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RPD || Entrevista - 'Pandemia aguçou a consciência de que somos um país em desenvolvimento', diz Lourdes Sola
Entrevistada especial desta 19ª edição da Revista Política Democrática Online, a professora Lourdes Sola alerta para o peso do corona vírus na economia e no tipo de reação a ele, não apenas na questão sanitária, mas no imperativo ético de como reagir a isso
Por Caetano Araujo, Alberto Aggio e Arlindo Fernandes
"A ocorrência da pandemia aguçou a consciência de que somos um país em desenvolvimento, o que vai condicionar nossa maneira de reagir ao Covid 19. Os economistas consideram a quantidade de jovens na população como um bônus demográfico, mesmos nas regiões menos favorecidas, onde seremos mais afetados", avalia a professora aposentada e pesquisadora senior do Departamento de Ciência Política (USP) e do Núcleo de Políticas Públicas da USP, Lourdes Sola, entrevistada especial desta 19a edição da Revista Política Democrática Online.
Sola, que é membro da Academia Brasileira de Ciências e presidiu a Associação Internacional de Ciência Política, questiona a liderança política do presidente Bolsonaro na condução da crise sanitária que país atravessa por conta da pandemia do corona vírus Covid-19. Para ela, "a frequência com que o presidente Bolsonaro atua, não para congregar apoios, mas para destruir maiorias. Se uma maioria se insinua no Congresso, ele se dedica a sabotá-la. Por isso, o papel os governadores recobra importância, tanto quanto a atuação do Supremo no fortalecimento do Federalismo de fato democrático do país. Preocupa-me também o protagonismo dos militares na cena política".
Autora de Estado, mercado, democracia política e economia comparadas (Paz e Terra, 1993), Reforma econômica, democratização e ordem legal no Brasil (Cepal, 1995) e Idéias econômicas, decisões políticas: desenvolvimento, estabilidade e populismo (Edusp, 1998), Lourdes Sola avalia que o Brasil também presencia um aumento significativo de riscos à democracia. "Bolsonaro nunca esteve sozinho. Logo que ele começou a contestar a forma de os governadores reagirem ao Covid, evidenciou-se para mim que não era só a família que o apoiava. Havia outros atores – nem sempre forças ocultas, mas semiocultas". "A incursão do presidente no STF foi acompanhada não por empresários, mas por lideranças das organizações empresariais, que alegam estar protegendo a indústria nacional. Pergunto-me se incluem, de fato, aqueles setores modernizadores, vocacionados a inovar, que está na linha de frente dos setores produtivos. Ou estão entre aqueles que esperam, de novo, capturar o Estado para eles?"
Na entrevista concedida à Revista Política Democrática Online, Lourdes Sola também destaca a questão da forte presença dos militares no governo Bolsonaro. "Como socióloga, reconheço que os militares no Palácio são de uma geração que pagou o estigma de golpista sem ter sido. E durante todo o processo de democratização, eles foram estigmatizados, e agora estão felizes de poder prestar serviços", avalia. Mas, ela alerta para a questão da tutela das instituições. "O que me preocupa, na verdade – e o texto recém-publicado do Mourão foi fonte disso – é que, no momento em que puseram, ao lado do então novo ministro da saúde (que já se demitiu), um militar como o segundo da pasta, como que tutelando o “chefe”, cheguei a pensar: se, até na saúde, é necessária a gestão por um militar, tem algo de podre no Reino da Dinamarca."
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Lourdes Sola:
Revista Política Democrática Online (RPD) Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (“A política da não política em tempos de Covid, 21/04”), você desenvolveu considerações sobre os desafios políticos e econômicos suscitados pela Covid-19, que, à luz da velocidade do avanço da presente conjuntura, talvez pudessem ser atualizadas. O que você tematizaria e aprofundaria?
Lourdes Sola (LS): Aprofundaria o peso do coronavírus na economia e no tipo de reação a ele. Quer dizer, não apenas na questão sanitária, mas o imperativo ético de como reagir a isso. Também insistiria na ideia de quais são as condições mínimas a serem preenchidas para se falar em liderança política.
