Luciano Huck
Luciano Huck: Sistema imunológico da sociedade brasileira dá respostas à altura das agressões do bolsonarismo
Para cada negacionista que orbita o poder no Planalto, há milhares de cidadãos empenhados em combater os efeitos da maior crise sanitária da história
O Brasil será vacinado contra a Covid mesmo com as omissões, os erros e os arbítrios do governo federal. Entramos no terceiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro, mas no 33º ano do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Para cada negacionista que orbita o poder no Palácio do Planalto, há milhares de brasileiros empenhados em combater de peito aberto os efeitos da maior crise sanitária da história.
São os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde na trincheira para salvar vidas e que estoicamente ignoram os delírios obscurantistas de seus superiores. Gente que há quase um ano se desdobra no atendimento dos doentes e agora tocam a campanha de vacinação.
São os cientistas e técnicos nas frentes de pesquisa, garantindo que as vacinas sejam produzidas e aplicadas com toda segurança.
São nossos diplomatas mundo afora que não se deixaram capturar pelo tradicionalismo, como o diligente time da representação na Índia, que assegurou as importações de vacina apesar do disfuncional que os lidera em Brasília.[ x ]
Butantan e Fiocruz financiados pelos nossos impostos se tornaram merecidamente o símbolo dessa resistência humanitária.
Mas os heróis da resistência democrática são muitos. Incluem os jornalistas que nunca trataram a doença como uma “gripezinha”. Os líderes comunitários que organizam exércitos de mobilização. Os políticos verdadeiramente comprometidos com o povo sem cair no populismo. Os empresários que entenderam a gravidade do contexto e abraçaram a agenda da inclusão, sem filas paralelas ou qualquer outro privilégio.
Muita gente fez —e faz— a diferença ao enfrentar a miopia e a descoordenação apesar da insistência em atrapalhar de quem deveria liderar o país atualmente.
Temos de reverenciar a resposta diária dos professores nos estados e municípios e aplaudir os projetos públicos de ensino digital como, por exemplo, do Maranhão e do Rio Grande do Sul, que são ações bem sucedidas, apesar de a educação ter sido jogada às traças por ministros extremistas e alienados do marco democrático.
É necessário reconhecer o amadurecimento do debate nacional sobre renda básica e, da mesma maneira, é justo louvar o esforço do Congresso em 2020, que aprovou o auxílio emergencial, apesar da insensibilidade social de um governo que nunca priorizou os mais pobres.
Precisamos celebrar ainda os avanços dos movimentos feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, que conquistaram inédita centralidade na discussão pública apesar da misoginia, da homofobia e do racismo da narrativa desvairada palaciana desde a posse.
A discussão nas redes sociais apodreceu de vez? Não se a gente se lembrar do inquérito das fake news no STF, da atuação das agências de checagem, da autocrítica das próprias plataformas e da posição esclarecida de muitos influenciadores digitais.
Os ataques contínuos esvaziaram a grande imprensa? Não se a gente verificar que o jornalismo festeja audiências sem precedentes.
Nossas contas públicas foram totalmente comprometidas por um governo avesso à transparência? Estão aí os portais especializados e os tribunais de contas para mostrar que é difícil esconder até suspeitas de leite condensado superfaturado.
O momento é crítico, mas temos de manter acesa a chama da esperança.
Apesar da situação calamitosa na Amazônia devido ao negacionismo presidencial, o Brasil tem tudo para reverter as curvas do desmatamento na região.
Aos poucos e aos trancos, produtores rurais percebem que a rastreabilidade e o plantio/pecuária sustentável são imperativos no mercado global. O sistema financeiro começa a estrangular o crédito de quem insiste em desmatar e ignora as diretrizes ESG, que cobram uma postura moderna em relação ao meio ambiente, ao desenvolvimento social e às práticas de governança.
Nossas exportações vão bater recorde, nossa agroindústria se fortalece, debates sobre produção e sustentabilidade seguem mais vivos do que nunca apesar da tenebrosa política externa atual e da orientação federal de fazer “passar a boiada”.
Apesar de esforços técnicos, o descompromisso com a pauta verde cria atrito com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Ao ponto de o comitê de política ambiental da OCDE cancelar a deliberação sobre elevar o status do Brasil —de convidado a participante— no órgão internacional.
Há quem cometa crimes nas florestas? Há. Em contrapartida, há muita gente disposta a se sacrificar em defesa do meio ambiente.
E se as autarquias hoje estão politicamente diminuídas, a maioria dos funcionários públicos continua cumprindo sua missão de fiscalizar, alertar, denunciar. A voz dos climatologistas nunca foi tão amplificada.
Falam que a PGR hoje oscila entre silêncios constrangedores e pareceres equivocados apesar de manifestações recentes do Conselho Superior do Ministério Público que mostram parte da corporação vigilante e pronta a responder.
Dizem que as Forças Armadas estão desmoralizadas. Quem conhece de perto os quartéis, os oficiais da ativa e a rotina das tropas, porém, sabe da contínua e inestimável contribuição dos militares para o país —sobretudo nos rincões mais pobres.
As Forças Armadas não têm um só sobrenome e nem são reféns do familismo. Prefiro enaltecer figuras honradas como o general Antônio Miotto, que perdeu a batalha para a Covid e não para a vaidade.
Não menciono aqui todos esses casos com propósito acomodatício. Moderação não é passividade. Não dá para tapar o sol com a peneira. A realidade brasileira não admite ingênuos. Não sugiro, portanto, guardar as panelas, engavetar o debate do impedimento, banalizar os crimes de responsabilidade, normalizar a dor e a violência, deixar de lado a indignação.
Pelo contrário, faço aqui o devido registro da potência do nosso sistema imunológico, celebrando nossa capacidade de reagir.
É importante fazer uma análise em perspectiva, especialmente nesta conjuntura tão polarizada, conturbada e por vezes contaminada por interesses mesquinhos.
O vírus expôs a fragilidade do nosso contrato social, que precisa ser repactuado. E as instituições estão sofrendo em mãos irresponsáveis. Mas os pilares da nossa democracia seguem de pé graças à intervenção de muitos.
Se é verdade que a sociedade agora está machucada e traumatizada, também é fato que temos tudo para sair dessa e emergir mais zelosos com nossos direitos, fortalecidos pelas conexões que realizamos e tonificados pelas novas reflexões que fazemos. A mudança depende de nós. Somos nós que construímos nosso destino coletivo.
Projetos políticos autoritários e truculentos têm problemas inerentes de sustentabilidade. Num país como o Brasil, imenso em seu território, imenso em suas desigualdades e imenso em suas potências criativa e empreendedora, autocratas acabam quebrando a cara e ficando impopulares.
Uma presidência desprovida de razão e de coração não tem como vingar por muito tempo entre nós. Por isso, este governo —sem querer— na sua trajetória errática vai ajudar a revitalizar a sociedade civil e a consolidar a percepção de que o messianismo nunca foi – nem nunca será – um atalho para a prosperidade do país.
O brasileiro voltará a sonhar quando a boa política sacudir a poeira da polarização e dos “ismos” e, assim, ajudar a nação a dar a volta por cima.
Então chegará a hora da generosidade, de reconectar as pessoas, de ouvir e acolher quem pensa diferente, de buscar pontos em comum e transformar as melhores ideias em realidade.
Chegará a hora de ouvir, unir e agir! Estou entre aqueles que se engajam nesta construção. Amanhã há de ser outro dia apesar da triste realidade de hoje. Jamais vamos desistir do Brasil. Sabemos que mesmo a pior das tempestades ajuda a florescer o jardim.
*Luciano Huck é apresentador de TV e empresário
Luiz Carlos Azedo: Um candidato no telhado
Huck parece realmente disposto a largar o mundo do entretenimento e ingressar na política. Mas a aposentadoria do Faustão pode mudar suas perspectivas na TV Globo
Desculpem-me o trocadilho com a inspiradora história do leiteiro Tevje e sua família, na pequena aldeia russa de Anatecka, um conto de autoria de Scholem Aleichen, o grande escritor ídiche, a língua falada pelos judeus da Europa Central e Oriental. Com sua esposa Golde, ele tenta criar as filhas Tzeitel, Hedel, Chava, Shprintze e Bielke na melhor tradição judaica. Tevje e sua canção “Se algum dia eu ficasse rico” bombaram na estreia do musical “Um violinista no telhado” (Anatevka) na Broadway, em setembro de 1964.
Foi um verdadeiro espanto à época, porque o musical era em ídiche, uma mistura de alemão, hebraico e línguas eslavas, e lotou as sessões do Teatro Imperial da Broadway. O título original da adaptação é Fiddler on the roof (Um violinista no telhado). “Parece loucura, não é? Mas no nosso lugarejo Anatevka é assim. Cada um de nós é um violinista no telhado. Ficamos aqui, porque Anatevka é a nossa terra natal. E o que traz equilíbrio à nossa mente pode ser resumido numa palavra: tradição”, esclarece o protagonista da peça. Dirigido por Norman Jewison, com roteiro de Joseph Stein, a versão para o cinema, lançada em 1971, também fez grande sucesso e ganhou quatro Oscar: fotografia, som, direção de arte e trilha sonora.
O filme, uma comédia dramática, é boa pedida para o domingão. Religioso, Tevje imagina que suas cinco filhas deverão pouco a pouco seguir o caminho em direção ao “porto seguro” do casamento. Pobre, tenta, com a ajuda de sua mulher, Golde, casar a filha mais velha com o açougueiro Lazar Wolf, bem mais velho rico e endinheirado. O casamento de conveniência é frustrado pela personalidade teimosa da filha Zeitel, que se apaixona pelo pobre alfaiate Mottel. Para desespero do casal, a segunda filha se apaixona pelo estudante revolucionário Perchik, tomando a decisão de segui-lo até a Sibéria, para onde ele havia sido banido pelo regime czarista. Como se não bastasse, a terceira filha, Chava, ultrapassa os limites da tolerância de Tevje, ao casar-se com o cristão Fedja, o que o pai considera uma traição. Entretanto, um pogrom iminente no vilarejo no qual conviviam judeus e cristãos ortodoxos, força Tevje, Golda e suas duas filhas mais novas a emigrar para os Estados Unidos.
Caldeirão
Na política, quem subiu no telhado nas eleições de 2018, quando o cavalo passou arreado, e nunca mais desceu, foi o apresentador Luciano Huck. Jovem, rico, bem-informado, carismático, bem assessorado — o ex-governador Paulo Hartung e o economista Armínio Fraga são seus principais conselheiros —, o comunicador conhece o Brasil de ponta a ponta e tem perfil de filantropo, sinceramente empenhado em melhorar a vida das pessoas. No seu caldeirão, conseguiu a proeza de fundir o entretenimento despretensioso com o fomento do empreendorismo. Aos interlocutores, Huck tem revelado o desejo de se candidatar à Presidência da República. Tem seus motivos: acredita que pode atrair para a política jovens lideranças da sociedade, vê nela uma maneira de melhorar a vida das pessoas no atacado e não deseja passar toda a vida repetindo o que já faz, embora seu programa de tevê tenha acompanhado a metamorfose da vida pessoal de seu criador.
Nos últimos meses, Huck parecia realmente disposto a largar o mundo do entretenimento e ingressar na política. Seguia um roteiro mais ou menos previsível. Em junho, teria que deixar a TV Globo, por exigência da própria empresa. Como todo outside da política, com base na legislação eleitoral, teria até 4 de abril de 2022 para escolher um partido. Obviamente, escolheria o que lhe oferecesse mais garantias de legenda e melhores condições políticas para concorrer. Mesmo assim, ainda teria até 15 de agosto para registrar a candidatura. O problema é que, na política, o tempo não é igual para todos. Huck precisa descer do telhado.
O DEM se colocava como boa alternativa, saiu das eleições fortalecido das municipais, tinha um núcleo dirigente jovem e uma imagem de partido liberal consolidada. Entretanto, alinhou-se com o presidente Jair Bolsonaro e catapultou o principal interlocutor de Huck na legenda, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (RJ), para fora do partido. O PSDB, cada vez mais liberal e menos social-democrata, também não é alternativa, embora o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso goste de Huck, porque o governador João Doria (SP) dá demonstrações efetivas de que vai disputar a Presidência da República.
Restam o Cidadania, com três senadores e sete deputados, cujo presidente, o ex-deputado Roberto Freire, é um entusiasta de sua candidatura, e o Podemos, liderado pela deputada Renata Abreu, com nove senadores e 10 deputados, que namorava o ex-juiz Sérgio Moro, que optou pela advocacia empresarial. Os dois partidos, como a família de Tejve, correm risco de diáspora; precisam de um candidato para chamar de seu e, com isso, ultrapassar a cláusula de barreira. Entretanto, podem ficar a ouvir o violinista no telhado, porque a aposentadoria do apresentador Faustão abriu a possibilidade de Huck se tornar o dono das tardes de domingo na TV Globo.
Luciano Huck: Escutar, pactuar e agir - Sugestões para 2021
Muitas vidas teriam sido salvas se as autoridades tivessem ouvido mais os doentes, os profissionais de saúde e aqueles que trabalham em serviços essenciais
O ano de 2020 foi violento. Da porta para dentro de casa, um liquidificador de angústias, ansiedades, incertezas, reflexões profundas sobre valores e prioridades. Da porta para fora, toda sorte de maluquices, ataques à ciência, à democracia e às liberdades, desorganização total, mortes em números de zona de guerra.
Não cabe aqui nem minimizar nem varrer para debaixo do tapete a maior crise sanitária da história. Vivemos o mais doloroso evento para a humanidade desde a II Guerra no ano que passou. Isso fica ainda mais especialmente grave neste momento em que os números de casos e mortes voltam a se acelerar no Brasil.
Tenhamos consciência de que a vacinação, quando finalmente chegar, não nos fará esquecer tanto sofrimento. O ano de 2020 foi também de aprendizados e exercícios valiosos. Fez frutificar a solidariedade e multiplicar as redes de apoio. Reforçou a fé da sociedade na cooperação humana e na democracia. Mostrou a importância do Estado, na forma do SUS e na competência dos profissionais da saúde. Revelou a excelência de nossos cientistas e pesquisadores. Confirmou a capacidade das pessoas e das empresas de se desdobrarem para tocar a vida adiante, com engenho e determinação.
