, se tenha espalhado feito rastilho de pólvora, cobrando pesadíssimo tributo, em especial das populações do Brasil e dos Estados Unidos, os líderes mundiais na contagem de corpos.

Não são poucas as dessemelhanças entre os dois países-contintente. A riqueza e o poderio americano, de alcance global, contrastam com o tamanho menor da nossa economia e sua projeção externa obviamente mais contida. Paradigma do capitalismo liberal – que às vezes, para o bem e para o mal, tentamos reproduzir, rasgando nossa certidão “ibérica” de nascimento –, os Estados Unidos conseguem mobilizar mais recursos científicos, apesar de se contarem entre os heróis brasileiros sanitaristas da altura de um Oswaldo Cruz ou de um Vital Brasil, que nos legaram uma tradição valorosa de pesquisadores e instituições. Sobretudo, apesar da nossa abissal desigualdade, temos o SUS, que, como se diz com precisão, é a barreira que nos separa da barbárie e nos diferencia da medicina privada dos americanos.

A semelhança conjuntural entre as duas Repúblicas consiste na ação de dois mandatários singularmente afins em estilo, métodos e propósitos. Uma afinidade buscada conscientemente pela figura menor – pelo “Trump latino-americano” – até o ponto da caricatura. Figuras da cisão e da cizânia, desmentem a noção de que o governante, uma vez eleito, representa todos os governados, compondo e mediando os mais diversos interesses, ainda que, legitimamente, busque dar um rumo de acordo com a vontade majoritária que expressa. Externamente, ostentam particularismo nacional similar. Como se vê quase todo dia, os Estados Unidos retiram-se barulhentamente do mundo que eles próprios contribuíram para construir durante “o século norte-americano”; já o Brasil demite-se da liderança regional, afasta-se por motivos rasos dos seus vizinhos e amigos naturais, fazendo tudo para apagar os traços mais atraentes do soft power delineado por gerações de políticos, diplomatas e artistas. Dois desastres cuja proporção ainda nos deixa atônitos.

Natural que, nestes termos, ambos os governantes sejam, rigorosamente, os responsáveis pelo rotundo fracasso da resposta dos respectivos países à pandemia. Não importa que o vírus tenha vindo de Wuhan e que, a princípio, a autocracia chinesa, como é inerente às autocracias, tenha também querido cancelar a má novidade. O fato é que o vírus, de índole “globalista”, constitui ameaça generalizada, sem mencionar que outros mais hão de vir, até como efeito provável do desmatamento – e aí já estamos falando de corda em casa de enforcado. Uma situação-limite que exigiria dos Estados Unidos a liderança do capitalismo democrático; do Brasil, o reforço da Federação, da coesão social e a articulação de um discurso público orientado para a solidariedade, particularmente com os mais frágeis.

Trump e Bolsonaro, ao contrário, esmeram-se no “economicismo”, exatamente à maneira do marxismo vulgar que apregoam detestar. Opõem a preservação de vidas e a de empregos, sabotam a ciência e as informações, mesmo provisórias, que ela tem gerado no calor da hora. Conseguiram inserir o uso de máscaras e a distância social no repertório das tais guerras de cultura, que dividem, enfraquecem e esgotam seus desatinados combatentes. E assim terminaram por se colocar, e aos seus países, sob suspeição geral: não é mais incomum ver Estados Unidos e Brasil associados sob o rótulo de “párias” ambientais e sanitários.

Na ficção de Veríssimo, uma certa “operação borracha” é montada para apagar o abalo causado pelos mortos sobre os vivos, subvertendo a rotina destes à luz do evento inesperado. Mas Antares, literariamente poderosa, era pequena e os mortos no coreto da praça eram poucos. Agora os corpos se empilham e, mais até do que no tempo do grande romancista, não será possível contar nenhuma história ingênua sobre eles.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: Os heróis da retirada

Precisamos deles para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade

Um dos muitos encantos de ler Javier Cercas, o autor de Soldados de Salamina e de Anatomia de um Instante, reside na sua consciente mistura de ficção e História, imaginação e política, alimentando-se mutuamente e dando-nos, como compensação, a certeza de que o mundo não é um conjunto de fatos de fácil catalogação. A matéria de Cercas é a Espanha, amada e amarga, como a definiu certa vez o marxista italiano Pietro Ingrao, com sua história atribulada, repleta de violência, golpes e revoluções, e sua democracia tantas vezes interrompida, o que certamente a traz para bem perto de nós.