A ocorrência da pandemia aguçou a consciência de que somos um país em desenvolvimento, o que vai condicionar nossa maneira de reagir ao Covid 19. Os economistas consideram a quantidade de jovens na população como um bônus demográfico, mesmo nas regiões menos favorecidas, onde seremos mais afetados. Só que, pelas características de nosso subdesenvolvimento, essas são regiões em que o PIB per capita é menor, as estruturas sanitárias são mais deficientes e há graves limitações do sistema hospitalar. Daí essa população, ainda que mais jovem, é atingida pela pandemia, cobrando número mais alto de internações na rede pública, sobretudo no Norte e Nordeste do Brasil. É uma situação que derruba, liminarmente, teses do tipo isolamento vertical. As caraterísticas demográficas – idade – associam-se às patogênicas, para reforçar o imperativo do isolamento coletivo, completo e absoluto.
Reafirmo minha visão de que nosso federalismo democrático é também desigual do ponto de vista de saúde, em termos da distribuição dos recursos nessa área. Alguém duvida que o Sul e o Sudeste sejam mais dotados de equipamentos e materiais hospitalares, bem como de profissionais mais qualificados na área da saúde?
Devemos, também, discutir a questão da liderança política em processos de democratização difícil, nos quais se tenha de combinar políticas de liberalização com as práticas do novo regime. É quando surgem lideranças mais eficazes, que logram gerar novos recursos de poder, a partir da revitalização das instituições e de sua transformação em outros instrumentos ainda mais eficazes de exercer o poder.
Exemplo disso foi a iniciativa de Fernando Henrique Cardoso, de reunir jovens da PUC-Rio com mais alguns de São Paulo e explorar o horizonte inovador do Plano Real. Era um recurso de poder novo, em que se lançou a URV. Eram as mesmas instituições, agora sendo geridas com novos recursos de poder, potencializadas para cruzar o Rubicão, a tão aspirada estabilidade depois de dez anos de ensaios frustrados. Com um mínimo de legitimidade democrática, recorreu-se ao processo persuasivo da televisão, conduzido pela voz sempre convincente de professores, e se alcançou o objetivo.
A meu ver, é a frequência com que o presidente atua, não para congregar apoios, mas para destruir maiorias. Se uma maioria se insinua no Congresso, ele se dedica a sabotá-la. Por isso, o papel dos governadores recobra importância, tanto quanto a atuação do Supremo no fortalecimento do federalismo de fato democrático do país. Preocupa-me também o protagonismo dos militares na cena política.
RPD: Um filósofo espanhol, Daniel Innerarity, diz que o grande problema da democracia é a simplificação. É possível imaginar que se possa resolver nossas crises em democracia seguindo trâmites simples e diretos, quando a própria democracia, mesmo antes dessa pandemia, enfrenta problemas da mais alta complexidade nos planos do Estado e da sociedade?
LS: Não li o texto e não sei se concordaria inteiramente com essa visão. Estamos envolvidos em um projeto de pesquisa, em que pretendemos analisar as conjunturas críticas do século XXI no Brasil. E a combinação do Covid com economia e política é, sem dúvida, uma grande conjuntura crítica. Estamos muito animados em examinar várias teses sobre a crise da democracia. Por exemplo: a globalização acabou ou só mudou de cara e adquiriu novos contornos? Depois de 2008, as regras do jogo mudaram, especialmente por causa da perda da hegemonia americana, das tensões com a China, da reorganização geopolítica do poder internacional etc. Mas a verdade é que cada vez mais me convenço de que a análise da crise da democracia tem de passar para um escala nacional. A maneira como a Argentina se insere na globalização não é a mesma do caso brasileiro, o tipo de complexidade é outro. Nosso federalismo, perto do argentino, acabou sendo mais disciplinado. Basta lembrar a condução da crise dos bancos públicos estaduais, na era FHC, um reordenamento pacífico, enfim, do pacto federativo A questão foi conduzida no âmbito do Banco Central, e isso não ocupa muito espaço nas análises políticas. Mas foi um momento-chave.
Estamos vivendo outro momento chave do pacto federativo e o nosso tem uma cara muito especial. Ele é parecido com o da Índia, pela enorme desigualdade regional. Mas, diferentemente da Índia, da Rússia e de outros países federativos, como os próprios Estados Unidos, dispomos de imensa vantagem: falamos a mesma língua. Nossa identidade não passa por um choque regional, apesar dos sotaques e particularidades das regiões brasileiras. Isso foi uma questão central na pacificação do país na época da Regência, no século XIX.
RPD: A democracia corre risco no Brasil e, em caso afirmativo, o que poderiam e deveriam fazer as forças democráticas? Existiria alguma vacina antiautoritária?