Essas lições igualmente vão ficar para sempre. Tenhamos isso em mente. Em 2020, o planeta foi forçado a parar. Em 2021, precisaremos, de algum jeito, forçá-lo a voltar a girar. Tal oportunidade é valiosa demais para aproveitá-la com os mesmos pensamentos, as mesmas idiossincrasias, as mesmas atitudes. Não podemos mudar o nosso passado, mas somos livres para escolher o nosso futuro.
Tenho conversado com muitos pensadores atuais, pessoas capazes de iluminar o pós-pandemia, e deles tirei sugestões para 2021, que vou resumi-las em três ensinamentos-convites que gostaria de compartilhar aqui.
O primeiro desses ensinamentos-convites é o de escutar. Escutar quem não tem sido ouvido. Escutar quem estudou. Escutar quem pensa diferente de você.
Minha carreira de comunicador foi construída prestando atenção no que os outros têm a dizer, em suas histórias, em suas dificuldades, sacrifícios e lições de vida. Nestes vinte anos rodando pelos quatro cantos do Brasil, em razão do meu trabalho na TV, tomei o pulso da realidade de um país potente, mas ainda vergonhosamente desigual. Aprendi muito com a nossa gente e continuo a aprender. Nosso povo tem muito a ensinar — sobretudo a quem se acha dono da verdade. Apurar os ouvidos é transformador. Se você escutar de verdade, não vai ter como ignorar os problemas que existem nem as propostas mais robustas e consequentes que surgem para enfrentá-los. Leva a gente a perceber que a realidade nada tem de binária.
Voltemos à pandemia. Era a chance de o poder público escutar com atenção os doentes e suas famílias. De ouvir os profissionais de saúde, os cientistas e todos aqueles que trabalham em serviços essenciais. Era hora de focar em quem foi mais impactado pela crise, em quem mais colaborou para solucioná-la. Muitas vidas teriam sido salvas se nossas autoridades tivessem ouvido mais essas pessoas.
Agora tomemos a questão da Amazônia. Se é fundamental escutar os alertas urgentes e os registros aflitivos da ciência e da meteorologia, também é importante ouvir as necessidades e privações das pessoas que vivem na região e de lá tiram o seu sustento. Qualquer programa de bioeconomia só será realmente sustentável na região das florestas quando houver um entendimento entre diferentes pontos de vista — ou seja, se for feito um encontro de ideias entre ambientalistas, produtores rurais e povos tradicionais, sem descartar ninguém que aja no marco da lei.
Então o segundo ensinamento-convite que proponho é o de juntar as pessoas, reunir as melhores ideias e buscar consensos. Tem muita gente decente no Brasil com vontade genuína de contribuir para fazer um país melhor. Uns dirão que isso é utópico, que as lutas (de classes?) do dia a dia jamais permitirão convergências. Conversa fiada — tão conveniente àqueles, aliás, que prosperam justamente com o imobilismo.
Exemplos não faltam de políticas públicas pactuadas e executadas a várias mãos, do Plano Real ao Bolsa Família, do SUS à Lei Maria da Penha. Em 2019, bem antes da pandemia, eu defendi num seminário no centro financeiro de São Paulo a urgência de o Brasil atacar a nossa abissal desigualdade socioeconômica. Tinham me dito que a plateia farialimer torceria o nariz para a defesa de um programa de renda mínima. Pois aconteceu o contrário. Na vida, os bons exemplos arrastam — e, no trato da questão pública, precisa ser assim também.
O terceiro convite para 2021 nasce dessa disciplina de escutar e de buscar entendimentos. É o imperativo de agir. Temos de tirar do papel as boas ideias. A curiosidade somada à iniciativa e à capacidade de execução pode mover montanhas. Numa conversa recente, a historiadora Anne Applebaum fez para mim a defesa de um reagrupamento político e da instalação de uma contranarrativa com o objetivo de deter os extremos antidemocráticos. Um chamado que considero irresistível e que conta com ventos a favor. Amém!
Nas últimas eleições municipais, as capitais e as maiores cidades rejeitaram inapelavelmente a polarização política. E agora na Câmara desponta a frente multipartidária mais ampla das últimas décadas. É gente diferente unida por um mesmo propósito: nada mais poderoso.
Neste momento tenso da história do Brasil, cheio de instabilidades, é normal que especulações e interpretações equivocadas apareçam por todos os lados. Existe uma vontade pessoal minha de atuar na construção de um futuro mais próspero e justo para a nossa sociedade. Essa vontade já é bastante notória. Venho procurando exercê-la de maneira constante e intensa por meio do diálogo, do mapeamento e da divulgação de boas práticas. Todos os meus passos em 2020 foram dados à luz do dia, sempre em caráter apartidário e pessoal. Divulguei informações sobre a pandemia com responsabilidade e frequência na TV e nas minhas redes sociais — mais de 30 milhões de pessoas impactadas semanalmente.
Contribuí para erguer pontes entre a iniciativa privada e comunidades desassistidas — da distribuição porta a porta de álcool em gel e kits de higiene até cestas básicas.
Participei do grupo de criação da União Rio, de inúmeras iniciativas com a Central Única das Favelas, procurando assim auxiliar financeiramente quem mais sofreu com os efeitos da pandemia na saúde e na economia.
Abri uma escuta permanente para aprender, apoiar e viabilizar iniciativas inclusivas e antirracistas — de um piloto de distribuição de renda não bancarizada em Alagoas à oferta de um intensivo digital e gratuito para inscritos do Enem no Rio Grande do Sul.
Tentei também contribuir dando protagonismo e reconhecendo vozes das periferias e do Brasil profundo, as quais conheço bem, presto atenção, ouço e com quem apreendo há mais de duas décadas viajando pelo país.
Puxei para o debate público brasileiro mais de uma dúzia de pensadores internacionais que, de alguma forma, podem inspirar nossos caminhos pós-Covid — de economistas que estudam a desigualdade, como Esther Duflo e Thomas Piketty, a referências da tecnologia e da inclusão digital, como Nandan Nilekani e Peter Diamandis.
Como cidadão, tento contribuir com meu país até onde minha voz alcança. Consciente da violência, dor e desfuncionalidade do ano que passou, concluí que preciso ir além em 2021. E quero chamar mais gente para avançar: escutando, pactuando e agindo.
Numa de suas tantas letras maravilhosas, um dia Caetano Veloso escreveu que “coragem grande é poder dizer sim”. A gente precisa de um país mais eficiente e afetivo, em que as pessoas tenham o direito de sonhar e as oportunidades não sejam determinadas pela cor da pele ou pelo CEP de nascimento. Uma nação com mais formaturas e menos funerais.
Temos de arregaçar as mangas das nossas camisas, pisar firme no chão da realidade e elaborar um projeto de nação que faça o Brasil liderar agendas globais.
É urgente trabalhar para ser a maior potência agroindustrial sustentável do planeta. Uma economia verde admirada, capaz de produzir e preservar, mas também de extinguir a miséria e combater com rigor as nossas enormes desigualdades.
Para isso, nós teremos de nos mexer, de unir favela e asfalto, campo e cidade, conectando Brasília ao mundo. Tal desafio só será possível se nossas lideranças reconhecerem a necessidade de fazer concessões em nome do bem comum. Pois nada acontecerá por geração espontânea.
Somos muitos. Podemos muito. Aqui estão algumas sugestões para juntos construirmos o futuro próximo do Brasil. Feliz 2021!
*Luciano Huck é apresentador de televisão e empresário
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720
Luciano Huck & Anne Applebaum: 'Forças democráticas precisam se juntar e criar uma contranarrativa à política do ódio'
Para estudiosa em autoritarismo premiada com o Pulitzer, pós-pandemia exige refundar partidos e explicar como as instituições importam para a vida real das pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado de S. Paulo
Anne Applebaum observou de perto, reportou e analisou o colapso dos regimes totalitários comunistas do Leste europeu na virada dos anos 1980/1990. E tem observado de perto, reportado e analisado com argúcia a recente ascensão de governos de extrema-direita na Europa, especialmente na Polônia, onde passou a viver. A historiadora, que foi editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, é uma referência em estudos sobre o autoritarismo contemporâneo no Ocidente.
Por dois motivos, eu fui atrás de Applebaum, que hoje dirige um projeto de pesquisa sobre propaganda e desinformação na Universidade Johns Hopkins (Washington DC). Primeiro, porque ela lançou um dos livros mais cirúrgicos de 2020: O Crepúsculo da Democracia, em que ela traça o perfil de personagens europeus e norte-americanos que desembarcaram do projeto humanista lançado no fim da Guerra Fria e que aderiram à nova geração de ideologias iliberais. Segundo, porque parecem voltar a soprar no Ocidente as brisas de uma correção democrática. A vitória estrondosa de Joe Biden sobre Donald Trump, o maior símbolo do que eu chamo de tecnopopulismo, não é trivial e precisa ser entendida – até para ser emulada.
Essa norte-americana de 56 anos, ganhadora do prestigioso Prêmio Pulitzer, foi uma das primeiras a alertar para a transformação de conservadores que diziam acreditar na democracia liberal, no livre mercado e nos pesos e contrapesos do Estado de direito em um monstro indomável que se alimenta do nacionalismo econômico, da tentativa constante de controle sobre a mídia, a polícia e o Judiciário, do isolacionismo, da negação à ciência, dos ataques às minorias e do exercício constante do ódio.
Para Applebaum, não cabe chorar o leite derramado, mas se empenhar em identificar tais forças e rapidamente criar um movimento capaz de brecá-las. Movimento esse que, segundo ela, deveria nascer da refundação dos partidos e, sobretudo, da busca de sensos comuns. É sobre esse irresistível chamado para um reagrupamento político e para a instalação de uma contranarrativa a fim de deter os extremos antidemocráticos que converso a seguir com essa corajosa mulher.
Applebaum se junta, hoje, a outras figuras da vanguarda do pensamento nesta série de entrevistas do Estadão. Notáveis como a economista Esther Duflo (Nobel de 2019), o filósofo Yuval Harari, o guru digital Nandan Nilekani, entre outros, todos eles iluminadores do mundo pós-pandemia, capazes de nos fazer refletir – e, por que não, agir.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
- Rutger Bregman
- Fareed Zakaria
- Anne Applebaum
Luciano Huck: Você era aclamada como uma respeitada intelectual conservadora, de inclinação liberal, mas passou a ser vista como “persona non grata” por boa parte da direita na Europa e nos EUA. O que aconteceu?
Anne Applebaum: O movimento conservador se dividiu em dois nos últimos 10, 15 anos. Ainda existe uma centro-direita, a depender do país. Mas uma parte da direita se tornou muito mais radical. E, ao se radicalizar e se tornar dependente de novas formas de comunicação, ela me perdeu. E perdeu muitas outras pessoas também, embora tenha ganho novos seguidores. Na maioria dos países ocidentais, a direita, tal qual a esquerda, sempre foi uma espécie de coalizão, com diferentes correntes dentro dela. O que aconteceu na última década é que a ala radical tomou conta dessa coalizão. E isso ocorreu de várias formas em muitos países.
Luciano Huck: Está cada vez mais difícil pensar sobre direita e esquerda nesse quadro de radicalização extrema. Mesmo que tenhamos 50 ideias alinhadas, uma única ideia dissonante vira pretexto para pedir cancelamento. Lendo sua obra, você já flertou com diferentes vertentes de pensamento. Como você enxerga essa questão hoje em dia?
Anne Applebaum: Os dois lados operam de formas diferentes, usando táticas diferentes, mas ambos buscam cancelar, desmerecer e descartar seus oponentes. Veja a forma como Donald Trump se livrou de tantos republicanos moderados, de qualquer pessoa que fosse mais centrista e que não concordasse com ele. Ele os atacava no Twitter, para depois seus seguidores os atacarem no Twitter. De certa forma, é a versão direitista iliberal do que tem sido feito pela esquerda no meio acadêmico. Ambos os lados políticos se tornaram mais radicais, parcialmente pelo fato de que agora as pessoas estão performando umas para as outras nas mídias sociais. As discussões que antes aconteciam em quartos pequenos agora acontecem na frente de todos. Isso fez com que se tornassem caricaturas ou cartuns.
“A grande ameaça às democracias é o tecnopopulismo, cujos líderes atuam para corroer o Estado por dentro, como cupins, tão logo chegam ao poder”Luciano Huck
Luciano Huck: A grande ameaça às democracias, a meu ver, não se dará por meio de tanques de guerra e de soldados. Estamos vivendo o perigo dos golpes “botox”. Governos eleitos democraticamente, em sua maioria com uma narrativa populista, usando as falhas disfuncionais das redes sociais para amplificar suas mensagens e corroer o Estado por dentro, como cupins. Tome o caso da Polônia. Em 2010, era um dos países mais promissores da União Europeia – uma ilha de inovação, educação e empreendedorismo. Hoje, dez anos depois, temos um governo xenófobo, antidemocrático, antissemita, ultraconservador, extremista. Qual o aprendizado para o Brasil não seguir a mesma perversa trilha?
Anne Applebaum: Bom, o primeiro passo é identificá-los e não elegê-los. Porque, assim que eles ganham a eleição, eles começam a mudar as instituições. O partido que governa a Polônia nem sempre foi radical e extremista. Durante muito tempo, ele pareceu um partido conservador normal, com base ampla e ambições “mainstream”. Foi desse modo que ele ganhou a primeira eleição, em 2015, aliás. O problema foi que, assim que ele tomou o poder, ele começou, como você disse, a alterar o sistema. Ele assumiu o controle da televisão estatal, que era neutra e um tanto tediosa, e a transformou em uma plataforma de campanhas de difamação contra seus oponentes, de forma bastante unilateral e tendenciosa. Ele dominou o tribunal constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar como a Justiça funciona. E está tentando levar isso ainda mais longe, depois da reeleição.
Para o Brasil, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, eu diria para que não os deixem dominar a mídia. E, sobretudo, que não os deixem alterar o sistema judicial. Mas o fundamental é tentar convencer as pessoas o quanto antes de que essas coisas que parecem um tanto abstratas importam. Juízes em suas togas, em algum lugar distante, em um tribunal… o que isso tem a ver comigo? Isso pareceu muito remoto para as pessoas na Polônia. Só mais recentemente, quando esse tribunal ilegítimo começou a tomar decisões controversas, como mudar a lei do aborto, é que muitos jovens perceberam que “opa, isso me afeta”. Logo, convencer pessoas rapidamente de que todo tipo de mudança institucional as impacta é muito importante. Na Polônia, a oposição falhou em fazê-lo.