A ferocidade da guerra civil de 1936, contudo, não tem paralelo possível na nossa própria vida política. Aqui, o putsch de 1935 foi episódio cruento, doloroso, mas circunscrito, sem a fúria das paixões desatadas em torno da República espanhola, verdadeiro ensaio geral para o grande conflito que viria a seguir. E a Espanha, mergulhada na longa noite do franquismo, só em meados dos anos 1970, ainda antes de nós, é que se libertaria do regime do garrote vil e restabeleceria a liberdade perdida no fim dos anos 1930, quando o nazismo e o fascismo pareciam vitoriosos, impondo-se mediante a violência e o irracionalismo tornado ideologia de massas.

O instante cuja anatomia Cercas empreende tem um simbolismo a toda prova. Como em toda jovem democracia, o golpe costuma estar à espreita. No início da década de 1980, chefes militares essencialmente franquistas, não convertidos à ideia fundamental da obediência ao poder civil, encontravam terreno fértil para maquinações. O terrorismo ameaçava a integridade nacional. O princípio da tutela militar sobre as instituições voltava a se insinuar, ameaçando fazer a Espanha retroceder muitas casas no tabuleiro das democracias modernas.

Como consta na generalidade dos manuais de golpe, até hoje e em toda parte, a sedução de um gesto “heroico” empolgava corações e mentes de patentes inferiores. E a invasão do Parlamento, em fevereiro de 1981, pareceu dar vazão a tal instinto predatório. Os parlamentares, vistos com desconfiança por parte grande da opinião pública, como é comum na crise das democracias, foram de fato sequestrados. Entre os poucos que desafiaram as balas dos fuzis, Adolfo Suárez, o primeiro-ministro sob pressão, e Santiago Carrillo, deputado comunista, dirigente do seu partido, lendário inimigo público número um do franquismo.

Este, o instante fixado, prenhe de significados, aberto a múltiplas interpretações. Suárez e Carrillo, o delfim do franquismo e o veterano comunista, tinham sido paradoxalmente, nos anos anteriores, grandes artífices da redemocratização do seu país, a ponto de terem seus destinos políticos associados para sempre, até mesmo no declínio dos anos subsequentes. Na bela expressão de Hans Magnus Enzensberger, que Javier Cercas invoca a propósito dos dois políticos, eles eram heróis da retirada, um tipo de personagem extremamente rico, denso e, em muitos contextos, insubstituível. Ao “se imolarem” metaforicamente, e arrastarem consigo as ideias de toda uma vida, ainda por cima vividas coletivamente, esses heróis permitem que desponte um futuro que, no entanto, não os abrigará.

Detenhamo-nos neste ponto. Lugar-comum entre estrategistas a noção de que uma retirada em ordem é manobra que exige rara inteligência tática. Ela poupa armas e homens, permite uma rearticulação de forças, possibilita alguma contraofensiva. Na política, o herói da retirada é mais do que isso. A manobra, aqui, é mais radical. Ao retirar-se, o herói “desconstrói” os próprios valores sobre os quais desenhara seu percurso, assim como o de todo um grupo social. Não se trata, porém, de ato niilista que provoca perda de referências, mas de percepção do esvaziamento das antigas orientações em face de nova configuração do mundo. Um ato do mais puro realismo, portanto, que parte da constatação de que determinadas percepções subjetivas e categorias de pensamento viraram pó diante do juízo severo da realidade.

Suárez, criatura do franquismo, toma consciência da sua caducidade. Carrillo, combatente antifascista desde sempre, sabe que o leninismo dos PCs não faz nenhum sentido em democracias modernas. No contexto da transição, direita e esquerda, se quisessem contribuir para a nova democracia, deveriam renovar-se de alto a baixo. E só heróis da retirada têm consciência dos próprios limites ideológicos, uma consciência que se manifesta em cada um dos seus atos. No instante decisivo podem até ser aniquilados, mas só eles se empenham em dissolver antagonismos esclerosados e, ao menos, apontar o caminho das pedras.

Já admitimos que a carga de dramaticidade que nos envolveu no passado e agora nos envolve é bem menor. Golpistas não faltam, até em posição de mando, mas não há guerra civil nem fascismos invencíveis à vista. Mesmo assim, precisamos daquele tipo particular de heróis – por ora, e com urgência, terão de vir da direita moderada, civil e militar, para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: O romance (em aberto) do nosso tempo

Não há autoria individual nem se pode discernir o espírito do mundo numa figura de herói

Uma parcela da grande arte do século passado e a reflexão que ela inspirou apresentam a estratégia de isolar artificialmente personagens em situações inesperadas a fim de captar mais e melhor suas reações e respostas aos desafios humanos fundamentais. Assim, por exemplo, a vida cotidiana está como que suspensa na Montanha mágica, de Thomas Mann, ou no Primeiro círculo, de Alexander Soljenitsyn. Num teatro “irreal”, disposto arbitrariamente num único lugar, que pode ser um sanatório ou um gulag, os dramas afloram e se acirram, as orientações de valor mudam num sentido ou no outro, a morte ou a sobrevivência se decidem com um grau de intensidade que é difícil ver em tempos normais.

