Luiz Carlos Azedo
Luiz Carlos Azedo: Pazuello em Manaus
O ministro do STF Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise sanitária no Amazonas, onde o SUS entrou em colapso
Em tempos de quarentenas e isolamento social, o filme Operação Final é um dos mais populares da Netflix. Narra o sequestro do criminoso nazista Adolf Eichmann (Ben Kingsley, em interpretação magistral), na Argentina, para submetê-lo a julgamento em Jerusalém pelos crimes que cometeu na Segunda Guerra Mundial. Os principais líderes nazistas, como Adolf Hitler, evitaram a Justiça por meio do suicídio, mas o responsável pelos campos de concentração conseguiu escapar e vivia escondido, até ser identificado e localizado por causa das suas ligações com a extrema direita argentina.
Fugitivo, Eichmann era imaginado como um sujeito brutal e sanguinário, mas o julgamento mostrou outro tipo de personalidade: um burocrata militar (tenente-coronel das SS), cujo objetivo central era vencer na vida a todo custo, incapaz de refletir sobre as consequências de suas ações. Eichmann era o gestor de um conjunto de instruções voltadas à destruição dos judeus. Cumpria ordens para dar cabo dos objetivos genocidas do movimento nacional-socialista alemão, fundado e chefiado por Hitler. Era o mais comum dos homens, educado, inteligente e afirmava que, particularmente, não era antissemita. Era apenas um servidor público cumpridor das leis.
Eichmann foi um dos responsáveis pelo transporte dos prisioneiros judeus para os campos de concentração. Ele cuidava da logística que levaria milhões de pessoas aos mais diversos tipos de torturas e à morte. Entretanto, via sua função como sendo apenas parte do sistema, como se estivesse meramente cumprindo ordens, executando corretamente suas tarefas, sem levar em consideração o que realmente significava sua parte no esquema nazista. Ele era um de muitos do mesmo tipo, indiferente ao sofrimento alheio, com frieza e incapacidade de comiseração.
A filósofa judia-alemã Hannah Arendt acompanhou o julgamento e escreveu um livro (Eichmann em Jerusalém) no qual caracterizou a atuação do oficial nazista como a banalização do mal: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram, e ainda são, terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições, e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que (…) esse era um novo tipo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, escreveu. O filme Hannah Arendt — Ideias que chocaram o mundo conta muito bem essa história.
Inquérito
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise de saúde do Amazonas, que entrou em colapso, com superlotação dos leitos hospitalares e desabastecimento de oxigênio. Em depoimento do ministro à Polícia Federal, em data a ser marcada, ele terá que apresentar informações sobre as ações efetivamente adotadas em relação ao estado da saúde pública de Manaus. Lewandowski definiu prazo inicial de 60 dias para a investigações da Procuradoria-Geral da República (PGR) serem concluídas.
O caso foi enviado a Lewandowski pela vice-presidente do STF, Rosa Weber, à frente do plantão judiciário durante o recesso, porque o ministro é o relator de outros processos ligados à pandemia. O pedido de inquérito foi feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, com base em uma representação do partido Cidadania e em informações apresentadas pelo próprio ministro Pazuello, além de apuração preliminar dos procuradores federais que atuam na área de Saúde. O ministro soube do colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus em dezembro, mas só tomou providências efetivas em janeiro. Dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio, enquanto o Ministério da Saúde insistia em prescrever cloroquina para conter a crise sanitária.
Nem de longe as mortes causadas pela pandemia no Brasil, apesar de toda a incúria e falta de empatia do presidente Jair Bolsonaro, se comparam aos horrores do Holocausto. Entretanto, a “banalidade” com que são tratadas é um espanto. O comportamento é o mesmo apontado por Arendt na descrição de Eichmann: alguém que não conseguia perceber a realidade, não se colocava no lugar de outra pessoa, porque internalizou que o que estava fazendo era o correto. Eichmann cumpria ordens sem questionar o certo e o errado, dessa forma tornou-se um dos maiores criminosos de guerra. Bolsonaro manda, Pazuello obedece e, com isso, se tornou o pior ministro da Saúde da nossa história.
Luiz Carlos Azedo: Sobre atalhos e eleições
A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando
O Conselheiro Acácio, criação do escritor português Eça de Queiróz (1840-1900) no romance Primo Basílio, com passar do tempo, acabou se tornando maior do que o protagonista que empresta o nome ao livro e os demais personagens, por seu pedantismo e suas obviedades. A expressão “acaciano”, inspirada em suas platitudes e redundâncias, virou até adjetivo na língua portuguesa. Eça descreve-o de forma caricatural: “Alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo, ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto. Tingia os cabelos, que de uma orelha à outra lhe faziam colar para trás da nuca; e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, maior brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas muito grandes, muito despegadas do crânio”.
O que humanizou e fez do Conselheiro um personagem maior e universal foram seu falso moralismo (vivia amancebado com a criada), o burocratismo (adorava carimbos, despachos, fichas e relatórios que para nada serviam) e a bajulação (toda vez que o nome do Rei era pronunciado, erguia-se um pouco da cadeira). Como uma espécie de Barão de Itararé (Apparício Torelly) às avessas, suas frases de efeito tornaram-se famosas, como “a saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge”. Tudo para ele era cercado de pompa: “Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, de reconhecida ilustração, discutir as questões mais importantes, e ver travada uma conversação erudita…? Parecem excelentes os ovos”.
Conselheiros como ele pululam nos palácios e seus gabinetes. Muita gente gosta desse tipo de colaborador, que dá razão ao chefe em tudo. O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra, mas — quanta ironia —, como diria o Conselheiro Acácio, “as consequências vêm depois”. É o que está acontecendo, agora, com a pandemia da covid-19 no Brasil, cuja segunda onda é uma realidade dramática e, tudo indica, está se somando à “quarta onda” a que se refere o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que seriam os efeitos psicológicos das mortes, do desemprego, dos confinamentos e das desesperanças. A diferença é que o general imaginava um desespero individual, que até poderia levar ao aumento dos suicídios, ou a saques e depredações espontâneos, mas que poderiam provocar uma convulsão social.
Impeachment
Pazuello não contava, porém, com o desgaste provocado pelo negacionismo de Bolsonaro e uma resposta política da oposição. É o que estamos vendo agora, com manifestações de protestos se sucedendo com força: panelaços nas janelas e memes nas redes sociais; e as carreatas, como as de ontem e de hoje, pedindo “vacinas já” e o impeachment do presidente da República, que desabou nas pesquisas. Quaisquer que sejam os resultados das eleições das Mesas da Câmara e do Senado, mesmo que vençam os candidatos apoiados por Bolsonaro — Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado —, os políticos governistas também sentiram o cheiro de animal ferido na floresta. A fatura a pagar será alta. Nos casos de vitória de Baleia Rossi (MDB-SP) e/ou Simone Tebet (MDB-MS), principalmente a do primeiro, a agenda de costumes e institucional de Bolsonaro estará definitivamente interditada. As pautas do Congresso serão a crise sanitária, a recessão, a inflação, o desemprego, a renda e o fracasso do governo.
