Luiz Carlos Azedo

Luiz Carlos Azedo: Muitas tensões à vista

O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso foram amortecedores dos conflitos gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do Planalto

O ano de 2021 começa com sinais fortes de que será marcado por muitas tensões políticas e poucas entregas do governo Jair Bolsonaro. Dois episódios apontam nessa direção: um é a guerra das vacinas, na qual o governo federal, por meio de medida provisória, tentou requisitar vacinas, seringas e agulhas já adquiridas pelos estados para viabilizar a campanha nacional de vacinação; o outro, o jogo bruto do Palácio do Planalto para eleger os presidentes da Câmara e do Senado, com apoio ostensivo, a base de liberação de verbas e loteamento de cargos, ao deputado Arthur Lira (PP-AL), e ao senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), respectivamente. Vamos por partes:

A medida provisória que pongava vacinas, seringas e agulhas dos estados foi uma saída do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para resolver um problema criado por sua própria equipe: a não-aquisição dos insumos básicos para a campanha nacional da vacinação em tempo hábil e a aposta numa única vacina, a de Oxford, que será produzida pela Fiocruz. São tarefas que as equipes do Ministério da Saúde, em todos os governos, e todos os ministros que o antecederam, tiravam de letra, porque havia expertise de gestão no setor para vacinar até 10 milhões de pessoas por dia. Essas equipes foram desmanteladas e substituídas por militares arrogantes e inexperientes, a começar pelo secretário-executivo da pasta, aquele que anda com uma faca ensangüentada na lapela, o broche de ex-integrante de unidade de operações especiais do Exército.

O papel de Robin Hood ensaiado pelo general Pazuello — tirar dos estados com vacinas para dar aos sem vacinas — foi frustrado por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, que proibiu a requisição das vacinas, seringas e agulhas já adquiridas por alguns governos estaduais e prefeituras, entre os quais o de São Paulo. Por ironia, a vacina produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com os chineses, a CoronaVac, que o presidente Jair Bolsonaro tentou desacreditar, acabou sendo comprada pelo Ministério da Saúde. São 100 milhões de doses que salvarão o governo federal do vexame de não ter como começar a vacinar imediatamente a população.

O episódio promete ter um final feliz, mas merece uma reflexão mais profunda sobre a natureza do governo Bolsonaro e a relação que pretende manter com os demais entes federados, a imprensa e a sociedade. Primeiro, adota os métodos da caserna em atividades civis, o que não tem chance de dar certo. Segundo, não compreende a natureza democrática do Estado brasileiro, regido pela Constituição de 1988, que é federativo e ampliado, ou seja, garante a independência dos demais poderes, a autonomia de estados e municípios, os direitos dos cidadãos e presta contas aos órgãos de controle e à sociedade. O Ministério da Saúde, muito mais do que o vértice, é o centro do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem uma gestão compartilhada horizontalmente com os demais entes federados e outros órgãos e autarquias, e não uma cadeia de comando vertical e militarizada, ou seja, trabalha na base da coordenação e cooperação. O ministro da Saúde precisa fazer a sua parte e liderar; se achar que manda em tudo, vira rainha da Inglaterra.

Congresso
Em maior ou menor grau, esse tipo de conflito se manifesta em todas as áreas e de todas as formas — inclusive nas Forças Armadas —, e tende a aumentar no decorrer desse ano, em razão das crises sanitária e econômica, além da generalizada baixa performance administrativa. Até agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso têm funcionado como amortecedores dos conflitos gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do Planalto. No ano passado, o Supremo foi fundamental para barrar os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro; o Congresso foi decisivo para aprovação da reforma da Previdência, sem a qual o governo já teria se inviabilizado, e para as medidas emergenciais adotadas durante a pandemia, entre as quais o auxílio emergencial, do qual o presidente Bolsonaro foi o grande beneficiário político.

Entretanto, o Congresso também foi uma barreira à agenda regressiva nos costumes e às medidas que atropelavam ou abduziam prerrogativas de estados e municípios, ampliando a centralização administrativa, política e financeira da vida nacional por parte da União. Esse é o centro do embate em curso nas disputas pelo comando da Câmara e do Senado. No primeiro caso, o líder do PP, Arthur Lira (AL), apoiado abertamente pelo Palácio do Planalto, foi o grande artífice da reestruturação da base parlamentar do governo, qualificando-se como aliado principal de Bolsonaro por ter reunido votos suficientes para barrar qualquer proposta de impeachment do presidente da República.

Sua eleição pode garantir ao presidente Bolsonaro, com apoio do chamado Centrão, passar da defensiva à ofensiva, implementando propostas que visam aumentar o poder do Executivo em relação aos demais poderes, estados e municípios, além de restringir direitos das minorias, razão da unidade que se formou entre as forças de oposição — PT, PDT, PSB e Rede — e o bloco articulado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) — MDB, DEM, PSDB, CIDADANIA, PV e PSL —, para eleger o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e garantir a independência da Câmara.

É uma disputa dura, que pode ser levada para o segundo turno devido a existência das candidaturas avulsas do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) e do Capitão Augusto (PL-SP), que trafegam no baixo clero e na antiga base ideológica de Bolsonaro, respectivamente. No Senado, a situação é esquizofrênica: Bolsonaro desprezou os líderes do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), para apoiar o candidato de Davi Alcolumbre, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que sempre dialogou com esquerda mineira. Com isso, porém, pode ter catapultado a candidatura do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), também com amplo trânsito na oposição.

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Luiz Carlos Azedo: O normal e o patológico

O Brasil já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Por ora, objetivamente, nem o ministro da Saúde nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, numa longa entrevista coletiva de sua equipe — na qual falou muito e foi embora sem responder perguntas —, anunciou a intenção de compra de 100 milhões de doses da vacina CoronaVac, de origem chinesa, produzida pelo Instituto Butantan, do governo de São Paulo, com o propósito de iniciar a vacinação dos grupos de risco, primeiramente, o pessoal da área de saúde. Aproveitou a ocasião para criticar duramente a imprensa, acusando a mídia de não se ater aos fatos e fazer interpretações fantasiosas sobre a atuação do governo e a sua própria no combate à pandemia.

Ao cobrar objetividade da imprensa, Pazuello tangenciou um universo que, talvez, tenha estudado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, por onde passam oficiais de alta patente: a sociologia. É uma disciplina desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao qual, diga-se de passagem, se aplicariam com perfeição as críticas que fez à interpretação dos fatos relacionados à pandemia por parte dos jornalistas. Émile Durkheim, o pai da sociologia moderna, foi o primeiro a defender a objetividade dos fatos sociais, ou seja, sua externalidade em relação ao observador, como pilar metodológico de estudo das sociedades.

