luiz sergio henriques

Luiz Sérgio Henriques: Os bárbaros entre nós

Há setores da esquerda dispostos a sacrificar os direitos humanos se as ditaduras são ‘amigas’

Nem mesmo quando a pandemia grassava nos Estados Unidos sem perspectiva de controle, e o então presidente Donald Trump perdia o trunfo de alguns ganhos econômicos que podia alardear, era totalmente certa sua derrota nas urnas. Não importava muito que os democratas houvessem encontrado em Joe Biden uma saída equilibrada e confiável, de resto quase sempre à frente na maioria das pesquisas pré-eleitorais. Na verdade, tão espalhado é o mal-estar difuso nas democracias, tão grande a crise do político, mais além das crises convencionais da política, que o campo aberto à disposição dos demagogos parece inesgotável, possibilitando-lhes passes de mágica e ilusionismos vários até há pouco próprios só do realismo fantástico.

Convém ter isso claro ao analisar o momento atual do presidente Bolsonaro no penúltimo ano de mandato, já se podendo prever, sem margem a dúvida razoável, o quadro catastrófico que se abriria em caso de reeleição. Os números negativos sobre seu desempenho no (não) enfrentamento da pandemia – um evento excepcional – ou na administração regular dos problemas do País podem até subir consistentemente, como parece ser a tendência, mas sempre sobrará para esse tipo de líder a tentação do desatino fatal: o ataque frontal às instituições, iconicamente representado no assalto ao Capitólio.

Além disso, a derrota de Trump ao fim do primeiro mandato – como assinalou Yasha Mounk, que de populismo autoritário entende – não seguiu o padrão habitual. É que, em média, tais líderes tendem a ficar mais tempo no poder do que primeiros-ministros e presidentes comprometidos com as regras da alternância, e os eleitores só os defenestram depois de já seriamente comprometidas as instituições.

Nada simples desvendar o segredo de tal resiliência, mas o fato é que esses dirigentes autoritários expressam e estimulam um contexto em que há imensas falhas tectônicas entre os territórios da política e da economia. A primeira, ainda basicamente vivida e pensada em termos nacionais; a segunda, crescentemente globalizada, sem instituições que a regulem e garantam a correção dos desequilíbrios provocados por seu movimento “cego”. Retomar o controle nacional sobre o movimento da “máquina do mundo”, fechar fronteiras, destruir os fóruns de cooperação mundial e, por certo, acirrar conflitos externos e a guerra interna de classes, eis a substância da distopia que incendiou a imaginação de políticos e ideólogos do novo populismo.

Por isso o léxico de que se valem os nacionalistas autoritários é impressionantemente monótono: a “América primeiro”, de Trump, é o lema que tentaram, ou tentam, retraduzir em suas nações Salvini, Erdogan, Orban, Le Pen. Entre nós, o “Brasil acima de tudo” trouxe em si o aspecto irônico de ser um nacionalismo contraditoriamente dependente de outro, e ademais, com a vitória de Joe Biden, agora órfão na parte ocidental do mundo. E o “Deus acima de todos”, independentemente do que pensarmos sobre a profundidade da vida espiritual de quem nos governa, sintetiza no plano retórico a disposição de usar, sem moderação e a despeito dos processos de secularização que supúnhamos consagrados, a arma do fundamentalismo religioso.

O cardápio envenenado implica a volta aos valores de um passado muitas vezes pré-iluminista, a proposição de uma modernidade reacionária e amputada da dimensão do individualismo democrático, para nada falar do marxismo, seja lá a extensão ou o sentido a ser atribuído a esse termo. O recuo às fronteiras nacionais, por óbvio, tem como consequência abdicar da capacidade de pôr de pé uma ordem mundial minimamente cooperativa e pacificada: até o comércio entre as nações se torna a continuação da guerra por outros meios. Em cada país individualmente considerado, as marcas evidentes são a democracia sem liberalismo, o Führerprinzip como a realidade por trás do slogan do “povo no poder”, bem como o recurso permanente às rançosas lutas culturais, na falta de projeto hegemônico consistente. E naturalmente, com o isolacionismo, a intensificação do racismo e da xenofobia.

Tudo seria simples demais, os campos estariam bem demarcados e só restaria partir para o bom combate do voto e das ideias, não fosse o fato perturbador de que também há setores da esquerda de orientação “soberanista” e antiliberal, dispostos a sacrificar o legado iluminista e até os direitos humanos, quando os ditadores são “nossos” e as ditaduras, amigas. Não se trata só de crasso erro prático, capaz de minar a prática das alianças e das amplas frentes em prol dos valores democráticos. Trata-se, também, de insuficiência teórica que impede ver em toda a sua amplitude os processos de democratização política e social, bem como o papel que neles tiveram os “subalternos”, em geral representados por socialistas em conflito – mas também em colaboração – com liberais e mesmo conservadores.

É essa dinâmica aberta e generosa, historicamente decisiva, que convém restaurar o quanto antes, mesmo porque os bárbaros estão às portas e, ai de nós, em alguns casos já as derrubaram.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: Entre o centro e o centrão

O Exército de Brancaleone.

Um governo como o de Jair Bolsonaro tem o caráter de desafio imprevisível e continuado. As provações a que submete a institucionalidade democrática se sucedem umas às outras, como num alucinante trem fantasma que não parece chegar nunca mais à estação terminal. Seria um tanto ofensivo invocar o cineasta Mario Monicelli, um convicto homem de esquerda, mas o fato é que a atual equipe dirigente lembra quase automaticamente a armata Brancaleone, com a arregimentação desregrada de militares, a trazer acentuadas preocupações sobre o papel das Forças Armadas, e a ação de um autoproclamado “núcleo ideológico” em guerra permanente contra a modernidade, praticamente confundida com o “comunismo”. A estes dois grupos, de resto conflagrados entre si, se acrescenta a cota bem nutrida dos incompetentes, ainda que, nisso tudo, as linhas de separação sejam muito difíceis de traçar.

