Luiz Carlos Bresser-Pereira
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A decepção de dois mestres
Mergulhamos na ortodoxia liberal e no populismo
Em sua coluna na Folha, em 18 de setembro último, Silvio Almeida falou de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), o notável sociólogo negro que foi um dos meus mestres nos anos 1950, quando eu tinha 20 anos. Em conjunto com Ignácio Rangel, Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro foi um dos grandes intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que se reuniram no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e repensaram o Brasil.
Eles o fizeram a partir das ideias de revolução nacional e industrial, as quais, para se concretizar, implicavam a crítica sistemática à dependência ou ao entreguismo das elites liberais locais e ao imperialismo das grandes potências. Conforme diz Silvio Almeida, Guerreiro Ramos é “a síntese de tudo aquilo que o atual governo brasileiro vem se empenhando em combater: uma pessoa negra, um intelectual, um defensor da soberania nacional e um servidor público preocupado com o Brasil”.
Naquela época, o Brasil tinha um projeto nacional de desenvolvimento baseado na ideia de industrialização e um líder político comprometido com esse modelo, Getúlio Vargas, o estadista que o Brasil teve no século 20.
Guerreiro e seus colegas apostaram na associação da burguesia industrial com os trabalhadores, a burocracia pública e os intelectuais desenvolvimentistas em torno desse projeto porque essa coalizão era uma realidade naquela época, não obstante suas ambiguidades e contradições. Estava acontecendo e estava dando certo. Entre 1930 e 1980, o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico acelerado que deu origem a uma grande classe operária e a uma grande classe média de natureza tanto gerencial e profissional quanto empresarial.
Entre 1930 e 1960, sob o comando ou a inspiração de Getúlio Vargas, e entre 1964 e 1980, sob o comando dos militares, o Brasil se industrializou e se tornou um grande exportador de bens manufaturados.
Mas, já nos anos 1970, surge uma teoria da dependência associada, de origem marxista, que era equivocada —tanto ao negar que a burguesia pudesse ser nacionalista quanto ao afirmar que o imperialismo não era contra nossa industrialização. Equivocada, mas que ganhou os intelectuais brasileiros porque estes eram democráticos e os militares haviam se tornado desenvolvimentistas.
Conheci bem Guerreiro. Eleito deputado federal em 1960, foi cassado em 1964 e se exilou nos Estados Unidos, onde se tornou professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Morreu em 1982, profundamente decepcionado com o Brasil e seus intelectuais.
Decepção semelhante aconteceu com outro grande intelectual brasileiro, também meu mestre, Celso Furtado. Ao morrer, em 2004, ele já via a economia brasileira semiestagnada desde 1980 e, desde 1990, dominada pela ortodoxia liberal.
Nos anos 2000, Lula tentou reverter esse quadro, mas a alternativa que os desenvolvimentistas ofereciam ao liberalismo econômico era pobre, baseada apenas na política industrial; faltava uma macroeconomia do desenvolvimento.
Desde 2013, depois de 33 anos de quase-estagnação, mergulhamos em uma grande crise política e econômica, enquanto se aprofundava a subordinação à ortodoxia liberal do Norte, não obstante essa ortodoxia venha sendo abandonada pelos países ricos desde então.
Há alguma esperança para o Brasil? O país pode voltar a ter um projeto nacional de desenvolvimento? Não estou seguro. Há dois grandes líderes políticos hoje no Brasil, Lula e Ciro Gomes; e há um terceiro, jovem, que aponta para o futuro, Guilherme Boulos. Ciro é o que está mais próximo a ter um projeto.
Mas Getúlio Vargas tinha por trás de si uma sociedade que se repensava, ajudada por seus intelectuais. Isso não acontece hoje.
Nossas elites intelectuais estão perplexas. Tão perplexas quanto as do Norte, que dizem, equivocadamente, que sua crise é a crise da “democracia liberal”. Na verdade, é a crise do neoliberalismo americano, que é dominante naquele país desde 1980, diante do bem-sucedido desenvolvimentismo chinês.