LS: Acho que tem havido aumento significativo de riscos à democracia. Apesar de ser em geral otimista, observei, desde o início deste mandato presidencial, que Bolsonaro nunca esteve sozinho. Logo que ele começou a contestar a forma de os governadores reagirem ao Covid, evidenciou-se para mim que não era só a família que o apoiava. Havia outros atores – nem sempre forças ocultas, mas semiocultas. Eram palacianas e, também, da estrutura de nosso Estado, que ainda peca por falta de democratização, permitindo que alguns atores exerçam influência, mesmo sem ocupar cargo institucional algum.
Refiro-me aos representantes de forças econômicas, que, ao longo da história, foram incapazes de pensar em termos de bens públicos, obstinados em tirar do Estado o que for possível. Sabemos que existem, conseguimos identificá-los, são corporativismos vários. Por exemplo: essa incursão do presidente no STF foi acompanhada não por empresários, mas por lideranças das organizações empresariais, que alegam estar protegendo a indústria nacional. Pergunto-me se incluem, de fato, aqueles segmentos modernizadores, vocacionados a inovar, que estão na linha de frente dos setores produtivos. Ou estão entre aqueles que esperam, de novo, capturar o Estado para eles?
Inquieta-me, também, a presença dos militares. Reconheço que os militares no Palácio são de uma geração que pagou o estigma de golpista sem ter sido. E durante todo o processo de democratização, eles foram estigmatizados, e agora estão felizes de poder prestar serviços. Até porque têm formação muito diferente da geração anterior, têm cabeça estratégica. Eles são oriundos do segundo e terceiro escalões das Forças Armadas, especialistas, com formação sofisticada em relações internacionais, falam inglês, circulam, sem mencionar a exposição que tiveram nas forças de paz, como o general Santos Cruz.
O que me preocupa, na verdade – e o texto recém-publicado do vice-presidente Mourão foi fonte disso – é que, no momento em que puseram, ao lado do então novo ministro da Saúde (que já se demitiu), um militar como segundo da pasta, como que tutelando o “chefe”, cheguei a pensar: se, até na saúde é necessária a gestão por um militar, tem algo de podre no Reino da Dinamarca. Isso me assustou, tanto mais diante da tradição de gente muito bem formada naquela área. Se alguma coisa nos dá orgulho e apareceu na Constituinte, foi a organização da turma da saúde. Sem os sanitaristas de formação ultra sólida, não existiria o SUS, hoje respeitado mundialmente.
RPD: Alguns analistas caracterizam o governo Bolsonaro como bonapartista, no sentido de que o Exército ou as Forças Armadas formariam um governo de militares, sem o AI-5. O artigo do Mourão faz uma espécie de insinuação de que, mais do que o governo, os militares estariam concebendo a ideia de um regime similar à la 64. Ou seja, uma ocupação do Estado pelos militares, não mais um governo, mas um novo regime que, mesmo mantendo a Constituição, mas com algumas intervenções institucionais, daria outra configuração a essa etapa, com ou sem Bolsonaro. A hipótese seria uma presença militar para além do governo. Ou seja, no sentido de que a crise sanitária, que se desdobra em econômica e política, pode ter uma solução que não passa pela opinião pública, nem pelo Congresso, nem pelo Judiciário. Mas passa por eles. Qual é sua opinião?
LS: Tomo muito cuidado com conceitos. E bonapartismo é um deles, com o qual trabalhei com carinho quando era mais jovem. Volto à complexidade antes mencionada. Nós, cientistas políticos, sociólogos, não temos conceitos que nos permitam entender o que está ocorrendo. Recorrer, agora, ao bonapartismo faz sentido em parte, porque há, na verdade, crises simultâneas se acoplando, como a ausência de manifestações de rua, por razões óbvias. Desse ponto de vista, caberia falar-se de uma espécie de experimento bonapartista, mas eu acho que não é o caso. Seria preciso certa personalização. O poder bonapartista é, por definição, pessoal.