Os otimistas sublinham a resiliência das instituições: elas não se submeteram ao assalto aberto, às manifestações subversivas, à tropelia das milícias reais ou digitais. O próprio presidente, num dado momento, sem abandonar a truculência verbal e as decisões irracionais, como na triste guerra das vacinas em que ora empenha seus generais e sua armata, passou a valer-se de modo mais regular dos poderes convencionais do Executivo. Passou a usar, em suma, a tal “caneta” cheia de tinta, não a Montblanc de antes, mas uma Bic incomparavelmente mais perigosa. No STF ainda não tomou assento o ministro “terrivelmente evangélico”, mas o primeiro voto importante do recém-empossado jurista conservador, confeccionado sob medida para aplainar o caminho do presidente do Senado e barrar o da Câmara, não deixa dúvida sobre o que se pode esperar.

O centrão amorfo, expressão consumada da “velha política”, reaparece com nobres e altas funções. Longe de ser exorcizado pelo refrão do samba de Bezerra da Silva, como se queria nos tempos “heroicos” da campanha eleitoral, agora está metamorfoseado na frente parlamentar que já funciona como dique contra qualquer impeachment e possivelmente, a partir de fevereiro de 2021, funcionará como suporte da agenda reacionária do governo, se derem certo os cálculos do estado-maior da armata. Dali para a frente, quem gritar “pega ladrão” irá encontrar, vai-se lá saber, uma pequena multidão de ministros e dirigentes acotovelados em secretarias e estatais, a cumprir ritos e preceitos franciscanos – não os do inquieto Papa argentino, mas os que, pondo de lado o disfarce das boas intenções, pavimentam o caminho de negócios e transações, muitas das quais tenebrosas, a julgar pelos precedentes.

Um ponto específico deve ser aqui mencionado. O ressurgimento em grande estilo do centrão, tal como desenhado nas pranchetas da batalha, implicará abrir brechas de demorada reversão nas fileiras de um centro parlamentar ordenadas a duras penas por gente como o deputado Rodrigo Maia. Nestas fileiras confluíram mais estavelmente, nos dois primeiros anos da legislatura, partidos como o DEM, o PSDB e o MDB, além de siglas menores, mas simbólicas, como o Cidadania. Vez por outra, uma boa surpresa: víamos parlamentares de outros partidos da centro-direita, relativamente desconhecidos, a opinar com lucidez sobre leis e medidas provisórias, demonstrando apreço pelo interesse público. De particularíssimo relevo, além disso, os variados canais de comunicação mantidos pela presidência da Câmara com a esquerda “pura e dura”, cuja representação, evidentemente, não é lícito ignorar.

A resultante de todo este esforço foi claramente, no primeiro biênio legislativo, uma Câmara e um Congresso capazes de tomar iniciativas, como no caso da reforma previdenciária e do auxílio emergencial, mas também, efundamentalmente, capazes de mostrar que seus destacamentos mais relevantes estavam firmemente postados nas trincheiras da institucionalidade. Em outras palavras, a construção de um centro parlamentar ativo, um valor em si mesmo, tornou possível algum contato produtivo com a(s) esquerda(s), garantindo o protagonismo do legislativo em certos casos e, em outros, o veto a nefastas proposições governamentais. Um resultado nada desprezível, se considerarmos o contexto de divisões, conflitos e até rancores que envenenaram a política e a nação nos últimos (muitos) anos.

Na renovação das mesas diretoras, em particular da Câmara dos Deputados, uma parte das esquerdas poderá escolher o caminho da candidatura própria, autodispensando-se de negociações e apregoando farisaicamente a própria nobreza de intenções. Conseguirá, assim, meia dúzia de votos e proclamará à sua maneira um lema de inspiração brancaleônica: pocos, pero sectarios. Outra parte poderá embarcar na atração fatal do carro governista – pois, nesta altura, pouca dúvida há de que, com a rearticulação congressual do centrão, volta a se animar a virulenta agenda destrutiva dos tais “conservadores cristãos” que constituem a alma populista deste governo. E não se trata de firulas ou pruridos: ninguém pode ignorar os pesados reflexos que teria sobre o cotidiano da população a aprovação de medidas que reduzam o âmbito e o escopo dos direitos humanos ou facilitem a disseminação ainda mais acentuada de armas e balas, para nada falar da tragédia ambiental em andamento.

Tudo isso pode estar certo, mas – dirão ainda – o centro parlamentar representado por Maia tem um lado negativo que impede alianças. É que ele também se fez protagonista de reformas liberais, e estas, na visão de uma certa esquerda, nunca são razoáveis nem passíveis de reparos legislativos que pelo menos atenuem a perda de direitos ou até ajudem a vislumbrar, e quem sabe afirmar, outros direitos de novíssima geração. Neste caso se afirmaria à esquerda uma posição de mera recusa, radical mas impotente. Uma impotência que se agravaria com o tempo, pois é certo que, além da agenda regressiva de valores, a troca do centro pelo centrão tornaria bem mais viável o liberalismo à la Guedes, por sinal um ingrediente bizarro que seria tremendamente injusto esquecer se de armata Brancaleone falamos.