O Brasil já viu esse filme duas vezes, nos governos Collor e Dilma, o primeiro, por causa da inflação, o segundo, em decorrência da recessão, ambos temperados por escândalos de corrupção. Nos dois casos, as insatisfações desaguaram no impeachment. No de Collor, o clamor das ruas foi liderado pelo PT, mas o realinhamento das forças políticas resultou na eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). No de Dilma, o PSDB trabalhou para apeá-la desde o primeiro dia no cargo. Quando chegaram as eleições, deu Bolsonaro. As circunstâncias do impeachment são crime de responsabilidade e grande insatisfação popular, além da vontade de a oposição atalhar o processo de alternância de poder. Entretanto, o perfil do vice-presidente é dado pelas alianças que viabilizaram a eleição do presidente defenestrado. Itamar era aliado de Collor; Michel Temer, de Dilma. O primeiro não podia se candidatar, o segundo foi inviabilizado por denúncias quando ensaiava a reeleição.
A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando. Sua força no Congresso resulta da ação de uma espécie de “subgoverno”, que sempre manteve boas relações no Senado e na Câmara, formado por alguns ministros e o grupo de militares que hoje controla o Palácio do Planalto. São aliados que também podem derivar para o impeachment, se perceberem uma debacle iminente, com o país ladeira abaixo, pois estariam mais bem servidos com o vice Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas, um potencial “salvador da pátria” embalado nas casernas e pelo povo nas ruas. E o que viria depois? Ninguém sabe, 2022 já está em aberto.
Luiz Carlos Azedo: Esquenta a disputa no Congresso
Tanto na Câmara quanto no Senado, Bolsonaro aposta alto e joga pesado, para garantir a sua governabilidade e, também, para avançar na sua agenda de reeleição
O PSL deixou, ontem, o bloco de apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a presidente da Câmara, apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual ocupante do cargo, para adensar a candidatura do líder do Centrão, Arthur Lira (AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. A mudança se deu porque quatro parlamentares trocaram de lado, formando uma nova maioria na bancada, com 19 dos 36 deputados.
Foi a mais bem-sucedida manobra de Lira para fortalecer sua candidatura estimulando as dissidências internas nos partidos que apoiam Baleia, que, até agora, vinha sendo pautada por declarações públicas. O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), que apoia Rossi, mantém uma queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, que deixou a legenda logo após tomar posse. O grupo dissidente do PSL chegou a apresentar uma lista com 32 assinaturas pedindo a saída do bloco de Baleia, mas dela constavam as assinaturas de 17 deputados bolsonaristas suspensos pelo partido em razão de divergências com Bivar e que não poderiam ser contabilizados.
Com isso, a candidatura de Lira passa a contar com o apoio de 10 bancadas, que somam, atualmente, 232 deputados: PSL, PL, PP, PSD, Republicanos, PTB, PROS, PSC, Avante e Patriota. Permanecem no bloco de Baleia as bancadas de 11 partidos: PT, MDB, PSDB, PSB, DEM, PDT, Cidadania, PCdoB, PV, Rede e Solidariedade, que também trocou de lado, deixando o Centrão. Com isso, essas bancadas totalizam 236 parlamentares. O problema é que essa contabilidade formal não reflete os acordos de bastidores, que são individuais.
O deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), candidato avulso, que conta com apoio no baixo clero da Câmara, tem se queixado das pressões do Palácio do Planalto para que seus aliados declarem voto a favor de Lira. A polarização complica muito a situação, também, para a candidata do PSol, Luiza Erundina (SP). Marcelo Freixo (RJ) e mais quatro dos 11 integrantes da bancada defenderam o apoio à “frente ampla” liderada por Baleia Rossi.
A candidatura de Lira sempre manteve vantagem em relação a Baleia, mas o agravamento da crise sanitária e a queda da popularidade do presidente Bolsonaro contribuíram para embaralhar a disputa. Em contrapartida, a campanha do impeachment iniciada pela oposição está sendo explorada por Lira, para obter mais apoio do Palácio do Planalto, o que se traduz em mais verbas e cargos, além de retaliações, no caso daqueles que tinham boas relações com o governo, mas são aliados de Baleia.
Senado
A disputa no Senado também está ficando acirrada, porque a radicalização política está colocando em xeque a aliança da bancada do PT com o candidato apoiado pelo governo, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ). Suas declarações em apoio a Bolsonaro e contra o impeachment colocaram uma saia justa em líderes históricos do PT, como Jaques Wagner (BA), Humberto Costa (PE), Paulo Paim (RS) e Paulo Rocha (PA), que estão sendo bombardeados nas redes sociais pelos militantes petistas por causa das alianças com os bolsonaristas.
Além disso, velhos cardeais da Casa estão operando para fortalecer a candidata do MDB, Simone Tebet (MS). José Serra pressiona os senadores do PSDB que apoiam Pacheco, liderados por Izalci Lucas (DF), enquanto o tucano Tasso Jereissati (CE) tenta atrair o PDT, a partir de suas relações com Cid Gomes (CE). No MDB, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) desembarcou em Brasília para evitar a “cristianização” de Tebet por senadores emedebistas. O gesto é emblemático, porque Tebet não apoiou a candidatura de Renan contra Alcolumbre. Além disso, os caciques da legenda esperavam apoio do Palácio do Planalto à candidatura do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE), o que não ocorreu.
Tanto na Câmara quanto no Senado, o Palácio do Planalto aposta alto e joga pesado, não apenas para garantir a governabilidade do presidente Jair Bolsonaro, mas, também, para avançar na sua agenda de reeleição. O ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que a vitória dos aliados do governo permitirá que envie para o Congresso sua proposta de reforma tributária, cujo eixo é a criação de um imposto sobre operações financeiras. Essa proposta seria acompanhada do projeto de Renda Cidadã, que substituiria o Bolsa Família e, em tese, garantiria apoio popular para a reeleição de Bolsonaro.
Luiz Carlos Azedo: O vento das mudanças
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que aposta no impeachment, principalmente depois do colapso da Saúde no Amazonas
Caiu a ficha no Palácio do Planalto de que o vento mudou de rumo, com a posse do presidente Joe Biden, ontem, já anunciando mudanças fundamentais na política externa norte-americana e a volta da Casa Branca ao eixo da democracia e do “sonho americano”. Rapidinho, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma longa carta ao presidente dos Estados Unidos, sugerindo o seu próprio reposicionamento em relação ao democrata, para manter a parceria estratégica, enquanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em videoconferência — a reboque do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)—, pedia ao embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, para interceder em favor da liberação dos insumos de que precisamos para produzir as vacinas contra a covid-19. Nada como um dia atrás do outro.
A mudança na política externa dos Estados Unidos não acabou com a soberba no Itamaraty. O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, por exemplo, ao comentar a troca de ocupantes da Casa Branca, disse que Biden precisa entender a mudança que houve no Brasil com a eleição de Bolsonaro, um país muito diferente daquele que conhecera quando era vice-presidente de Barack Obama. Ora, o novo presidente dos Estados Unidos sabe muito bem o que aconteceu, pois conhece o nosso país. Bolsonaro, o tempo todo, foi uma espécie de espelho de Donald Trump.