O artigo do Mourão remete a escalas muito mais específicas. Com quem ele estava dialogando? Para quem falava? Minha primeira sensação – e daí a crítica – é que ele resolveu mandar um recado, e quem manda não é uma autoridade qualquer, é não só o vice-presidente, mas também um vice-presidente militar, quando já há militares bem instalados na infraestrutura, no Planalto. Enfim, existe de fato um governo com a presença muito mais sólida e estruturada desses atores. Para mim, o recado de Mourão é a leitura do “que nós achamos” da atuação situação do STF, do que é o federalismo americano – a meu ver, equivocada – e um pouco do Congresso, estendendo-se também à imprensa. Tem uma ausência, quando fala “cada um no seu lugar”. Ignora que todo Judiciário no mundo é proativo. Não é ativista, é proativo. E o nosso foi proativo em coisas do tipo comportamentais, por exemplo, em várias decisões anteriores. Então, a ideia da separação, tal como ele entende, de poderes, é cada um no seu quadrado. É verdade, mas o intérprete da Constituição ainda é o STF.
Vou a um segundo ponto, a questão federativa. É bom lembrar que os textos dos federalistas, repletos de debates entre os principais fundadores da democracia americana, revelavam que eles nem sempre se entendiam. Mas é acessório. O importante é que Mourão cita Jay, para justificar que os governadores se devam subordinar ao poder federal. O que se nota aí é a cabeça do militar versus a cabeça democrática. Do ponto de vista da cabeça democrática, os Estados Unidos, a essência do federalismo, têm uma divisão não apenas de competências, mas de soberanias. Um pedaço da soberania pertence ao Estado e ao município, onde o poder federal não entra. Todo e qualquer federalismo democrático é, por definição, uma divisão de soberania implícita. E Mourão caracteriza Jay como ideólogo americano, o que não é verdade, é só olhar o resultado.
A autonomia dos Estados americanos é muito maior. Tanto assim que, em um debate recente, Philippe Schmitter e Terry Lynn Karl trataram da “insubordinação” dos governadores vis-à-vis Trump. Terry, que é uma analista sutilíssima de mudanças de comportamento, fez-me um comentário, que merece ser transcrito nesta entrevista. Disse-me ela: “Havia governadores pelos quais não tínhamos o menor respeito, fosse por questões de corrupção, inoperância ou por serem muito ricos; a verdade é que estão se revelando verdadeiros heróis no combate ao Covid". Logo pensei em meus amigos que jamais votariam no Dória e que, hoje, mudariam de ideia. Não sei se ficou claro, mas o importante é que o Mourão entrou pela seara errada, usou a cabeça de militar para insistir em subordinação. Isso é centralização, ou seja, governar é centralizar o poder na esfera federal.
RPD: Acrescente-se que os textos dos federalistas, citados por Mourão, foram escritos para defender a ratificação da Constituição em Nova York, resolvendo o embate entre Federação versus confederação. Ninguém discutia o Estado unitário. Havia alguns argumentos com um viés um pouco centralizador, porque a Federação faz leis que se aplicam a todos os cidadãos. E a confederação faz a lei que se aplica ao Estado e o Estado diz como ela se aplica ao município. Daí ter sido possível a Mourão encontrar um que outro argumento em defesa da centralização. Mas essa não era a questão central.
LS: Está certo isso. Ouvi de um cientista político americano um comentário importante sobre o federalismo nos Estados Unidos e no Brasil. Dizia: “A origem do federalismo americano era de grupos independentes, localizados geograficamente, coming together. É o tipo de federalismo de convergência. Já o do Brasil, evoluiu-se no sentido contrário. É o holding together, um Poder Executivo que já vem do Império.”
E nisso tem o trabalho da Regência. Por pouco, o Brasil não implodiu, então, deixando de ser o que nos tornamos. A Regência conseguiu nos unificar e fazer com que todos falássemos a mesma língua. Nossa democratização ocorreu de cima para baixo, em um modelo de holding together. Golbery falava em movimentos de sístole e diástole, isto é, a alternância que a democracia registra entre centralização e descentralização. Nós, agora, vivemos o ponto na história mais acentuado de descentralização, beirando a rebeldia. Se Bolsonaro continuar assim, ninguém mais o ouvirá. Nem o Camilo Santana, nem o Dória, nem o Witzel. E, se ouvirem, estarão perdidos, inclusive eleitoralmente.
RPD: Insistindo no tema do Federalismo, sublinho não existir ilustração mais clara do que o confronto entre a declaração de Trump, de que os EUA denunciariam o acordo do clima, e a decisão de governadores, como os da Califórnia e de Nova York, em sentido diametralmente contrário, o que, na prática, tornou sem efeito o gesto do presidente. É mais ou menos isso que se está presenciando aqui em relação à pandemia, entre Bolsonaro e os vários governadores, mesmo que o governo, incluindo Mourão e os militares, achem o desencontro um absurdo.