A grande sacada de Durkheim foi distinguir o fato social normal — aqueles que decorrem do desenvolvimento da sociedade dentro de uma norma comum, um padrão que visa o aprimoramento dos indivíduos e a manutenção da coesão e da vida em sociedade — do patológico. O fato social normal observa a ordem institucional, a vida individual mantém em funcionamento os laços solidários que unem os indivíduos de um grupo. O fato social patológico desenvolve-se fora da norma, como uma doença. Ele é perigoso, e quando atinge uma dimensão maior, pode afetar negativamente a sociedade.

Quando uma sociedade é tomada pela criminalidade e pela violência, como o Rio de Janeiro, ou regiões de periferia de outras cidades, como o Sol Nascente, aqui no Distrito Federal, é possível dizer que há um fato social patológico, que foge da normalidade esperada por uma sociedade. Durkheim partiu do pressuposto de que as sociedades apenas se mantêm coesas quando, de alguma forma, compartilham sentimentos e crenças comuns, mas, também, compreendeu que os povos não são, necessariamente, superiores uns aos outros, apenas são diferentes em sua estrutura, seus valores, seus conhecimentos, sua forma organizacional.

Vacinação

Em razão disso, estabeleceu alguns pressupostos: (1) os fatos sociais devem ser tratados como coisas; (2) a análise dos fatos sociais exige reflexão prévia e fuga de ideias preconcebidas; (3) o conjunto de crenças e sentimentos coletivos são a base da coesão da sociedade; (4) a própria sociedade cria mecanismos de coerção internos que fazem com que os indivíduos aceitem, de uma forma ou de outra, as regras estabelecidas; (5) a explicação dos fatos sociais deve ser buscada na sociedade e não nos indivíduos. Os estados psíquicos, na verdade, são consequências e não causas dos fenômenos sociais, daí serem objeto de outras ciências, como a antropologia, nos casos coletivos, ou a psicologia e a psiquiatria, nos casos individuais. Loucos no poder, como Nero, Hitler e — por que não? —, Donald Trump, porém, são um problema político.

Pazuello prestou contas das negociações para compra de vacinas, seringas e agulhas, defendendo-se da acusação de atraso nas aquisições. Estariam assegurados 2 milhões de doses de vacinas da AstraZeneca importadas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); 100,4 milhões de doses da Fiocruz/AstraZeneca até julho (produção nacional com ingrediente farmacêutivo ativo (IFA) importado; 110 milhões da Fiocruz/AstraZeneca (produção integral nacional) de agosto a dezembro; 42,5 milhões (provavelmente da AstraZeneca) a serem adquiridas por meio do mecanismo internacional Covax/Facility; e 100 milhões de doses do Instituto Butantan. No total, afirmou que o Brasil tem assegurados 354 milhões de doses de vacinas para 2021, mas não disse quando começa a vacinação em massa da população.

“Na hipótese média, estaríamos do dia 20 de janeiro ao dia 10 de fevereiro. Contamos aí com as vacinas produzidas no Brasil, tanto no Butantan quanto na Fiocruz. E, na hipótese mais alongada, a partir do dia 10 de fevereiro até o começo de março, que seria caso os registros e produção tenham quaisquer percalços”, disse Pazuello. Jornalistas não são sociólogos, mas foram treinados para distinguir um tigre de um elefante, mesmo sem saber sua anatomia. O problema de Pazuello — vamos deixar o presidente Jair Bolsonaro de lado — foi tratar como “coisa” normal a escalada da pandemia no Brasil, que já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Trata-se de uma patologia. Por ora, objetivamente, nem o ministro nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação.

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Luiz Carlos Azedo: A nova secessão americana

Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos

Exibidas em tempo real pelas redes de tevê, as cenas da invasão do Capitólio por partidários do presidente Donald Trump, que os incitou, ao alegar fraude nas eleições presidenciais e contestar a vitória do democrata Joe Biden — que seria confirmado na sessão do Congresso —, somente ainda não superaram a deterioração da política norte-americana nos anos 1960 e 1970 porque o presidente eleito continua vivo. Entretanto, ninguém pode descartar a possibilidade de Trump ter tramado um golpe de Estado, por mais inverossímil que isso possa parecer.

Na política norte-americana, é sinuosa a linha divisória entre ficção e realidade. Na trilogia Underwold USA (Submundo USA), o escritor noir James Elrroy, formada pelos romances Tabloide americano (1995), 6 mil em espécie (2001) e Sangue Errante (2011), todos publicados no Brasil pela Record, desnuda os bastidores da política da época. Um time de canalhas conta a história norte-americana, num épico com sinal trocado, em meio aos assassinatos de John Fitzgerald Kennedy, Robert Kennedy e Martin Luther King e o suspeito suicídio de Marilyn Monroe. O sonho americano é visto sob a mira de fuzis e pistolas de ex-policiais convertidos ao crime, membros da Ku Klux Klan, mafiosos e políticos corruptos. A trama se passa no período de crescente envolvimento na Guerra do Vietnã e maior turbulência dos movimentos da esquerda norte-americana, culminando com o impeachment de Richard Nixon.

Os heróis da trilogia são racistas e reacionários, todos brancos: o mafioso Wayne Tedrow Jr., capanga do empresário Howard Hughes; Dwight Holly, agente secreto da confiança de John Edgar Hoover, chefe do FBI; e o ex-policial Don Crutchfield, que presta serviços de detetive a qualquer causa desonrosa. Elrroy não separa ficção de realidade, porém, sua versão para a morte de Kennedy é bem melhor do que a de Oliver Stone, em seu filme JFK. Quem matou Kennedy? Para Ellroy, há um submundo povoado por mafiosos, agentes do FBI, dançarinas de strip-tease, fanáticos religiosos, direitistas raivosos e vigaristas que tramou o crime.

Em entrevista ao Los Angeles Times, disse: “A conspiração não é o coração do meu romance; o centro da história é uma espécie de infraestrutura humana dos grandes eventos públicos, especialmente nesses anos tumultuados da história norte-americana”. Sua trilogia é o fio da meada para entender de onde surgiu uma figura tão abjeta como a de Donald Trump e essa militância armada, truculenta e fanatizada, que, ontem, invadiu o Congresso norte-americano para impedir a confirmação de Joe Biden como legítimo presidente dos Estados Unidos. Foi tudo orquestrado e organizado pelas redes sociais, deixando perplexos não somente os democratas, mas, até mesmo, os parlamentares republicanos.