Luciano Huck: O salto qualitativo da Polônia comunista para a Polônia livre e democrática foi gigante, potente a olhos vistos. Agora o país vive um retrocesso também gigante. Difícil de entender. No Brasil, a sociedade é muito desigual, principalmente a desigualdade de oportunidades, que, somada à corrupção endêmica e à falta de um projeto de país, justifica o descontentamento da maioria da população em relação à política e aos políticos. Isso torna o terreno fértil para o nascimento de narrativas antiestablishment, tecnopopulistas. As narrativas populistas vão sempre no caminho mais fácil: “Tem muito crime? Então, vamos armar a população”. O que justificou o surgimento e a eleição de extremistas na Polônia?
Anne Applebaum: Na Polônia, não temos uma sociedade muito desigual. E temos também uma sociedade em que todo mundo, todo mundo mesmo, dos pobres à classe média, às classes mais ricas, está melhor hoje do que há 20 anos. No entanto, os poloneses não estão melhores do que os europeus ocidentais, como os alemães. A raiva aqui é uma raiva com a desigualdade comparativa frente aos países vizinhos. Muitos poloneses passaram a questionar o fato de continuar “atrás” na Europa mesmo após 20 anos de capitalismo e democracia. Essa é uma coisa. Em segundo lugar, e isso é muito diferente do Brasil, é que temos um problema de emigração, não de imigração. Após a queda do comunismo, em 1989, e após a entrada da Polônia na União Europeia, em 2005, muitas oportunidades de trabalho se abriram em outros países. Muitos poloneses foram embora para trabalhar na Inglaterra, na Suécia, na Alemanha. A percepção para muitas pessoas, particularmente para as parcelas mais pobres do país, é a de que nossos filhos estão desaparecendo e o interior do país foi se esvaziando. Em muitos casos, tradições foram perdidas. Isso deu a sensação de que algo essencial sobre o país se perdeu. Isso costuma ocorrer em países durante o processo de modernização. Quando as coisas mudam muito rapidamente, algumas formas de viver de 10, 20 ou 30 anos deixam de existir. Aquela infância de que as pessoas se lembram já se foi. O jeito que elas cresceram já não é o mesmo jeito que seus filhos estão crescendo.
Então, o sentimento de inferioridade comparado ao Ocidente e essa sensação de que os filhos estão sumindo e as coisas estão ficando irreconhecíveis levaram as pessoas na direção de uma política nacionalista, raivosa e emocional. Como a política se moveu de discussões e debates no mundo real para o mundo online, a qualidade e a natureza do debate político mudaram e simplesmente favorecem pessoas raivosas, emocionais e que conseguem falar em frases curtas. E isso aconteceu em todo lugar. O tipo de campanha política conduzida nas redes sociais na Polônia é o mesmo do que foi feito no Brasil e é o mesmo tipo de campanha que Donald Trump conduziu nos EUA. A política mudou de algo que acontece na vida real para algo que acontece na internet – e isso é uma grande oportunidade para, como você disse, tecnopopulistas.
Luciano Huck: Seja a União Europeia, que hoje exige da Polônia e da Hungria que garantam o estado democrático de direito para ter acesso a recursos emergenciais pós-pandemia. Sejam as grandes potências mundiais engajadas na construção de uma economia mais limpa, que hoje pressionam o Brasil por um compromisso de fato com a preservação ambiental. Como você avalia essa atuação internacional de defesa da democracia, esse exercício global de pesos e contrapesos?
Anne Applebaum: Eu acho que algumas pressões são úteis, mas outras, não. A União Europeia teve muitos problemas em entender como reagir à Polônia e à Hungria, porque ela não foi estabelecida para punir seus próprios membros. Um dos grandes erros que o mundo liberal cometeu, sejam partidos políticos, jornalistas e, em alguns casos, chefes de Estado, como Angela Merkel e outros líderes da Europa, foi o de não pensar mais a fundo sobre como criar uma contranarrativa. Essa nova extrema-direita, tecnopopulista como você citou, trabalha junta, conectada, e compartilha táticas, consultorias, ideias de propaganda. Aqui na Polônia temos quatro partidos de oposição que não se unem em torno de uma mensagem comum. Mesmo o Partido Democrata nos EUA tem duas ou três diferentes facções, com dificuldade de se unir. Criar uma mensagem única em torno dessas grandes ameaças à democracia e encontrar formas de trabalhar juntos, além das fronteiras, para ajudar uns aos outros, é algo que ainda não foi feito. As forças democráticas ainda encaram a política como algo doméstico, nacional, feito apenas dentro das fronteiras. Mas a extrema-direita não pensa assim: ela atua internacionalmente, o que é estranho e paradoxal, já que é nacionalista. Até os trolls online da direita fazem as mesmas coisas em diferentes países. O centro, a centro-direita, a centro-esquerda, os liberais, os movimentos verdes, eles não entenderam que precisam trabalhar juntos, contra-atacar juntos
Luciano Huck: A eleição de Joe Biden, nos EUA, tem qual efeito nessas democracias iliberais e populistas que se multiplicaram mundo afora?
Anne Applebaum: Ela é relevante, mesmo que apenas simbolicamente. O simples fato de termos Trump como líder dos EUA era uma inspiração para a extrema-direita em todo o mundo. Seria mais importante se, como parte de sua política externa, Biden começasse a juntar líderes de democracias ao redor do mundo para ajudar a criar uma nova narrativa para promover a democracia e os valores liberais. Seria mais do que um projeto de mídia ou de diplomacia. É profundo. O que as nossas democracias podem fazer juntas? Podemos reformar a internet juntos? Podemos constranger as plataformas de internet juntos? Podemos juntos parar a lavagem de dinheiro internacional e o dinheiro sujo que distorcem toda a nossa democracia? Dizer que somos todos uma democracia não é o bastante. Precisamos de novos grandes projetos que mudem a forma como a política e a sociedade funcionam e com os quais as pessoas se identifiquem. Biden terá de confrontar a maior crise econômica na história americana recente, a maior crise de saúde pública da história americana recente, terríveis e maculadas relações ao redor do mundo, graças à desastrosa administração de Donald Trump. Ou seja, terá um problema atrás do outro. Mas parece que está surgindo o entendimento em Washington de que acabou a ideia de que os EUA, sozinhos, podem liderar o mundo democrático. Os EUA precisam trabalhar juntos com aliados e parceiros, talvez até com grupos de oposição, no Brasil, na Rússia ou em outros lugares, para atingir os objetivos que pretende.
“Temos uma relação exageradamente passional com os políticos. Deveríamos estimular a capacidade de análise de ideias e projetos, como clientes-cidadãos”Luciano Huck
Luciano Huck: Enxergo alguns desses governos tecnopopulistas, mesmo sendo de extrema-direita, voltando os olhos para Vladimir Putin. Não me assustaria o atual governo brasileiro migrar de uma narrativa de subserviência a Trump para Putin.
Anne Applebaum: É possível. Certamente é o que vai acontecer na Hungria e em alguns outros países na Europa Oriental. Não na Polônia, que continua a ter medo de Putin. Mas, sim, é possível.
Luciano Huck: A pandemia trouxe para o centro do debate temas muito importantes que não tinham o devido protagonismo. Combate às desigualdades, racismo, antirracismo, feminicídios, igualdade de gênero. Aliás, as melhores gestões da crise sanitária e econômica da covid-19 foram lideradas por mulheres, casos de Angela Merkel e Jacinda Ardern. Como você, como uma mulher de voz potente e ouvida ao redor do planeta, enxerga essa questão?
Anne Applebaum: Na minha visão, você deveria fazer a pergunta ao contrário. A pergunta deveria ser “Os países que estão preparados para eleger mulheres a posições de poder se saíram melhor na pandemia?”. Em outras palavras, não acho que foi o fato de as líderes serem mulheres, mas o fato de que esses países estavam maduros para ter mulheres em cargos de liderança. O que ficou claro na pandemia é que os países que se saíram melhor foram aqueles com maiores índices de confiança no poder público e na ciência. Olhando apenas para democracias: Nova Zelândia, Alemanha, Coreia do Sul, Taiwan, em todos esses casos havia uma questão de crença, de fé na burocracia pública, nos serviços e servidores públicos.
Luciano Huck: Estar no debate público exige um grande estoque pessoal de felicidade. É preciso ter muita energia para gastar e não se deixar derrubar. Você está nessa arena há um bom tempo, se envolvendo em temas espinhosos. Como é isso para você?
Anne Applebaum: Essa é uma pergunta interessante, porque é algo que mudou muito. Se você é político, jornalista ou alguém com esse tipo de atuação, sempre foi normal encontrar pessoas que discordam de você, algumas delas desagradáveis. Mas até uns dez anos atrás você não era o foco da raiva, do ódio dessas pessoas. Hoje, se você está na vida pública, em qualquer posição, se você for uma celebridade, um popstar, um atleta, tendo ou não a ver com política, você terá de se acostumar com a existência de campanhas negativas nas redes sociais, desse lado feio da natureza humana, que vem à tona especialmente quando as pessoas conseguem ser anônimas. Você precisa aprender a lidar com isso. A minha forma é simplesmente ignorar os ataques, mas é muito difícil as pessoas aprenderem isso. Você deve ter o mesmo problema, não? Espero que algum dia encontremos uma maneira de regular as plataformas sociais, não censurá-las, mas de encontrar alguma forma, algum algoritmo, que favoreça o discurso construtivo e um melhor diálogo. Esse é o meu grande desejo para a próxima década. Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio. E me preocupa que a qualidade da vida pública sofra por causa disso, especialmente em democracias.
“A política permite reagrupamentos, e devemos tirar proveito disso. Pense não somente em quem são seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado.”Anne Applebaum
Luciano Huck: Ultimamente, as pessoas têm criado relação exageradamente passionais com os partidos e os políticos. Em vez de uma relação de noivado, deveríamos construir uma relação de clientes-cidadãos, com uma melhor capacidade de análise de ideias e projetos. Como se estivéssemos contratando um serviço, e não fazendo um pedido de casamento. Como você enxerga a formação de novas lideranças e o futuro da política partidária?
Anne Applebaum: Concordo com você. Estamos desesperadamente necessitados de um novo modelo de partido político. A social-democracia na Europa nasceu de sindicatos e grêmios, de pessoas reais se encontrando no trabalho. A democracia cristã, que compõe os principais partidos de direita e centro-direita na Europa, surgiu de movimentos baseados na igreja, não na religião, mas em grupos religiosos, pessoas reais que se conheciam em clubes da juventude católica e fóruns assim. Hoje, não está mais clara a conexão dos partidos com as pessoas. Eles perderam sua raiz e seu propósito. E, nesse sentido, não surpreende que as pessoas estejam começando novos movimentos políticos na internet. As pessoas agora experimentam a política de forma online e procuram pessoas online com quem possuam coisas em comum. Há um partido político na Europa que nasceu de um fórum de discussão na internet, o Movimento 5 Estrelas, da Itália. Infelizmente, nunca teve políticas muito claras e atraiu pessoas aleatórias e líderes iliberais. Mas é uma experiência interessante: uma forma de juntar pessoas em torno de um determinado conjunto de problemas, discutir esses temas online e criar um movimento político significativo. Suspeito que vamos ver mais casos desse tipo. Se você conseguir fazer com que as pessoas se motivem a trabalhar em suas comunidades, focando em problemas reais em vez de problemas de guerra cultural, que só fazem as pessoas sentirem raiva, isso pode fazer com que novas pessoas entrem na política. Ainda precisamos de partidos, do contrário nossos sistemas parlamentares não funcionam muito bem. Mas concordo com você de que os partidos modernos, como eles existem hoje, não refletem mais uma visão coerente de mundo.
Luciano Huck: Além de perder a capacidade de liderar qualquer agenda global, durante a pandemia o Brasil tornou-se um país a ser evitado. Nosso fracasso no combate à doença, impulsionado pelo negativismo do governo, que também atropelou nossa cultura, nosso patrimônio histórico, somado à destruição da Amazônia e a uma não política de defesa da floresta, o que afasta investidores relevantes, nos isolou do mundo e nos colocou nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica. Como você avalia a situação do Brasil?
Anne Applebaum: Eu não sou uma expert sobre o Brasil, embora já tenha estado aí e adoraria voltar. Mas a lição para o Brasil é a mesma para tantos outros países. É ridícula a ideia de que o Brasil conseguirá prosperar, se desenvolver e melhorar a vida de seus cidadãos ao se descolar do resto do mundo. Nenhum de nós consegue viver sozinho. A pandemia nos ensinou que estamos todos conectados. A começar pela rapidez do contágio, causada pelo fluxo global de viagens. Do mesmo modo, as vacinas e os remédios para a doença são soluções globais, serão distribuídas graças a instituições internacionais. São farmacêuticas americanas trabalhando junto a empresas alemãs; uma das principais empresas alemãs é liderada por um casal turco-alemão, que é imigrante; a testagem dessas novas vacinas e tratamentos foi realizada ao redor de todo o mundo, África do Sul, Brasil, EUA, Grã-Bretanha... Todos nós estamos absolutamente integrados no mundo, querendo ou não. Assim, se o Brasil deseja prosperar e os brasileiros querem que o seu país seja mais feliz e mais habitável, eles precisam estar integrados ao resto do mundo e precisam se perguntar se possuem um governo que os sirva nesse sentido. A Amazônia é o seu grande tesouro internacional. É o que vocês possuem que os distingue. Cuidar dela e investir nela, preservando-a para futuras gerações, é uma das maiores coisas que o Brasil pode fazer para se tornar uma grande nação. Imaginar que queimá-la vai contribuir de alguma forma para o bem-estar dos brasileiros é estranho e errado.
“Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio.”Anne Applebaum
Luciano Huck: No seu livro, você lembra uma passagem interessante da “sua turma de 1999”, usando uma festa de réveillon na sua casa como pano de fundo. Aquele grupo hoje em dia nem se cumprimenta em razão de divergências políticas e visões distintas sobre a democracia. Se você fizesse uma festa hoje na sua casa, qual seria o assunto? E como você imagina esse grupo daqui a 20 anos?
Anne Applebaum: A política promove reagrupamentos. Pessoas que antigamente eu considerava esquerdistas demais para conversar hoje são meus amigos. Pessoas que eram meus amigos agora estão em algum outro lugar. Esses reagrupamentos políticos acontecem periodicamente. Não há nada de estranho nisso. Na verdade, deveríamos tirar proveito disso. Acho que a lição da minha festa de 1999 é “tenha certeza que você terá sempre a capacidade de fazer novos amigos”. Ou, colocando de outra forma, “pense sempre em quem são os seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado”. Se o projeto é proteger a Amazônia, por exemplo, ou transformar a economia brasileira, observe ao redor para entender quais grupos sociais, quais pessoas, quais partidos políticos poderão ser os seus aliados, mesmo que você ainda não os conheça. Encontre novos aliados, faça novas coalizões. As velhas coalizões podem não ser mais as corretas.
Luciano Huck: Muito obrigado.
Vera Magalhães: DEM já (bem) dividido entre Doria e Huck
Já está avançada a divisão interna dos principais caciques do DEM, uma das jóias mais vistosas das eleições de 2020, entre o apoio ao projeto presidencial de Luciano Huck e o de João Doria (PSDB) em 2022. Não são poucos os interesses em jogo no tabuleiro, e cada um dos lados tem apoiadores de peso para o seu projeto, além de argumentos sólidos e que envolvem a geopolítica estadual em sua ponderação.
Neste momento e diante do avanço das duas hipóteses, o namoro com Ciro Gomes (PDT) é a hipótese menos avançada, embora tanto o presidente nacional da sigla, ACM Neto, quanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mantenham uma ponte estendida rumo ao pedetista.
Avançou muito nos últimos meses a aproximação de Luciano Huck com o DEM. O partido passou a ser o destino mais provável do apresentador de TV caso ele finalmente deixe a hesitação de lado e decida se lançar num projeto presidencial. Neste caso, ele faria isso como candidato do DEM, e não do Cidadania, como chegou-se a ventilar.
O partido de Roberto Freire, embora tenha em sua órbita os chamados movimentos de renovação, plataforma importante do projeto de Huck, vem perdendo fôlego eleitoral, ao passo que o DEM vem crescendo. Maia, ACM Neto e Eduardo Paes compõem a tríade demista que conversa com Huck, e espera uma resposta sua até março do ano que vem.
As conversas começaram no meio do ano, e já evoluíram muito. O convite para a filiação foi feito sem rodeios, e está subentendido que Huck já está convencido de que, se for mesmo candidato, terá de ser por um partido estruturado como o DEM. A hesitação do apresentador ainda é de se apresentar como um candidato de centro-direita, quando prefere ser classificado como progressista. Mas os aliados têm alertado que esse campo já está congestionado e que, nele, Huck tem poucas chances.
Para tê-lo no time, o DEM aceita fazer uma revisão programática que contemple a defesa de um liberalismo nas duas pontas: na economia e também na pauta de costumes, o que o afastaria do reacionarismo bolsonarista e daria discurso a Huck.
O namoro cada vez mais sério acendeu o alerta na seção paulista do DEM e no PSDB. O vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, sempre foi um general importante na configuração do primeiro escalão demista. Fechou uma aliança muito explícita com João Doria Jr. de que, caso o tucano conseguisse cumprir uma série de tarefas entre 2019 e 2022, seria o candidato ao governo de São Paulo, numa inédita cessão de lugar do PSDB no Estado que governa desde 1995.
Acontece que nenhum cacique do DEM fora de São Paulo acredita que o PSDB vá abrir mão de ter candidato em São Paulo, ainda mais depois de uma eleição municipal em que saiu com sotaque ainda mais paulista (encolheu no resto do Brasil e cresceu em São Paulo). Além disso, os demistas do Nordeste temem repetir 2018, quando, mesmo dividido, o DEM decidiu sair em aliança com o PSDB pela sétima (!) vez e Geraldo Alckmin foi humilhado nas urnas.
Esses dirigentes do DEM argumentam que Doria tem um perfil muito “arrumadinho”, difícil de emplacar fora de São Paulo, ainda mais diante de uma disputa que vai ter Jair Bolsonaro e o PT. “Corremos sério risco de ficar de novo assistindo a um segundo turno entre Bolsonaro e o PT”, me disse um importante player do DEM entusiasta a saída Huck.
Mas o apresentador do Caldeirão não é igualmente janota, além de ser alguém ingênuo e pouco versado nas artes da política? A essa pergunta os partidários de sua filiação ao DEM respondem que ele tem uma inserção nacional que precede a política, e é alguém identificado com preocupações sociais graças a sua imagem consolidada na TV.
O que mais seduz o DEM, para além dessas questões de imagem, é a possibilidade de ter uma candidatura própria pela primeira vez desde 1989, com Aureliano Chaves. “Essa é uma dívida que nunca que se paga? Onde está escrito que precisamos ser linha auxiliar do PSDB o resto da vida?”, pondera um demista.
A sedução parece sublimar até o cálculo de vir a ter o governo de São Paulo, algo muito além da atual estatura do DEM, mesmo diante das vitórias em capitais (Rio, Salvador, Curitiba e Florianópolis). Rodrigo Garcia, sempre muito cauteloso na articulação política, tem se mostrado internamente disposto a bancar a briga, mesmo se tiver de ficar em lado oposto de seus tradicionais aliados Neto e Maia.
Tem dito que, caso seu partido o trate como peça descartável e ache que é pouco ter o governo de São Paulo, vai tentar vencer uma eventual convenção. Se fia no fato de que é um dos mais reconhecidos operadores do partido em votos no Congresso e em convenções, profundo conhecedor dos humores das bancadas da Câmara e do Senado.
Se, ainda assim, for derrotado, tem dito explicitamente que se filiará a outro partido para apoiar Doria e disputar o governo paulista. Esse destino pode ser o próprio PSDB, o que não interessa tanto a Doria, pois deixa de somar tempo de TV em sua coligação, o PSD do antigo aliado Gilberto Kassab (com quem rompeu há alguns anos, mas, segundo interlocutores de ambos, voltou a ter boa relação) ou mesmo o MDB, partido que se aproximou da órbita do Palácio dos Bandeirantes na sucessão paulistana.
E a opção Ciro? Deixou de ser tão sedutora aos olhos dos pais fundadores (ou herdeiros) do DEM. Isso porque o mapa do Brasil após as eleições se mostrou ainda inclinado à centro-direita, com os partidos da política tradicional voltando a mostrar força. A avaliação interna do DEM é que o caminho para vencer Bolsonaro é por aí, e não pela centro-esquerda (que, ademais, estará congestionada por Ciro, pelo PT e pela estrela ascendente Guilherme Boulos, do PSOL).
Tudo isso é o retrato de 2020, que depende de 2021 para desaguar em 2022.
Algumas respostas precisarão ser dadas:
Huck vai deixar a Rede Globo e o conforto da fama e dos contratos milionários para se aventurar no terreno pantanoso, pouco conhecido por ele e violento da política? Nem seus entusiastas têm certeza disso;
Doria vai conseguir fazer nos próximos dois anos um governo bem avaliado, que lhe permita sair de São Paulo com capital eleitoral suficiente para se nacionalizar?
Bolsonaro vai conseguir recuperar seu eleitorado à base de reação da economia e composição com o chamado centrão? Nesse caso, o DEM ficará no governo e ainda flertará com a possibilidade de apoiá-lo (algo que hoje, com exceção de Onyx Lorenzoni e Ronaldo Caiado, ninguém no partido quer?)
Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre vão para o tapetão e conseguirão se reeleger para novos mandatos à frente das presidências da Câmara e do Senado? Isso elevará ainda mais o já alto cacife do DEM para a sucessão presidencial.
Dora Kramer: Pé no chão
Uma coisa é certa: em 2022 a política tradicional não embarca outra vez na canoa de Bolsonaro
A notícia do encontro de Luciano Huck com Sergio Moro levou de volta à cena da sucessão presidencial o apresentador que andava sumido desde a eclosão da pandemia. Outro efeito foi expor o ex-juiz ao frio e à chuva dos ataques à direita e à esquerda e enquadrá-lo na moldura de companhia questionável: um tanto tóxica no meio político, mas bem-aceita na sociedade.
Por ora, fica por aí o andamento da construção de uma candidatura de centro capaz de enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. Isso no tocante ao que os artífices da empreitada estão dispostos a revelar ao público, porque nos bastidores a coisa segue o ritmo das conversas, aproximações e lances antecipados para futuras alianças que vêm acontecendo desde o ano passado.
Huck recolocado, Moro testado e João Doria instigado, mas mais interessado em se firmar como contraponto a Bolsonaro do que em disputar espaços internos na articulação de uma alternativa ao presidente. Este é o quadro e dele não veremos grandes evoluções até que se possa dar por encerrada a crise sanitária, definida a troca (ou repetição) do comando no Congresso e delineados os rumos da economia, para o bem ou para o mal.
Aqui o mapa do resultado do primeiro turno da eleição municipal tem importância relativa. Para antecipar definições sobre vencedores e perdedores em 22, o peso é zero. Temos exemplos a mancheias de derrotados numa e vitoriosos na seguinte, e vice-versa. Importa sim o tamanho do eleitorado que sairá representado por essa ou aquela força política, aí sim projetando uma tendência do estado de espírito do eleitorado.
Pelas pesquisas, o desenho revela uma inclinação ao já conhecido e/ou testado: Bruno Covas em São Paulo, Eduardo Paes no Rio de Janeiro, o atual prefeito em Belo Horizonte, os herdeiros de Eduardo Campos e ACM Neto no Recife e em Salvador, respectivamente. Se confirmadas as intenções de voto, teremos a prevalência do ânimo conservador (não no sentido ideológico) sobre humores pautados por revolta e ressentimento.
É verdade que não temos nada parecido com figuras de escol em matéria de experiência e biografia. Temos de desconsiderar perfis ideais e trabalhar com as hipóteses postas. No campo da candidatura dita de centro, Sergio Moro não agrega e Luiz Henrique Mandetta não passa pelo crivo dos interesses do partido dele (DEM). Restam Luciano Huck e João Doria. Numa avaliação crua, Huck por enquanto se situa na desvantagem em relação a Doria.
Pelo seguinte: o governador é do PSDB e já compôs uma aliança com o DEM e o MDB que inclui a eleição municipal em São Paulo e outras capitais (Rio e Salvador, por exemplo), a composição da chapa de 2018 com a cessão ao DEM da vice e a chance de assumir o governo a partir de abril de 2022, além da escolha dos próximos presidentes da Câmara e do Senado. Fechou, assim, com as forças políticas de maior peso.
Esse pessoal pode mudar e se transferir para uma candidatura de Luciano Huck? Até pode, mas não fará isso antes de o apresentador mostrar capital eleitoral/partidário e transformar-se de celebridade popular em candidato competitivo. Uma coisa é este ou aquele político demonstrar simpatia e posar para fotos com Huck, outra é ver esses personagens embarcar na canoa dele para valer.
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Doria, contudo, tem obstáculos fortes para ultrapassar: o pouco conhecimento em âmbito nacional, uma certa antipatia país afora com a supremacia paulista e a desconfiança do eleitorado do próprio estado pelo fato de ter abandonado a prefeitura para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes depois de ter prometido cumprir o mandato.
Para vencer essas dificuldades, Doria se posiciona como um contraponto a Bolsonaro a fim de ganhar projeção e firmar imagem de governante civilizado e eficaz. Ciente do peso do quesito aversão a “paulistices”, no lugar de se referir aos “paulistas”, adota a expressão “brasileiros que moram em São Paulo”. Por sua vez, Huck e até Ciro Gomes não têm responsabilidades governamentais e podem se movimentar com mais liberdade.
A despeito da indefinição do panorama hoje mais calcado em hipóteses a ser definidas a partir de meados de 2021, uma coisa é certa: os políticos tradicionais que em 2018 ficaram com Bolsonaro de modo utilitário e entraram na eleição desarticulados não vão repetir a dose.
E o papel do Centrão? É como diz um dos donos da voz da experiência na política tradicional: “o centrão é o primeiro na fila dos cumprimentos ao vencedor”.
Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713
Folha de S. Paulo: Centrão diz que é cedo para tratar de chapa Huck-Moro
Líderes parlamentares avaliam como ruim o 'timing' para encontro entre apresentador e ex-ministro
Danielle Brant e Renato Machado, da Folha de S. Paulo
A construção de uma chapa à Presidência que reúna o apresentador Luciano Huck e o ex-ministro Sergio Moro é vista como embrionária por líderes de partidos de centro (entre eles siglas que formam o chamado centrão), para quem a dupla ainda precisaria de apoio no Congresso para se tornar viável.
Uma aliança entre os dois forjada para se contrapor ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2022 começou a tomar forma após um almoço entre Huck e o ex-juiz da Lava Jato em Curitiba no final de outubro, como revelado pela Folha.
Logo que o encontro se tornou público, no entanto, a articulação foi bombardeada por importantes nomes de partidos do centro e centro-direita, entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que exerce forte influência na sigla.
À colunista Mônica Bergamo, da Folha, Maia afirmou na segunda-feira (9) que Moro era de extrema direita e descartou qualquer apoio a uma chapa composta pelo ex-juiz.
No mesmo dia, o deputado e o apresentador almoçaram no Rio de Janeiro. Segundo o colunista Lauro Jardim, Huck teria dito que sua "turma" era a do presidente da Câmara e lembrado que já se reuniu com outros nomes além de Moro, como os governadores do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB).
Por enquanto, Maia é voz praticamente isolada nas críticas públicas a uma chapa formada por Huck e por Moro.
Líderes e presidentes de partidos de centro no Congresso adotam cautela e avaliam que ainda é cedo para fazer qualquer análise sobre uma eventual aliança de ambos para se contrapor à tentativa de reeleição de Bolsonaro.
"Acho muito cedo para dizer se terão ou não nosso apoio", afirma o líder do Solidariedade na Câmara, deputado Zé Silva (MG). "Prestígio e fama não asseguram competência para fazer gestão pública com eficiência e eficácia."