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que resolveu apostar no impeachment do presidente brasileiro, principalmente depois do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) no Amazonas. Os partidos de esquerda estão convocando carreatas para o próximo sábado, com o objetivo de protestar contra o governo, devido à falta de vacinas. A crise sanitária agravou-se com a segunda onda da pandemia do novo coronavírus, e Bolsonaro está sendo responsabilizado por causa de seu reiterado negacionismo, em relação à gravidade da doença, à importância do uso de máscaras e do distanciamento social, além da necessidade de vacinação em massa da população.
Chapa quente
Os mesmos movimentos cívicos que embalaram a campanha do impeachment da presidente Dilma Rousseff — MBL, Vem pra Rua, Agora, Acontece etc — também começam a se mobilizar nas redes sociais e a convocar manifestações contra o governo. Os humores da sociedade estão mudando, conforme demonstram as pesquisas de opinião, mas isso não significa que a oposição tenha força suficiente para viabilizar o impeachment. A pandemia tira o povo das ruas, e o Congresso dá sinais de que os aliados de Bolsonaro vão levar a melhor na disputa pelas Mesas da Câmara e do Senado. Enquanto a oposição tenta promover uma “guerra de movimento”, Bolsonaro procura avançar na “guerra de posições”, movendo mundos e fundos, isto é, cargos e verbas, para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Caso tenha êxito, o seu impeachment, dificilmente, descerá do telhado.
Docemente constrangido, o vice-presidente Hamilton Mourão ataca a oposição — “deixem o Bolsonaro trabalhar, pô”—, ao mesmo tempo em que não perde uma oportunidade para marcar uma posição diferenciada em relação ao meio ambiente, à vacina e a outros temas nos quais o presidente da República vai na contramão da opinião pública. É um jogo muito sutil, porque o general lida com a desconfiança do clã Bolsonaro desde quando estourou o escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ) e a primeira-dama Michele Bolsonaro, que receberam dinheiro do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. Militares descontentes veem em Mourão uma alternativa, caso o governo Bolsonaro leve o país ao desastre.
No xadrez da “guerra de posições”, depois da definição do Congresso, Bolsonaro deverá mover mais uma peça: a indicação do substituto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 12 de julho. As articulações para a vaga já estão em curso. O candidato mais ativo é o procurador-geral da República, Augusto Aras. Na terça-feira, a propósito das representações da oposição contra Bolsonaro, por causa da crise sanitária, Aras soltou uma nota estranhíssima, falando que a calamidade pública era a antessala do “estado de defesa”, sabidamente uma situação que confere poderes extraordinários ao presidente da República. A nota gerou perplexidade e críticas públicas de seis subprocuradores-gerais da República, ou seja, da maioria do Conselho Superior do Ministério Público.
Luiz Carlos Azedo: Colapso da diplomacia
Não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste
A posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, hoje, representa o colapso da política externa do presidente Jair Bolsonaro, sem mais nem menos. Seu apoio escancarado não somente à reeleição de Donald Trump, mas também às denúncias de fraude eleitoral na eleição do democrata, bem como aos protestos dos republicanos — que culminaram com a invasão do Capitólio — levou as relações entre o Brasil e os Estados Unidos ao seu pior momento desde o governo Geisel, durante o regime militar. Entramos num processo parecido com aquele momento, marcado pela celebração do acordo nuclear com a Alemanha, pelo presidente Ernesto Geisel, que rompeu um velho acordo militar com Estados Unidos, em 1975.
Em março 1978, quando o presidente democrata Jimmy Carter esteve no Brasil, foi recebido friamente por Geisel, embora a visita, de iniciativa da Casa Branca, fosse uma tentativa de melhorar as relações. Entretanto, não houve como deixar fora da pauta do encontro a questão dos direitos humanos. Denúncias de sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis e aparelhos clandestinos dos serviços de inteligência do regime, devidamente circunstanciadas, foram entregues à primeira-dama Rosalyn Carter, estressando ainda mais as relações.
Na época do estresse com os Estados Unidos, Geisel ainda encarnava um projeto nacional-desenvolvimentista, que contava com certo apoio na sociedade, apesar de o regime vir a ser derrotado fragorosamente nas urnas, em novembro do mesmo ano. Agora, não existe projeto nacional algum. Ideologicamente, Bolsonaro se aliou de forma incondicional ao presidente Donald Trump, que, agora, deixa o governo, depois da sua frustrada tentativa de impedir a posse de Biden, numa inopinada e brutal ação golpista, amplamente repudiada pelo Congresso e a Justiça dos Estados Unidos. Como se dizia antigamente, Bolsonaro pegou o bonde errado.
O fracasso da política externa de Bolsonaro é ainda mais grave porque o presidente brasileiro, ao se aliar a Trump, entrou em rota de colisão com a União Europeia, por causa da questão ambiental, e com a China, nosso principal parceiro, devido à guerra comercial entre os dois países. Até mesmo com a Índia e a África do Sul, que são nossos parceiros no Brics, Bolsonaro desgastou as relações diplomáticas, ao votar contra a quebra de patentes de produtos farmacêuticos na Organização Mundial de Comércio (OMC). Agora, o Brasil depende da importação de insumos farmacêuticos e vacinas desses países, que têm seus próprios interesses geopolíticos e nenhuma boa vontade com Bolsonaro.
Reflexos internos
Grande produtor de commodities de minérios e de alimentos, o Brasil tem um lugar cativo na divisão internacional do trabalho que nos garante certa importância na política internacional, mas a nossa atual política externa trabalha na direção de anular essa vantagem estratégica. O resultado são dificuldades em questões nas quais, tradicionalmente, nossa diplomacia contaria com a boa vontade dos parceiros, por seu pragmatismo e habilidade nas negociações multilaterais. Acontece que o multilateralismo e o globalismo viraram palavrão no gabinete do chanceler Ernesto Araújo.
Como se sabe, não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste, o que não está sendo sinalizado pelo Palácio do Planalto. Uma pandemia é o tipo de problema cuja solução exige certo nível de governança global e boa vontade entre os parceiros internacionais, além do esforço próprio e local. No caso da covid-19, pela primeira vez, nossa diplomacia virou problema em vez de solução. O resultado é que estamos tendo dificuldades, por exemplo, para obtenção de insumos farmacêuticos necessários à produção de vacinas tanto pelo Instituto Butantan (CoronaVac) quanto pela Fiocruz (AstraZeneca-Oxford), agravadas pelos erros do Ministério da Saúde na gestão da crise sanitária e negociações para comprar as vacinas.
A crise sanitária provocou uma crise econômica, cuja superação depende da vacinação em massa da população e não do “tratamento precoce” preconizado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que a pandemia venha a ser contida — estamos numa segunda onda, com escassez de vacinas —, é preciso que medidas econômicas sejam adotadas para gerenciar o deficit fiscal, decorrente das medidas emergenciais adotadas durante a pandemia. Há que se ter, também, um programa de reformas que ajude a recuperação das atividades econômicas. Ocorre que o ministro da Economia, Paulo Guedes, vive numa eterna fuga pra frente, na qual essas medidas dependem sempre de um fato político novo. Desta vez, são as eleições das Mesas da Câmara e do Senado, nas quais o Palácio do Planalto aposta todas as fichas.
Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra
Tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja
Há derrotas por antecipação. Geralmente, como já disse, ocorrem quando se comete um erro de conceito estratégico. A partir daí, os planejamentos tático e operacional são desastres sucessivos. Em tese, oficiais superiores são treinados para serem bons estrategistas. O marechal Castelo Branco, por exemplo, conquistou essa fama nos campos da Itália, na II Guerra Mundial, ao elaborar o bem-sucedido plano da tomada de Monte Castelo, que veio a ser uma das glórias de nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Não é o caso do general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, apesar da fama de craque em logística.
O primeiro erro de conceito de Pazuello é considerar a pandemia uma guerra. Como figura de linguagem, ainda se pode dar um desconto; como conceito de política sanitária, porém, leva a conclusões equivocadas. Logo no começo da pandemia, o sanitarista Luiz Antônio Santini, médico e ex-diretor do Inca, publicou um artigo no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz chamando atenção para isso: “A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos das mais variadas naturezas que, em geral, levam a uma brutal desorganização econômica e social do país. Essa visão belicosa, no caso de uma pandemia, além de limitar, é seguramente ineficiente”.
Segundo o sanitarista, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Muito provavelmente, o que está acontecendo em Manaus, e pode se repetir em outras cidades, é consequência de uma mutação genética do vírus da covid-19, que fez com que a doença se propagasse mais rapidamente e a subestimação da importância do distanciamento social e outros cuidados, como uso de máscaras.
A pandemia não é culpa de Pazuello, mas um fenômeno da natureza. Entretanto, deveria ter sido mitigada pelo Ministério da Saúde, enquanto a ciência busca respostas com vacinas, medicamentos, mais conhecimentos e tecnologias. O problema é que Pazuello não foi nomeado para o cargo de ministro da Saúde por seus conhecimentos em saúde pública, mas porque obedece cegamente ao presidente Jair Bolsonaro, um capitão que pauta sua atuação na Presidência pelo improviso e, no caso da pandemia, pelo negacionismo.
Aposta errada
Por ordem de Bolsonaro, Pazuello apostou no “tratamento precoce” à base de um coquetel cuja eficiência é contestada pelos epidemiologistas. No caso de Manaus, segundo depoimentos de intensivistas, a maioria dos mortos havia tomado hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina. O general foi a Manaus recomendar esse tratamento alternativo em massa, na expectativa de que isso contivesse a pandemia, em vez de dar a devida importância à escalada da doença, que provocou o colapso dos hospitais, a começar pela falta de oxigênio. Pesaram na sua avaliação a sua autossuficiência e ignorância em matéria de saúde pública.
A mentalidade bélica também cobra um preço na questão das vacinas. O tempo todo o governador de São Paulo, João Doria, foi tratado como inimigo por Bolsonaro, que demitiu Henrique Mandetta por ciúmes. O ex-ministro havia alcançado grande popularidade, ao liderar a luta contra a pandemia, e havia se encontrado com o governador paulista para discutir a colaboração entre os governos federal e estadual no enfrentamento da crise sanitária. À época, Bolsonaro considerava a covid-19 uma “gripezinha”, sabotava o distanciamento social e desacreditava a vacina, que ainda se recusa a tomar, com argumento de que foi imunizado pela doença, embora os casos de reinfecção estejam aumentando.
O resultado todo mundo sabe. A vacina do Butantan (CoronaVac) é a única disponível até agora. O governador João Doria começou a campanha de vacinação no domingo. Pazuello corre contra o prejuízo. As vacinas disponíveis — 6 milhões de doses, equivalentes à vacinação de 3 milhões de pessoas, a maioria profissionais de saúde — são insuficientes para imunizar a população. Além disso, tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja. Outro erro estratégico de Bolsonaro, nesta pandemia, foi falar mal da China. Pode nos custar muito mais caro do que se imagina.
Luiz Carlos Azedo: Faca manchada de sangue
Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”
O colapso do sistema de saúde pública em Manaus, por falta de oxigênio, indignou a sociedade, além de traumatizar os profissionais de saúde do país inteiro, porque o episódio provocou a morte por asfixia de pacientes que estavam estabilizados e chegou a obrigar a transferência de crianças recém-nascidas para outros estados, ou seja, que não tinham nada a ver com a pandemia de covid-19. Dois dias antes do colapso, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, fora avisado da falta de oxigênio. Esteve em Manaus, com o propósito de convencer as autoridades locais a prescreverem em massa o “tratamento precoce” da covid-19, que vem sendo a opção preferencial dos militares à frente da pasta para combater a pandemia.
Trata-se de um coquetel utilizado em larga escala por médicos clínicos, como tratamento alternativo: hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina, já usada preventivamente, a cada 15 dias, de forma generalizada, por parte da população de baixa renda, como santo remédio contra o novo coronavírus. Rejeitada pelos infectologistas, por falta de comprovação científica, na surdina, essa fórmula virou o eixo da política sanitária do Ministério da Saúde. Na cabeça do presidente Jair Bolsonaro, o coquetel é mais eficiente e mais barato do que as vacinas, além de dispensar as políticas de distanciamento social, ao supostamente transformar a covid-19 numa “gripezinha”.
Apesar de criticado por infectologistas e sanitaristas, o “tratamento precoce” é uma prerrogativa da clínica médica, ao qual muitos recorreram e acham que, por isso, foram salvos da morte. Entretanto, a essência da política de saúde pública é preventiva. Por essa razão, o descaso em relação à necessidade de distanciamento social, para desacelerar a propagação da pandemia, e o atraso na vacinação em massa, para imunizar a população, mais cedo ou mais tarde, além da falta de insumos, como oxigênio, seringas e agulhas, resultarão em investigações e processos criminais na Justiça.
Vacinas
O general Pazuello está no cargo por ter fama de especialista em logística e para levar adiante o “tratamento precoce”. Mas esse é clamoroso erro de conceito, tanto assim que os dois ministros que o antecederam se recusaram a cumprir essa orientação do presidente Bolsonaro. Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades de seus executantes em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”. É o caso, por exemplo, do secretário-executivo do Ministério da Saúde, o coronel do Exército reformado Antônio Elcio Franco Filho, cuja experiência como secretário de Saúde de Roraima o guindou ao cargo operacional mais importante de todo o Sistema Único de Saúde (SUS). Nas entrevistas, exibe na lapela uma faca ensangüentada, broche de ex-integrante de equipe de operações especiais, cujo lema é “O ideal como motivação/ A abnegação como rotina/ O perigo como irmão e/ A morte como companheira”. Sem dúvida, o Brasil precisa de soldados treinados para “causar o máximo de confusão, morte e destruição na retaguarda do inimigo”, mas o lugar deles não é o Ministério da Saúde.