Maioria democrata
Mesmo depois de instado a se posicionar e pedir a saída dos seus militantes do Capitólio, pelo presidente Joe Biden, em pronunciamento, Trump manteve a narrativa de que ganhara a eleição e que seu adversário seria um presidente ilegítimo, porque as eleições foram fraudadas. Biden venceu no colégio eleitoral por ampla margem — 306 votos a 232 —, mas esse resultado precisa ser chancelado pelo Congresso. Republicanos aliados de Trump promoviam uma espécie de chicana na sessão, questionando o resultado das urnas, quando houve a invasão. O fato de ter questionado a postura legalista de seu vice, Mike Pence, que presidia a sessão, sinaliza que Trump teria a intenção de promover um golpe de estado.

Ontem, acompanhando os acontecimentos, o analista político Creomar de Souza, especialista em política norte-americana, destacou que não existe uma palavra em inglês para golpe de Estado, expressão cuja origem é francesa: coup d’état. Talvez porque não exista esse precedente na democracia norte-americana. Mas existe a palavra secession, que sintetiza a Guerra Civil Americana (1861-1865), na qual os estados sulistas se confederaram contra o presidente eleito Abraham Lincoln, liderados pela Carolina do Sul, antes mesmo que ele tomasse posse. A secessão da Carolina do Sul, em 1860, foi acompanhada pela adesão, entre janeiro e junho de 1861, de outros estados sulistas: Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas, Luisiana, Virgínia, Arkansas, Carolina do Norte e Tennesse.

Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos. É uma divisão muito profunda, da qual o republicano procura se aproveitar. O que não estava nas suas previsões, porém, é o inédito resultado das eleições para o Senado na Geórgia, que garantiu duas cadeiras para o Partido Democrata, uma delas ocupada por um reverendo negro; com isso, garantiu-se a maioria para Biden nas duas casas legislativas, uma vez que os democratas já controlavam a Câmara. Esse resultado inviabilizou qualquer possibilidade de Trump bloquear a confirmação de Biden no Senado e provocar uma crise institucional mais grave.

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Luiz Carlos Azedo: Perdido na pandemia

Bolsonaro não sabe o que fazer em meio à pandemia do novo coronavírus, pois nem crise sanitária nem recessão se resolvem com negacionismo, mas com ações governamentais

“O Brasil está quebrado. Não consigo fazer nada” — disse, com todas as letras, o presidente Jair Bolsonaro, ontem, queixando-se da situação em que se encontra o governo federal. Para não variar, culpou a imprensa e se fez de vítima, mas o estrago está feito. Além de terem virado piada pronta nas redes sociais e motivo de chacota nos meios políticos, suas palavras são um desastre para a economia. O impacto de uma afirmação dessa natureza junto aos agentes econômicos e investidores estrangeiros pode ser avassalador.

Poderiam ser ditas por qualquer empreendedor em dificuldades financeiras ou trabalhador desempregado, porém, na boca do presidente da República, essas afirmações funcionam como uma mensagem de desesperança. Revelam que Bolsonaro não sabe o que fazer em meio à pandemia do novo coronavírus, pois nem crise sanitária nem recessão se resolvem com negacionismo, mas com ações governamentais. Não chega a ser uma novidade, porque o presidente da República sempre disse que não entende de economia e que, nesse métier, quem daria as cartas seria o ministro da Economia.

Entretanto, o Ministério da Economia passou recibo de que não tem dinheiro em caixa. O governo brasileiro não honrou o pagamento da penúltima parcela de US$ 292 milhões para o aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a instituição financeira criada pelos cinco países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O prazo para a quitação da parcela terminou no último dia 3. Agora, o Brasil está inadimplente com o banco que ajudou a fundar e é um dos acionistas.

Por incompetência do Palácio do Planalto, o dinheiro para o pagamento da parcela da dívida com o Banco do Brics e outros compromissos com os bancos multilaterais ficou fora do projeto de lei que foi votado no fim do ano para remanejar despesas do Orçamento de 2020 e atender a demandas de obras de interesse do governo e emendas de parlamentares aliados. É um vexame: ficamos inadimplentes justamente no ano em que o brasileiro Marcos Troyjo assumiu a presidência da instituição por indicação do governo Bolsonaro, com US$ 3,5 bilhões em financiamentos aprovados para o Brasil, em 2020.

Fora de foco
No fim do ano, o argumento para votar correndo o texto de remanejamento das verbas do Orçamento do ano passado, na frente de votação de outros projetos importante — como o aumento do Bolsa Família ou a revisão da tabela do Imposto de Renda — foi o de que o governo precisava honrar os seus compromissos com organismos multilaterais e não podia ficar com a imagem arranhada na comunidade internacional.

Não à toa, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), subiu nas tamancas ontem. O Ministério da Fazenda tentou responsabilizar o Congresso, mas foi a própria base do governo que manobrou para que não houvesse convocação extraordinária durante o recesso parlamentar. A prioridade do Palácio do Planalto é a disputa pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado e, para os candidatos governistas, reunir o Congresso daria palanque para a oposição.

Mesmo assim, Bolsonaro se faz de vítima: “Queria mexer na tabela de Imposto de Renda. Esse vírus potencializado pela mídia que nós temos, essa mídia sem caráter que nós temos. É um trabalho incessante de tentar desgastar para retirar a gente daqui para voltar alguém para atender os interesses escusos da mídia”, disse. Assim, o presidente passou recibo de que não está fazendo as entregas que deveria, depois de dois anos de mandato.

Talvez por isso tenha sido organizada a sua “visita técnica” ao Ministério da Saúde, que durou quase duas horas. Segundo o ministro Eduardo Pazuello, Bolsonaro se inteirou das providências que estão sendo tomadas para comprar vacinas, agulhas e seringas para a campanha de vacinação contra a covid-19. O presidente da República saiu da reunião sem dar entrevistas. Moral da história: continuamos sem saber quando começará a campanha de vacinação.

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Luiz Carlos Azedo: O ano que não começou

No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó

2021 é uma espécie de ano que ainda não começou, perdoem-me o trocadilho com o título do livro de Zuenir Ventura, 1968: o ano que não terminou. Talvez, o sinal mais emblemático de que ainda estamos vivendo no ano passado sejam os passeios do presidente Jair Bolsonaro em Guarujá (SP), nos quais voltou a provocar aglomerações e circular sem máscaras com assessores e seguranças da Presidência. Mais déjà-vu, impossível. 2020 foi um ano perdido, com 196 mil mortos pela covid-19, e parece que não quer acabar.