O Solidariedade é um dos partidos que compõem o centrão, junto de PP, PL e Republicanos.
O senador Esperidião Amin (PP-SC), líder do bloco formado por senadores de PP, Republicanos e MDB, afirmou que a chapa Moro-Huck ainda se mostra uma "especulação sem qualquer consequência" e não "um projeto".
"Nós estamos em uma pandemia. Temos um período eleitoral que vai até o dia 29. Então eu nem tenho coragem de discutir a sucessão no Senado quando me perguntam, quanto mais 2022", disse.
"Não estou criticando quem queira discutir. [Mas] O Huck almoçar com o Rodrigo Maia. O Rodrigo Maia deveria estar preocupado em organizar a comissão do Orçamento", afirmou.
Congressistas também afirmaram que o "timing" do encontro entre Huck e Moro demonstra uma falta de conhecimento da política nacional, que avaliam ser um ponto negativo para a aliança.
Um senador, que não quis se identificar, disse que os dois foram ingênuos se consideraram que o encontro não seria descoberto ou então, caso soubessem que seria divulgado pela mídia, escolheram o momento errado para se reunirem, semanas antes do primeiro turno das eleições municipais —com a atenção de políticos e do público voltada para esse tema.
Além disso, nos bastidores, a interpretação é que, se quiserem se tornar uma chapa viável, ambos precisam buscar apoios partidários e evitar incorrer no que é visto como um equívoco de Bolsonaro: vencer a eleição sem uma base consolidada e, agora, depender do apoio de partidos do centrão para aprovar projetos de interesse do governo no Congresso.
Bolsonaro se elegeu pelo PSL, mas rompeu com o partido em novembro de 2019, em uma decisão que rachou a legenda e diluiu a rede de congressistas que respaldam os textos do Executivo.
Diante da ameaça de processos de impeachment, precisou recorrer à política do "toma lá dá cá" e oferecer cargos ao centrão —formado por partidos como PP, PL e Republicanos— em troca de votos.
"Eu sempre acho que, por trás de uma candidatura, tem que ter uma base partidária forte de sustentação, para não acontecer o que aconteceu com o Bolsonaro, que chega ao poder, criticou a vida inteira a política velha, a política do centrão, e hoje é ícone do centrão", disse o senador Otto Alencar (PSD-BA), líder da legenda.
Para não correrem risco de ficar sem base no Congresso, uma aliança entre Moro e Huck precisaria do apoio não só do centrão, mas de partidos com grandes bancadas, como MDB e DEM —que somam 63 deputados.
Os congressistas avaliam que alianças apenas eleitorais pouco contribuiriam para criar uma situação de governabilidade.
Por isso consideram que a época de "dois outsiders" na mesma chapa tenha se encerrado com a eleição de Bolsonaro. Acham mais viável uma chapa com uma figura de alta popularidade fora da política compondo com algum político de partido estabelecido.
A viabilidade da chapa também esbarra em alguns outros entraves.
Um deles é a interpretação de que Huck e Moro não representariam uma candidatura de centro, como argumentou o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), presidenciável que terminou em terceiro lugar na eleição de 2018.
"No dia em que [o governador de São Paulo, João] Doria, Huck e Moro forem de centro, eu sou de ultraesquerda, o que eu nunca fui", disse na segunda-feira.
O senador Otto Alencar também tem posição parecida, afirmando que Moro é uma figura política de direita.
"Se o Moro foi ser ministro de Bolsonaro é porque ele concorda com o Bolsonaro. Se a demissão mudou o juízo dele, aí é outra história", provocou o senador.
"Na minha opinião, ele [Moro] não tem nada que ver com centro. Eu, por exemplo, defendo uma posição de centro-social, centro-esquerda, uma posição bem organizada de finanças e trabalho para conter o déficit fiscal e investir tudo o que puder na educação, na saúde e ação social", disse Alencar.
Em setores do Congresso, o discurso anticorrupção de Moro abre portas, enquanto há dúvidas sobre quais pautas seriam prioritárias para Huck —para alguns, o apresentador é pouco liberal e inclinado a uma agenda social.
Mas o ex-ministro também tem rejeição mais forte, principalmente por deputados que criticam a forma como conduziu a Lava Jato.
A aproximação de Huck e Moro seria, na leitura de congressistas, um balão de ensaio para testar a recepção aos dois nomes. Nesse contexto, alguns interpretam a decisão de Huck de almoçar com Maia logo após as críticas do deputado ao ex-ministro como uma tentativa de reorganizar o apoio.
Assim, em vez de compor chapa com o ex-juiz, Huck poderia se filiar ao DEM. Isso abriria também caminho para uma aliança com Doria, o que eliminaria um dos argumentos que poderiam ser usados contra o discurso de que se trata de alternativa ao governo: o de que Moro, afinal, fez parte do governo Bolsonaro até abril deste ano.
Merval Pereira: A busca do equilíbrio
Chamar o ex-juiz Sérgio Moro de extremista de direita é evidentemente um abuso de linguagem com objetivo político. O presidente da Câmara Rodrigo Maia e a direção do Democratas, inclusive seu presidente ACM Neto, estão há tempos participando dos preparativos para o lançamento da candidatura de Luciano Huck à presidência da República, e o encontro dele com Moro em Curitiba deve tê-los apanhado de surpresa, daí a reação exagerada.
Como uma parte independente do Centrão, o DEM tem que zelar pela capacidade de aliança do grupo, e Moro é figura non grata de todo político apanhado na malha da Lava-Jato, ou que pode vir a ser. Sobram poucos que apóiam ainda a maior operação de combate à corrupção já realizada no país, e Moro, por falta de traquejo político, não se aproxima nem mesmo desses.
Também a esquerda esperneou com a aproximação de Huck com Moro, tendo o presidente do Partido Socialista a classificado de “erro crasso”. Para quem pretende expressar uma candidatura de centro-esquerda, Luciano Huck foi além dessa bolha, praticando o que o presidente do Cidadania, Roberto Freire, define como a saída para enfrentar a polarização em 2022: aceitar todos os que pretendem a derrota de Bolsonaro, sem idiossincrasias.
A eleição de Joe Biden nos EUA provou que, contra um extremista de direita, o melhor é uma pessoa de centro, não um extremista de esquerda. Em 2018, no Brasil, tivemos um embate entre direta e esquerda e as candidaturas de centro não foram adiante porque se queria uma disputa sangrenta, uma agressividade na campanha que o centro não oferecia.
Mas depois de dois anos de Bolsonaro e quatro de Trump, fica claro que cansa essa situação permanente de tensão, de agressividade e de disputas políticas que chegam a ser guerra. Bolsonaro está em permanente guerra, e foi o que aconteceu com Trump, que durante quatro anos colocou os EUA de cabeça para baixo, incentivou a violência e a agressividade de seus seguidores.
Aqui, a tendência deve ser essa também, de as pessoas cansarem do Bolsonaro, cujo único propósito é atacar e destruir, sem criar nada. Um candidato de centro, com capacidade de confrontar Bolsonaro e chamar os eleitores para uma reconciliação nacional pode derrotá-lo. Uma candidatura com visão mais social do país, visando a redução da desigualdade, terá mais chance de vitória. Mesmo porque a economia está mal, e não dá sinais de recuperação.
A questão será definir quem é quem no espectro político nacional. O Centrão é de direita ou extrema-direita? Ciro Gomes é de esquerda, de centro, ou de extrema-esquerda? Houve época em que Rodrigo Maia não queria saber de esquerda na hipotética formação de um novo partido, que deveria ser de centro-direita. Hoje, um partido de centro-esquerda é o objetivo dos que se preparam para confrontar Bolsonaro em 2022.
Classificar Moro de extrema-direita por ter participado do governo Bolsonaro é acatar a tese de que ele aceitou o convite não para fortalecer o combate à corrupção, mas para obter benefícios pessoais. Se fosse assim, teria aderido às insanidades de Bolsonaro e permanecido no governo, aguardando uma vaga para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Pode ter ficado mais tempo do que devia, acreditando poder conseguir êxitos que só seriam possíveis com um governo empenhado no combate à corrupção, e não nesse de Bolsonaro, que tem tanto a esconder quanto os políticos do Centrão que o cercam.
Pode ter sido ingênuo ao aceitar o cargo, e ao permanecer nele, e essa não é uma qualificação que o habilite a ser candidato à presidência da República. Não é possível imaginar-se que a história se repita, mas é preciso aprender com os fatos. Joe Biden, protótipo do político tradicional de centro, já desde a vitória de Obama sentiu o espírito do tempo e foi capaz de dar uma resposta convincente.
Derrotou a esquerda partidária nas primárias, mas ganhou o apoio do senador Bernie Sanders e da senadora Elizabeth Warren, e chamou a deputada Alexandra Ocasio-Cortez, fenômeno da nova esquerda, para participar da formulação de seu programa de governo.
Ricardo Noblat: O centro está engarrafado com aspirantes a candidatos em 2022
Política é a arte da conversa em busca do entendimento
Sem conversa não se faz política. É saudável que os diretamente interessados nas eleições presidenciais de 2022 comecem a conversar. Daí porque é estranha a reação do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, à notícia de que o apresentador Luciano Huck e o ex-juiz Sérgio Moro se reuniram.
Huck ainda não teve coragem para se assumir como candidato à sucessão de Jair Bolsonaro, e pode ser que jamais venha a ter. Mas ele se mexe como se pudesse ser. Moro é mais discreto. Mas mesmo que não concorra, seu apoio será disputado.
Maia disparou em Moro ao dizer que não apoiará “uma chapa integrada por alguém de extrema-direita”. A mulher de Moro, no passado, disse que o marido e Bolsonaro são a mesma coisa. À época, Moro e Bolsonaro estavam de bem.
Foi a declaração de uma mulher eufórica com a perspectiva de ver o marido ocupar uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Ela não repetiria, hoje, o que falou. De resto, se Moro é um extremista de direita como quer Maia, Bolsonaro é o quê?
Lula e Ciro Gomes também conversaram. Lula nada revelou a respeito. Ciro, provocado, afirmou: “Lavamos roupa suja pra valer. Sob o ponto de vista das compreensões da questão brasileira, continuamos como estávamos antes de conversar”.
Fiel ao seu estilo briguento, Ciro aproveitou para bater em Moro, no governador João Dória (PSDB) e indiretamente no ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta que andam tendo muitas conversas. Acusou-os de ser de direita. De centro, seria ele, Ciro.
O “Efeito Joe Badin” já se faz sentir nas preliminares da eleição presidencial de 2022. São muitos os aspirantes a candidatos desejosos em se credenciar como possíveis nomes do centro. Ou de centro-esquerda. De centro-direita, só se for muito necessário.
Derrotado nos EUA, Bolsonaro prepara-se para perder aqui
Deve haver alguma razão para que ele se comporte assim
Foi ontem que o presidente Jair Bolsonaro, no que chama de seu programa eleitoral gratuito no Facebook, apareceu ao lado da Delegada Patrícia Amorim (PODEMOS), candidata a prefeita do Recife. Mas foi na semana passada que anunciou seu apoio a ela.
Até então, Patrícia estava bem nas pesquisas de intenção de voto. Superara o candidato do DEM, Mendonça Filho. E ameaçava atropelar Marília Arraes (PT) para disputar o segundo turno com o deputado João Campos (PSB). Por enquanto, já não ameaça.
A mais recente pesquisa Ibope mostra que Patrícia caiu quatro pontos percentuais, que Mendonça Filho cresceu e Marília também. O índice dos eleitores que dizem que não votarão de jeito nenhum em Patrícia dobrou nos últimos sete dias.
Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos), o candidato festejado por Bolsonaro, continua andando para trás. Despencou de 20% para 12% e ficou um ponto percentual atrás de Guilherme Boulos (PSOL). A rejeição a Russomano bateu a casa dos 40%.
Bolsonaro ainda tem esperança de que seu candidato a prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), dispute o segundo turno com Eduardo Paes (DEM). Ele está um ponto à frente da Delegada Martha Rocha (PDT), mas cresce entre os eleitores mais pobres.
Cresce também a torcida de Paes para enfrentar Crivella no segundo turno. Seria para ele o adversário mais fácil de derrotar. Em sua live no Facebook, Bolsonaro citou outros candidatos que têm o seu apoio nas capitais. Todos na rabeira das pesquisas.
Votar neles, segundo disse Bolsonaro, seria uma maneira de fortalecê-lo e ao seu governo, e de derrotar os que lhe fazem oposição. Sim, Bolsonaro disse isso, sujeitando-se a que se diga mais tarde que seu apelo não foi atendido e que ele perdeu.
Bolsonaro começou a cavar sua derrota nas eleições deste ano quando abandonou o PSL pelo qual se elegeu presidente da República, e tentou, mas não conseguiu criar um partido para chamar de seu. Prometeu então que ficaria neutro. Não ficou.
No caso das eleições americanas, para quem se diz amigo de Trump que não fala a sua língua, nem Bolsonaro a dele, poderia até ser compreensível que apostasse em sua vitória. Mas não a ponto de negar-se a reconhecer que Joe Biden ganhou.
Escolheu, portanto, comportar-se como se ele, Bolsonaro, também tivesse perdido, e, como Trump, alimentasse a esperança de reverter a derrota no tapetão da Suprema Corte. A opção por ser vencido lá e cá deve ter alguma misteriosa explicação.
Dizem ministros que o cercam que Bolsonaro com isso quer dar mais uma demonstração de fidelidade à sua base eleitoral de raiz que não admite recuos. Ela está incomodada com o fato de ele ter se rendido à política tradicional que antes dizia abominar.
É, pode ser. Mas essa base já foi muito maior. E tende a encolher mais quando aparecerem nomes para disputar seus votos com Bolsonaro em 2022. Aí o bicho vai pegar para ele.
Folha de S. Paulo: Moro e Huck negociam aliança eleitoral para disputa da Presidência em 2022
Ex-juiz e apresentador de TV encontraram-se em Curitiba para conversar sobre 'terceira via'
Fabio Zanini, da Folha de S. Paulo
Dois dos principais nomes do centro no espectro ideológico na política, o apresentador Luciano Huck e o ex-ministro Sergio Moro iniciaram conversas para formar uma aliança na eleição presidencial de 2022.