Na quarta-feira, em entrevista coletiva, o “faca manchada de sangue” se jactava da operação que estava sendo montada para buscar 2 milhões de doses da vacina de Oxford produzidas na Índia. O governo federal pretendia realizar uma grande jogada de marketing, iniciando a campanha nacional de imunização com a vacina que também será produzida pela Fiocruz, antes de autorizar o uso da vacina do Instituto Butantan, cuja eficácia o presidente Bolsonaro não perde uma oportunidade de colocar em dúvida. O avião da Azul adesivado para transportar as vacinas não pode decolar, porque as autoridades da Índia não haviam liberado as vacinas.
O Brasil, porém, é um grande país, mas não é para principiantes. Começamos a produzir 8 milhões de doses/mês da vacina russa Sputnik V, em Santa Maria, no Distrito Federal, e em Valparaíso de Goiás, no Entorno de Brasília. Os russos contrataram a União Química, que possui mais 7 fábricas no Brasil, para produzir a vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia e financiada pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. Todas as doses da vacina russa produzidas no Brasil serão exportadas para países da América Latina que já registraram o imunizante, como Argentina e Bolívia, enquanto aguarda autorização da Anvisa para realização de testes clínicos no Brasil. Ou seja, em breve teremos 3 vacinas produzidas aqui: a CoronaVac, do Instituto Butantan; a Oxford, da Fiocruz; e a Sputnik V, da União Química (privada), um “business” russo. Apesar de tanta incompetência, a esperança não morreu.
Luiz Carlos Azedo: Pra chamar de nossas
Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa. A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio
A guerra das vacinas entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria é como um copo pela metade: de um lado, gera muita desinformação sobre imunização da população; de outro, promove uma corrida para ver quem vai vacinar primeiro. Entretanto, vamos tratar das vacinas que estão sendo produzidas no Brasil, tanto pelo Instituto Butantan quanto pela Fiocruz, que são as que vão resolver o nosso problema. A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) divulgou nota na qual esclareceu que os estudos realizados para testagem de diferentes imunizantes utilizaram critérios distintos.
Por exemplo, no estudo da americana Moderna, foram considerados dois sintomas de um grupo formado por febre, arrepios, dor no corpo, dor de cabeça, dor de garganta, perda de olfato ou paladar com diagnóstico viral confirmado ou um sintoma grave, como falta de ar, tosse, diagnóstico radiológico como casos de covid-19. Ou seja, dois sintomas leves ou um sintoma grave. No estudo da AstraZeneca (Oxford), um sintoma do grupo formado por febre, tosse, falta de ar, perda de olfato ou paladar; ou seja, a maioria sintomas leves, mais um grave (falta de ar), para fechar o diagnóstico.
No estudo do Instituto Butantan, foram considerados casos com qualquer um dos sintomas leves, mais sintomas não incluídos por outros estudos: náusea, vômito e diarreia. Em consequência, esse estudo abriu margem para detecção de mais casos por diagnóstico molecular, que, nos demais estudos, provavelmente, não foram detectados — por não serem considerados sintomáticos. Além disso, focou nos graus de gravidade da doença sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao contrário dos demais.
A diferença de parâmetros parece maluquice, mas é um reflexo do avanços da ciência em busca da vacina. Na verdade, as tecnologias também são diferentes e não existe uma padronização para os estudos da fase III, embora a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, e a nossa SBI recomendem isso. Por exemplo, enquanto a CoronaVac utiliza os métodos tradicionais de produção de vacina, os imunizantes da Oxford e a Sputnik V, por meio de engenharia genética, usaram os adenovírus como “meio de transporte” de genes codificando a proteína S do novo coronavírus (Sars-CoV- 2). Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano.
Segunda onda
As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, aplicável a quaisquer vacinas futuras: um vírus é sequenciado, recebe uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado, que garante a imunização. Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa.
A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio, tragédia que pode se reproduzir em outros estados onde a segunda onda já chegou. Não foi à toa que o Reino Unido fechou suas fronteiras para passageiros oriundos do nosso país e de nossos vizinhos. A existência de uma variante brasileira do vírus, confirmada em Manaus, é ainda mais ameaçadora porque os anticorpos de quem já teve a doença, segundo recente pesquisa, garantem imunidade por um período de cinco a seis meses, o que explica o aumento de casos de reinfecção.
O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, corre para conseguir uma vacina para o presidente Jair Bolsonaro chamar de sua, no caso, a vacina da Oxford produzida na Índia. Ao mesmo tempo, faz suspense sobre a aprovação da CoronaVac. Não estamos, porém, numa guerra civil, como a Revolução Constitucionalista de 1932, estamos numa pandemia. Segundo a SBI, os números totais dos estudos das vacinas da Fiocruz (Oxford) e da vacina do Instituto Butantan (CoronaVac) são muito semelhantes. Entretanto, a vacina da Fiocruz foi testada na população geral, e a do Instituto Butantan, em profissionais de saúde atendendo pacientes da covid-19. O que o estudo do Instituto Butantan diz é que houve redução em 50% de qualquer sintoma na população de profissionais da saúde; e o da Oxford, em 62% de toda a população. Em ambos os casos, o mais importante é que evitam internações e mortes, desde que haja, realmente, vacinação em massa.
Luiz Carlos Azedo: Embolou a disputa no Senado
Qualquer que seja o resultado da eleição, porém, a ‘política de conciliação’ continuará predominando entre os parlamentares no Senado
A sucessão de Davi Alcolumbre (DEM-AP) na Presidência do Senado está embolada, com ligeira vantagem para o candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que largou na frente. Somente na terça-feira, o MDB escolheu a senadora Simone Tebet (MDB-MS) como candidata da bancada, com a desistência dos demais postulantes. O jogo bruto do Palácio do Planalto, que desprezou as candidaturas de seus líderes no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), levou o líder Eduardo Braga (MDB-AM), que também postulava a indicação, a concluir que a senadora teria melhores condições de equilibrar a disputa do que ele próprio.
Num primeiro momento, a impressão que havia passado era de que as raposas do partido se recolheram para fazer um acordo de bastidor com Rodrigo Pacheco, cristianizando Simone Tebet. Mas, não foi isso que aconteceu: dos 15 senadores emedebistas, somente Luiz do Carmo (MDB-GO) admitiu que ainda não decidiu seu voto. Os caciques da legenda chegam à conclusão de que foram tratados como uma força de segunda classe, embora tenham a maior bancada. A narrativa de Alcolumbre, de que o MDB já teria muita força na Casa, por controlar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e o fato de partido não ter sido consultado na escolha de Pacheco irritaram a cúpula do MDB.
Simone tornou-se competitiva porque conta, supostamente, com o apoio de 34 senadores na largada: além dos 15 do MDB, nove do Podemos, sete do PSDB e três do Cidadania. Não se decidiram, ainda, os três do PDT, dois da Rede, um do PSL e um do PSB. Precisaria de mais cinco votos para vencer. Entretanto, Rodrigo Pacheco conseguiu manter a vantagem, com um bloco muito amplo de partidos, com cinco senadores do DEM, 11 do PSD, sete do Progressistas, seis do PT, três do Pros, dois do Republicanos, um do PSL e um do PL. A grande surpresa foi a adesão do PT à candidatura de Rodrigo Pacheco, mas isso é resultado da longa convivência do senador com os petistas, em Minas.