LS: De pleno acordo.
RPD: Outra coisa: em 1964, os militares não precisaram ocupar os 27 Estados, porque a maioria dos governadores apoiou o golpe. Hoje, o quadro seria bem diferente. Será que alguém ainda cogita de promover uma quartelada?
LS: O artigo do Mourão tem uma concepção estruturada, hierárquica. Continuo a pensar que os militares de hoje não são golpistas, que é uma geração que está sofrendo algumas pressões e vivendo uma contradição: a da formação, que é hierárquica, e a do fenômeno novo, que reclama pôr a ordem na casa. A esperança se vincula ao Covid. No meu grupo de pesquisa, o número de mortes pela pandemia vai subir, e o Brasil aparecerá como pária, não apenas aos olhos do mundo, mas da América Latina. Isso já se está insinuando e esse é o tipo de argumento que pega os militares, adeptos como são da ideia do Brasil grande, um conceito estruturante entre eles.
Minha intuição sociológica diz que eles se debatem no interior de um conflito que os angustia diante de duas lógicas: a do fenômeno novo, que os governadores representam e que é interpretada como insubordinação, e a da disciplina hierárquica, do Executivo e da Federação entendida como hierarquia. Ao mesmo tempo, eles são muito sensíveis à reputação internacional. Só para dar um exemplo, participei de um evento no México, em que me pediram, de última hora, que participasse de um debate entre dois ex-presidentes, um da América Central e o outro da Colômbia. Foram muito delicados, até porque a cortesia latino-americana se acentua diante de uma mulher, mas viam o Brasil como uma ameaça. Não foi nada explícito, só que ficou latente.
Isso está acontecendo em escala mundial. Estava assistindo à BBC e à CNN, em que se destacava a entrevista do ex-ministro Mandetta, cuja primeira resposta aos jornalistas foi de que, em sua opinião, o Brasil terá um dos maiores números de mortos no planeta. A amplitude dessa repercussão pode pegar os militares.
Lourdes Sola: A política da não política em tempos de covid
A linha de transgressão está ultrapassada em várias frentes, pondo à prova nossas instituições
Diante das escolhas que a pandemia impõe aos gestores e trabalhadores da saúde, aos formuladores de política pública e aos governantes, as noções que até aqui dominaram o debate público ganham novos significados, mais dramáticos. A questão distributiva, antes equacionada em termos de desigualdade socioeconômica, de acesso à educação, à Justiça e à saúde, assume a forma de arbitragem entre quem sobrevive e quem morre. Ao mesmo tempo, a variação nas respostas dos países cria um campo de comparação fértil não só para os epidemiologistas, mas também para os cientistas sociais detectarem a influência de padrões socioculturais, demográficos, econômicos e políticos na abordagem da pandemia. É um campo aberto à análise comparada das políticas públicas adotadas “entre as névoas da guerra” - e põe à prova os critérios pelos quais se avalia a qualidade das lideranças políticas.
Em que pé estamos nós? A tomar como referência a Organização Mundial da Saúde (OMS), os padrões científicos adaptados ao nosso contexto, o saber acumulado por nossos cientistas e profissionais da saúde, o governo insiste em dobrar uma aposta arriscadíssima com o futuro do Brasil. Ao contrapor o distanciamento social horizontal, indispensável para prevenir o colapso da rede hospitalar, à economia, abstém-se de enfrentar os trade-offs necessários para uma saída ordenada da crise. Na raiz dessa aposta há um paradoxo: é a política da não política num cenário em que os desafios de governança democrática obrigam a enfrentar escolhas de altíssima densidade política. Cabe aqui considerar três: a forma que assume a questão distributiva entre nós hoje, os requisitos para o exercício da liderança política em conjunturas críticas e a recapacitação do Estado.
Pesquisa realizada na Universidade de Chicago (Valor, 11-13/4) indicou que o desafio distributivo nas regiões mais pobres assume a forma adicional de acesso à rede hospitalar também por jovens e adultos. Com base nas características demográficas e patogênicas da população brasileira, num cenário em que 30% das pessoas fossem infectadas, os 66% com necessidade de internação teriam menos de 65 anos: 34% entre 45 e 64 anos, 28% na faixa entre 18 e 44. Para esta última, a necessidade seria tanto maior quanto mais jovem a população e menor o PIB per capita, ou seja, o Norte e o Nordeste: da ordem de 76% no Amazonas e Amapá, quase isso em Tocantins, Roraima e Acre.