Eles tiveram um longo encontro no apartamento de Moro, em Curitiba, no dia 30 de outubro, em que acertaram a intenção de se unir em uma espécie de “terceira via” para disputar o Palácio do Planalto daqui a dois anos.
Como foi uma conversa inicial, não se decidiu quem seria o cabeça de chapa de uma eventual candidatura conjunta. Essa é uma discussão, avaliaram ambos, para ser feita ao longo do ano de 2021.
O convite para o encontro partiu de Moro. Huck chegou à residência do ex-juiz da Lava Jato por volta das 12h. Almoçaram na varanda do apartamento e estenderam a conversa até pouco antes das 15h.
Ambos se encontraram na edição de 2019 do Fórum Econômico Mundial, em Davos, quando Moro, então ministro da Justiça, acompanhava a participação do presidente Jair Bolsonaro.
Ele e Huck, que também estava no evento, trocaram telefones e têm mantido contato esporádico remotamente desde então.
Nunca haviam tido uma longa conversa pessoalmente sobre política, no entanto. Segundo a Folha apurou, o apresentador da TV Globo e o ex-juiz concordaram que há espaço para a construção de uma candidatura em 2022 com a marca da “racionalidade”.
Em outras palavras, que não esteja atrelada nem à direita ligada a Bolsonaro nem à esquerda que orbita em torno de Ciro Gomes (PDT) e do PT do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Um dos objetivos mais imediatos é buscar ampliar essa frente trazendo outros líderes com perfil centrista.
Há, porém, candidaturas já postas neste campo, a principal delas a do governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Também corre na mesma raia ideológica o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM), por exemplo.
De qualquer forma, Moro e Huck não definiram uma lista fechada de pessoas que querem atrair para o projeto, apenas o objetivo geral de agregar apoios. Ambos ficaram de voltar a conversar em breve sobre a ideia desta “terceira via”.
A candidatura teria um tripé, mesclando temas caros à direita e à esquerda: agenda liberal para a economia, luta contra a corrupção e redução da desigualdade social.
Ex-juiz responsável pela Operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça até romper com Bolsonaro em abril deste ano, Moro tem a imagem atrelada ao enfrentamento de grandes esquemas de corrupção.
Já o combate à desigualdade é uma bandeira de Huck, ligado a diversas iniciativas na área social e no empreendedorismo. Quanto à liberdade econômica, é um ponto com o qual ambos têm concordância.
Os dois também fizeram uma análise sobre o potencial eleitoral de Bolsonaro em 2022. Concluíram que ele terá força na campanha de reeleição, até por reinar praticamente sozinho em um segmento da sociedade relevante, o conservadorismo.
Mas a avaliação feita no encontro é que o ano de 2021 tende a ser difícil para o presidente. Para Huck e Moro, Bolsonaro deve perder parte de seu capital político nos próximos meses, principalmente em razão do fim do auxílio emergencial e da manutenção do nível de desemprego em patamares elevados no pós-pandemia.
Para viabilizar a aliança eleitoral, Moro e Huck precisariam se filiar a partidos políticos até abril de 2022, seis meses antes da eleição.
O apresentador é próximo do Cidadania, ex-PPS, que já lhe ofereceu legenda no passado. Huck também teria que acertar de forma amigável sua saída da Rede Globo, provavelmente no segundo semestre do ano que vem.
Já o ex-juiz recebeu sondagens de diversas legendas quando saiu do governo, como Podemos e Novo, mas até o momento rechaçou essas sinalizações.
Huck e Moro nunca foram próximos, mas já houve gestos políticos entre ambos no passado. Quando o ex-ministro rompeu com Bolsonaro, Huck telefonou para ele solidarizando-se com os ataques que já começava a receber dos apoiadores do presidente.
O apresentador também escreveu, em uma rede social, que a saída do ex-juiz do Ministério da Justiça gerava “uma enorme frustração”.
“Tudo indica que as mudanças tão defendidas pela população ficam adiadas. Em especial a agenda anticorrupção e o combate firme ao crime organizado e às milícias”, disse o apresentador na época.
Procurados pela Folha, Huck e Moro não quiseram se manifestar sobre o encontro.
A formação de uma candidatura competitiva de centro para 2022 é um dos principais objetivos de partidos que não se aliam a Bolsonaro nem à esquerda.
A avaliação é que a construção dessa alternativa precisa começar agora, uma vez que os dois polos mais radicalizados monopolizam o debate público e tendem a impulsionar-se mutuamente na corrida eleitoral.
Além de Doria e Mandetta, são citados neste campo, embora com menos força, nomes como os do ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa, ligado ao PSB, e do empresário João Amoêdo, do Novo.
Na esquerda, Ciro provavelmente será candidato novamente, e há uma indefinição sobre o PT.
Na improvável hipótese de a Justiça restabelecer os direitos políticos de Lula, ele certamente será o candidato. Caso contrário, os nomes mais fortes são do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e do governador do Maranhão, Flávio Dino, caso troque o PC do B pelo PT.
O PSOL pode novamente apresentar a candidatura de Guilherme Boulos, se não vencer a eleição para prefeito de São Paulo.
Luciano Huck: Não será possível crescer sem um plano de metas ambiental
Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha
Sigo achando que no espaço de uma geração não iremos produzir tênis mais baratos que a China, tampouco componentes eletrônicos mais competitivos que Taiwan. Mas sigo também acreditando que nenhum outro país no planeta tem o potencial natural que o nosso.
Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha. Assim sendo, já está mais do que na hora de entendermos que pensar verde, além de fazer bem para nossa consciência, fará ainda mais pelos nossos bolsos. Já cheguei a tratar deste tema em outro artigo aqui nesta Folha, mas o noticiário e a conjuntura exigem que o debate vá adiante.
Minha curiosidade se divide entre os dois séculos e de tudo o que o mundo passou nestas últimas décadas.
Acabo de ler o livro “Brasil, Paraíso Restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Ele traz posições que permitem ampliar ainda mais o pensamento do futuro do Brasil como potência verde.
Está claro que a bússola mudou depressa na virada do milênio.
Duas décadas atrás, as nações guiavam-se pelas metas de crescimento da produção. Aprendemos a medir sucesso ou insucesso na economia por meio das taxas de crescimento do PIB.
Hoje muito se discute se esta métrica já não deveria ter ficado no século passado. Ainda não temos algo confiável e aceito por todas as economias do planeta como um marcador mais moderno, mais conectado com os anseios e necessidades das sociedades, países e do planeta como um todo. Mas vale registrar o que já esta acontecendo —e refletir sobre isso.
Na Alemanha, por exemplo, o rumo mudou de norte em 2005, quando o governo passou a perseguir o objetivo central de transitar para uma economia limpa. Desde então, todo o planejamento estratégico do país é montado para cumprir metas quantitativas relacionadas a combater o aquecimento global. A União Europeia passou a seguir o modelo a partir de 2007.
O crescimento da produção não foi esquecido. Mas foi inteiramente subordinado ao Plano 20-20-20: 20% de aumento na produção de energia renovável; 20% de diminuição no consumo de energia; 20% menos emissões de gases de efeito estufa.
A meta, adotada em 2007, foi cumprida antes do prazo de 2020. Neste ano, em plena crise da Covid, foi substituída por outra, ainda mais ambiciosa: o Green Deal. Esta meta central da União Europeia já não é apenas um instrumento de planejamento. Foram alocados 2 trilhões de euros —todo o plano de ajuda econômica para vencer a recessão— como instrumento para se alcançar uma economia sem emissões positivas em 2050.
Em pouquíssimas palavras: o futuro da economia da União Europeia está sendo associado à criação de uma economia limpa. Todo o dinheiro, todo o esforço econômico, toda a política social, todo o desenho de organização do mercado.
Mas isso não é só um fenômeno europeu. Vejamos a China. Se nas últimas décadas foi a grande vilã no litígio produção versus sustentabilidade, ela tem agora um objetivo central da ação econômica a que chamaram de “Uma Civilização Ecológica”.
O objetivo norteia o Plano Quinquenal 2016/2021, que centraliza a ação interna do governo: 10 das 13 grandes metas nacionais estão relacionadas ao meio ambiente. Já a política externa tem como norte o programa intitulado “Cinturão e Rota” – com o objetivo central de levar ao mundo a civilização proposta.
Essa nova bússola de grandes governos mostrou-se capaz de dar suporte a uma monumental mudança na avaliação para alocação de capitais privados, em escala planetária. A estimativa atual é a de que existe algo em torno de US$ 30 trilhões (cem vezes as reservas brasileiras) de investimentos privados que só podem ser aplicados em projetos que levem ao equilíbrio ambiental.
O roteiro para aplicação tem o nome de cláusulas ESG (Environmental, Social, Good Governance –Ambiental, Social e Boa Governança, em português). É acatado pelos maiores fundos de pensão, seguradoras, grandes fundos de investimento – e por uma infinidade de bancos e empresas. Todos optando voluntariamente por aportar dinheiro segundo essas cláusulas.
Os frutos das aplicações na economia real são cada vez mais visíveis. A produção de energia solar e eólica foi multiplicada por 150 entre 2000 e 2020. Neste ano, por causa da recessão, a previsão é de que as fontes renováveis como um todo superem o carvão –a fonte de energia mais comum desde o século 18, além de ser a mais poluente– na matriz elétrica mundial.
Nos Estados Unidos a mudança para o planejamento estratégico a partir de metas ambientais foi já adotada em 24 estados. O governo federal, sob Donald Trump, ficou de fora. Mas vale notar que o ponto número um do programa do candidato democrata Joe Biden é fazer exatamente o mesmo que a União Europeia e a China fazem.
E o Brasil? O país vive de opostos. De um lado é o país onde a natureza produz mais vida no mundo —e onde, ao longo dos séculos, empresários, empreendedores e pessoas de todos os estratos sociais moldaram uma matriz energética que é a mais limpa do mundo.
Do outro, é o país mais distante da adoção das metas nacionais de transição para uma economia limpa. O governo federal planeja e –pior– executa na direção contrária. Governos estaduais hesitam em abraçar essa agenda. Os candidatos a prefeito deveriam ter em seus programas como efetivamente pretendem melhorar a situação ambiental de sua cidade —mas em geral não têm.
Andamos na contramão do mundo por gosto, não por precisão. Não na economia real, mas no quadro institucional. A situação só não é pior porque, no setor privado, muitas grandes empresas têm se movimentado, saído da inação para ações concretas na tentativa de proteger nossa imagem mundo afora e a nossa economia.
Assim estamos jogamos pela janela aquela que é uma oportunidade secular para avançar. No século 19, nos faltou carvão. Na maior parte do século 20, nos faltou petróleo. Não falta sol, nem vento, nem plantas que fornecem combustível que não produz efeito estufa. Temos tudo para a economia do século 21.
A matriz energética que a União Europeia, a China e, dependendo das eleições, os Estados Unidos querem para 2050 pode ser alcançada no Brasil em menos de uma década. O país tem a base real para ser a grande economia limpa do planeta.
Mas, no ritmo que a banda toca, corremos um seríssimo risco de sermos enquadrados pelas três maiores economias do mundo como um país irresponsável na luta pelo equilíbrio ambiental. Nos últimos anos, detentores de grandes capitais vêm tentando convencer as autoridades brasileiras que estão fazendo o pior negócio do mundo ao chutar o dinheiro ESG. Se houver união dos governos das três grandes economias nesse jogo de pressão, restrições mundiais à produção brasileira entrarão muito depressa no horizonte.
Temos de mudar, e mudar bem depressa. Não se trata de programa para um governo, mas para a Nação. Um sonho maior, um plano de metas ambiental. De braços dados com o melhor do setor privado para executar seu papel essencial para que a mudança aconteça. Ecoar as boas ideias. Na União Europeia e no programa de Biden, o investimento em transição ambiental surge como fonte de empregos e de uma economia de serviços na área rural. De maior justiça social.
O Estado brasileiro foi montado para resolver os problemas de desenvolvimento de 1950, concentrando capitais para grandes projetos. Este objetivo de futuro já ruiu. Perdemos tempo, mas –graças à nossa natureza fértil, enorme potencial energético renovável e diversidade de biomas– ainda temos oportunidade. Temos a sorte ser donos de um passe fundamental para a nova era. Não podemos desperdiçar. Precisamos mudar –pois nos interessa e nos orgulha– ou seremos mudados à força e com vergonha.
Infelizmente hoje o Brasil não lidera nenhuma agenda global, além da tragédia da Covid-19, mas estou seguro de que, com uma mudança clara de caminho, podemos exercer mais rápido que o período de uma geração o papel de grande Potência Verde do planeta. Um país altamente produtivo, de fato comprometido com o meio ambiente e gerando riquezas para combater suas desigualdades. Eu acredito.
*Luciano Huck, apresentador de TV e empresário
Uma conversa: Luciano Huck & Rutger Bregman
Jovem ativista e historiador holandês defende que “preguiça” seja mais taxada do que trabalho e que pobreza seja resolvida dando dinheiro às pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado
Sei que sou um privilegiado, sei que sou visto assim. Homem, branco e nascido numa família de classe média de professores universitários --num país em que ser mulher, negro ou pobre já impõe obstáculos às vezes intransponíveis, cresci dentro de uma redoma social, estudando em bons colégios, protegido por meus pais e rodeado pelo carinho dos meus avós.
Mas, ali mesmo, ouvia as histórias de meu avô Maurício – que não eram exatamente as de um privilegiado. Na primeira metade dos anos 1930 ele vivia, em Grajewo, uma cidadezinha da Polônia com cerca de 2 mil habitantes. Era um adolescente judeu num mundo de ameaças. Atos corriqueiros, como andar pela vizinhança, traziam grandes perigos.
Meu avô sofreu violências e humilhações inúmeras vezes nos trajetos de casa para a escola. Até o dia que abriu a janela para deixar o sol entrar e viu uma oportunidade. Dela vislumbrava todo o centro de Grajewo, um quadrilátero em que as edificações de madeira, típicas dos bairros judaicos daquela época, ficavam todas coladas umas nas outras. Ele se apoiou no parapeito e dirigiu os olhos para aquela paisagem de telhados emendados uns nos outros, como retalhos de uma colcha. Estava bem ali, na sua frente, a solução. Poderia simplesmente caminhar pelo topo das casas.
