Luiz Edson Fachin
Luiz Edson Fachin: Eleições municipais, voto informado e democracia
Pleito pode ser um dos meios de defesa do povo contra o autoritarismo e os poderes da Federação
Venho de presenciar eleições em país andino na condição de observador internacional. Essa experiência realça elementos da realidade brasileira.
Não se tenha dúvida: predadores da democracia estão mesmo à espreita. Palavras de simples ameaças que parecem apenas exercitar ideias espalhafatosas que não desbordariam, a rigor, de uma sociedade aberta à livre expressão, vistas de perto, compõem um dialeto de propósito nítido: semear a descrença na democracia e na legitimidade das instituições. Almejam ir às últimas consequências: corroer a credibilidade da Justiça Eleitoral. À força do argumento ressuscitam o argumento da força.
O Brasil do presente é desafiado nesse campo, castigado ainda mais por enxurradas de desinformação. É um caos que até parece bem organizado por meio de notícias falsas e meias-verdades.
Auspicioso é o fato de que, neste 2020, eleições periódicas dos mandatários municipais se avizinham no Brasil. Abrem-se as urnas para o exercício eleitoral da cidadania que se constrói permanentemente. Essa reflexão conclama aos titulares da soberania popular. Nunca é demais enfatizar o poder do voto informado.
Votar é vital para o fortalecimento da musculatura da democracia representativa. Não se trata, por certo, de poção mágica para responder de pronto a todas as legítimas aspirações sociais, econômicas e políticas. Nada obstante, é um eficaz antídoto contra a atrofia que cede às tentações autoritárias.
Mais que isso: o dia das eleições produz uma necessária inquietação para que se entenda que numa democracia verdadeira se elege uma proposta ou alguém todos os dias em todas as horas que, individual ou coletivamente, se perfazem ações ou se configuram omissões. Educação, saúde, segurança, transportes públicos, entre outros temas, batem às portas da administração municipal por intermédio da comunidade de pessoas, grupos, movimentos sociais, entidades e instituições, almejando pôr em prática um constitucionalismo democrático popular.
Guardiões finais da Constituição são todos os que delegam, por agir ou por deixar de atuar, a um Poder o seu próprio poder. Delegações não são abdicações. Eleger é uma escolha importante para apontar quais são, na administração dos locais onde domiciliamos nossas raízes, os mandatários que, dentro da Constituição e das leis da República, vão desempenhar os poderes conferidos por essa legítima manifestação eleitoral.
Para tanto, consciência das possibilidades e dos limites é essencial, uma vez que na democracia se pode muito, mas não se pode tudo.
Limites democráticos são condições indispensáveis à própria democracia. Assim o pluralismo político também se deve traduzir (embora a isso não se resuma, por evidente) em pluripartidarismo. Partidos políticos, ideários e cosmovisões partidárias e programáticas são imprescindíveis. Afastar os partidos do núcleo da democracia consiste em golpear por dentro a razão da representação na República.
Inafastáveis são o controle e a fiscalização, contudo tais ações não apresentam um fim em si mesmo. Combater e punir são instrumentos de um Estado de Direito democrático, cujos fins são vincados pelos fundamentos da República inscritos na Constituição.
Cumpre estar atento a esses novos intentos variados de pôr em modo “hibernar” a legalidade constitucional. Quando nas vizinhanças do Brasil se faz a defesa tout court de pena capital para ilícitos de corrupção, ou simplesmente a revogação da Carta Política, o passo seguinte é aniquilar o doente para supostamente sanar a doença. Impende não ser indiferente a isso. É possível (e necessário) ser implacável com a corrupção sem afrontar o organismo reitor vivo da democracia que é a Constituição. Guardá-la também é protegê-la.
Todas as democracias têm suas conjunturas claro-escuras, porém momentos de crise política não podem obnubilar a estrutura democrática. Transitoriedade e alternância no poder conjugam autoridade, respeito ao voto e democracia.
Às últimas consequências os limites constitucionais.
O escrutínio que se aproxima em outubro vindouro propicia oportunidade para desnudar a diluição institucional, pois um pleito dessa envergadura, dimensão e relevância pode ser um dos meios de defesa do povo contra o autoritarismo e a excessiva centralização de poderes na Federação. É o município o primeiro mundo político da cidadania, elevado em 1988 a ente federativo a merecer maior e melhor presença no federalismo de cooperação.
A diferença entre ponte e abismo vem se colocando no horizonte. Quiçá seja tempo de renovar a esperança de que somos plurais nas diferenças e capazes de ligar margens, e não apenas produzir clivagens. As eleições vêm logo aí. O tripé democracia, igualdade e República se reaviva no município.
Aos predadores antidemocráticos, o que lhes corresponde de acordo com a bula democrática: doses maciças de tolerância e de coexistência injetadas pelo soro dos limites constitucionais. O voto informado pode fazer de cada município a síntese que contém o País.
MINISTRO DO STF E DO TSE