A tragédia observada em Manaus indica que o distanciamento social nessas regiões era e é tão indispensável quanto no Sul e no Sudeste, mais envelhecidos, dadas a menor capilaridade do SUS nessas regiões e as características patogênicas da população jovem (por investigar).
Como registra o professor Delfim Netto (Estado, 27/4), a pandemia obriga a rever os critérios definidores de soberania nacional, de modo a incluir a saúde - e os investimentos na rede de proteção do SUS - entre os objetivos estratégicos do Estado.
Tudo o que sabemos sobre o exercício de uma liderança política em conjunturas críticas, em democracias, pode ser resumido numa sentença. Aplica-se ao governante que, diante de uma encruzilhada, é capaz de gerar novos recursos de poder a partir das instituições dadas - um atributo indispensável para legitimar a criação/recriação de novas instituições necessárias para confrontar a crise. São as características de um empreendedor político, com animal spirits suficientes, no caso, para recapacitar o Estado a redefinir suas funções e exercer os novos papéis que a conjuntura requer. Governar o Brasil nessas condições requer a construção de maiorias em dois eixos: o parlamentar, território do Congresso; e o federativo, dos governadores e prefeitos.
Em contraste com esses requisitos, as decisões presidenciais evidenciam um impulso de desconstrução sistemática das maiorias forjadas até aqui. A começar pela opinião pública, que se manifestara favorável à opção temporária pelo distanciamento social nos moldes propostos pela equipe de Mandetta. Para compor o quadro paradoxal dois alvos móveis têm sido objeto da metralhadora presidencial: as maiorias duramente forjadas no Congresso por Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre em torno da agenda de reformas do governo e a maioria suprapartidária inédita forjada pelos governadores antes mesmo da pandemia em apoio ao governo do Ceará. Se a reconstrução da economia e do Estado importa, não seria esse o caminho?
A desconstrução de lideranças leva o presidente e seu círculo a forjar maiorias com os partidos que no passado participaram do processo de captura do Estado por interesses particularistas. A tentativa de desconstrução da PF, da Lava Jato e da imagem do ex-ministro Moro compõe o quadro. A linha de transgressão está ultrapassada em várias frentes. É nelas que a resiliência de nossas instituições é posta à prova: na reativação das barreiras institucionais situadas no sistema de Justiça, nos eixos federativo e parlamentar; e nos critérios de recapacitação político-econômica do Estado com foco estratégico nas políticas de saúde e na árdua reconstrução da economia.
*Professora aposentada do Departamento de Ciência Política (USP), membro da Academia Brasileira de Ciências, presidiu a Associação Internacional de Ciência Política
Lourdes Sola: O eleitorado mira o ‘efeito túnel’
Liderança do ‘defensor dos ricos’ é atribuída às aspirações das classes médias emergentes
Vivemos uma conjuntura crítica, quem não sabe? Em alguns aspectos, sem paralelo na nossa História ou na trajetória de outras democracias jovens, menos ainda nas democracias do Atlântico Norte. Mas podem-se traçar paralelos com a maioria delas. A razão é que quase todas passam por transformações que podem genuinamente ser caracterizadas como deslocamentos de placas tectônicas. Compartilham um grau de polarização inédito em relação à História (recente) de cada uma delas.
Mais intrigante ainda, em quase todas se registra a dominância da política sobre a economia. Pois o que a literatura jornalística analisa como “crise da democracia” ou “o risco de regressão autoritária” inclui tanto casos de prosperidade quanto de crise econômica. Exemplos: o estilo divisionista de Trump, mesmo com pleno emprego; um Brexit problemático, sem crise; a regressão autoritária na Turquia de Erdogan ganhou impulso com altas taxas de crescimento. É o caso também de Orbán, na Hungria, e Moraviecki, na Polônia - cujo “sonho é (re)cristianizar a Europa”. De fato, não é só a economia, idiota.