É uma crise que está levando os países ricos, um a um, a abandonar o liberalismo econômico e a adotar políticas desenvolvimentistas, enquanto o Brasil, ao invés de se repensar, como fizeram seus intelectuais nos anos 1950, mergulha no liberalismo econômico e no populismo de direita.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)
Luiz Carlos Bresser-Pereira: Paulo Guedes, um novo desenvolvimentista?
Não bastam juros baixos e câmbio mais competitivo
A economista Laura Carvalho, naturalmente em tom de galhofa, perguntou no seu Twitter: “É impressão minha ou de uma hora pra outra apareceram centenas de novos desenvolvimentistas à la Bresser dando aula sobre as maravilhas do câmbio competitivo pra tentar salvar a fala do Paulo Guedes?”
A galhofa não foi comigo, mas com os novos convertidos... Pois é, Laura, o ministro está feliz porque a taxa de juros caiu e a taxa de câmbio está competitiva. Mas isso não o faz um desenvolvimentista; mostra apenas que é inteligente. Para ser um “neodesenvolvimentista” não é simples assim. É preciso reconhecer que o mercado é insubstituível nos setores competitivos da economia, mas saber que o Estado é o instrumento de ação coletiva por excelência das boas sociedades.
Eu realmente venho há 20 anos afirmando que uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo, causada por uma taxa de juros alta e uma doença holandesa não neutralizada, é um dos dois fatos históricos novos que explicam os baixos investimentos privados e a quase-estagnação da economia brasileira desde 1990. O outro é a baixa da poupança pública e o resultante baixo investimento público.
De repente, parece que um dos problemas foi resolvido. Não foi. A taxa de juros baixou, mas ainda é relativamente alta, e não há nenhuma garantia de que permaneça no atual nível dado o déficit em conta-corrente e a fuga de capitais. Por outro lado, a doença holandesa continua a não ser neutralizada —ela apenas perdeu força porque o preço das commodities está baixo.
O Banco Central certamente baixou os juros. Mas será que deixou de ser uma instituição a serviço de rentistas e financistas por isso? Ou baixou os juros porque a enorme recessão e a queda radical da taxa de inflação o obrigaram?
A segunda alternativa é provavelmente mais correta. É verdade que seu presidente é neto de Roberto Campos. Seu avô adotou o neoliberalismo quando este se tornou dominante no mundo, mas era um homem genial, “fora da caixa”; ele não estava simplesmente a serviço de rentistas e financistas.
Para a economia brasileira retomar o desenvolvimento é preciso que a taxa de câmbio permaneça flutuando em torno do nível real atual. Isso criaria oportunidades de investimento para as empresas e resolveria o problema do investimento privado. E é preciso que o Estado separe radicalmente o gasto corrente do investimento e passe a aumentar este último, enquanto reduz a relação gasto corrente-PIB. Dessa forma, ele resolveria o problema do investimento público tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta (da poupança pública).
Estamos muito longe disso. Não apenas porque os economistas liberais, mas também os desenvolvimentistas, têm uma imensa dificuldade em pensar assim.
Para o Brasil voltar a crescer e a realizar o “catching up” é necessário: a - um pequeno superávit em conta-corrente, que evite a entrada líquida de capitais que apreciam o câmbio; b - o equilíbrio fiscal corrente; c - déficit fiscal corrente apenas como política fiscal contracíclica; d - a expansão do investimento público; e e - manter “certos” os cinco preços macroeconômicos. Ou seja: 1 - manter baixo o nível da taxa de juros em torno do qual o Banco Central realiza sua política monetária; 2 - manter competitiva a taxa de câmbio, garantindo às empresas que têm competitividade técnica também competitividade monetária; 3 - manter os salários crescendo com a produtividade combinado com gradual desenvolvimento do estado de bem-estar social; 4 - manter baixa a inflação; e 5 - manter a taxa de lucro em um nível satisfatório, que motive as empresas a investir.
Para realizar uma política econômica nos termos acima definidos é preciso combater duramente a captura do patrimônio público: (1) por rentistas e financistas, que dele se apropriam sob a forma de juros e de privatizações de monopólios públicos; (2) por servidores públicos, que fazem o mesmo sob a forma de salários e aposentadorias que não correspondem ao trabalho realizado; e (3) por empresas e outras entidades associativas sob a forma de subsídios injustificáveis.
