luiz carlos
Luiz Carlos Azedo: Dia das Crianças
Passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e eletrônicos
Vivemos tempos sem beijos nem abraços, entre amigos, familiares e até mesmo os amantes. A vida virou uma roleta-russa, todo dia chega uma notícia triste de alguém que morreu e, em maior número, para nossa alegria, das pessoas queridas que sobreviveram à Covid-19. O isolamento social está sendo quebrado à medida em que a taxa de transmissão da doença diminui e as pessoas ficam mais confiantes de que podem desenvolver certas atividades essenciais, com os devidos cuidados. Todos torcem pela vacina eficaz, chinesa, russa, inglesa ou norte-americana, e se arriscam um pouco mais.
Tempos darwinistas sob todos os pontos de vista: sanitário, econômico, social. A sobrevivência humana não está ameaçada, muitos tiram a doença de letra, como se fosse uma “gripezinha”, mas a capacidade de adaptação às contingências do momento é mais importante do que a resistência física de cada um para sobreviver à pandemia. Para isso servem a ciência e a consciência humana. Como diz o ditado, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Depois de tanto tempo, as comorbidades começam a se tornar um problema muito grave, porque as pessoas deixaram de ir ao médico e ao dentista, reduziram as atividades físicas, alimentam-se por ansiedade, adiaram ou interromperam tratamentos, subestimam pequenos sintomas, enfim, não dão importância aos sinais que o corpo nos envia. E têm os nervos à flor da pele, o que agrava conflitos familiares e problemas psicomentais.
Mas, há muita esperança e fé. Amanhã é dia das crianças, os clubes estão abrindo para recebê-las em relativa segurança, apesar da pandemia. Os templos também promovem cultos, recebendo as famílias com maior ou menor distanciamento social, dependendo da fé na ciência de cada padre ou pastor. Criança é sinônimo de futuro. As escolas, porém, estarão fechadas. Desperdiçam a oportunidade de virar o jogo, jogar todos para cima. Por um desses mistérios da criação, desculpem-me o trocadilho, crianças têm menos vulnerabilidade ao coronavírus, quando não têm comorbidades, é claro; porém, podem ser agentes transmissores da doença, porque geralmente são assintomáticas quando contaminadas, dizem os especialistas. Por causa disso, os adultos estão com inconfessável medo das crianças, isso é um problema.
— Azedo, você não vai escrever sobre as crianças?
A pergunta foi feita por um amigo querido, o pediatra carioca Ricardo Chavez, parceiro de muitos blocos e passeatas, preocupado com o fato delas não estarem frequentando a escola. Entre os primeiros a defender o isolamento social, avalia que já passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e outros equipamentos eletrônicos. Mandou-me um artigo excelente sobre o tema, da colega Ruth de Aquino, de quem foi um dos interlocutores, que recomendo. Repassei o texto e a pergunta para outro amigo querido, Luciano Rezende, prefeito de Vitória, que conclui o segundo mandato com reconhecido êxito administrativo e zero escândalos em oito anos. Médico também, respondeu-me dizendo a mesma coisa. Seu problema é convencer diretores de escola, professores e pais de alunos, na rede pública.
Pacto perverso
De memória, porque emprestei o livro e não me devolveram ainda, lembro de certa passagem de A quarta revolução (Portfólio/Penguin), de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, sobre a desilusão da sociedade com os governos. O Ocidente está ficando para trás. Não se trata da chamada indústria 4.0, como o título induz, mas da necessidade de uma nova revolução política para reinventar o Estado. Vivemos uma corrida em busca de eficiência e eficácia, não apenas nas inovações tecnológicas. Estão em jogo os valores políticos que triunfarão no século XXI. Vem daí a tensão no mundo entre forças reacionárias e democráticas.
Quando o livro fala dos lobbies corporativos, cita dois exemplos da Califórnia. O dos agentes penitenciários, focado na luta contra a violência e a criminalidade, que conseguiu endurecer a legislação e multiplicar o número de presídios e a população carcerária, sem reduzir a violência, é claro. E o dos professores, que tem muito mais poder de pressão sobre os políticos, porque conseguem mobilizar os pais de alunos. Pesquisando, vi que em abril do ano passado, por exemplo, pais de alunos de São Francisco promoveram uma campanha para arrecadar fundos para uma professora, após descobrirem que ela, além de lutar contra um câncer de mama, pagava seu próprio substituto na escola. O relato do caso no San Francisco Chronicle gerou indignação em escala nacional, chegando ao Senado. Ao jornal The Washington Post, Eric Heins, presidente da Associação dos Professores da Califórnia, denunciou que o sistema de financiamento da educação sobrecarrega os professores e não os poupa, nem mesmo em momentos críticos, como períodos de doença grave.