Essa fina observação de Lukács, um velho comunista capaz de insights poderosos, misturados obviamente ao pesado jargão da tribo, pode talvez iluminar a trágica condição humana, aqui e agora, assediada como está pelo espectro da ruína e da morte. O teatro único em que nos encontramos - nós, de carne e osso, momentaneamente reclusos nas nossas casas - é o mundo inteiro, tal como definido pela globalização “neoliberal”. A unidade do gênero humano é já um fato denso, palpável, ineliminável, ainda que levada adiante pelas forças cegas da economia, deixando para trás a política, vale dizer, a capacidade de controlar minimamente tais forças e diminuir a opacidade do seu movimento.

Na circunstância inédita do mundo hiperconectado, a vida nos chega codificada em algoritmos, a desinformação torna-se uma estratégia conscientemente buscada por grupos extremos, a cacofonia das redes sociais ameaça abafar qualquer exercício de racionalidade, enquanto os políticos de profissão, mais visíveis, ocupam a ribalta e parecem reger o conjunto. Sua fala, porém, soa vazia e muitos confundem seus gestos com a agitação de marionetes. Há uma grita geral por faltarem grandes atores, mas a nota esperançosa é que, em situações críticas, os papéis podem variar e é preciso saber ler as mudanças ou até pequenos sinais delas.

Bufões dificilmente deixarão de ser o que são - nenhuma esperança para a generalidade dos líderes da extrema direita mais em evidência, subversivos da ordem democrática por definição. Mas Emmanuel Macron, um democrata, surpreendeu-nos com a ênfase renovada na importância dos bens públicos, como a saúde. O Estado de bem-estar social, para ele, não deve ser contabilizado como um investimento qualquer, como fardo, mas, sim, recurso que define uma França e uma Europa soberanas. E mesmo um personagem reativo como Boris Johnson se emocionou em cena aberta ao voltar do seu quase encontro com a “indesejada das gentes”. Certamente é um nativista, mas seu elogio rasgado ao Serviço Nacional de Saúde e sua menção afetuosa aos enfermeiros imigrantes que o assistiram zelosamente, tal como o fariam com qualquer outro doente, escapam rigorosamente do script de uma extrema direita perigosa e farsesca. Essa fala comovida deixará algum traço, mínimo que seja, nas ações futuras do personagem?

No fundo, o que está em jogo é saber se as orientações nativistas, com sua carga de egoísmo e particularismo local, levarão a melhor sobre a estrutura econômica bem ou mal já mundializada e os organismos multilaterais que ela requer, a começar pela ONU. Não é despropositado ver que, no primeiro caso, antes da grande crise o projeto era o de dar rédea solta à religião de mercado no limite de cada Estado nacional, que sempre deveria vir “em primeiro lugar” ou “acima de todos”. As maciças injeções de recursos públicos agora necessárias desarticulam por muitos anos a utopia mercadista, mas as tendências iliberais ou antiliberais, presentes em muitos lugares, podem se agravar. Para ficar num só exemplo, a Hungria de Viktor Orbán, que, aliás, tem amigos poderosos no Brasil, puxa o cortejo fúnebre das liberdades democráticas - tecnicamente, já é uma ditadura.

A perspectiva internacionalista - sendo a mais razoável e a mais adequada à ideia de que o gênero humano, afinal, é um só - não está isenta de problemas. Não desaparecerão num passe de mágica as complicações geopolíticas e os desígnios hegemônicos, ou, mais precisamente, os desígnios de dominação nem sempre assentados em consenso. O poder que ora se retrai abdica das suas responsabilidades na gestão da ordem global e não esconde a intenção de solapar as instituições que ajudou a criar, como se vê agora por suas atitudes em face da Organização Mundial da Saúde (OMS); o poder emergente, por seu turno, é uma singular mistura de economia de mercado e autoritarismo político, cuja universalização não é desejável e só se concretizaria à custa da perda de valores inestimáveis da tradição ocidental.

O atribulado romance do nosso tempo está, assim, rigorosamente em aberto. Não há autoria individual possível nem se pode discernir, como outrora, o espírito do mundo encarnado numa figura de herói. Sabe-se só que a melhor perspectiva exige a permanência e o aprofundamento dos processos de democratização em cada nação e, por conseguinte, na comunidade de todas as nações.