Para a maioria da população, o ano somente vai começar quando a vacina chegar. O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e suas declarações sobre a real necessidade de as pessoas se vacinarem são uma cortina de fumaça para a incompetência do seu governo no enfrentamento da crise sanitária. O aumento exponencial do número de casos no mês de dezembro é um recado claro de que é impossível restabelecer plenamente as atividades econômicas sem a imunização em massa da população. A chegada do vírus mutante da Inglaterra é uma preocupação a mais, pela velocidade de sua propagação.

O tempo, porém, não corre igual para todo mundo. Por exemplo, para alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello —, que resolveram voltar a trabalhar em janeiro, em pleno recesso, o ano começou mais cedo. No Congresso, o ano só começará com a eleição das Mesas da Câmara e do Senado.

Pega fogo a disputa entre o líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Bolsonaro, e Baleia Rossi (MDB-SP), o candidato de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à sua sucessão no comando da Câmara, que, ontem, recebeu o apoio formal da maioria da bancada do PT. Lira ainda é o favorito, mas ninguém ganha eleição de véspera. No Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenta emplacar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) na Presidência, mas esbarra nas candidaturas do MDB, que tem quatro postulantes cabalando votos: Simone Tebet (MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ); Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; e Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso. Quem conseguir mais apoio será o candidato de toda a bancada da legenda, pactuaram.

Entregas

No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó. Além da vacina, não entregou a reforma tributária, as privatizações, a reforma administrativa, a retomada do crescimento etc. Manteve sua popularidade em plena pandemia muito mais em razão do auxílio emergencial do que das suas realizações, à custa da expansão exponencial do deficit fiscal. Como tem a pretensão de se reeleger, agora começará uma corrida contra o relógio, porque o tempo que lhe resta de mandato cada vez será o recurso mais escasso no governo.

No calendário das entregas, a vacina é a principal demanda da população. Seu ano de entregas somente vai começar quando as pessoas forem imunizadas. Mesmo assim, uma parcela enorme da população continuará desempregada, porque a economia somente deve entrar em recuperação no segundo semestre. Sem auxílio emergencial, a vida não será fácil para quase 68 milhões de brasileiros que receberam o benefício no ano passado. Muitos terão que se reinventar, porque as atividades econômicas estão passando por muitas transformações.

Com a pandemia, o trabalho remoto e a concentração de capital avançaram bastante. A maioria das empresas que sobreviveram mudou suas operações, em maior ou menor grau, impactando outras atividades. Por exemplo, o mercado imobiliário e as companhias de aviação sofreram impactos irreversíveis a curto prazo. A concentração de capital também é visível a olho nu, basta entrar num shopping center e ver as lojas que fecharam e as que estão sendo abertas. As empresas de logística também se beneficiaram tremendamente do comércio eletrônico.

Como em todo ano-novo, porém, somos passageiros da esperança. Toda crise é sinônimo de oportunidades. Elas aparecem e é preciso agarrá-las com as duas mãos. Ciência e tecnologia, ao longo da história, sempre abriram novos horizontes para a humanidade. Não será diferente agora. Que 2021 venha logo para todos.

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Luiz Carlos Azedo: O ano mais longo

São inovações que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica o sucesso das novas vacinas é o maciço investimento em pesquisas

Certo mesmo é que 2020 vai entrar 2021 adentro, por causa da pandemia do novo coronavírus, cuja segunda onda é o fantasma que ronda a Europa e os Estados Unidos às vésperas do ano-novo. Aqui, no Brasil, será um pouco pior, porque a vacina contra covid-19 está muito atrasada e, por isso mesmo, os efeitos predatórios das atitudes e decisões do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia serão também mais duradouros. Como já disse antes, quem deveria liderar a luta contra a doença sabota os esforços de prefeitos, governadores, dos sanitaristas e infectologistas, socorristas e enfermeiros, intensivistas e fisioterapeutas para controlar a doença e salvar vidas.

O próprio Ministério da Saúde é sabotado, sob comando de um general bem mandado, nomeado para o cargo por ser especialista em logística de transportes de tropas, armas e suprimentos, mas que se revelou o ministro mais incompetente da história da saúde pública no Brasil: Eduardo Pazuello. Provavelmente, ainda será condecorado e promovido a general de quatro estrelas por maus serviços prestados. Vivemos tempos distópicos.

Como não lembrar do jovem rapper Emicida, que acaba de lançar um documentário excepcional na Netflix: AmarElo, é tudo pra ontem. “Talvez seja bom partir do final/ Afinal, é um ano todo só de sexta-feira treze/ ‘Cê também podia me ligar de vez em quando/ Eu ando igual lagarta, triste, sem poder sair/ Aqui o mantra que nos traz o centro/ Enquanto lavo um banheiro, uma louça, querendo lavar a alma/ Na calma da semente que germina/ Que eu preciso olhar minhas menina”. O historiador Daniel Aarão Reis, em artigo publicado no jornal O Globo (26/12), fez uma belíssima crítica sobre o filme, que se passa em torno de uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, lotado por pessoas da periferia paulista, que nunca haviam entrado naquele templo da nossa cultura.

“A construção do futuro melhor dependerá da capacidade de articulação, vontade determinada e raiva no coração. Que é como cantam, em trio, Majur, Pablo Vittar e Emicida, os belos versos de Belchior: ‘Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro’. Nesta sinistra pandemia, a ideia de que viveremos livres, corajosos e solidários foi o melhor presente de Natal que poderíamos ter. Obrigado, Emicida”, escreve o professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).

A pandemia é o espectro por trás da letra de É tudo pra ontem: “A folha amarela, igual comida, envelhece”/ É a vida, acontece com pessoa e documento/ É tão triste ter que vir, coisa ruim pra nos unir/ E nem assim agora, mano, vamo’ embora a tempo/ Viver é partir, voltar e repartir (é isso)/ Partir, voltar e repartir (é tudo pra ontem)/ Viver é partir, voltar e repartir/ Partir, voltar e repartir”. Ninguém tem dúvida de que a vacina era para ontem, a vacinação já começou em mais de 40 países, inclusive na vizinha Argentina, que comprou a vacina russa, Sputnik V, feita a partir de uma tecnologia nova, que utiliza adenovírus — vírus causadores de resfriado comum. O governo do Paraná também comprou essa vacina.