Desde 1970, na Califórnia, o acordo coletivo dos professores garante 10 dias de folga para tratamento de saúde, que podem ser prorrogados por mais 100 dias, mas são descontadas do salário as despesas com o substituto, entre US$ 174 e US$ 240 a diária. Um educador infantil recebe por mês, em média, US$ 4.931,67; um professor primário, US$ 4.971,67; no ensino médio, US$ 5.138,33. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório de terça-feira passada, no ensino infantil brasileiro os professores receberiam por mês o equivalente a US$ 2.063,75; no primeiro grau do ensino fundamental, US$ 2.083,75; e no segundo, US$ 2.089,33. A alta do dólar, com certeza, distorceu esses números. O piso do Fundeb é de R$ 2.886,24, sendo que apenas 11 estados cumprem essa regra, segundo o Dieese. No câmbio oficial, isso equivale a US$ 521,04. Por isso, desconfio que as nossas escolas públicas já não estão fechadas por causa da pandemia; estão sem aulas por causa dos salários e, em muitos casos, das condições em que se encontram. Quem paga o pato são as crianças.
Luiz Carlos Azedo: Suprema encruzilhada
Até a noite de ontem, ninguém sabia ainda o que seria votado hoje no Supremo, exceto a intenção anunciada pelo ministro Marco Aurélio Mello de “levar à mesa” um polêmico pedido de esclarecimento sobre execução da pena em segunda instância, que animava os petistas a pressionar o Supremo a livrar Lula da cadeia. No começo da noite, Marco Aurélio recuou. Não se tratava de uma decisão sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas sobre o destino da Operação Lava-Jato e de todos os políticos que nela estão enrolados, o que envolve manobras de bastidor de grandes bancas de advocacia, partidos políticos e até mesmo ministros da Supremo.
Marco Aurélio tem em mãos dois pedidos de habeas corpus, um do ex-ministro Antônio Palocci, do PT, atualmente preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, e outro do deputado Paulo Maluf, do PP, em prisão domiciliar em São Paulo, cuja apreciação está prevista para hoje. Regimentalmente, esse tipo de pedido tem preferência, mas Marco Aurélio pretendia sugerir que a presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, pusesse primeiro em apreciação a questão da execução da pena para condenados em segunda instância. Esse virou um tema recorrente da Corte, que parece um veículo obrigado a fazer todas as tesourinhas do Eixão de Brasília.
O pedido de liminar havia sido impetrado, em nome do Partido Ecológico Nacional (PEN), pelo advogado Antônio Carlos de Almeida Castro. Ontem, porém, a legenda o destituiu da representação. Seu substituto, o advogado Paulo Fernando Mello, afirmou que o pedido de liminar foi apresentado sem anuência da direção do partido. Disse que a legenda é a favor da prisão em segunda instância e pediria a retirada da liminar da pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), esvaziando uma crise que se anunciava.
Almeida Castro também havia entrado com um pedido de liminar contra a prisão em segunda instância em nome do Instituto de Garantias Penais, que reúne advogados, na condição de “amicus curiae”, ou seja, parte interessada no processo. O desembarque do PEN levou Marco Aurélio a rejeitar o pedido do IGP. Uma semana depois de o Supremo negar um pedido de habeas corpus para Lula (negado em votação muito apertada: 6 a 5), o pedido enfrenta a oposição do Ministério Público, pois a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se manifestou contrária à concessão da liminar. Disse que o pedido se baseia na suposição de que haveria um voto favorável da ministra Rosa Weber.
Coerência
Mais uma vez, as pressões e contrapressões convergiam para a ministra Rosa Weber, que rejeitou o habeas corpus de Lula, mas questiona doutrinariamente a execução da pena a partir de condenação em segunda instância. Entretanto, a ministra aplica a jurisprudência vigente, com o argumento de que o respeito ao colegiado fortalece o Judiciário, o direito e a segurança jurídica. Para Weber, a mudança de composição do tribunal e da opinião de um dos seus integrantes, no caso o ministro Gilmar Mendes (que era a favor e agora lidera os ministros que são contrários à prisão em segunda instância), “não justificaria a mudança de entendimento da Corte em tão breve tempo”.
Esse é o busílis do adiamento do julgamento. Seu desfecho estará nas mãos de Rosa Weber se a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, resolver submeter o assunto aos seus pares. Nos bastidores do Judiciário, ontem, cresciam novamente as apostas de que Rosa Weber votaria a favor da liminar. No julgamento da semana passada, porém, a ministra disse que seria mais coerente não mudar a jurisprudência agora, sob impacto da prisão do ex-presidente Luiz Inácio da Silva e das denúncias contra outros políticos importantes.
A repercussão internacional da prisão de Lula favorece as pressões de outros políticos enrolados na Lava-Jato sobre ministros de suas relações e aprofunda a divisão no Supremo. Ontem, mais uma vez, o relator da Operação Lava-Jato, ministro Edson Fachin, ficou isolado na segunda turma do Supremo, que decidiu transferir o ex-governador Sérgio Cabral, que está preso em Curitiba, de volta para o Rio de Janeiro. Votaram a favor da transferência os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Antônio Dias Toffoli. O ministro Celso de Mello não participou da sessão.