Compre na Amazon: Livro Gramsci no seu Tempo tem reflexões sobre problemas da sociedade

Edição da FAP está à venda no site da Amazon; italiano se destacou no início do século 20

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O legado do fundador do Partido Comunista da Itália, Antonio Gramsci, continua com a marca de um grande autor conhecido pela sua capacidade de analisar problemas da sociedade de maneira universal, sem limitar suas reflexões ao tempo em que as produziu. O livro Gramsci no seu Tempo (2ª edição, 416 páginas), editado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), apresenta uma coletânea de ensaios selecionados por ele e que, nesta edição, foram reorganizados por Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques e Giuseppe Vacca. A obra está à venda no site da Amazon.

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A obra compõe-se de ensaios selecionados de Gramsci em seu tempo, originalmente organizado por Francesco Giasi e publicado em dois volumes (Roma: Carocci, 2008), com exceção das contribuições de Francesca Izzo e de Giuseppe Vacca, incluídas especialmente nesta edição brasileira. Com o reordenamento dos textos, os leitores podem ver os resultados de algumas das pesquisas mais avançadas no universo gramsciano, fundamentais para a renovação e o aprofundamento do debate teórico na cultura democrática e socialista brasileira.

Críticos afirmam que Gramsci tinha a plena consciência de que sua reflexão não deveria se limitar ao momento presente, mas, sobretudo, considerar o que havia de universal em suas manifestações. Ele nasceu na Sardenha, na Itália, em 22 de janeiro de 1891, e morreu em Lacio, também na Itália, em 1937, aos 46 anos, em razão de problemas de saúde agravados durante a sua prisão.

Gramsci escreveu os textos dos Cadernos – que começou a redigir em 1929, três anos após sua prisão pela polícia política do fascismo italiano – sob a forma de fragmentos a serem desenvolvidos sistematicamente quando viesse a oportunidade, futuramente. As críticas dele abordavam diversas questões, como literatura, política, economia e filosofia. “Seus múltiplos objetos, contudo, sempre estavam aplicados para uma única direção: exausto o ciclo aberto pela Revolução de 1917, quais as novas circunstâncias com que se confrontava a luta pelo socialismo e que inovações teóricas eram exigidas a fim de levá-la à frente”, escreveu o cientista social Luiz Werneck Vianna.

De acordo com Vianna, Gramsci revive na prisão, sob a forma de um pensamento refletido, o seu passado. “Dele extrai uma teoria nova, o que lhe permite observar a cena contemporânea com categorias originais, instituindo um campo próprio para o estudo do processo de modernização capitalista, em particular na modalidade de modernização autoritária, tal como em suas análises sobre o corporativismo italiano”, acrescenta o cientista social.

“A precocidade e o alcance de sua pesquisa teórica sobre esse assunto, antecipando-se em décadas a feitos da ciência política contemporânea, são bem indicados na formulação do seu conceito de revolução passiva, sua maior contribuição para os estudos dedicados à mudança social, hoje de uso generalizado”, completa Vianna.

Ele sugere destaca que, nesta coletânea de artigos de importantes especialistas italianos na obra gramsciana, reunida por respeitados intérpretes do legado do genial sardo, o leitor encontrará um bom mapa do estado da arte e do tipo de recepção contemporâneos às extraordinárias criações do grande autor que foi Gramsci.

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Luiz Sérgio Henriques: A Venezuela como questão de método

Com seus remédios salvadores, hipóteses ‘revolucionárias’ arruínam sociedades

A palavra “venezualização” passou a fazer parte do vocabulário político, por motivos óbvios. E como é próprio de palavras que nascem em contexto de ódio, divisão e radicalismo, trouxe consigo uma atemorizante carga negativa. Segundo próceres da direita, ou, mais propriamente, da extrema direita, a começar por Donald Trump, processos degenerativos como os que aquele termo implica decorrem inevitavelmente de qualquer experimento ou política associados, ainda que remotamente, ao “socialismo” e à “esquerda”.

Bem verdade que não há modos suaves para qualificar a tragédia venezuelana. Houve quem, no campo progressista, desconfiasse desde o princípio - e claramente a ela se opusesse - da aventura do comandante Hugo Chávez, mas é forçoso reconhecer que boa parte da esquerda brasileira e latino-americana não viu motivos para se distanciar de um militar ultranacionalista que prometia refundar ou regenerar o país, explorando a crise da democracia liberal e a debilidade da estrutura econômica, incapazes ambas - aquela democracia e aquela economia - de se abrir para uma participação maior dos venezuelanos. Com aguçado faro para a demagogia, Chávez relançou, pela primeira vez no século, menos a ideia do que o slogan do socialismo, o que bastou para que muitos deixassem num canto, sem uso, as armas da crítica e aceitassem como verossímeis as bravatas do caudilho.