As vacinas

A primeira e a segunda dose da Sputnik V utilizam adenovírus diferentes, algo exclusivo do Instituto Gamaleya. Por meio de engenharia genética, são removidos os genes de reprodução viral dos adenovírus, ou seja, ele não vai causar resfriado, será utilizado apenas como “meio de transporte”. Dentro desses adenovírus são colocados genes codificando a proteína S do coronavírus (SARS-CoV- 2). Estas proteínas são as que ficam na coroa do vírus causador da covid-19 e se ligam aos receptores no corpo humano. Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano. Após 21 dias, ocorre a segunda vacinação, com outro tipo de adenovírus, mas o mesmo material genético do SarsCoV-2. Então, segundo os dados russos, ocorre uma imunidade ainda mais forte e duradoura.

O método é semelhante ao usado pela Universidade de Oxford — a vacina na qual o Ministério da Saúde apostou todas as fichas e que será produzida pela Fiocruz. As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, “aplicável a quaisquer vacinas futuras”, segundo o geneticista Richard Dawkins: “Sequencie um vírus e digite uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado. mRNA faz o resto para você. Funciona com qualquer vírus”, explica no Twitter.

São inovações desse tipo que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica a velocidade e sucesso da produção dessas vacinas é o maciço investimento feito em pesquisas. Sem as vacinas, a economia mundial entrará em colapso. Entretanto, desculpe-me o trocadilho, a manipulação genética é dose pra leão para os negativistas, que não confiam nem nas vacinas que utilizam o método mais tradicional: o vírus atenuado da própria doença, como acontece com a vacina chinesa CoronaVac, que já está em produção no Instituto Butantan. Eppur se muove, diria Galileu Galilei.

Feliz ano-novo, em 2021 estarei de volta.

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Luiz Carlos Azedo: Espinhos do recesso

Esquentam a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, flexibilizada pelo do STF ministro Kassio Nunes Marques

No jargão jornalístico, flores do recesso são os assuntos que tomam conta do noticiário político quando o Congresso e o Judiciário estão sem funcionar, geralmente alimentados pelo Executivo, pelos candidatos ao comando da Câmara e do Senado e pelos ministros de plantão no Judiciário. São tão frondosas como as flores da primavera, porém, menos decisivas do ponto de vista do processo político. Entretanto, nesses tempos bicudos de pandemia do novo coronavírus, com mais de 190 mil mortos e sem data marcada para o começo da vacinação, estamos diante é de flores com espinhos.

As principais são a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados, que a oposição encara como uma espécie de batalha de Stalingrado, para conter o avanço de Jair Bolsonaro rumo à reeleição à Presidência da República, e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, cuja flexibilização, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques, o novo integrante da Corte indicado pelo presidente, supostamente possibilitaria — entre outras — a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto em 2022. Esse seria o adversário que Bolsonaro gostaria de ter no segundo turno, para uma espécie de vitória de Waterloo particular. Essas duas disputas, durante o recesso, podem nos trazer alguma emoção política, ao lado da polêmica sobre as vacinas contra a covid-19.

Há momentos que catalisam as forças da história e mudam o seu rumo. A Batalha de Stalingrado, por exemplo, durou um pouco mais de seis meses, do fim de julho de 1942 até 2 de fevereiro de 1943, tempo suficiente para mudar os rumos da guerra, ao preço de 1,5 milhão de mortos. Teve quatro fases distintas: a avassaladora ofensiva alemã; a obstinada reação russa, ao norte e ao sul, que cercou as tropas alemãs; a fracassada tentativa de Hitler de socorrer seu exército; e a rendição do que restou dele, faminto, sem combustível nem munição.

Mesmo com a vantagem numérica, os alemães não conseguiram vencer a resistência do Exército Vermelho, em razão do conhecimento do terreno, das condições climáticas, da experiência em batalhas de rua, das táticas antitanque, da artilharia de barragem e da capacidade logística. O exército alemão rendeu-se em 2 de fevereiro, com cerca de 91 mil soldados, entre eles 22 generais. Entretanto, 11 mil alemães decidiram lutar até a morte, dois mil foram mortos, e os demais foram levados presos. O resto da história todos conhecem.

Napoleão
Outra batalha decisiva foi a de Waterloo, na Bélgica, que durou menos de 24 horas, envolvendo forças francesas, britânicas e prussianas. Iniciada a 18 de junho de 1814, a guerra colocou, de um lado, Napoleão Bonaparte — que já havia sido derrotado na Rússia — e seu exército de 72 mil homens recrutados às pressas, e de outro, o exército aliado de 68 mil homens comandados pelo britânico Arthur Wellesley, duque de Wellington, composto de unidades britânicas, neerlandesas, belgas e alemãs, reforçado, mais tarde, pela chegada de 45 mil homens do exército prussiano.

Napoleão havia fugido da ilha de Elba a 26 de fevereiro de 1815, em direção ao sul da França, e logo conseguiu apoio popular para fazer frente a Inglaterra, Prússia, Áustria e Rússia, montando um exército com 125 mil homens e 25 mil cavalos. Marchou para a Bélgica, a fim de impedir a coalizão dos exércitos inglês e prussiano. Ao alcançar Charleroi, o exército de Napoleão dividiu-se em dois, com uma parte seguindo em direção a Bruxelas, para encontrar as tropas de Wellington, e outra, comandada pelo próprio Napoleão, em direção a Fleuru, contra o exército prussiano de Gebhard von Blücher. A ideia de Napoleão era derrotar um de cada vez.

Napoleão venceu os prussianos na chamada Batalha de Ligny. Partiu, depois, para Waterloo, onde encontrou os ingleses, em 17 de junho, em solo encharcado, que dificultava o posicionamento dos canhões. Estava certo de que as forças prussianas não se reagrupariam e chegariam a tempo para socorrê- los. Seu erro foi dar a tarefa de perseguir os prussianos em retirada ao marechal Grouchy, “homem medíocre, valente, íntegro, honrado, confiável, um comandante de cavalaria de valor várias vezes comprovado, mas um homem de cavalaria e nada mais”, nas palavras de Stefan Zweig, em Momentos decisivos da humanidade (Record).

Iniciada a batalha, a artilharia inglesa surpreendeu Napoleão, com um novo armamento: granadas. Mesmo assim, os franceses avançaram e deixaram Wellington por um fio. Entretanto, o general prussiano Blücher enganou os franceses. Encarregado de persegui-lo, Grouchy recusou-se a voltar para Waterloo, apesar dos apelos de seu Estado Maior, que tomara conhecimento do início da batalha contra Wellington; para não contrariar as ordens que recebera, continuou em busca das tropas prussianas, supostamente em retirada. Blücher, porém, flanqueou os franceses e chegou em socorro de Wellington; as tropas de Grouchy, o disciplinado marechal, não. A contraordem de Napoleão, pedindo a sua ajuda, chegara tarde demais.