As reformas e as políticas que acabo de brevemente listar requerem um Estado capaz e desenvolvimentista. E eleitores, políticos, cientistas, técnicos e líderes associativos competentes e dotados de espírito público que ponham em segundo plano as suas ideologias.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira,p emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)
Luiz Carlos Bresser-Pereira: Qual modelo de governo?
Não é possível unir neoliberais e populistas de direita
É muito cedo para uma interpretação segura do que será o governo Bolsonaro, mas seus primeiros dias no posto, em especial com as questões da redução da idade mínima para a aposentadoria e da extensão das novas privatizações (rejeitadas pela população, segundo o Datafolha), confirmam minhas dúvidas. Que talvez possam ser mais bem entendidas se considerarmos as possíveis formas de governo.
No Brasil as alternativas são ou governos neoliberais, como foram os governos Temer, Cardoso e Collor, ou governos desenvolvimentistas, que defendem uma intervenção moderada do Estado na economia e o nacionalismo econômico, como foram os governos populistas de centro-esquerda do PT.
Existe, ainda, a possibilidade de os governos desenvolvimentistas serem populistas de direita, como é o governo Trump, ou novo-desenvolvimentistas, que, se forem de centro-direita, têm como referência os países do leste da Ásia; se de centro-esquerda, os países europeus democráticos e sociais do pós-guerra.
Em princípio não podemos ter governos ao mesmo tempo neoliberais e populistas de direita, como propôs Bolsonaro na campanha presidencial. Os neoliberais são populistas cambiais, porque defendem "crescimento com poupança externa", que envolve déficits em conta-corrente elevados e uma taxa de câmbio apreciada, mas não são populistas completos porque não praticam o populismo fiscal --uma vez que esperam resolver todos os problemas de desajuste macroeconômico apenas com ajuste fiscal.
Existe uma contradição entre o neoliberalismo e o populismo fiscal. O populista busca manter sua popularidade gastando; o neoliberal, além de acreditar que o mercado coordene de maneira ótima toda a economia, é conservador; defende os interesses dos ricos.
Ele quer resolver todo o desajuste macroeconômico, inclusive o cambial, apenas com ajuste fiscal. Defende, portanto, a austeridade, que não é apenas a defesa da responsabilidade fiscal. É combinar um forte ajuste fiscal, que inclui o corte dos investimentos públicos, com a recusa a realizar depreciação cambial.
Assim, a recuperação da competitividade do país se faz por meio do desemprego e da diminuição dos salários reais, via ajuste "interno", preservando-se os rendimentos dos rentistas (juros, dividendos, e aluguéis).
O único governo que foi estritamente neoliberal no Brasil foi o de Temer. Este nunca foi um neoliberal, mas conseguiu derrubar Dilma Rousseff e ocupar seu posto graças ao apoio dos neoliberais. No governo, fez aprovar um absurdo teto fiscal que congelou o gasto per capita do governo, uma reforma trabalhista que tirou direitos dos trabalhadores e enfraqueceu os sindicatos. Como se a causa da semiestagnação da economia brasileira desde 1990 fossem salários diretos e indiretos elevados, em vez de juros altos e câmbio apreciado no longo prazo.
O neoliberalismo de Temer dificultou a recuperação da economia brasileira, aprofundou a desigualdade e manteve sua popularidade muito baixa. Popularidade que não era importante para ele, já que não fora eleito nem espera ser no futuro.
O caso de Bolsonaro é diferente. O apoio popular é seu grande trunfo, muito mais importante do que o apoio do neoliberalismo financeiro-rentista e dos interesses estrangeiros. Mas não poderá ignorar os neoliberais, porque eles continuam hegemônicos na alta classe média, que é formadora de opinião.
Essa classe média tradicional tende a ser conservadora e a se submeter à hegemonia das elites neoliberais internacionais. Mas a hegemonia neoliberal está em plena crise, como vemos nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Itália. Por outro lado, o êxito do novo desenvolvimentismo no leste da Ásia é evidente.