O chavismo e o madurismo, para também mencionar o precário sucessor, constituem também, e sobretudo, um método. Como tal, o processo de venezualização não está restrito a uma desafortunada nação latino-americana, sangrada ainda por cima pela fuga de parte expressiva da população, não só dos setores mais ricos. E também não se restringe aos episódios massivos de tortura, violência policial e miliciana, que ninguém mais pode desconhecer - quando menos desde a publicação, em meados de 2019, do relatório da ONU sobre sistemáticas violações de direitos humanos organizado sob a direção de Michelle Bachelet, egressa das fileiras do socialismo chileno e vítima, ela própria, da ditadura no seu país.

Se nos limitássemos a esse tipo de constatação, diríamos que Chávez e depois Maduro seriam “somente” a versão populista de esquerda de um ditador infame como Pinochet. No entanto, o método que passaram a simbolizar tem que ver com algo ainda mais grave, a saber, o esvaziamento obstinado e contínuo das formas da democracia, rumo a um regime autocrático supostamente legitimado por expedientes plebiscitários e pela ligação direta entre o povo e seu líder. Um e outro se identificam a ponto de tornar tendencialmente impossível o papel da oposição e a alternância regular de poder. Opor-se ao líder, que encarna sem restos a pátria e as virtudes cívicas (quando não as religiosas!), é trair o povo, agindo como quinta-coluna de inconfessáveis interesses. E é nesse ponto que governantes extremistas se dão as mãos: nenhuma diferença essencial entre todos os que, a exemplo do presidente Jair Bolsonaro, prometem “varrer” os opositores, tratando-os ora como agentes do império norte-americano, ora como emissários do comunismo apátrida.

Foram incontáveis as vezes que Chávez ou Maduro denunciaram as tentativas de “magnicídio”, as tramas mirabolantes extraordinariamente próximas das fake news hoje “cientificamente” propagadas pela extrema direita no poder. Numa circunstância infeliz em que alguns dirigentes da “maré rosa” latino-americana se viram acometidos de câncer, Chávez aventou, com fingida seriedade ou autêntica paranoia, a hipótese de um vírus preparado nos laboratórios da CIA para assassinar os líderes e frear a marcha de redenção dos povos. Donald Trump foi um dos corifeus do movimento birther, que negava, com deslealdade a toda prova, o nascimento de Barack Obama em solo americano. E move-se com tanta maestria na “arte” da manipulação que, segundo afirmou certa vez, ainda que atirasse em alguém numa avenida nova-iorquina, nem por isso perderia um só voto. A tanto, sem dúvida, chega a cegueira deliberada.

A “venezualização” não é um risco associado unicamente ao populismo de esquerda. A “maré rosa” da primeira década do século tinha como área mais radical os regimes ditos bolivarianos, com a tática, num primeiro momento aparentemente invencível, de concentrar o poder em torno do Executivo, desautorizar os Parlamentos regularmente constituídos e destruir os delicados equilíbrios entre as instituições de Estado e entre este último e a sociedade civil. Contudo a régua e o compasso desse projeto infaustamente “revolucionário” se transferiram recentemente para outras mãos não menos ameaçadoras. E a ameaça presente - da parte da extrema direita liberticida - só faz confirmar que hipóteses “revolucionárias” de qualquer natureza, com seus remédios salvadores, costumam arruinar sociedades inteiras ou, no mínimo, encerrá-las em estéreis e prolongados conflitos e convulsões. Apesar do que somos e do que aspiramos a ser como povo e como nação, não podemos mais dizer que estamos alheios a esse tipo de atribulação.

* Tradutor e ensaísta, um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira)


Luiz Sérgio Henriques: Quando os bárbaros bateram em retirada

Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...

No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.

Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...

Ainda na última década do século 20 um novo e estridente grito de guerra se faria ouvir. É que o inimigo, sempre igual a si mesmo, mas ainda mais insidioso, teria passado a disputar corações e mentes com as armas mais lentas e, decerto, mais letais da cultura. Em consequência, gente treinada na linguagem da guerra fria reciclou-se rapidamente, apetrechando-se para ruidosas e intermináveis “guerras culturais”. Uma situação, aliás, que se agravaria exponencialmente no novíssimo ambiente das redes “sociais”, com sua capacidade inaudita de dinamitar pontes, criar tribos irascíveis e minar o terreno comum da convivência civilizada. E isso a ponto de se poder prever que minas potentes continuarão a explodir e causar danos no futuro, ainda depois de os guerreiros culturais ensarilharem as armas ou deixarem de fazer parte da corrente principal dos acontecimentos, ao contrário do que acontece hoje.