A disputa do Senado parecia menos polarizada porque a Casa, tradicionalmente, faz uma política de conciliação entre o presidente da República, qualquer presidente, e os governadores, uma vez que o papel do Senado é representar os estados, de maneira equitativa, junto à União. A escolha de líderes governistas do MDB pelo Palácio do Planalto foi uma demonstração de que essa cultura se reproduzira na gestão de Alcolumbre, que havia derrotado o senador Renan Calheiros (MDB-AL), na onda de renovação política do Congresso, com um discurso contra o establishment do Senado.
Conciliação
O arranjo político estava tão consolidado que a eventual reeleição de Alcolumbre, caso fosse permitida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com apoio do MDB e do PT, já era dada como favas contadas. Como o Supremo vetou a reeleição do comando do Congresso na mesma legislatura, com base em dispositivo da Constituição de 1988, o acordão de Alcolumbre com o MDB implodiu, mas se manteve com o PT, em torno do nome de Pacheco, que é um senador de primeiro mandato, mas um político mineiro, com muita cancha de negociação. Qualquer que seja o resultado da eleição, porém, a “política de conciliação” continuará predominando no Senado, que tem grande número de ex-governadores ou candidatos aos governos de seus respectivos estados.
Desde o golpe da maioridade de D. Pedro II, em 1840, durante o Império, liberais e conservadores se revezaram no conselho de ministros. Como tinham a mesma origem social — a maioria era formada por senhores de escravos —, havia muitos interesses comuns. Essa convivência começou logo depois das vitórias liberais nas províncias, porque os conservadores, em oposição aos governos locais, onde foram derrotados nas eleições, permaneceram leais ao Imperador. Em 1853, essa aproximação de interesses resultou no “Ministério da Conciliação”, encabeçado por Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, com a presença simultânea de liberais e conservadores. Desse modo, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos na esfera política, até o fortalecimento do movimento abolicionista, que desaguou na proclamação da República (1889), logo após a Abolição. (1888).
Em momentos decisivos da História republicana, a “política de conciliação” renasceu das cinzas. Por exemplo, na posse do presidente João Goulart, em 1961 — que os militares tentaram impedir —, quando foi adotado o parlamentarismo. O restabelecimento do presidencialismo, por meio de plebiscito, em 1963, trouxe de volta a radicalização política que resultou no golpe de 1964. De certa forma, o presidente José Sarney (MDB), para garantir a transição à democracia, praticou essa política. De igual maneira, com sinal trocado, os presidentes Fernando Henrique Cardoso(PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Luiz Carlos Azedo: O recado da Ford
Pode-se responsabilizar o governo Bolsonaro pela saída da Ford do Brasil? Por não ter feito nada para evitar, sim; mas essa não foi a causa principal
Neste episódio do encerramento das operações da Ford no Brasil há mais coisas entre o céu e a terra do que os aviões da Embraer. A propósito, a mais importante empresa de tecnologia da indústria nacional, que foi a consagração do modelo de substituição das importações, luta para sobreviver, depois do fracasso da bilionária parceria com a Boeing. A indústria de aviação passa por uma reestruturação mundial, agravada pela pandemia do novo coronavírus, que teve forte impacto no transporte de passageiros. De certa forma, a redução do fluxo de pessoas pode ajudar a volta por cima da Embraer, que produz aviões menores, como o E190, para 100 passageiros, ideal para a aviação regional. A startup EGO Airways divulgou, recentemente, que o avião brasileiro vai operar 11 rotas italianas, inicialmente, tendo por hubs os aeroportos de Forli e de Catânia, no norte e no sul da Itália, respectivamente; depois, na rota Milão-Roma.
Pode-se responsabilizar o governo Bolsonaro pela saída da Ford do Brasil? Por não ter feito nada para evitar, sim; mas essa não foi a causa principal. Em tese, poderíamos ter disputado a permanência das fábricas com a Argentina e o Uruguai, mas isso exigiria um arranjo institucional impossível de ser feito sem reforma tributária, política industrial e política de comércio exterior adequadas. Além disso, poderia ser uma solução de curto prazo, porque a indústria de automóveis passa por uma revolução tecnológica, na qual a Ford ficou para trás. Já são vendidos no Brasil, por exemplo, cerca de 20 modelos diferentes de carros elétricos Audi, Chevrolet, Nissan, Jaguar, BMW, Renault, JAC, Mercedes-Benz, BYD e Tesla. A briga boa é para produzi-los aqui no Brasil, mas, aí, surge o problema da automação: modernas plantas industriais são automatizadas, a mão de obra barata deixou de ser um atrativo.
As grandes marcas não são imortais, mesmo quando a empresa opera no país há mais de 100 anos. A Esso, com 50 anos de mercado, tinha 1,7 mil postos de combustíveis quando deixou de existir. Estava no Brasil desde 1912. No início, os postos se chamavam “Standard Oil Company of Brazil”. Não se sabe, ao certo, quando a marca e sua mascote, o tigre, foram adotados. Mas, na década de 1940, quando o Repórter Esso estreou na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a marca já tinha alguma popularidade. Em 2008, a rede Esso foi comprada pela Cosan. Três anos depois, a própria Cosan se uniu à Shell, formando a Raízen. Na ocasião, Cosan e Shell anunciaram que a marca Esso seria substituída.
Tecnologia
A troca de bandeira não é uma operação fácil. Só para vestir os frentistas da Esso com o uniforme da Shell a companhia precisou de 300 mil macacões e 60 mil bonés. A Raízen investiu R$ 130 milhões para trocar a bandeira pela Shell. E como será com o carro elétrico, cujas baterias são recarregadas na garagem? Foi melhor a Petrobras vender logo a BR Distribuidora — corre o risco de que faltem compradores interessados — e investir na exploração do pré-sal, antes que seja tarde demais. Inovação é o que mantém as empresas vivas. Para isso, precisam conversar com startups ou criar programas de pesquisa e desenvolvimento. Entretanto, preferimos subsídios e reservas de mercado, que têm pernas curtas quando ocorre uma revolução tecnológica, como agora, com forte impacto na divisão internacional do trabalho.
A Blockbuster era uma companhia gigante e com uma grande clientela. Morreu de maneira surreal. Deixamos de alugar DVDs para assistir a vídeos por meio de serviço de streaming em demanda, como Netflix e o Net Now. Teve a oportunidade de comprar a Netflix em 2000 e não comprou, preferiu focar na atenção ao cliente de suas lojas. Na época, a Netflix era só um serviço de delivery de DVD. A empresa faliu em 2013. Na década de 1970, a Kodak chegou a ser dona de 80% da venda das câmeras e de 90% de filmes fotográficos. E, na mesma década, inventou o que ia falir a empresa: a câmera digital. Como ia prejudicar a venda de filmes, eles engavetaram a tecnologia. Duas décadas depois, as câmeras digitais apareceram com força e quebraram a Kodak. Faliu em 2012.