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Luiz Carlos Azedo: Mudar ou ser mudado

Nada será como antes depois de controlada a pandemia — no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado

A segunda onda da pandemia de covid-19, que registra mutação do novo coronavírus — há evidências de que já transborda da Inglaterra para outros países europeus e, provavelmente, chegou ou chegará por aqui — é a face mais visível de uma contradição com a qual teremos que lidar durante muitos anos: a globalização é um fenômeno objetivo e irreversível, mas carece de mecanismos de governança mundial eficazes para neutralizar seus efeitos mais perversos, que aprofundam as desigualdades no mundo.

A pandemia é uma lente de aumento sobre o problema, se levarmos em conta que as transformações na estrutura produtiva do planeta, cujo dinamismo é ditado pelas inovações tecnológicas e os novos conhecimentos, colocaram em xeque as políticas ultraliberais. Revelou que a saúde pública, por exemplo, continua sendo uma prioridade para a economia. Muitos imaginavam, com o advento do não-trabalho e a inutilidade de grandes exércitos industriais de reserva, que políticas universalistas de saúde deixariam de ser necessárias para a reprodução do capital em escala global, assim como a boa formação educacional pública e gratuita, pois supostamente já não se precisaria da mesma abundância de mão de obra saudável e escolarizada disponível para o desenvolvimento.

Quem diria, por exemplo, que o home office se generalizaria em decorrência de um problema de saúde pública e não apenas da existência da tecnologia necessária para a reestruturação da organização do trabalho. Foi mais ou menos o que ocorreu com a telefonia fixa, criada no final do século XIX, mas somente incorporada à vida doméstica após a Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que o smartphone se popularizou num intervalo de tempo muito menor (o iPhone foi criado em 2007). O que aconteceu com a grande indústria mecanizada, na qual a maior parte dos operários foi substituída por robôs, está se dando, agora, nos grandes escritórios e lojas de departamento, por causa da pandemia, numa velocidade maior do que se imaginava, e de forma irreversível.

É nesse contexto que a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, com a derrota do nacionalismo e do negacionismo de Donald Trump, dará um novo impulso aos debates que já estavam em curso nos grandes fóruns internacionais, sobre o problema da governança global e a necessidade de um desenvolvimento mais sustentável, cujo epicentro vinha sendo o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Que ninguém se iluda, nada será como antes depois de controlada a pandemia — o que deve acontecer no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos, com a vacinação em massa —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado, com o 5G e a plena implantação da Internet das Coisas, com ênfase na economia limpa e no combate às desigualdades.

Modernização

Não se espantem com o aumento da frequência com que a sigla ESG (environmental, social and corporate governance) — não confundir com a Escola Superior de Guerra — entrará no glossário do nosso economês. Sustentabilidade, responsabilidade social e governança corporativa formam, agora, uma espécie de Santíssima Trindade para os principais fundos de investimentos e grandes corporações. Estima-se que 45 trilhões estão sendo aplicados em empreendimentos com essas características, ou seja, metade dos investimentos previstos em todo o mundo. Multinacionais como Nestlé, Walmart e Tesco já excluíram de sua lista de fornecedores, por exemplo, os produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O resultado prático já se faz sentir no agronegócio, que vende cada vez menos para a Europa.

No Brasil, os ciclos de modernização sempre foram impulsionados pelo Estado, concentraram renda e descartaram mão de obra dos ciclos anteriores (açúcar, ouro, café, borracha). O que os historiadores chamam de “revolução passiva” resultou na industrialização, na modernização da agricultura e na urbanização acelerada dos país, porém, aprofundou desigualdades regionais e sociais. O ciclo de substituição de importações se esgotou, mas as consequências perversas, que dispensam maiores detalhes, de tão escancaradas estão, perduram. O conceito de “revolução passiva” — mais do que “modernização autoritária” ou “via prussiana” —, valoriza os aspectos políticos desse processo, em boa parte ocorrido durante a ditadura Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1965). Nesse sentido, devemos destacar os governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010), nos quais houve crescimento econômico e redução da pobreza, num ambiente democrático, sem prejuízo das ressalvas à inflação, à focalização dos gastos sociais e à corrupção generalizada, respectivamente.

No Brasil, pesos pesados da economia, nacionais e estrangeiros, já se articulam em defesa da economia sustentável, da boa governança corporativa e da transparência nas relações público-privadas. Saem na frente diante de um novo ciclo da globalização, mas esbarram numa situação em que o governo Bolsonaro realiza uma marcha forçada na direção contrária. De certa forma, a disputa de narrativas que já se estabeleceu na sociedade — em torno de temas como nossa política externa, a Amazônia, a política de saúde pública, a violência urbana etc. — reflete essa contradição. De alguma maneira, o Brasil terá que se reposicionar diante do que está em curso no mundo. Ou o governo muda ou será mudado em 2022.

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Luiz Carlos Azedo: A vacina do Natal

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança

Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em ultima instância, a si próprio.

Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.

A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.

Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.

Eugenia
Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimica- mente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.

Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos não deixaram descendentes. Cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram, pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (…) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”

O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança. Que venham as vacinas contra a covid-19. Feliz Natal!

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Luiz Carlos Azedo: No fio do bigode

Há meses, Lira vem negociando individualmente com as bancadas de oposição; além de verbas e cargos, oferece para cada grupo de interesse uma pauta específica

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou, ontem, o nome do candidato do seu bloco político ao comando da Casa, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), o jovem presidente do maior partido do país e líder de sua bancada federal, com 34 deputados. Rossi conseguiu reverter as resistências da maioria dos deputados do bloco de esquerda, o que levou o deputado Aguinaldo Ribeiro (PB), um dissidente do PP, a desistir de disputar a indicação no grupo de Maia. Formalmente, juntos, os dois blocos somam 282 deputados, número mais do que suficiente para ganhar a disputa com o candidato governista, Arthur Lira (PP-AL), mas isso é apenas uma projeção otimista. A disputa será no corpo a corpo, voto a voto.