O alvo de tais guerreiros – que dão cobertura ideológica ao “populismo”, palavra ambígua e escorregadia, mas cujo conteúdo essencial consiste num ataque à democracia representativa tal como a conhecemos – deslocou-se: o comunismo perde a dimensão de desafio estatal e identifica-se sumariamente com o legado de 1968 e com a New Left multicultural. O ano que faz questão de não terminar, na frase de Zuenir Ventura, aparece agora como um nó a atar coisas díspares, mas todas muito “perigosas”: a rebelião antiautoritária, o feminismo, o pacifismo, o ambientalismo, tudo isso reunido numa crítica aos modelos de vida e consumo das sociedades desenvolvidas. Para os populistas de direita, eis a nova face do comunismo, empenhado como sempre em destruir a propriedade, mas desta vez, sobretudo, preocupado em corroer os valores familiares e os da tradição.

Como se trata de uma visão marcadamente ideológica, construída para organizar uma extrema direita de cunho anti-institucional, nada importa que o nó representado por 1968, no contexto real das coisas, não tenha muito em comum com a antiga posição comunista. Afinal, a Primavera de Praga também incendiou a imaginação de 1968. No clima da época, o velho ascetismo revolucionário sofreu golpes fatais. E num sentido que, na verdade, os enaltece, os comunistas da tradição se chocaram com uma derivação marginal, mas extremamente problemática, do espírito soixante-huitard, a saber, a trágica sedução da violência política.

Numa avaliação mais realista, um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é altamente improvável que se venha a repetir num mundo interdependente em termos não mais só econômicos. E a New Left “multicultural”, mesmo quando vocaliza exigências essenciais, como o combate ao racismo e a defesa do ambiente, muitas vezes reproduz a própria superfície fragmentada da vida, sem estabelecer conexões entre os variados grupos que poderiam expressar alguma hipótese de ruptura. Se este diagnóstico sumário fizer sentido, então o agressivo populismo de direita dos nossos dias aparecerá como o que de fato é: um desses fenômenos regressivos que de tempos em tempos reagem virulentamente a mudanças havidas na estrutura do mundo e tentam restaurar um passado de papelão pintado. Para quem não aceita tal regresso, trata-se de uma oportunidade e tanto para alianças que defendam e aprofundem a experiência democrática em toda a sua plenitude.

 


Luiz Sérgio Henriques: Guerras falsas, guerreiros de fancaria

A atual generalizada redução das classes a massas não prenuncia nada favorável

Guerras culturais têm uma aparência kitsch e costumam girar em torno de monstros fabulosos, a tal ponto que nunca se sabe muito bem se os contendores argumentam de boa-fé ou estão mesmo perdidos entre sofismas que inventaram com intenções pouco claras. Quando ouve falar da ameaça rediviva do bolchevismo mundial ou de inimigos imaginários apontados à execração pública - inimigos que, a depender da latitude, podem ser um milionário judeu, como George Soros, um pedagogo brasileiro, como Paulo Freire, ou ainda o demoníaco Antonio Gramsci de mil faces -, qualquer pessoa formada segundo padrões racionais e contemporâneos haverá de torcer o nariz com certo enfado. “Paranoia ou mistificação?”, poderá perguntar a si mesma, ecoando talvez Monteiro Lobato, grande intelectual moderno paradoxalmente reativo à modernidade artística que abria caminho há cem anos.

Esse nosso personagem de formação razoável sabe, entretanto, que com ideias não se brinca. Elas podem ser abstrusas e até divertidas, se consideradas com distanciamento, mas num tempo ideologicamente confuso e agitado, que a tantos chega a lembrar a crise dos anos 1930 e as soluções totalitárias então engendradas, têm o poder de formar convicções e sentimentos de grandes massas, tornando-se por isso mesmo uma força material tão densa e concreta quanto qualquer fato bruto da economia ou mesmo da realidade natural. Ideias podem matar ou, no mínimo, propiciar catástrofes históricas. Podem configurar aquele “assalto à razão” que um grande filósofo marxista do século passado denunciou com vigor na cultura alemã e que seria a antessala do nazismo - o mesmo filósofo que, no entanto, não viu acontecer o assalto semelhante que iria corroer por dentro a experiência do socialismo inaugurada em 1917.

Este não será um tempo de partidos - oficialmente em crise, eles que foram moldados segundo os requisitos da sociedade industrial, hoje em trânsito acelerado para a digitalização -, mas continua a ser de homens partidos e de má política. Expliquemo-nos sobre esta última expressão: a política é má quando, por deficiência subjetiva dos atores ou pela natureza inédita das transformações que varrem o mundo, não dá conta dos fenômenos, vê-se atropelada por eles, sem conseguir identificar as boas possibilidades existentes mesmo durante os processos mais tumultuosos. E não se trata, obviamente, de uma condição fatal: ela, a política, é má quando ainda não compreende tais processos e deixa homens e mulheres comuns sem a capacidade, tanto intelectual quanto emocional, de tomar conta das forças que dirigem sua vida. Como se costuma dizer, em tais momentos os fatos, e não os sujeitos, parecem estar no comando. E os resultados em casos assim são, no mínimo, sofríveis, se não desastrosos.