Em 2005, o Yahoo! era o maior portal de internet do mundo e chegou a valer US$ 125 bilhões. Pouco mais de 10 anos depois, a companhia foi vendida para a Verizon, por apenas US$ 4,8 bilhões. Ela poderia ser o maior portal de pesquisa da internet, mas decidiu ser um portal de mídia. O PARC (Palo Alto Research Center) da Xerox tinha objetivo de criar tecnologias inovadoras: computadores, impressão a laser, Ethernet, peer-to-peer, desktop, interfaces gráficas, mouse e muito mais. Conseguiu. Steve Jobs só criou a interface gráfica de seus computadores após uma visita ao centro da Xerox, no coração do Vale do Silício. Quem menos lucrou com essas inovações foi a própria Xerox.
MySpace, Orkut e Atari tiveram trajetórias parecidas: estagnaram e foram engolidas pela concorrência. Os dois primeiros, por Facebook e Twitter; o terceiro, pela Nintendo. Mas, nada foi mais espetacular do que a ultrapassagem do Blackberry. Chegou a ter mais de 50% do mercado de celulares nos Estados Unidos, em 2007. Contudo, naquele mesmo ano, começou a sua derrocada. O primeiro iPhone foi lançado em 29 de junho de 2007. A Blackberry ignorou as tecnologias que o concorrente estava trazendo, como o touch screen. Resultado: a Apple dominou o mercado de consumidores pessoas-físicas.
Luiz Carlos Azedo: No dia D, na hora H
Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, evita cravar uma data de início para a vacinação contra a covid-19 no país. Disse ontem, em Manaus, que a imunização vai começar “no dia D e hora H”. Parece piada pronta: o começo da vacinação está sendo tratado como um segredo militar. O mais provável, porém, é que o Ministério da Saúde não saiba mesmo quando terá vacinas, seringas e agulhas disponíveis. Desculpem-me o trocadilho, o Dia D é um agá.
Na História, o chamado Dia D foi um segredo guardado a sete chaves pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial. No dia 6 de junho de 1944, a Operação Overlord iniciou o desembarque das tropas aliadas na Normandia, no norte da França. A Alemanha passava por um momento delicado na guerra. A força do exército alemão havia sido contida pelos soviéticos a partir de 1942. Os desgastes que o fronte na União Soviética geraram foram muito altos, principalmente em Stalingrado e Kursk, e a Alemanha carecia de recursos para manter a guerra no nível necessário.
Os objetivos dos Aliados, ao planejar a invasão da Normandia, foram: (1) libertar a França do controle nazista, ao qual estava submetida desde 1940 e, ao criar uma nova frente de batalha (a oeste), (2) aumentar a pressão sobre a Alemanha, atacada ao leste pela União Soviética e ao sul (na Itália) por americanos e britânicos. A Operação Overlord foi vista com desconfiança pelos britânicos, ainda traumatizados pela dramática retirada de Dunquerque, no começo da invasão da França, quando foram encurralados na praia pelos alemães. Temiam um fracasso, ainda mais em razão das ofensivas desastradas no Mar Mediterrâneo e na costa italiana, onde faltou apoio aéreo.
A operação, porém, foi um sucesso; as batalhas mais duras ocorreram depois do desembarque, principalmente em Ardenas, quando os alemães tentaram uma contraofensiva ao se retirar da França. A Alemanha nazista sabia que um ataque Aliado contra a Normandia aconteceria, mas não quando e onde exatamente isso seria feito. As vãs esperanças de Hitler estavam depositadas na famosa Muralha do Atlântico, linha defensiva criada pelos alemães nos territórios ocupados na costa francesa. As operações do Dia D contaram com 5.300 navios, que realizaram o transporte de cerca de 150 mil homens e de 1.500 tanques, com apoio de 12 mil aeronaves, em cinco praias francesas, cuja conquista permitiu que os Aliados conseguissem posicionar mais 300 mil soldados na Normandia até o final do dia 7 de junho, com perda de apenas três mil soldados mortos.
Guerra da vacina
O custo da guerra da vacina entre o Ministério da Saúde e o governo de São Paulo no Brasil está sendo muito maior. A média móvel da última semana foi de 1.016 mortes por dia por covid-19, chegando à marca de 203.140 mortos, ontem, de um total 8,104 milhões de contaminados. Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos. “No primeiro dia que chegar a vacina, ou que a autorização for feita, a partir do terceiro ou quarto dia, já estará nos estados e municípios para começar a vacinação no Brasil”, garante o general Pazuello.
Pela primeira vez, o objetivo não será a imunidade completa, mas frear a contaminação, com a aplicação de, pelo menos, uma dose do imunizante do laboratório Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford, importado às pressas da Índia (2 milhões de doses), enquanto a Anvisa faz novas exigências para liberação das vacinas produzidas pelo Instituto Butantan (CoronaVac) e pela própria Fiocruz (Oxford).
Para iniciar a campanha antes de São Paulo, que pretende imunizar a partir do dia 25 de janeiro, data de aniversário de fundação da capital paulista, Pazuello quer reinventar a roda, a pedido do presidente Jair Bolsonaro: “Com duas doses você vai a 90 e tantos por cento (de imunização); com uma dose, vai a 71%. Com 71%, talvez a gente entre para imunização em massa, é uma estratégia que a Secretaria de Vigilância em Saúde vai fazer para reduzir a pandemia. Talvez, o foco seja não na imunidade completa, mas, sim, a redução da contaminação e, aí, a pandemia diminui muito. Podendo aplicar a segunda dose na sequência, chegando a 90%”, disse. Trocando em miúdos, é tudo para inglês ver; pois, por enquanto, faltam vacinas para atender até mesmo os grupos de risco.
Pazulello, porém, garante que o Ministério da Saúde nunca deixou de trabalhar tecnicamente com o Butantan para comprar a vacina, “quando estiver registrada e garantida a segurança e eficácia pela Anvisa ou autorização de uso emergencial (…). Onde está a dificuldade? Não há registro na China nem autorização de uso emergencial ainda. E a Anvisa tem tido dificuldades de receber toda essa documentação pronta. Nós estamos trabalhando com o Butantan direto para que ele forneça essa documentação”, justifica Pazuello. O Butantan, em parceria com um laboratório chinês Sinovac, já produziu 2,8 milhões de doses, além de 6 milhões que importou diretamente da própria China e que serão destinadas ao Ministério da Saúde.
Luiz Carlos Azedo: Especialistas explicam estratégia de quem defende a mudança para o voto impresso
Para especialistas, ataque às urnas eletrônicas constitui uma estratégia para tumultuar a disputa de 2022, além de indicar um retrocesso. Em 2020, campanha nas redes sociais contra o atual modelo superou a de 2014, ano de eleição presidencial
“O voto impresso foi motivo das maiores roubalheiras eleitorais. Na República Velha, tinha até recibo, o que deu origem ao voto de cabresto”, afirma Miro Teixeira, para quem as críticas do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eletrônico não se sustentam nos fatos e podem resultar num retrocesso de mais de 100 anos. Advogado constitucionalista, estudioso dos temas eleitorais e um dos constituintes de 1988, o ex-deputado federal lembra que a Lei 426, de 7 de novembro de 1896, principalmente no seu artigo 8º, abriu caminho para as fraudes eleitorais sistemáticas. Com a ortografia da época, diz o seguinte:
“Art. 8º Será lícito a qualquer eleitor votar por voto descoberto, não podendo a Mesa recusar-se a aceitá-lo.