É aí que entra a história do bigode. Quando houve a fusão dos antigos esta dos do Rio de Janeiro e Guanabara, em 1975, o brigadeiro Faria Lima, interventor federal, fez um acordo com o ex-governador Chagas Freitas, cacique do MDB da antiga Guanabara, para que fosse possível formar uma maioria que aprovasse a Constituição do novo estado. Para chegar ao acordo, teve que atropelar a líder do governo, deputada Sandra Cavalcanti (Arena), e entregar a relatoria da nova Constituição a um deputado “chaguista”, José Maria Duarte (MDB). Originário do antigo PSP, Chagas era um político populista, dono dos jornais O Dia e A Notícia.

Duarte era amigo do lendário distribuidor de cinema Luiz Severiano Ribeiro, que o chamava para ver os filmes antes da estreia e sugerir a tradução dos títulos, que muitas vezes não tinha nada a ver com o nome original, como em “A morte não manda recado” (The Ballad of Cable Hogue), “Os brutos também amam” (Shane), clássicos do faroeste norte-americano, ou “Django não perdoa…mata” (L’Uomo, L’Orgloglio, La vendetta), o western italiano inspirado na ópera Carmem, de George Bisset. Frasista de primeira, chamava o anteprojeto de Constituição de “boneca” e mantinha segredo absoluto sobre os acordos envolvendo o interventor Faria Lima, Chagas Freitas e o senador Amaral Peixoto (MDB), velho cacique pessedista, que era o líder da oposição no antigo Estado do Rio.

Nessa época, o time de jornalistas que fazia a cobertura da Constituinte da fusão era de primeira linha: Mauricio Dias, Marcelo Pontes, André Luiz Azevedo, Rogério Coelho Neto, Carlos Vinhais e Dácio Malta, entre outros. Mesmo assim, a crise no dispositivo parlamentar do interventor era mantida em sigilo, até que Sandra Cavalcanti resolveu chutar o balde. Nessa época, o antigo Diário de Notícias ainda era o jornal dos professores e dos militares. Graças a isso, fui escolhido por Sandra Cavalcanti para uma entrevista exclusiva, na qual denunciou o acordo e renunciou à liderança, em caráter irrevogável. Foi então que resolvi perguntar ao líder do MDB, Cláudio Moacir, deputado eleito por Macaé, homem ligado a Amaral Peixoto, se a oposição pretendia formar a nova base do governo. Em off, para minha surpresa, respondeu: “Não, nós vamos ficar como bigode: na boca, mas do lado de fora”.

Traições
Esse é o problema de Baleia Rossi. O Palácio do Planalto está jogando muito pesado para eleger Arthur Lira, o principal líder do Centrão, que articulou a nova base governista na Câmara e sempre teve o apoio dos deputados do baixo clero. Tece sua candidatura com a promessa de liberação de verbas e cargos no governo, acenando com uma reforma ministerial que estaria prevista para o começo do próximo ano. Arthur Lira anunciou sua candidatura com apoio dos 135 deputados do Centrão — PL (41), PP (40), PSD (33), Solidariedade (13) e Avante (8). De imediato, recebeu apoio do PL (41), do PTB (11), do Pros (10), do PSC (9) e do Patriota (6), ou seja, teoricamente, de mais 77 deputados. Tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 212 deputados, que avança nos bastidores para seduzir os deputados de oposição.

O grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). O PT, com 54 deputados, lidera a oposição, que soma 124 deputados, com as bancadas do PSB (31), do PDT (28), do PSol (10) e da Rede (1). Esse acordo de bancada precisa ser confirmado por cada deputado, que negocia no fio do bigode; porém, como o voto é secreto, a palavra empenhada não pode ser cobrada depois. Como dizia Tancredo Neves, a vontade de trair é muito grande na cabine de votação.

Ninguém sabe o que vai, de fato, acontecer. Lira vem negociando individualmente há meses, inclusive com as bancadas de oposição, com uma agenda que não pode ser subestimada, porque além de verbas e cargos, oferece pra cada grupo de interesse uma pauta específica. Aos evangélicos, promete levar adiante a agenda dos costumes; aos ruralistas, desmontar a legislação ambiental; aos sindicalistas, a volta do imposto sindical; aos enrolados na Lava-Jato, blindagem contra o Ministério Público Federal (MPF) e a flexibilização da contagem do tempo de ilegibilidade da Lei da Ficha Limpa, na linha da liminar do novo ministro do Supremo Tribunal federal (STF) Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro. Muitos estão comprometidos com Lira.

Em tempo, feliz Natal!

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Luiz Carlos Azedo: Cidade Maravilhosa

E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos)

Refrão: “Cidade maravilhosa,/ Cheia de encantos mil!/ Cidade maravilhosa,/ Coração do meu Brasil! (Bis)”. Primeira parte: “Berço do samba e das lindas can- ções/ Que vivem n’alma da gente,/ És o altar dos nossos corações/ Que cantam alegremente”. Segunda parte: “Jardim florido de amor e saudade,/ Terra que a todos seduz, /Que Deus te cubra de feli- cidade, /Ninho de sonho e de luz”. O velho Sérgio Cabral, pai, foi quem me chamou a atenção para o fato de que o famoso hino carioca Cidade Maravilhosa, de autoria de André Filho, começa como se a orquestra fosse tocar uma sinfonia e logo vira marchinha de carnaval.

Coube ao maranhense Coelho Neto — que hoje empresta o nome a um dos subúrbios cariocas da antiga Central do Brasil —, cunhar a expressão “cidade maravilhosa”, num artigo publicado no jornal A Notícia, em 1908. Mais tarde, em 1928, publicaria um livro de contos com esse título. Era época em que a antiga capital da República fervilhava, em todos os sentidos, aspirando à condição de Paris dos trópicos, ambição criada após a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, no começo do século. O jornalista Ruy Castro relata essa época no livro Metrópole à beira mar (Companhia das Letras).

A marchinha surgiu logo depois, em 1934, mas somente fez sucesso no carnaval do ano seguinte. A primeira parte da música é realmente sinfônica, plagiada de Mimi é una civetta, o terceiro ato da ópera La Bohème, de Puccini. André Filho era amigo de Noel Rosa, com quem divide a autoria do samba “Filosofia”, gravado por Mário Reis, em 1933. A amizade entre ambos, porém, gerou controvérsias sobre a autoria do hino carioca, que alguns atribuem ao poeta de Vila Isabel, como registrou Jacy Pacheco, em Noel Rosa e sua época: “Aqui nos lembramos de composições que ele deu e que vendeu. Que foram divulgadas com outros nomes… dentro da cidade maravilhosa, cheia de encantos mil…” Pode ser pura maldade.