Analistas políticos selecionam uma ou outra desse rico menu de opções sombrias focalizando o risco de uma regressão autoritária, com base na ideia de uma “guerra cultural”, entre valores opostos. O problema existe, mas essa noção não faz jus à dominância da política, tampouco às características distintivas da nossa conjuntura. E essa é uma falta grave para os que querem situar-se no território da oposição democrática. Como lembrou Gabeira neste espaço (19/10), o horizonte de alianças políticas para quem defende o meio ambiente, direitos humanos e os das minorias se estreita, mas está longe de se fechar. Concordo também com sua caracterização da cena eleitoral, “talvez mais reveladora do Brasil que as outras”, desde que se a mire, como ele, com olhos de ver.
A ênfase dominante na dimensão cultural leva a crer que as inclinações autoritárias da sociedade, antes submersas, vieram à tona de repente - ao contrário do que registram os índices de aderência à democracia, os mais altos desde 1989 conforme o Datafolha. Pior, obscurece a resiliência do ethos democrático (e das instituições), apesar da sucessão de traumas, a Lava Jato, o impeachment, a falência do sistema partidário. Ao mesmo tempo, o eleitor nunca esteve tão bem servido de informações e de análises doutas: com pesquisas de opinião, de alta qualidade, cujo efeito multiplicador a mídia e as redes repercutem em escala ampliada.
Se é assim, como situar a “maré conservadora”? Em primeiro lugar, mirando as bases sociais da política, como ensina a teoria política. Quer dizer, mirando os critérios de legitimação por meio dos quais a sociedade valida o exercício do poder por quem o exerce. (Nenhum governo autoritário se impõe só pela força.) Esses critérios mudaram e não foram internalizados pelos principais players. A nossa é uma crise de legitimação política que, superposta à crise do sistema partidário, adquiriu os contornos ameaçadores de crise de autoridade - mais aguda para os do andar de baixo. É assim que explico o sentimento anti-PT. Menos do que uma rejeição do ethos igualitário - afinal, graças a ele o partido foi eleito e governou juntamente com “as elites” -, reflete a inoperância dos seus cálculos políticos e da reiteração de seus velhos automatismos. Quer dizer, a postura “nós contra eles”, a aposta preferencial em sua hegemonia, a contestação do sistema de Justiça - e uma agenda econômica do tipo Dilma 3.
Mas afinal, em que mudaram os critérios de legitimação política? Em que ajudam a entender a conjuntura atual? Uma de suas características distintivas - este é o segundo aspecto - consiste no fato de que a nossa é uma crise dual, política e econômica. A análise dos riscos políticos deve embutir a dimensão econômica, sob pena de se delegar essa tarefa exclusivamente ao mercado. Entre as várias mudanças nos critérios de legitimação, analistas do Datafolha Paulino e Janoni (Folha, 19/10, A10) registram uma verdadeira mutação. Pela primeira vez o candidato identificado como “defensor dos ricos” lidera as pesquisas, na contramão das eleições anteriores, quando esse era o atributo dos derrotados (Serra, Alckmin, Aécio). Atribuem isso à mudança na composição da sociedade brasileira, ou seja, ao papel estratégico das classes médias emergentes, de escolaridade média ou superior, mas baixos salários. Suas aspirações refletem aburguesamento: ordem nos serviços públicos, segurança na vida privada (família) , para “alcançar por méritos próprios (trabalho)” os padrões das classes mais altas.
Esse fenômeno inédito pode ser aprofundado à luz de uma das contribuições de Albert Hirschman quando há 40 anos se debruçou sobre um paradoxo: a tolerância pela desigualdade entre os “setores deixados para trás” era maior justamente quando ela aumentava, isto é, durante o crescimento acelerado. A percepção do aumento da desigualdade emergia apenas na reversão do ciclo econômico, pela demanda por reformas - impondo-se então aos governantes uma correção de rumos e também reformas redistributivas. O paradoxo resultava da expectativa fundada na experiência, ou seja, os evidências de aumento generalizado da renda em termos absolutos nos anos de bonança permitia projetar sobre o futuro a hipótese de que a fila continuaria avançando . É o efeito túnel. Ele legitima os governos incumbentes enquanto dura o crescimento.
Entendo que o esgotamento desse efeito explica o eleitor de Trump e os do Brexit, por exemplo, mas aqui assume outros contornos. A bonança trouxe redução, e não o aumento das desigualdade, graças à integração (parcial) à economia global e às políticas distributivas do PT. Mas a ação corretiva exige reformas econômicas que implicam redistribuição de privilégios e de penalidades, além das necessárias para barrar a captura do Estado.
* Lourdes Sola é cientista política, pesquisadora sênior da USP, foi presidente da Associação Internacional de Ciência Política