Paragrapho único. O voto descoberto será dado, apresentando o eleitor duas cédulas, que assignará perante a Mesa, uma das quaes será depositada na urna e a outra lhe será restituído depois de datada e rubricada pela Mesa e pelos fiscaes.”
A citada lei entrou em vigor na interinidade do vice-presidente Manoel Victorino Pereira, que substituiu Prudente de Moraes, que havia se licenciado do cargo para fazer uma cirurgia. A legislação eleitoral da República Velha foi um dos motivos da Revolução de 1930. Segundo Miro Teixeira, depois de 1945 (Segunda República) e mesmo na Nova República, apesar dos avanços, as fraudes continuaram a existir, principalmente na hora de fechar o mapa de votação das seções eleitorais. “Em 1978, tive 536 mil votos para deputado federal, 30 mil em Nova Iguaçu. Anos depois, um colega me relatou que na verdade foram mais de 70 mil votos. Com a urna eletrônica, isso acabou”, avalia o ex-deputado federal.
O sociólogo Elimar Pinheiro, professor da Universidade de Brasília (UnB), destaca dois aspectos da questão. O primeiro é a volta do coronelismo, fenômeno arraigado na cultura política nacional. “Quando fui fiscal eleitoral, anotei sete formas de ludibriar o resultado da eleição com o voto impresso. A mais tradicional é levar o voto já anotado para a urna e sair com uma cédula em branco, para entregar ao cabo eleitoral. Imagine isso com as periferias tomadas por traficantes e pelas milícias”, argumenta Pinheiro.
O segundo ponto a considerar, segundo o sociólogo, é a narrativa golpista. “Bolsonaro está construindo um discurso para contestar sua eventual derrota nas urnas, como Trump. Nos Estados Unidos, isso fracassou porque não teve apoio dos militares. Aqui, Bolsonaro encheu o governo de militares e não perde uma formatura ou qualquer outra solenidade militar, para ter apoio armado da tropa, independentemente da posição dos generais”, observa.
Sem fraudes
De fato, Bolsonaro pegou carona na narrativa do presidente norte-americano Donald Trump, que não aceitou a derrota para o democrata Joe Biden e alega que houve fraude nas eleições dos Estados Unidos. O presidente brasileiro não somente endossou as afirmações de Trump, que foram rechaçadas pela justiça e pelo Congresso. Bolsonaro chegou a afirmar que também houve fraude na sua própria eleição, em 2018. “Fui eleito, mas tive muito mais votos”, afirmou o mandatário.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (STF), ministro Luís Roberto Barroso, na ocasião, rechaçou os ataques às eleições no Brasil. “Se alguma autoridade possuir qualquer elemento sério que coloque em dúvida a integridade e a segurança do processo eleitoral, tem o dever cívico e moral de apresentá-lo. Do contrário, estará apenas contribuindo para a ilegítima desestabilização das instituições”, disse Barroso. Nas recentes eleições municipais, não houve um denúncia sequer de fraude em urnas eletrônicas comprovada.
O Ministério Público Eleitoral mantém um canal de denúncias contra crimes cibernéticos A maior parte das queixas se relacionaram à utilização indevida das redes sociais. Os problemas relatados por eleitores dizem respeito a 96 casos diferentes, com supostos indícios de fraudes eleitorais. Os outros 94 registros foram duplicados, relativos a esses mesmos casos. As principais situações noticiadas pelos cidadãos na plataforma se referem a empresas que vendem serviço de disparo em massa pelo WhatsApp, pesquisas eleitorais falsas ou irregulares (sem registro na Justiça Eleitoral) e conteúdos enganosos sobre a segurança das urnas eletrônicas.
A maioria das representações foi feita em São Paulo (59 no total, relativas a 40 casos distintos de informações divulgadas na internet), Paraná (com 58 representações relativas a 4 casos) e Rio de Janeiro (com 16 representações relativas a 10 casos). Na Bahia, foram feitas 14 representações, relativas a 6 casos distintos; e em Minas Gerais, 9 registros referentes a 8 casos. Mesmo assim, há uma forte campanha para desacreditar o sistema eleitoral, principalmente a urna eletrônica.
Narrativas
Estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV), com cooperação do TSE, mapeou e analisou postagens que questionam a integridade do processo eleitoral desde 2014 no Facebook e no YouTube. O recorde ocorreu em 2018, com 32.586 posts e vídeos sobre desconfiança no sistema eleitoral. Em 2020, em apenas nove meses, foram 18.345, superando 2014, ano de eleição presidencial. Segundo Thiago Rondon, coordenador digital de combate à desinformação do TSE, “há uma altíssima probabilidade de que o que ocorreu nas eleições norte-americana, de tentativa generalizada de desacreditar o sistema eleitoral, vá se repetir no Brasil em 2022, se não nos prepararmos de forma adequada.”
Especialista em política norte-americana, professor da Fundação Dom Cabral e analista de risco da Dharma Politics, Creomar De Souza também analisa a estratégia de desmoralização do processo eleitoral. “Bolsonaro tenta semear uma narrativa de descrença no processo eleitoral brasileiro, na qual assume o papel de vítima”, avalia. “Espelha-se no presidente norte-americano Donald Trump com um ‘delay” de cinco dias”. “O sistema eleitoral brasileiro é mais sofisticado e confiável do que o dos Estados Unidos”, conclui De Souza.
Mesmo assim, no Congresso, os partidários do presidente Bolsonaro já se articulam para pôr em votação um projeto de lei restabelecendo o voto impresso. É um compromisso de campanha do candidato governista Arthur Lira (PP-AL), se for eleito presidente da Câmara, dar andamento à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/2019. O projeto de lei propõe a votação em urnas híbridas. Ou seja, o voto impresso com a geração de uma cédula física apenas para a confirmação do voto. A proposta insere um parágrafo no artigo 14 da Constituição para determinar que, na votação, seja obrigatória a impressão de cédulas físicas e conferíveis pelo eleitor, “a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.
Os problemas da urna híbrida são o custo operacional e a demora no processo de votação. “Já houve uma experiência de voto impresso, em Brasília, Tocantins e Sergipe, em decorrência de um projeto de autoria do senador Roberto Requião (PDT-PR)), aprovado pelo Congresso, a Lei 10.408, de 2002”, explica o consultor jurídico do Senado Arlindo Fernandes, especialista em Direito Eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu implementar o voto impresso em 5% das urnas, para avaliar a viabilidade da proposta. “A lei mandava conferir 3% dos votos, que confirmaram a eficiência e a segurança da votação eletrônica”. Por essa razão, o TSE tem rechaçado a proposta.