A vida na dificuldade e a solução criativa para escapar dela formam uma impressão de infância que não me larga nunca, por melhor que estejam as coisas.
Profissionalmente, tive a liberdade de trilhar meu próprio caminho, a oportunidade de encontrar cedo a minha profissão e a sorte de ter podido ganhar dinheiro com aquilo que amo fazer. Quando a pandemia nos atingiu, eu tive imenso privilégio de poder parar o trabalho, me isolar em casa e me dedicar àquilo que eu tenho de mais precioso: a minha família. Foram quatro meses vivendo da porta para dentro. Todos agradecendo a cada dia por estarmos vivos e com saúde.
Mas vinha sempre o exemplo de meu avô Maurício. Havia muita angústia com aquilo que se passava da porta para fora, no Brasil e no mundo. Por isso busquei formas de “pular a janela e caminhar sobre as casas”. Usei minhas plataformas pessoais para divulgar mensagens responsáveis sobre a gravidade da doença. Amplifiquei a voz de quem não estava sendo ouvido. Articulei muitas iniciativas do setor privado de resposta social à pandemia. Fiz a ponte com favelas e comunidades carentes para a distribuição de recursos de emergência. E sigo tentando trazer alguma luz para o debate pós-pandemia por meio do diálogo com pensadores de vanguarda que respeito e admiro. E foi assim que nasceu esta série de conversas publicadas no Estadão.
Por aqui jé tive o privilégio de ser atendido por Yuval Harari, Esther Duflo, Michael Sandel, Tom Friedman, Thomas Piketty e tantos outros iluminadores. Sempre pensando em criar um caminho, passar dos problemas para as soluções, usando meus privilégios para tentar achar uma janela para o Brasil melhorar, buscar caminhos disruptivos para problemas que às vezes podem até parecer insolúveis.
Na conversa de hoje optei por um jovem muito talentoso e com ideias provocativas e pensamentos fora da caixa. Autor e historiador holandês, Rutner Bregman faz parte de uma nova onda de ativistas, pensadores e políticos, que inclui Alexandria Ocasio-Cortez, a nova congressista democrata de 29 anos, e Greta Thunberg, a manifestante climática de 16 anos, cujas alternativas radicais têm angariariado aceitação mundo afora.
Bregman tem 32 anos. Cresceu nas décadas de ambos os lados do milênio, nas quais grandes batalhas ideológicas eram consideradas uma coisa do passado.
Li seu último livro – Utopia Para Realistas – durante meu isolamento. Uma visão idealista que muitos descartariam como pura fantasia, mas faz pensar.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
Luciano Huck: Você é parte de uma nova legião de pensadores ativistas. Tem 32 anos e já está guiando importantes tópicos do debate público ao redor do mundo. Jovens como você, Alexandria Ocasio-Cortez, do Congresso americano, e Greta Thunberg são iluminadores de uma nova utopia. O Brasil é um país em que praticamente não há mobilidade social. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), demora nove gerações para que um brasileiro que nasceu em uma família pobre alcance a média da classe média. Em outras palavras, as pessoas aqui não têm nem sequer o direito de sonhar. O que dizer a elas? Há uma utopia possível para esta geração?
Rutger Bregman: Devemos começar reconhecendo que todo marco histórico da civilização em algum momento foi uma fantasia utópica. Quando pensamos na abolição da escravidão, na ascensão da democracia, no nascimento do Estado do bem-estar social... tudo isso começou com pessoas que, no princípio, foram descartadas e consideradas loucas, irrealistas, irracionais. Com pessoas que não foram levadas a sério. No entanto, em determinado momento, a ideia da mudança conquistou a maioria. É nisso que eu me interesso como historiador. Como é possível que ideias em princípio bizarras ou mesmo ridículas se desloquem para a corrente principal e acabem mudando a história do mundo? E nós estamos vendo isso acontecer.
Luciano Huck: Seu livro mais recente se dispõe a discutir como construir um mundo melhor usando a utopia como importante ferramenta, com pensamentos arrojados e ideias inovadoras. O que mudou na sua visão depois da pandemia?
Rutger Bregman: Nos últimos 40 anos, vivemos a era neoliberal. O neoliberalismo é uma ideologia que nasceu em meados dos anos 50 com um grupo de pensadores muito importantes, incluindo os economistas Milton Friedman, americano, e Friedrich Von Hayek, austríaco. Eles acreditavam que o mercado poderia resolver tudo, que as empresas e negócios poderiam salvar tudo desde que o governo saísse da frente e nós abolíssemos todas as regras, diminuíssemos os impostos, etc. A desigualdade não seria um problema – desde que deixássemos os negócios livres, poderíamos resolver qualquer coisa. Isso teve uma influência imensa, principalmente após os anos 70 e 80, quando Ronald Reagan foi eleito nos EUA e a Margaret Thatcher foi eleita no Reino Unido. Eu nasci em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, e, especialmente depois da queda, as pessoas tinham essa ideia de que havíamos chegado ao “fim da história”, de que o comunismo tinha perdido e o capitalismo tinha vencido, de que esse modelo de capitalismo democrático era tudo o que restava e não havia mais nenhum grande problema a se resolver. Obviamente é muito difícil de acreditar nisso em 2020. Nós vimos o Brexit, a eleição de Donald Trump, vimos a ascensão de líderes autoritários pelo mundo, como Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil, vimos uma pandemia, a covid-19, mudar completamente nosso mundo.
A era neoliberal está acabando. Nós estamos caminhando para uma nova era. A era antiga girava em torno dos valores da competição e do individualismo, da noção de que as pessoas são fundamentalmente egoístas. Mas agora nós estamos caminhando para algo diferente, que pode ser muito pior, mas também pode ser muito melhor. Eu não sei se você viu, mas em abril deste ano o Financial Times, o principal jornal de negócios do mundo, um jornal para as pessoas ricas do mundo, publicou um artigo de seu conselho editorial dizendo que precisamos “reverter a direção das políticas dos últimos 40 anos” e pensar em aumentar os impostos dos ricos, dar ao governo um papel mais ativo, ter políticas mais arrojadas para estimular inovação, combater a mudança climática e erradicar a pobreza. Não estou dizendo que isso vai acontecer, mas acho que existe a esperança. Essas ideias eram antes totalmente descartadas por serem ridículas e bizarras, mas agora são as ideias principais. Acho que isso é um indício esperançoso.
“Em um país que quer se desenvolver, o combate a pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.”Luciano Huck
Luciano Huck: Nos seus trabalhos, você lembra que, nos últimos 200 anos, a população mundial tornou-se mais rica, bem nutrida e saudável. Que 84% da população mundial vivia na extrema pobreza em 1820, e que hoje essa parcela é menor do que 10%. Você pode falar um pouco sobre isso e como você enxerga o Brasil, um país com tantos pobres e miseráveis, nessa equação?
Rutger Bregman: Nós vivemos um momento muito paradoxal. Estamos na melhor de todas as épocas, mas talvez também estejamos na pior de todas. Por um lado é inegável que fizemos avanços extraordinários nos últimos 30, 40 anos. Se observarmos o mundo, a expectativa de vida aumentou, a extrema pobreza diminuiu, as pessoas são mais saudáveis, têm mais dinheiro, são mais ricas do que nunca. É um fato. Agora, você recentemente conversou com Thomas Piketty, o economista francês, certo? Ele aponta que a desigualdade também aumentou bastante, e isso também é um fato.
A desigualdade é um veneno para a sociedade. Ela separa as pessoas, envenena as democracias, destrói a sociedade civil. Há alguns países ricos ou de renda média que têm um grau incrivelmente alto de desigualdade. E esse é o caso específico do Brasil. Se existe um lugar em que as pessoas deviam falar muito de impostos, esse lugar é o Brasil. É onde você precisa dessa redistribuição massiva dos bens e da renda. Não estou dizendo que devemos migrar para uma sociedade comunista, onde todos têm a mesma quantidade de bens. Isso não vai funcionar. Mas você tem que impor um limite para a desigualdade. Porque, do contrário, você não consegue ter uma democracia efetiva e saudável. Chega um ponto em que você só distancia tudo, as coisas não funcionam mais. Nesse ponto você começa a ver as pessoas mais ricas comprando eleições, elas conseguem fazer o que quiserem, surgem dinastias, isso é muito louco. Outra coisa que também é bastante preocupante é o que estamos fazendo com o meio ambiente. Tenho 32 anos. Durante a minha vida foi emitido mais da metade de toda a emissão de gases da era industrial desde 1750. Em uma geração nós criamos a pior parte do problema, e agora nós temos uma geração para resolver. Então é uma época muito estranha para se estar. Por um lado, tivemos um progresso enorme, mas, por outro. parece que estamos dançando sobre um vulcão sem a certeza de que o futuro será tão iluminado.
Luciano Huck: Mas você acha que, depois de tudo que estamos passando, o mundo vai levar mais a sério os avisos da ciência sobre as ameaças climáticas e as suas consequências para a vida na Terra?
Rutger Bregman: As crises fazem isso. As crises te fazem perceber coisas que você sempre soube, mas que, por algum motivo, esqueceu. Um dos momentos que eu achei mais interessantes na pandemia foi nas primeiras semanas, quando os governos ao redor do mundo estavam definindo as listas dos chamados trabalhadores essenciais, que não podiam parar. Eu achei isso ótimo. Porque você olha para essas listas e descobre quais são os trabalhos realmente importantes na sociedade. Nessas listas estavam enfermeiras, coletores de lixo, professores... Um momento como esse te faz perguntar quem são os verdadeiros geradores de riqueza na nossa economia. Será que é verdade que toda a riqueza é gerada no topo e goteja para baixo? Ou será que a maior parte da riqueza é gerada embaixo, pelas pessoas que realizam os trabalhos de verdade?
“Todo marco histórico da civilização começou com uma utopia, com uma ideia considerada irracional”Rutger Bregman
Luciano Huck: Você assistiu esse novo documentário na Netflix, Dilema das Redes? Ele faz importantes alertas. Mostra que são jovens que programam as redes sociais que estão intensamente influenciando e pautando o mundo. São eles também que dominam os algoritmos mais poderosos da internet. Em sua enorme maioria, porém, eles estão pouco conectados aos problemas da vida real, do debate público e político.
Rutger Bregman: Tem uma citação ótima de alguém que trabalhou muito tempo no Facebook: “As melhores cabeças da minha geração estão pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios”. Você tem essas pessoas muito inteligentes que estudaram nas melhores universidades, e nós pagamos caro pela educação brilhante deles, mas então eles se formam e vão trabalhar nesses empregos estúpidos. Eles fazem isso por 20 anos, ficam muito ricos e daí têm uma crise da meia idade. Ficam completamente deprimidos porque a alma deles foi destruída. E então eles decidem que querem se tornar professores... Ué, por que não fizeram isso lá atrás? É algo muito estranho. Dentro disso que nós chamamos de economia do conhecimento, tem muito conhecimento desnecessário. Talvez precisemos voltar para a escola e pensar no que estávamos fazendo antes de alguém dizer que tínhamos que ganhar a vida.
Luciano Huck: Reduzir desigualdades, gerar oportunidades e mobilidade social sem ser um jogo de soma-zero. Quanto mais eu mergulho nas ideias mais modernas de políticas públicas, mais eu acredito que seja possível. Na minha opinião, esse devia ser o maior legado da nossa geração. O que me preocupa são os recursos humanos, as melhores sinapses se dedicando a servir a um propósito, o que não acontece hoje. Ainda prevalece o velho cada um por si. Mesmo se reunirmos todos os filantropos do Brasil, eles não seriam capaz de mover o medidor das desigualdade. Só o Estado tem esse poder. E o Estado é gerido pela política. Por isso nós precisamos de bons políticos, precisamos formar novas lideranças. Como você vê essa necessidade de novas lideranças ocuparem os espaços da política?
Rutger Bregman: Primeiro eu quero dizer algo sobre a filantropia. Eu não sou contra a filantropia. Se as pessoas são ricas e querem dar dinheiro para boas causas, isso é ótimo. O que eu sou contra é quando as pessoas ricas dizem que não precisam pagar impostos porque já estão dando dinheiro para as causas. A filantropia é usada como uma distração: as pessoas fazem um projeto qualquer para ajudar a educação, vão nos seus iates particulares para algum país africano, tiram um monte de fotos para mostrar que estão amparando as pessoas de lá e, ao mesmo tempo, evadem seus impostos. É isso que eu sou contra. Primeiro pague seus impostos, depois você me conta dos seus planos de salvar o mundo.
Sobre as lideranças e os políticos, eu, na verdade, tendo a focar em outras coisas, pois acho que os políticos estão quase sempre no fim da fila – quando todos já estão convencidos de que precisamos ir em outra direção, só aí eles percebem. Então o zeitgeist (espírito da época) tem de mudar primeiro. É só depois do trabalho do ativismo de mudar o mundo, de mudar as cabeças das pessoas, de fazer a coisa acontecer, que os políticos vão pensar “olha posso ganhar votos com isso”.
Estou animado com a ideia de dar a todos uma renda básica, erradicar completamente a pobreza, e de dar a todo mundo um pouco de capital de risco para que as pessoas possam ter as próprias escolhas na vida. Há dez anos, essa era uma ideia completamente descartada. Mas houve muita pressão de ativistas, as pessoas têm escrito sobre isso, têm pensado sobre isso, têm falado sobre isso, e só agora os políticos e os legisladores estão se interessando. Mas essas coisas nunca começam com eles; elas sempre começam nas ruas ou em lugares onde só tem café ruim e pessoas com cabelos compridos que parecem anarquistas e são meio fedidas... hahaha.
“O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter”Rutger Bregman
Luciano Huck: Hoje o Brasil é um país momentaneamente anabolizado, da popularidade do presidente aos números do comércio, pelo impacto do programa emergencial de transferência de renda que o Congresso aprovou durante a pandemia. Programa necessário, é importante frisar, que evitou nosso caos social. Mas um programa econômico e fiscalmente inviável em condições normais de temperatura e pressão para a realidade brasileira. A menos que seja um programa bem planejado, bem executado, bem fundamentado. Seu trabalho discute e aprofunda a questão da renda mínima. Qual sua avaliação sobre esses programas de emergência pelo mundo?