Luiz Carlos Azedo: O espírito das leis
Foi um momento de inflexão na “judicialização” da política brasileira. O STF saiu da queda de braço entre Marco Aurélio e Renan menor do que entrou
“Dos três poderes acima mencionados, o judiciário é quase nada”, escreveu Montesquieu no Espírito das Leis, ao tratar da clássica divisão de poderes com o Executivo e o Legislativo, que perseguia um objetivo claro: a estabilidade dos governos. Segundo ele, a chave para alcançar esse objetivo era a moderação. A salomônica e “patriótica” decisão de ontem do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu manter o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) na presidência do Senado, mas impedido de substituir Michel Temer como presidente da República, foi pautada pela moderação, para garantir a estabilidade política do país.
Todos os ministros concordaram que Renan está proibido de substituir Temer. Mas votaram para mantê-lo no cargo os ministros Celso de Mello, Teori Zavascki, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e a presidente do tribunal, Cármen Lúcia. Acompanharam o relator Marco Aurélio Mello, autor da polêmica liminar que determinara o afastamento de Renan, os ministros Edson Fachin e Rosa Weber. Gilmar Mendes, em viagem ao exterior, e Luís Roberto Barroso, que se declarou impedido de julgar, não participaram da sessão. O primeiro havia criticado duramente a decisão de Marco Aurélio; o segundo, era a favor.
Foi um gesto de humildade dos ministros evitar o agravamento da crise entre o Congresso e o Judiciário, uma vez que a Mesa do Senado havia decidido não cumprir a liminar de Marco Aurélio e Renan, num gesto condenado pelos mesmos juízes que o mantiveram no cargo. Celso de Mello, que é o ministro com mais tempo de STF, foi o primeiro a votar pela permanência de Renan. Quando isso acontece, ou seja, o decano inicia a votação, geralmente há um acordo de maioria, anterior à realização da sessão.
Celso de Mello criticou Renan por não aceitar o afastamento provisório na segunda-feira, mas também questionou a liminar de Marco Aurélio, “medida extraordinária” em meio à “gravíssima crise que atinge e assola o nosso país”. A decisão parece um samba do crioulo doido, diria Stanislaw Ponte Preta (o genial Sérgio Porto, que hoje seria chamado de homofóbico, machista e racista), mas visou restabelecer a harmonia e o equilíbrio entre os poderes.
A propósito, a harmonia entre os poderes é tão importante para a democracia como para um bom desfile na Marques de Sapucaí. Certa vez, numa reunião da Caprichosos de Pilares, o veterano carnavalesco Luís Fernando Reis resumiu o quesito em duas palavras: bom senso. Na magia do samba, harmonia significa sintonia entre o puxador do samba e os figurantes, para a escola não “atravessar” o canto; e entre a bateria e a cadência do desfile, para as alas não se dispersarem. E na política?
É mais complicado. O Supremo julgou a situação de Renan após o ministro Marco Aurélio Mello ter determinado em decisão liminar (provisória), na segunda-feira, seu afastamento do cargo e ser duramente criticado por políticos e pelo ministro Gilmar Mendes. Com apoio da Mesa Diretora do Senado, Renan recusou a ordem judicial e ficou à espera de decisão final do Supremo. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, queria que o STF mantivesse a decisão. Marco Aurélio, no julgamento, chegou a dizer que não afastar Renan seria um “deboche institucional’ e a atitude de Renan de não aceitar uma ordem judicial, “intolerável, grotesca”.
Constrangimento
O voto de Celso de Mello, porém, foi mesmo salomônico: “Os agentes públicos que detêm as titularidades funcionais que os habilitam constitucionalmente a substituir o chefe do Poder Executivo da União, em caráter eventual, caso tornados réus criminais perante esta Corte, não ficarão afastados dos cargos de direção que exercem na Câmara, no Senado ou no Supremo Tribunal Federal. Na realidade, apenas sofrerão interdição para exercício do ofício eventual e temporário de presidente da República”. Renan Calheiros trucou e levou.
A nota que divulgou após a decisão foi um gesto de falsa humildade. As declarações da presidente do Supremo, Cármem Lúcia, ao final do julgamento, revelam constrangimento criado por Renan, que pôs uma saia justa no Supremo: “Ordem judicial há de ser cumprida. E há de ser cumprida para que a gente tenha a ordem jurídica prevalecendo e não o voluntarismo de quem quer que seja. Ordem judicial pode ser discutida, é discutida, há recursos – e no Brasil, excesso de recursos – para que isso possa acontecer.”
A decisão de ontem foi um momento de inflexão na chamada “judicialização” da política brasileira. O federalista Alexander Hamilton (1755-1804), um dos pais da Constituição norte-americana, a propósito da citação de Montesquieu que abre a coluna, dizia que “o judiciário é, sem comparação, o mais fraco dos três poderes; que nunca poderá enfrentar com êxito qualquer um dos outros dois; e que deve tomar todas as precauções possíveis para defender-se dos ataques deles”. O STF saiu dessa queda de braço entre Marco Aurélio e Renan muito menor do que entrou.
https://youtu.be/wEFGhplMd80
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br