A política, quando parece ausentar-se nos momentos de crise aguda, “orgânica”, logo se vê substituída pela ideologia no pior sentido da palavra. Ágnes Heller, a dileta aluna do acima mencionado Georg Lukács, cujo horizonte se abriu para além do marxismo, incorporando, entre outros, o pensamento de Hannah Arendt, insistiu exatamente nesse ponto às vésperas da sua morte, no ano passado. Não é que a sociedade de classes seja um momento luminoso do passado ou que a política havida no seu âmbito seja um farol da razão ou um modelo inalcançável. Houve ditaduras, e ditaduras cruéis, no século 20; mas a atual redução generalizada das classes a massas não prenuncia nada particularmente favorável. Ontem e hoje, as formas totalitárias de poder medram exatamente quando essa redução se consuma.

A ideologia torna-se o alimento de má qualidade manipulado demagogicamente pelos tiranos ou aspirantes a tiranos. Na Hungria, a pátria de Heller, um nacionalismo étnico invade o espaço público e sufoca a vida democrática: a retórica xenófoba toma conta de um país que praticamente não tem imigrantes. A vida institucional sofre continuadas agressões da parte do Executivo todo-poderoso. A imprensa vê-se comprada pelos amigos ou apaniguados do poder - ou calada. Uma estratégia “hegemônica” rudimentar - uma espécie de “gramscismo” da extrema direita -, baseada em agressivo conservadorismo pseudorreligioso, limita os espaços de liberdade individual, vistos como o lugar por excelência do perigoso comunismo cultural e suas sedutoras “teorias de gênero”, sua anarquia espiritual, seu espírito globalista e apátrida.

Tudo isso, dizíamos, é um tanto kitsch, ou, para falar a verdade, tem a marca registrada do mau gosto e da mediocridade, da paranoia e da mistificação. Alguns ainda argumentarão que a pequena Hungria tem uma história democrática modesta, reduzida, como lembrava a própria Heller, ao tempo da primavera dos povos em 1848 ou da rebelião antissoviética de 1956. E que, por isso mesmo, os maus ventos que lá sopram não poderiam empestear as casamatas e as trincheiras mais robustas que são próprias do Ocidente, a começar pela mais antiga das democracias modernas, apesar de hoje assolada pela vulgaridade de um Trump. E mesmo o Brasil, depois de 1988, teria trocado os parênteses democráticos da sua história por uma democracia estável, amparada estruturalmente numa sociedade civil e econômica complexa e diversificada, que não mais autoriza aventuras autoritárias.

Há verdade neste último argumento, mas não convém subestimar os perigos do caminho. Entre eles, e não em último lugar, as belicosas guerras de cultura, que têm o condão de corromper a sociedade, dividi-la e empobrecê-la. A viva dialética da cultura, com seus combates e desafios, com seu lento e molecular trabalho de construção de valores e ideais comuns, é uma coisa. Bem ao contrário, as guerras e os guerreiros culturais, não importa a bandeira que ostentem ou o motivo que os agite, são um decalque simultaneamente farsesco e trágico de tal dialética. Há que evitá-los.

 


Luiz Sérgio Henriques: Uma defesa do liberalismo

Defesa das instituições, e da Constituição que as afirma, é obrigatória para todo democrata

Neste ano em que voltamos a viver perigosamente, muito além do que recomendam elementares normas de prudência, descobrimo-nos, nós, brasileiros, não só leitores da densa e significativa literatura sobre crise e morte das democracias, mas também participantes em primeira pessoa do drama que tais livros expõem. A bem da verdade, examinando nossa trajetória recente, o perigo rondava já há algum tempo, pelo menos desde que as multidões tomaram as ruas em 2013, sem que seu mal-estar fosse entendido ou metabolizado pelo sistema político e abrisse um horizonte de mudanças; ou quando cada um dos episódios eleitorais passou a assumir o aspecto irrazoável de luta de vida e morte, um combate feroz entre “nós e eles”, como se a alternância no poder não fosse um fato rotineiro em sociedades maduras.

Seja como for, e quaisquer que tenham sido as causas, o fato é que passamos a escrever – ou, mais apropriadamente, deixamos que outros passassem a escrever e, assim, “controlassem a narrativa” – a história da nossa própria crise. Não é preciso mais olhar para longe e mencionar nomes surpreendentes, como Donald Trump, e até desconhecidos, como Viktor Orbán. Abandonamos a leitura mais ou menos angustiada sobre os destinos do mundo, ou a ela não nos dedicamos mais com exclusividade, uma vez que experimentamos na própria pele a possibilidade de involução autoritária ou, o que vem a ser a mesma coisa, de compressão dos elementos especificamente liberais da democracia.