Rutger Bregman: Há esse debate antiquado entre pessoas de direita e de esquerda, no qual as pessoas de esquerda dizem “nós precisamos ajudar os pobres, dar dinheiro a eles” e as pessoas à direita dizem “não devemos fazer isso, pois isso torna as pessoas dependentes e preguiçosas e nós não podemos bancar tudo isso”. Esse é o debate-padrão que geralmente vemos na política. Acho que devemos ir além disso. A renda básica, na verdade, é um investimento que paga a si mesmo. Se você é um empreendedor, você obviamente sabe que, para ficar rico no futuro, você deve começar a fazer investimentos agora. Nós temos muitas evidências científicas de que, uma vez que você dá às pessoas os meios para tomarem as próprias decisões na vida, pouquíssimas delas desperdiçam dinheiro. A maioria dos pobres gasta seu dinheiro em moradia, educação, roupas, nas necessidades básicas. E então você vê as crianças indo melhor na escola, o custo da assistência médica diminui, o crime diminui. Se uma criança vai melhor na escola, ela vai conseguir empregos melhores; e, se ela tem um emprego melhor, ela paga mais impostos. Logo, isso é um investimento que te dá muito retorno. Se o crime diminui, você gasta menos com a polícia e com o sistema judiciário. A assistência médica é extremamente cara, imagine se o gasto com ela diminui? Você vai gastar menos com médicos e, além disso, se as pessoas são mais saudáveis, elas podem trabalhar por mais tempo e pagar impostos por mais tempo.
Se você se aprofundar nisso, você verá que a pobreza é o verdadeiro problema. Por isso, a renda básica não é algo de direita ou de esquerda, é simplesmente avançar. E, na história, temos pensadores e economistas mais identificados com a direita que são a favor de programas como esse, porque é uma ideia realista e racional com a qual todos vão se beneficiar.
Luciano Huck: Ainda no tema da erradicação da pobreza extrema, você enxerga mais eficiência nos programas de transferência direta de recursos ou nos programas de benefícios sociais? Por exemplo para a população em situação de rua, você acredita mais em dinheiro no bolso para a pessoa alugar um lugar para morar ou em albergues de acolhimento com serviços sociais?
Rutger Bregman: Se você ver uma pessoa desabrigada na rua, essa pessoa, em outro mundo, poderia ser sua advogada, poderia ser sua encanadora, poderia ser a sua professora, poderia ser a sua enfermeira. Toda pessoa desabrigada é um desperdício inacreditável de capital humano. Então, mesmo que você não tenha um coração, você ainda tem uma carteira. Nós deveríamos ser mais realistas e pragmáticos sobre todas essas coisas. O que é a pobreza? Pobreza é a falta de dinheiro. Como você resolve isso? Você dá dinheiro às pessoas. Isso funciona? Sim, temos muitas evidências disso. Podemos pagar por isso? Sim, nós podemos, porque não fazer nada a respeito da pobreza é muito mais caro. Os países com mais pobreza são prósperos, estão indo bem? Não, claro que não. Quais são os países mais inovadores, com os maiores índices de desenvolvimento humano? Olhe para a Escandinávia, por exemplo, onde todos têm direito a um forte Estado de bem-estar social e têm assistências de educação e de saúde. E isso não é só a coisa certa a se fazer, é porque te fornece uma sociedade mais eficiente e civilizada, onde todos se beneficiam, incluindo os ricos.
Luciano Huck: Estou há mais de 20 anos rodando meu país, entrando na casa das pessoas, ouvindo, conversando e contando sua histórias na TV. O que me trouxe ao debate público é meu enorme incômodo com nossas abissais desigualdades. Na minha última conversa neste mesmo ‘Estadão’ com Thomas Piketty, ele me disse que o Brasil não se desenvolverá enquanto não endereçar suas desigualdades – e eu concordo. Em um país que quer se desenvolver, o combate à pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.
Rutger Bregman: Observando a história e o século 20, vemos que o melhor período foi dos anos 50 até os anos 70 para os países europeus e para os EUA. Na França, eles chamam de “Trente Glorieuses”, os 30 anos gloriosos, com o nível mais alto de crescimento econômico, mais inovação, invenções pioneiras, tudo estava melhorando radical e rapidamente. Além disso, se você analisar, esse foi o período com menos desigualdade, foi quando havia altos impostos para os ricos. Acho que deveríamos ter impostos baixos para os que trabalham e impostos altos para rendas como aluguel, rent-seeking, fortunas, heranças, etc. Eu costumo falar de imposto sobre a preguiça: a preguiça deveria ser taxada e o trabalho não deveria ser tão taxado. Essa é a mudança de que nós precisamos e isso é exatamente o que vimos nos anos 50 e 60. Eu acho que a história nos ensina que a sociedade poderia funcionar muito melhor assim.
Como eu disse, nos anos 70 nós entramos na era neoliberal, que foi uma era bastante decepcionante. Alguém poderá falar da evolução tecnológica, de coisas como a internet, a telefonia móvel, etc. Mas é importante lembrar que a maioria dessas inovações foi financiada com impostos, com a ajuda do governo. Tem uma economista brilhante, Mariana Mazzucato. Ela escreveu um livro chamado O Estado Empreendedor, você vai gostar dele. Ela mostra que em cada lasca de tecnologia que faz do iPhone um smartphone, em vez de um stupidphone, a tecnologia móvel, o GPS, a bateria, tudo o que faz dele um aparelho tão bom, foi inventado por pesquisadores que estavam na folha de pagamento do governo. O que a Apple fez foi pegar essas inovações e criar um belo produto com elas, o que é ótimo, mas a Apple não teria feito isso sem todas essas inovações financiadas pelo dinheiro público. E agora o que acontece? A Apple não paga tributos, está evadindo os impostos com a ajuda de paraísos fiscais, como a Holanda, onde eu moro. Isso não deveria ser assim. É claro que nós precisamos de empresas criando bons produtos, mas elas precisam pagar seus impostos para que nós possamos financiar a próxima rodada de inovações fundamentais e, com isso, criar novos bons produtos, certo?
Luciano Huck: Passei alguns dias das minhas últimas férias em um lugar chamado Preá, no Estado do Ceará, nordeste do Brasil. Um lugar paradisíaco, que está se desenvolvendo por causa das fortes correntes de vento que tornaram o local um dos melhores pontos do planeta para a prática do kite surfe. Mas hoje, se uma grande indústria petroquímica se instalasse no local, apesar de afetar muito negativamente o meio ambiente, o PIB local cresceria barbaramente. Como você enxerga as métricas modernas de aferição de riqueza e desenvolvimento?
Rutger Bregman: Quando você vê os noticiários, você escuta bastante sobre isso, sobre a importância do crescimento econômico, que o crescimento econômico é a coisa mais importante do mundo. Nós devemos ser um pouco mais críticos quando os jornalistas e os políticos dizem isso. A questão é crescimento do quê? O crescimento pode ser uma coisa maravilhosa. Se as flores crescem, isso é ótimo. Se nossos filhos crescem, isso é ótimo. Mas se um câncer cresce, isso não é tão bom. Então, pensando no PIB, porque é disso que falamos quando tratamos de crescimento econômico, ele não mede coisas muito boas. Se a poluição aumenta, empresas ganham muito dinheiro com isso e o PIB aumenta, mas toda essa poluição tem de ser limpa, alguém tem de fazer algo a respeito, isso também custa dinheiro. Também existe uma grande quantidade de trabalhos importantes, como cuidar das crianças ou dos idosos, ou trabalhos voluntários que não estão relacionados com o PIB. No setor financeiro imenso que temos hoje, algumas partes são úteis, mas muitas outras não são e algumas acabam até destruindo riquezas, mas no conjunto elas aumentam o PIB. Acho que nós devemos abandonar essa medida. Talvez nos anos 30, 40, muito tempo atrás, ela ainda era útil, especialmente durante a 2.ª Guerra, quando tínhamos de construir tanques, aviões e o quanto fosse possível de munição. Lá podia fazer sentido olhar para esses dados e dizer que a economia estava avançando. Mas a guerra acabou. Nós vivemos em um mundo muito diferente. As coisas que fazem a vida valer a pena agora são outras. São as conexões humanas, a amizade, cuidar uns dos outros, e isso é muito difícil de mensurar.
Luciano Huck: Eu gosto desse ponto de vista, me faz pensar. Eu quero falar um pouco mais sobre o Brasil, Vivemos aqui uma confusão de narrativas. Ao mesmo tempo que temos um ambiente de negócios muito moderno, potente e cheio de oportunidades, temos hospitais públicos superlotados e uma diferença abissal na qualidade da educação entre a rede pública e a privada. Somos um país rico e miserável ao mesmo tempo. Temos que pensar nesta economia 4.0, inteligência artificial, fábricas e meios de transporte autônomos, mas ainda não conseguimos nem qualificar nossos professores e médicos como eles merecem e como a população demanda. Como você enxerga esse conflito?
Rutger Bregman: Sempre penso nas vias públicas quando entro nesse assunto. As vias são financiadas pela comunidade, e a qualidade delas depende do quão saudável a comunidade é. Se nós pagamos direito nossos impostos, teremos certeza de que as vias serão boas, de que não terão buracos, etc. O que acontece em vários países desiguais, como no Brasil, é que os ricos têm essas SUVs imensas, os carros mais fantásticos, mas têm de andar em ruas péssimas. E eu acho que faz mais sentido, e também é mais eficiente, porque você consegue ir mais rápido, se coletivamente nós garantirmos vias melhores. Talvez o seu carro não vai ser tão grande, talvez as SUVs vão ser menores, mas, no final das contas, você vai dirigir com mais segurança e conforto. Eu não acho que vai ser fácil, que as pessoas no poder vão entregar o poder sem lutar. Mas não precisa ser uma situação perde-ganha. Pode ser uma situação de ganha-ganha. É muito melhor ser rico num país igualitário. As pessoas ricas na Suécia ou na Noruega são muito mais felizes que as pessoas ricas no Brasil ou nos EUA. Elas não precisam viver em condomínios fechados, não precisam temer as pessoas pobres, as pessoas das favelas ou coisas assim.
“Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza”Luciano Huck
Luciano Huck: Você tem ideias sobre como nós podemos remodelar o capitalismo?
Rutger Bregman: Todo empreendedor precisa de capital, de algo para começar, para que possa investir e buscar um retorno para esse investimento. É aí que eu acho que devemos começar. Todos precisam de um capital inicial. Isso significa acesso a uma boa educação e de uma renda básica, algo em que possa se apoiar no caso de algum erro. No Vale do Silício, polo global de tecnologia e inovação, eles chamam isso de “capital do dane-se”. Você sempre precisa de dinheiro na sua conta para que você possa dizer não, para que você possa se demitir. O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter. Bilhões de pessoas no mundo não têm esse poder, pois elas são dependentes de seus empregos ruins, são dependentes das pessoas do topo. Eu quero viver em um mundo onde todos tenham um “capital do dane-se”, onde todos tenham o poder de dizer não e possam se mudar para outra cidade, se mudar para outra empresa ou até abrir uma empresa própria. As pessoas precisam ser capazes de correr riscos. Se você não consegue correr riscos, você não está em lugar nenhum. Todos deveriam ter essa chance de correr riscos. É claro que isso tem limites, mas eu acho que nós devemos construir uma base na nossa economia, algo em que você possa sempre confiar, que é essa renda básica. Obviamente, não é algo que te dá uma vida luxuosa, mas dá o suficiente para bancar as necessidades básicas, roupas, comida, abrigo, educação para seus filhos. Uma sociedade assim seria muito mais inovadora que qualquer outra.
Luciano Huck: No Brasil, todos os anos realizamos a Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. Em média, 18,2 milhões de alunos participam. Em 2019, 7.500 medalhas foram distribuídas – destas, 1.288 foram dadas a jovens beneficiários do Programa Bolsa Família. Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza. Ainda não chegamos a um grau ideal de eficiência por aqui. A pandemia expôs nossas desigualdades, e uma das mais complexas no Brasil é a da educação. Não me refiro ao acesso, porque hoje a maior parte das crianças e jovens vai à escola. Eu me refiro à qualidade. Nós ainda precisamos qualificar e valorizar os professores, unificar currículos e avançar para que algum dia a qualidade da escola do pobre seja equivalente à do rico. Além da desigualdade digital que também é um problema no Brasil, pois temos estudantes digitais em um sistema analógico. Você falou sobre educação e eu quero finalizar nossa conversa com isso.
Rutger Bregman: A educação poderia ser o grande fator igualitário. Acho que em sociedades justas não existem escolas particulares. Todos estudam no ensino público, mesmo as crianças ricas. A própria existência das escolas particulares é a admissão dos ricos de que o ensino público não é bom o suficiente. Outra coisa importante é que, em escolas públicas, pessoas de origens diferentes podem se conhecer, ricas, pobres, de diferentes etnias, isso vira um caldeirão, que é o que a vida real deveria ser. Eu também acredito em um sistema educacional no qual as crianças tenham um pouco mais de liberdade. As escolas tradicionais ainda são esses lugares hierárquicos onde os professores sabem tudo e tentam enfiar esse conhecimento nos cérebros dos estudantes. A criatividade surge com a liberdade, com a possibilidade de as crianças decidirem por si mesmas o que elas acham interessante. Não existe nenhum pai que precisou pagar ou obrigar o seu filho a começar andar. As crianças simplesmente andam. Nós criamos um sistema educacional que, no final, tira essa curiosidade natural da gente, tira essa motivação intrínseca. E, então, entramos para essa economia do conhecimento na qual tentamos construir um currículo ou um perfil no LinkedIn, trabalhamos durante 20 anos num emprego que não nos interessa, enviamos e-mails para pessoas das que não gostamos, vamos a reuniões que não achamos necessárias, vemos um monte de apresentações de Powerpoint... A escola do futuro não deveria preparar as pessoas só para ganhar tanto dinheiro quanto possível, mas para viver uma vida bem vivida, para tentar acrescentar algo à sociedade. Tudo isso começa com um pouco mais de liberdade para as crianças.
Luciano Huck: Muito obrigado! Foi uma conversa ótima e inspiradora.