André Filho morou na casa da mãe do músico Oscar Bolão entre o final dos anos 1950 até início dos 1960. Como sofria de problemas psiquiátricos, acabou internado no hospital da Ordem do Carmo. Ali, quando soube, tempos depois, por meio de um repórter do Diário da Noite, que “Cidade maravilhosa” tinha sido reconhecida como marcha oficial da cidade do Rio de Janeiro — por meio da Lei no5, de5 de maio de 1960—, segundo Bolão, enfiou a cabeça dentro do vaso sanitário e, dando descarga, gritava: “Tô rico, tô rico”. Multiinstrumentista (piano, violão, bandolim, violino, banjo, percussão), compositor, cantor e radialista, ficou órfão muito cedo, sendo, por isso, criado pela avó. Começou a estudar música erudita aos 8 anos, com Pascoale Gambardella, e formou-se em ciências e letras no Colégio Salesiano de Niterói, RJ, onde foi colega de Henrique Foréis Domingues, o radialista Almirante.

Sísifo
Cronista esportivo e historiador do samba, o velho Cabral dizia que Cidade Maravilhosa era uma síntese da alma do Rio de Janeiro: “Tudo vira marchinha de carnaval”. E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Intitulada “Bispo no xadrez”, a marchinha é muito cruel: “Crivella, Crivella/ Pode entrar / Já abençoamos a sua cela”, diz o refrão. E segue adiante: “É essa aqui que escolhemos pro senhor/ Fica ao lado da do governador/ Tem um palquinho pra fazer os seus sermões/ Os carcereiros são seus novos guardiões (…)”. É mais uma música de carnaval que vai para o acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), criado por Almirante. A verdadeira história dos cariocas é contada pelo samba e pelas marchinhas de carnaval. Está registrada no acervo do MIS, com cerca de 305 mil documentos, entre discos, partituras, fotos, cartas, textos e vídeos.

Voltando ao prefeito Crivella, havia sérias dúvidas sobre a necessidade de sua prisão, a 10 dias de passar o cargo para o prefeito eleito, Eduardo Paes (DEM). Era preciso comprovar que estava obstruindo a Justiça e tentando eliminar provas. Horas depois, o Superior Tribunal de Justiça acabou por revogar a detenção preventiva, mandando-o para a prisão domiciliar.

A prisão do prefeito carioca abre um novo ciclo de investigações criminais no Rio de Janeiro, envolvendo o partido Republicanos e a Igreja Universal do Reino de Deus. A prisão de Crivella deve ter deixado o presidente Jair Bolsonaro bastante cabreiro, devido às investigações que envolvem seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), muito próximos de Crivella, também no âmbito do Ministério Público e da Justiça fluminenses. A postagem bolada de Bolsonaro no Twitter, ontem à tarde, alusiva à Síndrome de Sísifo, tem tudo a ver com a cidade maravilhosa.

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Luiz Carlos Azedo: O espelho estilhaçado

É impressionante o paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump, a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon

Instigante artigo do ex-chanceler Celso Lafer, professor emérito da Faculdade do Largo do São Francisco (Direito-USP), publicado no último domingo, no O Estado de S. Paulo, faz um diagnóstico político preciso do governo de Donald Trump, que merece muita reflexão entre nós, pelo paralelo que podemos projetar, a partir do texto, para o governo do presidente Jair Bolsonaro.

O “mote” do artigo é uma carta enviada, em 1975, pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, à filósofa judia-alemã Hannah Arendt, autora de Origens do Totalitarismo (Companhia de Bolso) e a A Condição Humana (Forense Universitária), na qual solicita à escritora que lhe envie o texto de uma palestra que fizera nas comemorações do bicentenário da independência dos Estados Unidos. Intitulada Tiro pela culatra, na tradução para o português, seu texto fui publicado no Brasil, na coletânea Responsabilidade e Julgamento (Companhia das Letras), organizada por Jerome Kohn.

Lafer destaca a iniciativa de Biden, quando integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, como uma espécie de preocupação germinal do que pode vir a ser a linha de atuação do novo presidente dos Estados Unidos, de resto já anunciada na campanha eleitoral. O texto de Arendt trata da crise do governo Nixon e da degenerescência da política norte-americana nos anos 1970, cujos elementos se reproduzem durante o governo Trump, na visão de Lafer:

(1) a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e, nesse caminho, pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados;

(2) o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência;

(3) o inserir da criminalidade nos processos políticos do país;

(4) o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder;

(5) o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio;

(6) o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (Arendt);

(7) o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Espelho quebrado
A dimensão histórica da vitória de Biden vem sendo destacada não somente por Lafer como por outros analistas da cena brasileira. Sua repercussão na política mundial já se faz sentir, em todos os aspectos, inclusive em relação à pandemia da covid-19. Como ignorar, por exemplo, o gesto de ontem, quando o novo presidente dos Estados Unidos foi a um posto de saúde de sua cidade para tomar a vacina da Pfizer-Biontech? Quanta diferença em relação ao nosso presidente da República, que já disse e repetiu que não vai tomar e vacina e põe em dúvida a eficácia e segurança de qualquer uma delas. A troca de comando e rumo nos Estados Unidos, porém, transcende esse plano imediato das políticas públicas: a prática dos costumes democráticos repercute no fortalecimento das instituições republicanas e servem de exemplo para o mundo.

“A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela ‘alma’ dos Estados Unidos”, destaca Lafer. Nessa batalha, Biden personificou os valores e as instituições americanas, suas práticas e seus costumes. “Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do softpower de atração dos Estados Unidos.”

E, aqui, no Brasil? É impressionante como Donald Trump serviu de espelho para o presidente Jair Bolsonaro, nas mais diversas áreas. Na política externa brasileira, por exemplo, toda a respeitabilidade de nossa diplomacia está sendo jogada pela janela, apesar de sua cultura secular, cujas raízes são as negociações com os países vizinhos, nas quais garantimos a consolidação de nossas fronteiras, sem derramamento de sangue. Ou na questão ambiental, na qual nosso protagonismo, da Rio-92 ao Acordo de Paris, deu lugar à vexatória condição de “pária” internacional, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo.

As mentiras (1); as afrontas legais aos demais poderes (2); a promiscuidade com as milícias e outras atividades transgressoras (3); a proteção aos apaniguados (4); o não-reconhecimento dos fracassos (5); os incentivos à grilagem de terras, ao garimpo ilegal e ao desmatamento (6); e a terceirização dos problemas nacionais (7) tecem impressionante paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump (derrotado na reeleição), a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon (afastado por impeachment). Com a vitória de Joe Biden, esse espelho se quebrou.

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