Por enquanto, a alternativa novo-desenvolvimentista não está aberta para o Brasil. Temos apenas o neoliberalismo, que fracassa em toda parte; o populismo de centro-esquerda, que fracassou no Brasil; e o populismo de direita, que hoje ameaça os brasileiros. Não seria possível um novo-desenvolvimentismo de centro-direita, como no leste da Ásia?
Sim, mas para isso é preciso encontrar os defensores desse modelo de governo e levá-los a estabelecer acordos com os novo-desenvolvimentistas de centro-esquerda, cujo modelo é a social-democracia europeia.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)
Luiz Carlos Bresser-Pereira: Um grande jornal em tempos difíceis
Folha dá grande contribuição à democracia
É nos momentos de crise como aquele em que nós vivemos hoje que esta Folha mostra o grande jornal que é. Conforme disse Rogério Cezar de Cerqueira Leite ("A escolha", 22/10), o Brasil está ameaçado pela barbárie, e a Folha sabe disso.
Seguiu sua norma de não tomar partido nas eleições, mas deixou seus jornalistas e colunistas livres para informar e afirmar. Embora critique o PT e os demais partidos políticos envolvidos na operação Lava Jato, rejeitou o ódio que ameaça a democracia brasileira e vem dando uma cobertura exemplar às eleições.
O furo de Patrícia Campos Mello mostrou como a campanha de Bolsonaro estava usando fraudulentamente empresas para enviar, via WhatsApp, milhões de mensagens falsas contra o PT. Caso ele seja eleito no próximo domingo, este é um motivo mais que suficiente para que a Justiça casse o seu mandato.
O follow-up que o jornal está fazendo dessa primeira notícia é grande jornalismo.
Os artigos de Janio de Freitas, Clóvis Rossi, Roberto Dias, André Singer, Elio Gaspari, Celso Rocha de Barros, Fernando Limongi, Antonio Prata, Cristovão Tezza, Tati Bernardi e dos intelectuais que publicam na página A3 e na Ilustríssima são um respiro em meio ao sufoco do pensamento único dos "homens de bem".
Mas terá o Judiciário autonomia ou coragem para cassar Bolsonaro? As pessoas a quem faço essa pergunta geralmente respondem que apenas se houver um movimento da sociedade muito forte exigindo sua condenação. Essas pessoas não reconhecem que as instituições brasileiras hoje são mais fortes do que eram há mais de 50 anos, quando Getúlio Vargas lamentou: "a lei, ora a lei!".
Não somos uma Suíça, mas as leis no Brasil valem, e já foram usadas para tirar o mandato de governadores cujo crime foi muito menor do que o cometido por Bolsonaro e as empresas que financiaram a fraude eleitoral que cometeu.
O ministro Celso de Mello, em uma espécie de resposta aos que duvidam, em entrevista à Folha, reagiu à ameaça do filho do candidato de fechar o STF sem precisar de nada mais que "um cabo e um soldado": "[A fala de Eduardo Bolsonaro] é golpista". É uma chantagem por antecipação, eu acrescentaria.
E o ministro, em sua declaração enviada por escrito ao jornal, colocou no fim de sua frase um ponto de exclamação para deixar clara sua indignação: "Votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição!"
Até o próximo domingo (28), talvez os eleitores brasileiros caiam em si e se recusem a eleger Jair Bolsonaro. Isso é possível porque a insanidade de um povo tem limites.
Mas, mesmo que isso não aconteça, nada impedirá o Judiciário de cassar seu mandato em razão da comprovação da fraude representada pelas fake news e pelo uso de empresas para distribuí-las em massa.
As duas coisas são um atentado à moral e ferem a letra da Constituição. Neste final de campanha eleitoral, quando a indignação dos cidadãos é crescente, a Folha, com seu jornalismo isento e profissional, vem dando uma grande contribuição à democracia brasileira, ao mesmo tempo em que homenageia seus criadores e meus velhos amigos, Octavio Frias de Oliveira e Otavio Frias Filho.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)