Uma “democracia iliberal”, na verdade, só se tornaria viável com o cancelamento do regime constitucional de 1988, daí o aspecto “revolucionário” de que inevitavelmente se reveste. De fato, implicaria levar até o fim, com radicalidade “jacobina”, dois processos em andamento, ainda que entre si contraditórios e, por isso, potencialmente desestabilizadores do próprio bloco político que os promove. Desde logo, a hipotética “nova ordem” seria o veículo para a refundação econômica do País nos termos do ministro Paulo Guedes, com escassa ou nenhuma preocupação social – de resto, não constitui ofensa ao ministro afirmar que a desigualdade, mesmo quando disruptiva, está muito longe de figurar entre suas maiores preocupações. “Perdedores” não lhe tiram o sono, sem importar que o número deles atinja as proporções catastróficas que nos rodeiam.

Mas há mais. O mercadismo radical não produz adesão generalizada nem entusiasma muita gente por muito tempo. Distantes estão os tempos em que, por exemplo, o industrialismo de tipo americano podia nutrir a expectativa de moldar quase por si só toda a sociedade, conformando comportamentos individuais e coletivos adequados à sua reprodução. A racionalização da produção e a da sociedade inclusiva podiam então caminhar em conjunto ou era razoável esperar que assim fosse. Na ordem que se projeta, contudo, ocorre o inverso: impossível deixar de lado a muleta da ideologia, neste tempo em que os populistas no poder, por toda parte e sem exceção, lançam mão de pesada couraça de ideias regressivas em torno do projeto de sociedade que propugnam.

Pois a democracia em causa é, exatamente, iliberal, de acordo com a fórmula inventada pelo autocrata húngaro acima mencionado. Uma das primeiras virtudes cívicas de que abre mão é a tolerância: com as oposições, com os diferentes, com as minorias. A relação direta entre o Líder e a parcela fanatizada da população também dispensa a intermediação do tipo de sociedade civil que costumamos atribuir ao Ocidente político e que impede golpes de mão e aventuras autoritárias. O uso manipulatório das redes sociais põe em crise a verdade ou, antes, a possibilidade de buscá-la mediante o diálogo de boa-fé travado em condições paritárias. Os direitos civis, a liberdade de imprensa ou a separação de Poderes parecem aspectos de um mundo decadente e ultrapassado, capazes de trincar a unidade em torno do Líder, segundo a versão simultaneamente conservadora e revolucionária que se tenta tornar senso comum.

A democracia iliberal apropria-se de lemas, valores e práticas que há algumas décadas caracterizavam franjas extremistas do lado oposto. Em 1968, o agitado ano que não termina, ela se mira como num espelho invertido. “Tudo é política”, o cinquentão slogan rebelde, tem agora sua versão contrarrevolucionária. A ciência do clima, com seus alertas quase consensuais sobre o desastre que se avizinha, dissolve-se nas brumas da ideologia: se sou ultraconservador, ignoro esses alertas e desprezo evidências que me contrariem. Não há por que falar em aquecimento global ou agir para salvaguardar o ambiente, cenário agora disposto para um produtivismo inacreditavelmente predatório. E outras conquistas civilizatórias – até vacinas! – estão postas em questão, para não mencionar dúvidas sobre a esfericidade da Terra. Darwin, aliás...

A verdade é que não sabemos bem como enfrentar a mistura explosiva entre fundamentalismo de mercado e de valores. Por contraditórios – o primeiro, individualista; o segundo, não –, esses dois fundamentalismos nos pareciam inconciliáveis até há bem pouco tempo. Mas, evidentemente, enquanto estiverem mesclados, orientarem governos e arrebatarem parte da opinião pública, eles projetarão formas de convivência avessas à sociedade aberta de que se diz adepto o ministro Guedes.

Se ainda não descobrimos como conter este revolucionarismo de novo tipo, temos, porém, uma boa pista – contra o despotismo iliberal, cabe retomar, reviver e aprofundar todos os valores do liberalismo político, que são, afinal, momentos altos de liberdade corporificados em instituições notavelmente resistentes. Abandoná-las nunca deu bons frutos para ninguém, em momento algum, e previsivelmente continuará sem dá-los. A defesa de tais instituições, bem como da Constituição que as afirma, é a via real e obrigatória para todos os democratas.

 


Luiz Sérgio Henriques: De curtos-circuitos e centelhas

A sedução do homem providencial percorre como praga a política latino-americana

Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.

Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.

Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.

No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.

A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.

Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.

A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.

Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.