Luís Eduardo Assis
Luís Eduardo Assis: A morte das ideias
Nesta terra onde canta o sabiá, a tese do Estado mínimo está gravemente enferma
A covid-19 não vai apenas ceifar centenas de milhares de vidas. Algumas ideias do pensamento econômico liberal também correm o risco de morrer. O entendimento de que a austeridade fiscal é uma virtude absoluta e incondicional, por exemplo, está sob séria ameaça. Não que a tese gozasse de boa saúde. Ao contrário, ela já estava no grupo de risco desde a crise de 2008, quando os países ricos gastaram o que não tinham para evitar que a recessão fosse ainda mais profunda. Nesta nova crise, mais ampla e mais intensa, novamente os cânones da economia liberal foram mandados às favas em favor de uma ação pragmática. Gastar é tudo o que os governos podem fazer hoje.
O conceito de Estado mínimo já tinha sido conspurcado em dois livros recentes com títulos autoexplicativos, ambos certamente merecedores da ojeriza de nosso ministro da Economia (Austerity, the Great Failure, de Florian Schui, e Austerity, the History of a Dangerous Idea, de Mark Blyth). Para ambos, a austeridade é um mal desnecessário. Ela não funciona e está fundamentada apenas em princípios ideológicos e morais. Atacando por outro flanco, a Moderna Teoria Monetária também corroeu a ortodoxia econômica.
Para a principal porta-voz dessa vertente, Stephanie Kelton, que foi assessora econômica da campanha de Bernie Sanders, o governo não deve se preocupar com o crescimento da dívida pública desde que isso não ameace a inflação. Um Estado soberano que emite sua própria moeda sempre poderá se financiar por meio de novas dívidas. Mesmo o argumento de que as novas gerações herdarão o fardo de resgatar uma dívida pública maior é rechaçado com o exemplo da economia americana no pós-guerra. Os baby boomers nasceram devendo muito, mas ainda assim viveram um longo período de prosperidade que diluiu o ônus da dívida pública emitida pela geração que os antecedeu.
Nesta terra onde canta o sabiá, a tese do Estado mínimo está gravemente enferma. A descoberta de que o governo federal não tem dinheiro, mas ainda assim pode gastar centenas de bilhões é tão atordoante quanto encantadora. Governadores e prefeitos acharam o máximo serem ressarcidos da queda dos impostos sem que tenham de oferecer nenhuma contrapartida. Mas não só eles. O núcleo duro dos militares que cerca o presidente também se empolgou. Se não há o deus da austeridade, tudo é permitido.
O programa Pró-Brasil, anunciado na semana passada, é tosco, foi improvisado e está longe de fazer decolar os investimentos. Marca, no entanto, uma ruptura clara com os ditames austeros do Ministério da Economia. A desarticulação política do próprio governo auxilia no desmantelamento dos princípios ideológicos ultraliberais do ministro Paulo Guedes. É a casa da mãe Joana (e ela saiu para comprar pão).
Resta à equipe econômica abjurar a explosão de despesas e tentar organizar a fila dos pedintes. Desde o início, os economistas do governo aderiram ao aumento dos gastos com o mesmo entusiasmo com que um congregado mariano participa da turma da pipoca no carnaval de Salvador. Essa estratégia é contraproducente porque cria resistências dentro do próprio governo. Sem capacidade de articulação política, o Congresso Nacional vai se embriagar com a possibilidade de aumentar os gastos públicos.
Pode haver muita discussão acadêmica sobre as teses liberais de Paulo Guedes, hoje internadas, moribundas, na UTI. Mas a volta do populismo fiscal seria um preço muito alto a pagar pela incúria de um governo que parecia ter jurado a cruz da austeridade. Quando o mundo não acabar, se o mundo não acabar, será extremamente difícil para um governo acuado pela inépcia retomar os cânticos e louvores ao equilíbrio fiscal.
* Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor de Economia da PUC-SP e da FGV-SP.
Luís Eduardo Assis: Voa, galinha, voa!
Se o governo não engendrar logo uma forma de alavancar investimentos, estaremos condenados a voar baixo
Em entrevista logo após a aprovação da reforma da Previdência, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, deitou falação e assegurou que o Brasil poderia, a partir de então, “oferecer aos investidores a tal previsibilidade que permite o cálculo econômico e que dá segurança a quem investe”. O ministro, que é veterinário, tocou num ponto que ocupa a teoria econômica há séculos. É fato que perspectivas favoráveis são cruciais para engendrar um novo ciclo de crescimento, mas desde então não só o ministro despontou para o anonimato, como também o investimento deu demonstrações apenas tépidas de que atendeu ao chamamento oficial.
Medir o comportamento do investimento não é coisa simples no século 21. Na enciclopédia editada pelo economista David Glasner (Business Cycles and Depressions), o verbete “investimento” é definido como “o fluxo da produção corrente alocado para a acumulação de capital”. Isso é coisa do tempo em que a indústria dava as cartas. Hoje é diferente, mas a metodologia do cálculo do investimento no Produto Interno Bruto (PIB) não se alterou de forma significativa. Se uma empresa gasta bilhões em novos sistemas, novos processos, novas marcas ou novos produtos, isso impacta pouco o cálculo do investimento, apesar de acumular enorme capital intangível.
Por essa métrica convencional, o Brasil ainda está devendo. A Formação Bruta de Capital Fixo (o nome completo que consta no passaporte do investimento) crescia, em termos anualizados, 4,1% no terceiro trimestre de 2018, ritmo que caiu para 3% no terceiro trimestre de 2019, quando ficou 23% abaixo do patamar do terceiro trimestre de 2013. Na indústria de bens de capital, núcleo duro do conceito tradicional de investimento, o quadro ainda é desolador. O crescimento porcentual anualizado em outubro de 2019 estava em 0,2%, ante 8,7% 12 meses antes. Ou seja, esse segmento da indústria está desacelerando. A produção de bens de capital de outubro de 2019 era 33% menor que a do final de 2013.
O crescimento mais intenso da economia em 2020 parece assegurado. Virá do consumo, estimulado pelo pequeno aumento do emprego e pela forte queda nos juros.
Juros menores também impulsionarão a construção civil, já que os órfãos da renda fixa terão de procurar alternativas para a valorização de seus capitais. Mas será o comportamento dos investimentos que definirá se este crescimento será ou não um novo voo de galinha.
O governo parece alheio a este empecilho. Dentro do fundamentalismo liberal que dá a tônica das medidas econômicas, o pressuposto é de que o mercado resolve tudo e que basta o governo se recolher para que a iniciativa privada preencha automaticamente o hiato. Algo como uma reedição tardia do credo professado por Thatcher ou Reagan. Aqui ainda estamos passando flanela nessas ideias antigas.
O investimento industrial pode reagir ao aumento do consumo. Não será a salvação da lavoura, mas salvam-se algumas couves. Já o investimento em infraestrutura não pode decolar sem a coordenação direta do governo. Fala-se em concessões como se fosse trivial atrair a iniciativa privada para projetos de longo prazo. Mas a Lei Geral de Concessões tramita na Câmara dos Deputados sem a chancela do governo, do que resultou um projeto megalomaníaco e de duvidosa eficácia. O governo Bolsonaro não entende que foi eleito para fazer política. Sem falar que nem todos os projetos de infraestrutura são passíveis de serem explorados por empresas que visam ao lucro. O mercado projeta hoje um crescimento de 10% no acumulado dos próximos quatro anos. É pouco, quase um voo de galinha. Se o governo não engendrar logo uma forma de alavancar investimentos, estaremos condenados a voar baixo.
*Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor de economia da PUC-SP e da FGV-SP.